Nº 2515/2516 - Agosto/Setembro de 2011
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Os Navios e as Técnicas Náuticas Atlânticas nos Séculos XV e XVI: Os Pilares da Estratégia 3C
Almirante
António Manuel Fernandes da Silva Ribeiro
1. Introdução
 
Com o presente trabalho pretendemos mostrar como a evolução conjugada dos navios e das técnicas náuticas atlânticas desenvolvidos pelos portugueses, permitiram pôr em prática uma estratégia marítima que, entre os séculos XV e XVI, se destinou a conhecer, comerciar e combater (estratégia 3C) no mar e a partir do mar, de forma a conferir a Portugal uma função de enorme relevo na concretização do marco civilizacional conhecido como Época dos Descobrimentos. A estratégia 3C permitiu inaugurar uma nova etapa no conhecimento geográfico, alcançar e controlar as fontes de riquezas e, em simultâneo, conter a oposição às pretensões portuguesas. Desta forma, desencadeou a era do poder marítimo, caracterizada pelo emprego global e simultâneo de navios em actividades científicas, económicas e político-militares, de modo a garantir o uso do mar em função dos interesses nacionais, em tempo de paz ou de guerra, o que conferiu a Portugal uma enorme relevância marítima do século XV ao XVI.
 
Embora o assunto, pela sua vastidão e complexidade, requeira estudos pluridisciplinares mais aprofundados, neste trabalho procuramos estabelecer aquilo que se nos afigura terem sido os principais tipos de navios desenvolvidos ou utilizados pelos portugueses para realizar as actividades marítimas, com o intuito de identificar as suas características determinantes e períodos de emprego ao serviço da estratégia 3C: 1415-1487; 1487-1509; e 1509-1550. Abordaremos, também, as técnicas náuticas, de forma a avaliar em que medida os instrumentos, os processos e os documentos que as suportam, foram indispensáveis para a realização dos levantamentos hidrográficos, para a prática de entrepostos e para a projecção da força naval feita por Portugal à escala global.
 
No capítulo dedicado aos tipos de navios, debatemos as características técnicas determinantes das caravelas, das naus e dos galeões, estabelecendo, entre outros aspectos, a relação entre a sua dimensão e a evolução do respectivo aparelho vélico, bem como as correspondentes funções, quando
integrados em frotas, armadas e comboios. Procuramos, igualmente, explicar a relação entre a supremacia naval portuguesa e a versatilidade náutica da caravela, a capacidade de carga da nau e o poder de fogo do galeão, para o que recorremos às relações entre a velocidade, a manobrabilidade e o armamento destes tipos de navios. Também pretendemos evidenciar que, embora a nau seja um navio muito relevante no período estudado, é indispensável considerar a caravela e o galeão, detalhando as suas características relativamente à dimensão e aparelho vélico, porque só assim se percebe cabalmente como, de forma conjugada, permitiram o domínio marítimo e conferiram corpo ao primeiro pilar da estratégia 3C.
 
No capítulo dedicado às técnicas náuticas, começamos por averiguar em que medida a introdução da agulha de marear implicou uma nova forma de navegar, ao mesmo tempo que a sua evolução, ao nível da constituição e da estabilidade, se reflectiu num maior rigor dos rumos e, consequentemente, da posição dos lugares na carta náutica. Seguidamente, analisamos as cartas-
-portulano, caracterizando a sua utilidade náutica, a técnica do traçado do ponto de fantasia e as manifestas insuficiências de detalhe junto à costa, razões que explicam a necessidade dos portulanos continuarem a ser utilizados. Prosseguimos, descrevendo a técnica de construção e actualização da carta náutica, o uso da toleta de marteloio e as deficiências das representações geográficas devidas à não homogeneidade do magnetismo terrestre. De seguida, caracterizamos as cinco fases de evolução da náutica astronómica portuguesa, entre meados do século XV e meados do século XVI, evidenciando as repercussões que tiveram no rigor da navegação e da cartografia, no que concerne, respectivamente, ao posicionamento dos navios e à geo-localização dos lugares na superfície da Terra. Neste contexto, apresentamos os esforços realizados para desenvolver ou adaptar os instrumentos, os processos e os documentos que, ao conferirem corpo às técnicas náuticas portuguesas, constituíram o segundo pilar da estratégia 3C.
 

 
2. Os navios
 
Os navios de vela sofreram mais alterações entre 1400 e 1550 do que em todo o período posterior1. Embora com diferentes funções, foram diversos os tipos de navios que constituíram o primeiro pilar da estratégia 3C, adoptada por Portugal para conhecer, comerciar e combater no mar e a partir do mar, entre os séculos XV e XVI. Neste contexto, adquiriram especial relevância a caravela, a nau e o galeão, na medida em que as suas características foram determinantes para conferir maior abrangência ao vasto leque de actividades marítimas, ao mesmo tempo que conduziram a um melhor desempenho operacional dos portugueses no mar e partir do mar.

Fig. 1 - Caravela latina do início do século XVI representada no Retábulo de Santa Auta
 
A caravela, ou caravela latina (Fig. 1), esse navio quase mítico que marcou a primeira fase dos Descobrimentos Portugueses, aparece, durante séculos, na mais diversa documentação. Distinguiu-se pela sua versatilidade náutica, pelo que foi decisivo nas actividades marítimas destinadas a conhecer a geografia do nosso planeta. Todavia, na nossa despretensiosa apreciação, foi João da Gama Pimentel Barata quem conseguiu descrever a utilização da caravela de for­ma tão sucinta quanto definitiva: «Este navio elegante, harmonioso, teve uma vida de cinco séculos, durante os quais foi pescador, comer­ciante, guerreiro e pioneiro»2.
 
O seu pequeno calado, aliado a uma manobra simples e a uma capacidade de carga adequada, terão constitu­ído trunfos fundamentais para a sua utilização intensiva e percursora nas viagens de exploração de costas, ilhas, rios e baixos desconhecidos. Armava com um a três mastros, todos latinos, dispondo de castelo de popa para abrigo dos que nela navegavam.
 
Convém referir que a vela latina utilizada nas caravelas e noutros navios do Me­diterrâneo, além de permitir navegar mais chegado ao vento, veio, acima de tudo, tornar prática a manobra de virar de bordo por davante, que consiste em passar o vento para o bordo oposto, pela proa do navio. Este último factor cedo se revelou crucial, nome­adamente em locais confinados, pois o navio, no decorrer da manobra, não perdia barlaven­to. Por seu turno, a manobra de virar de bordo por parte do navio de pano redondo - a nau e o galeão - só era possível fazendo passar o vento pela li­nha de popa, conhecida por virar em roda. A única vantagem que daqui advém é o facto de ser uma manobra isenta de risco e que não exige grande coordenação, contrariamente ao virar por davante. O problema é que o navio perde barlavento, o que pode tornar desaconselhada a prática dessa manobra em espaços confinados, na pro­ximidade de perigos ou em determinadas situações de combate. Em qualquer dos casos, para a navegação com vento constante para ré do través, a vela redonda é insubstituível, o que nos impele a concluir que o desenvolvimento da caravela redonda, provavelmente em fi­nais do século XV, mais não foi do que uma tentativa para combinar, num único navio de considerável porte, as vantagens reconhecidas a cada um dos tipos de velas e aparelhos. E, a avaliar pelo período em que se manteve ao serviço, a caravela redonda parece ter sido um sucesso, pelo menos na óptica da utilização mais comum, um misto de navio hidrográfico, de transporte e de guerra, fundamental à estratégia 3C, concebida e operacionalizada por Portugal para afirmar os seus interesses à escala global.
A caravela redonda largava pano latino de bastardo nos três mastros situados mais a ré, diferindo da caravela latina pelo facto de dispor de castelo de proa, só possível porque no mastro de vante (traquete) contava com velas redondas. Tudo indica que foram utilizadas até meados do século XVII, nomeadamente na carreira da Índia, mas também como navio de combate e de transporte no Índico, havendo notícia de em 1656 ainda existir em Portugal uma força naval constituída por este tipo de navios3.
 
Aparentemente, foi a necessidade conjugada de transportar mais carga e de dispor de pesadas peças de artilharia a bordo, que levou ao aumento das dimensões da caravela redonda. Neste sentido, com o intuito de manter o centro de gravidade baixo, como forma de não comprometer a estabilida­de, foram aumentados o pontal e o cala­do, viabilizando assim a existência de vários pavimen­tos (cobertas) no seu interior.
 
O termo nau foi empregue pelos portugueses para designar os navios de alto bordo, os quais, pela sua capacidade de carga, foram prioritariamente utilizados no comércio marítimo. Terão sido as condições de ven­tos favoráveis experimentadas com o advento da volta pelo largo no Atlântico Sul, com o objectivo de dobrar o cabo da Boa Esperança, que fizeram evo­luir a construção naval para a concepção e produção do navio que, doravante, passou a designar-se como nau da carreira da Índia. Tratava-se de um navio de grande porte, com acastelamentos à proa e à popa, que dispunha, maioritariamente, de pano redondo, tendo em vista tirar proveito dos denominados ventos gerais, nas viagens transoceânicas para o Oriente e, posteriormente, no Índico.
 
Mantendo as características básicas iniciais, a nau viu aumentar as respectivas dimensões, por necessidade de uma maior capacidade de carga. No entanto, o incremento do porte trouxe consigo dificuldades acrescidas, que se traduziram numa diminui­ção drástica da manobrabilidade e da ve­locidade, com consequências óbvias para os aspectos da defesa própria, quando em presença de navios menores e bem armados, mais velozes e manobráveis.
 
Em termos de aparelho vélico, as naus dos séculos XVI a XVII dispunham de três mastros. Nos dois situados mais a vante, traquete e grande, largavam pano redondo, ao passo que no de ré, a mezena, envergava pano latino de bastardo, também conhecido como vela-ré. Se a capacidade de carga foi aumentando progressivamente, o seu armamento traduziu-se, igualmente, num crescente número de peças e respectivos calibres.
 
É perfeitamente admissível que o incre­mento das dimensões, da capacidade de carga e do armamento da nau, tenham estado na base do au­mento da respectiva área vélica, traduzido pelo aparecimento de velas distribuí­das um pouco por todo o navio, longitudinal e verticalmente, cujo objectivo passava, também, por conferir equilíbrio ao conjunto. Terá sido em resposta a tal exigência que, à proa, surgiu uma verga, sen­sivelmente a meio do gurupés, onde envergava a vela de cevadei­ra. Posteriormente, passaram a existir no mastro grande duas vergas, tendo o mesmo processo sido adoptado no mastro do traquete. As vergas superiores adquiriram, respectivamente, as designações de gávea e velacho, mantendo as inferiores a denominação do pró­prio mastro. No entanto, apesar destas melhorias, com ventos fra­cos o navio continuava a revelar-se lento, razão pela qual passou a ser cosido, nas esteiras dos papa-figos, um acrescento de pano denominado moneta. Em termos exclusivamente vélicos, com a introdução destes melhoramentos, a nau passou a ser um navio mais versátil e seguro. Assim, com vento fraco todo o pano exis­tente a bordo era caçado. No entanto, à medida que este ia refrescando, eram carregadas a ceva­deira e as gáveas, sendo descosidas as monetas. A primeira, apesar da sua posição baixa não colocar em risco a estabilidade do navio, era carregada logo que o estado do mar o justificava, caso contrário a vaga, por acção do caturrar, poderia levar à perda do gurupés, comprometendo, em definitivo, o aparelho vélico e a segurança do navio.
 
Em sentido lato, e certamente por navegarem em companhia, a palavra nau tanto era utilizada para designar as naus propriamente ditas como os galeões, navios igualmente de grande porte, mas com uma morfologia que não era de todo coincidente. Como facilmente se percebe, face às limitações no que respeita à manobrabilidade e à velocidade, as naus, car­regadas com as riquezas vindas do Orien­te, cedo constituíram presas fáceis dos corsários. Nestas condições de sobrecarga, as suas qualidades náuticas eram substancialmente reduzidas, nomeadamente a capacidade, já de si fraca, em navegar che­gado ao vento. Atendendo a estas limitações, as naus eram, por norma, protegidas pelos galeões, navios com grande poder de fogo e, por isso, destinados a combater.
 
O galeão português terá surgido, provavelmente, durante o primeiro quartel do século XVI, contribuindo para a hegemonia de Portugal no Oriente. Tratava-se de um navio mais robusto e melhor armado, com menor capacidade de carga do que as naus utilizadas no transporte de mercadorias, mas que se revelou especialmente adequado à escolta destas em frotas, armadas e comboios, designadamente, na carreira da Índia. Na opinião do padre Fernando Oliveira «não são tão poucos os navios que não passem de cento, com os da Índia senão quanto alguns deles são muito grandes, e de mais força e despesa que as galés, porque são galeões de alto bordo de quinhentos e seiscentos tonéis de porte e de mais, que vale um por muitas galés».
 
Pela iconografia estudada, afigura-se-nos verosímil que, em termos estruturais, o ga­leão possa constituir uma evolução da caravela redonda. Com efeito, a observação de uma imagem das Tábuas dos Roteiros da Índia de D. João de Castro (Fig. 2), parece conferir alguma credibilidade a esta tese. Aliás, chama desde logo a nossa atenção o facto do galeão (em cima, à direita), contrariamente ao que su­cede com as duas naus (em cima, à esquerda), contar com castelo de proa mais discreto e cas­co mais afilado, tal como a caravela redonda, o que é devidamente comprova­do pela maior relação entre o comprimento e a boca. Ambas as características, aliadas a um armamento poderoso e linhas mais hidrodinâmicas ao nível das obras vivas, fizeram do galeão, nos séculos XVI e XVII, o navio de guerra português por excelência. De resto, o seu casco contava com uma maior den­sidade de balizas e longarinas, o que tornava a construção mais sólida e, acima de tudo, mais resistente aos pro­jécteis da artilharia naval.
 

 
Fig. 2 - Naus, galeão, caravela redonda e galés, numa imagem do Roteiro de D. João de Castro
 
Numa primeira fase, o galeão português dispunha de esporão e aparelhava com três mastros, os dois de vante redondos e o de ré latino. Fruto da natural evolução suscitada por novas exigências bélicas, passou, posteriormente, a contar com quatro mastros. Com esta configuração eram dotados apenas os navios de maior porte, sendo que os dois mastros situados mais a ré apenas dispunham de pano latino.
 
Um outro pormenor que se distingue no galeão é a presen­ça de um beque de dimensões apreciáveis, prolongando, ho­rizontalmente e para vante, a roda-de-proa. Em nosso entender este requi­sito, que já podia ser detectado na caravela redonda, parece ser pro­va do maior esforço exigido ao guru­pés, ao qual não será alheio o facto de, tanto a altura dos mastros como a superfície vélica terem crescido com o tempo.
 
Por outro lado, a forma afilada do casco permi­tia-lhe atingir uma maior velocidade, enquanto a menor altura do castelo de proa lhe conferia qualidades mais veleiras, nomeadamente maior capacidade para orçar e nave­gar a uma bolina mais cerrada, com vantagem para a manobra em espaços confinados. O grande poder de fogo destes navios, tendia a de­sequilibrar, a seu favor, o desfecho das contendas travadas no mar, tendo sido utilizados no Atlântico e no Índico.
 
Cumpre referir que a verga da vela grande, habitual­mente era mantida arriada quan­do o navio se encontrava fundeado, minimizando a acção do vento no respectivo aparelho, conferindo, por isso, maior se­gurança nessas condições, especialmente em fundeadouros com tença mais fraca. O procedimento descrito pode ser observado no excelente desenho das Tábuas dos Roteiros da Índia de D. João de Castro antes apresentado, onde se verifica estar arriada a verga da vela grande, tanto no galeão como nas duas naus que se encontram fundeadas. Na parte inferior deste desenho, podem ainda ver-se duas galés (esquerda) navegando a remos e uma caravela redonda fundeada (direita).
Em meados do século XVII os galeões viram acrescentada uma terceira verga (joanete) em cada um dos mas­tros, onde passou a envergar mais uma vela redon­da, que recebeu igual designação. Além de ampliar a área vélica, com vista a aumentar a velocidade do navio, conferia também maior flexibilidade à gestão do pano, de acordo com as caprichosas alterações do vento.
 
Como refere Marques Esparteiro, o galeão era «muitíssimo superior à nau como navio de guerra, de vela, em poder ofensivo, manobra, velocidade e em bolina»4. Ainda segundo este autor, terão sido as guerras no Oriente, contra os holandeses, que ditaram o seu desaparecimento, em virtude da sua velocidade e manobrabilidade perderem francamente para os navios flamengos. Não obstante, tudo indica que a esquadra de cruzeiro na costa de Portugal ainda contava com um galeão em 1676, provavelmente um dos últimos exemplares5, sendo que a sua extinção foi ditada pelo advento de navios de combate com melhores características, as naus de guerra e as fragatas.
 
Muito embora os portugueses tenham utilizado outros tipos de navios na expansão marítima realizada a partir de 1415, designadamente, barcas, barinéis, caravelões e bergantins no Atlântico, além de patachos, galés e fustas nas escaramuças travadas pela afirmação no Índico, foram a capacidade de carga da nau e o poder de fogo do galeão que serviram de esteio à estratégia 3C, em grande medida secundadas pela versatilidade náutica das caravelas latina e redonda. Na realidade, tudo indica que a maioria dos avanços hidrográficos e cartográficos, essenciais à prática, em segurança, dos portos do Índico, bem como nas costas africana e brasileira, foram, em primeiro lugar, proporcionados pelas caravelas latina e redonda. Foi com este tipo de navios que se recolheram os importantes elementos sobre os regimes dos ventos, marés, profundidades, correntes, perigos e localização rigorosa dos diferentes lugares, dos quais resultaram os primeiros documentos náuticos portugueses. Neste sentido, as caravelas latina e redonda podem, sem favor, ser consideradas os verdadeiros navios hidrográficos dos Descobrimentos. Sem a sua acção, por se tratarem de navios particularmente adequados a tal tarefa, não teria sido possível cartografar costas e ilhas, identificar baixos e escolhos, ou explorar angras e fozes de rios, conferindo, assim, condições para que os navios mais valiosos - naus e galeões - pudessem navegar em segurança, comerciar com proveito e projectar força com sucesso. Neste contexto, como já se referiu, a acção dos diferentes navios não pode ser vista de forma isolada, pois sempre foi a necessidade das circunstâncias a ditar o tipo a utilizar. Tendo presente o objectivo político português de alcançar e manter o monopólio da navegação e do comércio com o Oriente, podemos considerar que os principais tipos de navios antes caracterizados, prestaram serviços da maior relevância à estratégia 3C, em três períodos distintos.
 
No início do século XV os portugueses sabiam que, no mar, enquanto não se produzisse o choque entre a cultura ocidental e oriental, onde havia povos com armadas poderosas, não haveria necessidade de realizar combates navais decisivos. Por isso, inicialmente, foram utilizados navios ligeiros, dispondo de maior velocidade e manobrabilidade. Desta forma, o procedimento português no primeiro período da estratégia 3C (1415-1487), caracterizou-se por ser dirigido à ocupação das ilhas atlânticas e outros pontos de apoio relevantes na costa africana até ao Cabo Bojador, de forma a garantir o domínio do Atlântico. Para este efeito, foram utilizados navios de ocasião, como barcas, barinéis e caravelões. Em simultâneo, realizou-se o imprescindível estudo sistemático dos agentes físicos do Atlântico, com particular relevância para o regime de ventos e correntes, ao mesmo tempo que progredia a exploração da costa africana em busca de passagem para o Índico. Nestas tarefas foi usada, preferencialmente, a caravela latina. Facto novo neste período é a inclusão, na esquadra de Bartolomeu Dias, de um navio destinado exclusivamente ao apoio logístico. Esta importante evolução, verificada em 1487, deve-se ao facto de, nesta altura, já se navegar muito longe de Portugal e o abastecimento de víveres no Atlântico Sul ser particularmente difícil e incerto. No sentido de tirar partido das descobertas efectuadas para atingir o objectivo comercial, foram posteriormente empregues navios de maior porte, como as naus, os galeões e as caravelas redondas, que podiam transportar mercadorias, artilharia e forças de desembarque.
No segundo período da estratégia 3C (1487-1509), o procedimento português caracterizou-se por ser dirigido: ao incremento do comércio nas costas do Índico, bem como à conquista e manutenção de pontos de apoio à navegação; à prossecução da prática de sonegar, às restantes potências marítimas da Europa, o conhecimento dos portugueses sobre hidrografia e cartografia do Hemisfério Sul; e à procura do combate naval, como meio directo para destruir o poder marítimo do inimigo.
 
Neste período há, simultaneamente, navios a descobrir (conhecer) as costas e os mares do Índico, a demandar os entrepostos africanos e indianos (comerciar) e a projectar força no mar e a partir do mar (combater) empenhamentos que, de forma implícita, deixam transparecer o paradigma da estratégia 3C. A descobrir, no Atlântico e no Índico, continuaram a ser usadas, preferencialmente, as caravelas latinas e redondas, navios rápidos e de grande manobrabilidade. A demandar entrepostos comerciais e a projectar força foram utilizadas, sobretudo, as naus, que, além de possuírem defesa autónoma, dispunham também de maior capacidade de carga.
 
Em 1503, tendo em vista dar resposta às crescentes disputas e conflitos no Índico, D. Manuel I procedeu à divisão dos agrupamentos de navios em função da finalidade a que se destinavam. Para a guerra, passaram a ser usadas armadas, compostas por navios ligeiros, rápidos e bem artilhados, de forma a obter o melhor desempenho nos combates navais. Para o comércio, foram construídas frotas, compostas por navios maiores, que privilegiavam a capacidade de carga em detrimento da velocidade, da manobrabilidade e do armamento. Para descobrir continuaram a ser utilizados navios de pequena dimensão e reduzido calado, alguns dos quais combinavam a propulsão a remos com a vela.
 
É neste período que se dá, verdadeiramente, início à era do poder marítimo, porque, pela primeira vez, uma potência emprega, globalmente e em simultâneo, navios em actividades científicas, económicas e político-militares, de forma a garantir o uso do mar em função dos seus interesses nacionais em tempo de paz ou de guerra.
 
No terceiro período da estratégia 3C (1509-1550) intensificou-se a recolha de informação de cariz hidrográfico no Brasil, o mesmo sucedendo relativamente a toda a costa africana e em certas regiões no Oriente, nomeadamente naquelas onde se encontravam localizados os interesses estratégicos portugueses. Apesar de se terem empenhado navios em missões exclusivamente hidrográficas, só se nos afigura possível a recolha de tão grande quantidade de informação geográfica, num prazo de tempo tão curto, com o contributo activo dos pilotos que se encontravam embarcados em todos os tipos de navios. Neste período, o procedimento português no quadro da estratégia 3C caracterizou-se por ser dirigido: à obtenção de novos pontos para apoio à navegação e comércio, agora estendidos para o Sueste asiático, que se vieram juntar aos anteriormente existentes, quer no Atlântico, quer no Índico ocidental; ao abandono do combate naval, como meio principal e directo para garantir o controlo dos mares; ao estabelecimento de uma base principal de apoio logístico e operacional no Oriente, representada pelo território de Goa; à definição e execução da que tem sido denominada por «Política dos Estreitos», materializada nas conquistas da ilha de Socotorá, de Ormuz e, por último, de Malaca, além da tentativa fracassada para conquistar Áden.
 
A necessidade de controlar eficazmente a navegação do Índico, de forma a garantir o monopólio do comércio das especiarias, levou alguns estrategas portugueses a considerar que era imperativo estender os requisitos iniciais de domínio do mar, para a conquista de posições estratégicas em terra. Nesta tarefa, estiveram envolvidos os navios de maior poder de fogo, sobretudo naus e galeões. Porém, também participaram outros de menor porte (caravelas redondas, galés e fustas), que conferiram melhor desempenho às armadas constituídas com o objectivo de desenvolver acções de projecção de força em terra, mas que, como anteriormente se referiu, não descuravam a recolha de informações estratégicas sobre as regiões visitadas, onde a hidrografia assumia importância crucial.
 
 
3. As técnicas náuticas
 
Os avanços registados nas técnicas náuticas entre 1400 e 1550, estão na base da relevância marítima de Portugal neste período. Tais progressos abrangeram os instrumentos, os processos e os documentos náuticos, que constituíram o segundo pilar da estratégia 3C, adoptada por Portugal para conhecer, comerciar e combater no mar e a partir do mar, entre os séculos XV e XVI. Adquiriam especial relevância, porque viabilizaram uma representação geográfica da Terra mais precisa e conferiram maior rigor e segurança à navegação.
 
Embora inicialmente rudimentar, a agulha magnética veio revolucionar a náutica. Com efeito, até ao seu aparecimento a navegação era feita à vista da costa, de cabo a cabo - daí o termo cabotagem - guiando as embarcações pelos astros, pelo voo das aves ou pela direcção do vento e das ondas. Como a agulha magnética possibilitava seguir um rumo de forma consistente, os navios puderam afastar-se da costa para seguir o trajecto mais curto entre dois portos, ou, em alternativa, beneficiar dos ventos mais favoráveis para demandar o lugar de destino. Cumpre igualmente recordar que foi a utilização da agulha magnética que esteve na origem da mudança do ponto cardeal usado como referência nas cartas náuticas. Com efeito, o Levante, o Leste ou o Oriente na parte superior da carta, simbolizado pela cruz que assinalava a Terra Santa, foi sendo progressivamente substituído pelo Norte, Setentrião ou Bóreas, assinalado pela flor-de-lis. Esta simples rotação de 90 graus, trouxe consigo uma verdadeira revolução nas mentalidades, na medida em que os pilotos deixaram de se «orientar» pela linha de costa, passando a «nortear» o caminho do navio pela agulha e linhas de rumo magnéticas dispostas na carta.
 
A eficácia da agulha magnética aumentou notavelmente quando passou a ser suportada por um fino pináculo vertical, no qual se apoiava o centro da rosa-dos-ventos, gravada em cartão, em cuja face superior se encontrava inscrito um sinal em forma de flor-de-lis a indicar o Norte e uma cruz a marcar o Oriente (Terra Santa). Na base deste cartão circular encontravam-se dispostos dois ferros, alinhados com a direcção Norte-Sul gravada na superfície oposta. Como estes ferros não eram ímanes permanentes, necessitavam de ser periodicamente magnetizados, utilizando um íman natural, a que se dava o nome de pedra de cevar, designando, assim, a operação destinada a conferir-lhes magnetização.
 
Dos oito ventos ou rumos das primitivas rosas-dos-ventos, que indicavam os pontos cardeais e os inter-cardiais ou quadrantais, passou-se, posteriormente, aos 16 rumos, que referenciavam os pontos colaterais ou meias partidas, tendo-se generalizado, já no século XV, as agulhas de 32 rumos ou quartas. Da divisão dos 360 graus pelos 32 intervalos, resultaram outros tantos ângulos de 11,25 graus, ou 11º 15’ (onze graus e quinze minutos), a que se deu o nome de quartas, designação ainda hoje em voga entre os pescadores portugueses. Como a definição do rumo não podia ser superior a meia quarta, que é, grosso modo, metade do valor da escala, o erro mínimo cometido no governo do navio era, em teoria, da ordem dos 5 a 6 graus. No entanto, as guinadas dos homens do leme a um e outro bordo, com o objectivo de manter o navio no rumo, compensavam, de certa forma, os erros cometidos ao longo da singradura.
A precisão da leitura dos rumos a bordo aumentou bastante quando, no século XVI, a agulha passou a estar instalada sobre uma suspensão com dois eixos de liberdade, destinada a compensar os efeitos do balanço do navio. Muito embora a utilização deste expediente de compensação do balanço já existisse, pelo menos desde finais do século XV, encontrando-se referido no Tratado da Agulha de Marear de João de Lisboa (1514), ficou conhecido como «suspensão Cardan», pelo facto do lombardo Gerolamo Cardano (1501-1576) ter publicado um estudo relativo às suas propriedades e aplicações a bordo, designadamente em agulhas magnéticas (Fig. 3), ampulhetas e candeeiros.
 

 Fig. 3 - Agulha magnética de José da Costa Miranda (1711)
 
Outro progresso relevante para as técnicas náuticas foi o aparecimento da carta-portulano, que facultou aos pilotos uma representação gráfica, objectiva e prática, do espaço geográfico em que navegavam, ao mesmo tempo que possibilitou o traçado das rotas por onde se podia navegar em segurança entre portos, além da determinação da posição do navio no mar. Com esta inovação cartográfica, os livros portulanos, existentes desde a Antiguidade, passaram a constituir um complemento da carta-portulano, tendo-se perpetuado até aos nossos dias sob a designação de roteiros.
 
Inicialmente, a carta-portulano consistia mais numa ajuda à navegação, para que o piloto se pudesse orientar no caminho a seguir pela agulha magnética, do que propriamente para determinar a posição do navio num dado momento. Mais tarde, foi incluída na carta-portulano uma escala de distâncias graduada em milhas, designada por tronco das léguas, que permitiu a medição e marcação de distâncias. Estas cartas não apresentavam ainda paralelos nem meridianos, mas apenas uma rede de rectas direccionais ou rumos magnéticos, que formavam uma teia resultante do prolongamento das linhas de rumo originadas a partir de uma rosa-dos-ventos central, e que se entrecruzavam com os de outras rosas-dos-ventos dispostas ao redor da primeira. As linhas de rumo que assinalavam o Norte magnético, eram representadas verticalmente na superfície da carta, sendo paralelas entre si, sem observarem o requisito de convergência dos meridianos (Fig. 4).
 
O rumo, entre o ponto de partida e o ponto de chegada, era obtido a partir das linhas existentes nas cartas rumadas, enquanto a distância era deduzida pelo piloto, tendo em conta a sua avaliação relativamente ao caminho percorrido pelo navio, sendo implantada na carta depois de medida no tronco de léguas a correspondente amplitude do compasso. Obtinha-se, assim, o chamado ponto de fantasia, também conhecido como ponto estimado, de estimativa ou de marinharia.

 Fig. 4 - Rede de linhas de rumo, rosas-dos-ventos e tronco das léguas numa carta-portulano6
 
Como a carta-portulano tinha implantados os pontos notáveis do litoral, dava uma imagem de considerável realismo da geografia costeira, pelo que o piloto dispunha de uma visão razoável da posição do navio relativamente à costa, podendo, assim, decidir sobre as manobras ulteriores, necessárias para demandar o porto de destino. No entanto, devido às reduzidas dimensões das cartas-portulano e à vastidão das regiões representadas, não era possível um traçado detalhado da costa, facto que obstava a uma melhor discriminação e representação dos perigos para a navegação. Daí que estas insuficiências cartográficas tenham continuado a ser colmatadas pelas informações complementares incluídas nos livros portulanos. Importa no entanto salientar, que as cartas-portulano foram, ao longo do tempo, submetidas a sucessivos aperfeiçoamentos e complementos, tal como hoje sucede com a cartografia electrónica. Estes melhoramentos resultaram do aumento da frequência das viagens marítimas, que permitiram recolher informação geo-hidrográfica mais rigorosa e actual, utilizada pelos cartógrafos para corrigir as incertezas e deficiências dos seus trabalhos, ao mesmo tempo que adicionavam novas áreas geográficas entretanto exploradas ou descobertas.
 
A prova de que as cartas eram elaboradas tendo em conta a progressão das navegações, reside no facto dos respectivos contornos terem evoluído ao ritmo a que se realizavam as viagens marítimas dos portugueses. Este facto é especialmente evidente na carta de Henricus Martellus, de que existem várias cópias datáveis de 1489 a 1492. Como já apresenta a passagem Sul de África, este mapa-mundo só pode ter sido desenhado a partir de uma carta portuguesa ou de informação resultante da expedição de Bartolomeu Dias (1487-1488), porque até então os oceanos Atlântico e Índico surgiam na cartografia como mares interiores.
 
Pelo facto de os navios serem obrigados a navegar segundo rumos quebrados, de forma a tirarem partido do vento, ora se afastavam, ora se aproximavam do rumo directo entre o ponto de partida e o ponto de destino. Nestas circunstâncias, para garantir algum controlo relativamente ao caminho percorrido ao longo da derrota traçada na carta portulano, os pilotos necessitavam de saber, a cada alteração de rumo, quanto se afastavam (alargar), ou quanto ganhavam sobre o rumo directo (avanço de retorno). Para que este problema pudesse ser resolvido pelos pilotos, os matemáticos conceberam a toleta de marteloio, um método de origem mediterrânica, apresentado sob a forma de ábaco geométrico ou de tabulado, cuja versão mais antiga se encontra inserida no Atlas de Andrea Bianco (1436). Através da toleta de marteloio, o piloto deduzia os avanços e os retornos do navio em relação ao rumo directo para o lugar de destino, pelo que conhecia, a cada passo, a sua posição relativamente à rota indicada por aquele rumo. Mais tarde, a náutica portuguesa substituiu o método da toleta de marteloio pelo regimento das léguas, melhor adaptado à técnica de navegação por latitudes, que integra a grande maioria dos textos marítimos do século XVI.
 
Sendo os rumos magnéticos das agulhas de marear determinantes na representação cartográfica das costas nas cartas-portulano, a posição de cada lugar era afectada pela declinação magnética. Consequentemente, a geografia traçada nas cartas-portulano apresenta uma distorção geral, mais ou menos pronunciada, em função do valor da declinação magnética vigente à altura da compilação da carta, devido à não homogeneidade do magnetismo terrestre nos diferentes locais do globo. É curioso notar que os pilotos, embora desconhecendo as causas do fenómeno então designado por variação da agulha7, sabiam da existência da declinação magnética, conhecida como nordestear ou noroestear da agulha. Com a repetição das viagens nas mesmas regiões, obtiveram uma noção do seu reflexo no rumo do navio e aplicaram a devida correcção para aterrar no ponto de destino. Por isso, seguiram o rumo que a prática marinheira recomendava e não o que a carta-portulano indicava.
 
Nas cartas náuticas, a primeira tentativa para corrigir a diferença entre o rumo navegado e o rumo verdadeiro, resultante do reconhecimento da variação da agulha, leia-se declinação magnética, foi realizada por Pedro Reinel, na sua carta atlântica de c. 1504 (Fig. 5). Nela traçou, junto à Terra Nova, uma pequena escala auxiliar de latitudes, inclinada no sentido contrário ao da variação da agulha. Pela informação recolhida pelos pilotos que demandavam aquelas paragens, aquele cartógrafo sabia que, junto à costa da América do Norte, se registavam fortes diferenças entre as indicações da agulha e os rumos verdadeiros, facto que produzia grandes deformações nos contornos das linhas costeiras da Terra Nova, pelo que não se harmonizavam com a escala geral de latitudes traçada na carta sobre o Atlântico. Para minimizar esses erros, desenvolveu a escala oblíqua de latitudes, que indicava o norte geográfico naquela região, e pela qual se deviam guiar os navegadores. Se admitirmos que as agulhas magnéticas de princípios do século XVI estavam isentas de atrito no ponto de giro, mas também de influências alheias ao magnetismo terrestre da zona, o ângulo formado pela direcção do meridiano central da carta e a escala oblíqua de latitudes correspondia ao valor da declinação magnética naquela época. A solução de Pedro Reinel foi adoptada por outros cartógrafos, em geral portugueses, até ao último quartel do século XVII. De referir, que a carta de c. 1504 também possui inscrita uma escala geral de latitudes, sendo a segunda mais antiga conhecida onde tal se verifica8.
 
Relativamente aos efeitos de declinação magnética nas cartas-portulano, interessa ainda acrescentar que, em 1514, João de Lisboa, no Tratado da Agulha de Marear, afirma claramente que as cartas-portulano não serviam para a náutica astronómica praticada pelos pilotos portugueses, que andavam sempre a corrigir as agulhas magnéticas, de maneira que a ponta Norte se dirigisse para o Norte geográfico no lugar de observação, por acharem «todas as cartas falsas por uma quarta ou duas». Refere-se aqui à torção decorrente da declinação magnética, que induzia uma diferença entre os rumos verdadeiros na superfície da Terra e os rumos magnéticos usados na construção das cartas. Por isso, quando João de Lisboa afirmou que, enquanto não fosse corrigida a cartografia se deveria navegar pela «costumada», estava a referir-se aos rumos magnéticos.
 

 Fig. 5 - Carta de Pedro Reinel com escala de latitudes inclinada (c. 1504)
 
Com a realização das viagens atlânticas sem avistar terra durante várias semanas, como sucedia aos navegadores portugueses no regresso das costas da Guiné e da Mina, a navegação do rumo e da estima revelou as suas insuficiências para fornecer, com um mínimo de precisão, a posição do navio. Surgiu, então, em condições que se desconhecem, mas seguramente no tempo do Infante D. Henrique, a primeira fase da náutica astronómica portuguesa, que consistiu na assídua medição da altura da estrela Polar e de outras estrelas, nas suas passagens meridianas, utilizando o quadrante. Comparando cada altura com a que a mesma estrela atingia em Lisboa, os pilotos ficavam com uma ideia aproximada do número de léguas que tinham de navegar, segundo um meridiano, para atingir o paralelo da capital do reino. Esta prática náutica foi designada por navegação de (ou por) alturas.
 
A náutica astronómica portuguesa evoluiu para uma segunda fase, quando os pilotos passaram a utilizar as observações da estrela Polar, em detrimento de outras estrelas, com as correcções constantes estabelecidas no regimento do Norte. Além das duas passagens meridianas, foram igualmente escolhidas outras seis posições da estrela Polar, no seu círculo diurno aparente. Estas oito alturas foram registadas em regimentos, dos quais resultaram, pela maior facilidade de utilização, as disposições gráficas que lhe equivaliam. Eram designadas pelos marinheiros como rodas da Polar e tinham a forma de uma coroa circular (Fig. 6). Na extremidade de cada raio encontrava-se inscrita a correcção a aplicar às alturas, em função da posição das guardas da Ursa Menor no momento da observação.
 
 
 
Fig. 6 - Roda da Polar do Livro de Marinharia de João de Lisboa, com as correcções constantes a aplicar à altura daquela estrela
 
Estas duas fases da náutica astronómica, sendo relevantes pelo acrescido rigor que trouxeram ao controlo da progressão dos navios no sentido Sul-Norte, quando pretendiam demandar a costa portuguesa, não tiveram, aparentemente, reflexos na cartografia portulana, pois não permitiam, ainda, o cálculo de qualquer coordenada geográfica. Nestas circunstâncias, a cartografia náutica portuguesa continuou a respeitar os princípios e as técnicas importadas da náutica mediterrânica, baseada no rumo magnético e no caminho estimado (distância) pelos pilotos, sem recorrer a um sistema de projecção. Era, por isso, uma cartografia sem grande rigor, que foi posta em causa por Diogo Gomes em 1462, quando comparou as alturas da estrela Polar na Guiné e em Lisboa, tomadas com o quadrante, considerando que a posição assim obtida era melhor do que a carteada. Por outras palavras, aquele navegador reconheceu que a carta-portulano não respondia cabalmente às exigências da náutica astronómica, pois não traduzia fielmente a geografia terrestre.
 
A representação das oito posições da estrela Polar numa roda, deve ter sido determinante para, poucos anos depois das críticas de Diogo Gomes, mas ainda na década de 60 do século XV, terem começado as observações astronómicas para determinação da latitude a bordo (paralelo do lugar), a partir da altura daquela estrela, corrigida da distância angular ao Pólo Norte. De forma muito simplificada, pode dizer-se que a terceira fase de modernização da náutica astronómica portuguesa, consistiu na medição da altura da estrela Polar, de modo a chegar à latitude do lugar, pela aplicação de uma simples correcção aditiva ou subtractiva, apresentada no regimento do Norte ou da Polar. Desta forma, a posição do navio passou a ser dada pelo ponto de esquadria, que associava a latitude calculada, o rumo fornecido pela agulha e a distância percorrida pelo navio e estimada pelo piloto. Todavia, em alto mar o valor da latitude era o único dado que se podia obter com certo rigor, uma vez que a distância resultava da avaliação empírica do piloto, enquanto o rumo não era suficientemente fiável, pelo facto de não ser possível quantificar o abatimento do navio, provocado pelo vento e pela corrente. Ainda assim, o cálculo da latitude trouxe uma enorme evolução à náutica astronómica portuguesa, pois transformou uma arte numa técnica.
 
Para determinação da posição do navio na carta de marear, associando o rumo e a distância percorrida ao valor da latitude obtida por observação dos astros (ponto de esquadria), havia a considerar três situações (Fig. 7):
 
(1) Quando o rumo formava um ângulo inferior a 4 quartas (< 45 graus) com a direcção norte-sul, a posição do navio resultava da intersecção do rumo com o valor da latitude obtida a partir da observação do astro, desprezando-se a distância avaliada pelo piloto;
 
(2) Quando o rumo formava um ângulo superior a 4 quartas (> 45 graus) com a direcção norte-sul, obtinha-se a posição do navio por recurso à latitude, conjuntamente com a distância avaliada pelo piloto, desprezando-se o rumo. Esta constituía também uma forma de avaliar o abatimento provocado pela acção conjunta do vento e da corrente;
 
(3) Quando o rumo formava um ângulo de 4 quartas (45 graus) com a direcção norte-sul (045º, 135º, 225º e 315º), determinava-se a posição do navio recorrendo à latitude, efectuando, graficamente, uma espécie de média entre o rumo e a distância. Neste último caso, apresentam-se, igualmente, os pontos de esquadria que resultariam da aplicação dos critérios enunciados em (1) e (2).
 
 
 
Fig. 7 - Como o ponto de fantasia dava origem ao ponto de esquadria, em função do rumo (R).
 
A partir de 1473, quando os pilotos portugueses exploraram a costa ocidental africana para Sul da linha equinocial, perderam de vista a estrela Polar, escondida abaixo do horizonte. Como, nessas circunstâncias, não podiam determinar a latitude por recurso ao cálculo astronómico que conheciam, cometeram grandes erros de posicionamento quando, de forma expedita, passaram a converter, em graus de latitude, as distâncias percorridas, usando o módulo de relação entre milhas e graus. Note-se que, para o valor do grau do meridiano terrestre, essencial à medição das distâncias nas cartas-portulano, só pouco depois da conquista de Ceuta (1415) se verificou a alteração do módulo de 56 2/3 milhas por grau, para o módulo de 66 2/3 milhas por grau. Em 1424, este último valor foi utilizado na carta manuscrita sobre pergaminho elaborada por Zuane Pizzigano, mais consentâneo com a experiência náutica adquirida pelos pilotos portugueses nas navegações atlânticas. Ainda assim, apresentava um erro, por defeito, na ordem dos 11%. No entan-
to, o novo módulo possibilitou a conversão, com maior rigor, das distâncias das rotas em graus e latitudes, mais adequadas à realidade geográfica da região do globo praticada pelos navios portugueses no primeiro quartel do século XV.
 
A consciência relativamente à dimensão e inconveniência dos erros antes referidos, esteve na base de um longo período de especulações e ensaios científicos. Deles resultou o estabelecimento da quarta fase da náutica astronómica portuguesa, caracterizada pelo uso do astrolábio para medição da altura meridiana do Sol, necessária ao cálculo da latitude no mar, adaptando e simplificando os procedimentos utilizados pelos astrónomos e cosmógrafos nas observações terrestres. Na realidade, os tratados medievais dos séculos VIII e IX já ensinavam a determinar a latitude a partir da altura meridiana do Sol, entrando com o valor da declinação astronómica deste astro. As adaptações e simplificações então realizadas, consistiram em: conferir alcance às regras disponíveis para atender às situações diversificadas das navegações; testar, na prática, as regras que os tratados astronómicos preconizavam; calcular os valores da declinação solar, para que esta pudesse ser utilizada em regras ao alcance dos conhecimentos práticos e rudimentares da maioria dos pilotos. Da resolução do primeiro problema foram encarregados os astrólogos Abraão Zacuto e Mestre Rodrigo de Lucena. Do segundo problema, foram incumbidos o Mestre José Vizinho e Duarte Pacheco Pereira. Do terceiro problema tratou Abraão Zacuto, que efectuou os cálculos da declinação do Sol para cada dia de um quadriénio, sendo um dos anos bissexto, valores que foram incluídos no Almanach Perpetuum, como adiante se explica.
 
Com o recurso à observação dos astros para determinar a latitude em ambos os hemisférios, à noite pelas estrelas e, de dia, pelo Sol, passou a ser possível corrigir, com alguma precisão, o caminho Norte-Sul dos navios. Esta capacidade revelar-se-ia fundamental para os portugueses durante todo o século XV, em virtude das suas navegações, em busca da passagem para o Índico, consistirem, essencialmente, numa progressão feita em latitude. Com este progresso ficou firmemente estabelecida a técnica de navegação oceânica portuguesa, apoiada em três factores essenciais: conhecimento dos agentes físicos do Atlântico; navios com boas qualidades náuticas; e uma náutica astronómica fundamentada nos regimentos da estrela Polar e do Sol.
 
Como se compreende, os progressos da náutica astronómica portuguesa tiveram repercussões nas cartas-portulano. O primeiro impacto deu-se quando essas cartas passaram a ter implantada uma escala de latitudes, tornando-se híbridas, na medida em que procuravam conjugar os requisitos do ponto de fantasia (isogonalidade), com as exigências das posições obtidas mediante o ponto de esquadria (isogonalidade e distâncias). Nestas circunstâncias, se o traçado do rumo se fazia entre pontos determinados por observações astronómicas, as cartas-portulano perdiam a sua validade, salvo quando se navegava em regiões próximas da linha equatorial, onde a representação da superfície esférica terrestre no plano não apresenta deformação substantiva dos ângulos e das distâncias. O segundo efeito dos progressos da náutica astronómica portuguesa na cartografia, foi a correcta implantação da linha equatorial que, até ao final do século XV, em conformidade com a ideia de Ptolomeu, se pensava distar 16 graus para Sul da mais setentrional das ilhas Canárias, passando sobre o saliente africano de Cabo Verde. Só no final do século XV, após o traçado perfeito do Equador nas cartas náuticas e da adopção da medida de 75 milhas por grau do meridiano terrestre9, foi possível estimar, com maior rigor a latitude de uma posição contada desde a linha equatorial, que depois era convertida em graus, através das distâncias medidas em milhas na carta. Ainda assim, subsistiu um erro, por defeito, de cerca de 7%.
 
A náutica astronómica veio mostrar claramente que as cartas-portulano não eram adequadas ao novo processo de cálculo da posição dos navios no mar, em virtude de esta obrigar à existência de uma escala de latitudes. Além disso, para que se pudesse utilizar correctamente essa escala, era necessário fazer corresponder, a cada local na superfície da Terra, uma latitude obtida a partir de observações astronómicas. Tal facto desencadeou a terceira e mais significativa repercussão dos progressos da náutica astronómica portuguesa na cartografia, que consistiu no levantamento, por latitudes, das regiões costeiras. Neste trabalho, que parece ter sido iniciado cerca de 1485, envolveram-se os principais cosmógrafos e hidrógrafos portugueses, nomeadamente Mestre Rodrigo de Lucena, Mestre José Vizinho e Duarte Pacheco Pereira que, conforme refere Teixeira da Mota10, «efectuaram então febrilmente o primeiro levantamento moderno, por latitudes da costa africana», legando-nos uma obra primorosa, que se pode reconstituir pelo Esmeraldo de Situ Orbis e pela Carta de Cantino, que é, sem dúvida, o mais famoso exemplar da cartografia portuguesa quinhentista e uma marca incontornável do início do seu apogeu.
O contributo de Abraão Zacuto para o cálculo da latitude no mar teve, igualmente, uma utilidade decisiva no levantamento por latitudes da costa africana. Com efeito, mediante a altura do Sol, era possível calcular a latitude do lugar, no mar ou em terra, utilizando as correcções fornecidas por tábuas de declinação do Sol, incluídas no Almanach Perpetuum e referidas ao meridiano de Salamanca. Estas tábuas apresentavam a distância angular do Equador celeste ao Sol (declinação) correspondente ao meio-dia, cujo valor era obtido por cálculos matemáticos baseados em observações astronómicas. A operacionalização prática deste método, que teve uma influência determinante na náutica astronómica portuguesa, ficou a dever-se ao Mestre José Vizinho, com a tradução do Almanach Perpetuum para latim e castelhano, originalmente escrito em hebraico. Esta tábua solar única podia ser utilizada em anos comuns e bissextos, tendo servido nas viagens de Diogo Cão (1482-1486), Mestre José Vizinho (1485) e Bartolomeu Dias (1487-1488). O Mestre José Vizinho redigiu, ainda, o Regimento do Astrolábio e do Quadrante, amplamente utilizado nas navegações portuguesas, como manual de navegação e almanaque náutico, constituindo o último grande progresso das técnicas náuticas no primeiro período da estratégia 3C (1415-1487).
 
A determinação em chegar à Índia pela rota do Cabo levou a que, anos mais tarde, surgissem as tábuas quadrienais de declinação do Sol, elaboradas por Abraão Zacuto para a primeira viagem de Vasco da Gama em 1497-1498. Estas tábuas, mais exactas que a tábua solar única, referiram-se ao período 1497-1500, mas foram igualmente utilizadas nas viagens subsequentes. Posteriormente, foram calculadas por eminentes cosmógrafos portugueses novas tábuas quadrienais da declinação do Sol. Entre eles destaca-se Pedro Nunes que, no seu Tratado em Defensam da Carta de Marear (1537), apresentou as tábuas do quadriénio 1537-1540, usadas por D. João de Castro na viagem relatada no seu Roteiro de Lisboa a Goa (1538).
 
Tendo em conta a configuração dos astros no céu do Atlântico Sul, foram realizados esforços no sentido de regimentar o Cruzeiro do Sul, para que os pilotos pudessem determinar, à noite, a latitude por onde navegavam naquele hemisfério. Em 1507, Pêro Anes e João de Lisboa executaram essa tarefa, que marca a quinta fase da náutica astronómica portuguesa. Para isso, e depois de várias tentativas, aqueles pilotos escolheram a estrela Crucis ou Crux, ou estrela do Pé do Cruzeiro, como então era designada, para calcular a latitude aquando da sua passagem meridiana superior. Em conjunto com a elaboração das tábuas quadrienais da declinação do sol, traduzem os dois maiores progressos das técnicas náuticas portuguesas durante o segundo período da estratégia 3C (1487-1509).
 
Por esta época, e após a chegada ao Índico, provavelmente influenciados pelo kamal utilizado pelos navegadores árabes, os portugueses desenvolveram um novo instrumento para a obter a altura dos astros a bordo. Construído em madeira, era de simples utilização e permitia realizar as observações astronómicas com maior rigor. Ficou conhecido como balestilha, tendo sido o primeiro instrumento cuja referência é o horizonte, a exemplo do que veio a suceder, mais tarde, com os chamados instrumentos de dupla reflexão, como o octante e o sextante.
 
A náutica astronómica portuguesa conheceu ainda outros dois desenvolvimentos importantes, em termos do aumento das possibilidades de determinação da latitude do navio. Contudo, não comportaram consequências de maior para a cartografia náutica coeva. O primeiro progresso resultou do facto de os pilotos terem passado a recorrer à altura meridiana de outras estrelas com declinação conhecida, para assim calcularem a latitude em que se encontravam. Conforme refere Luís Albuquerque11, esta prática tinha sido aconselhada num texto antigo incluído no Reportório dos Tempos, de Valentim Fernandes. Não obstante, aquele historiador considera duvidoso que esta tenha sido posta em prática antes de João de Lisboa. De acordo com o mesmo autor, no Livro de Marinharia atribuído a este piloto, são referidas seis estrelas que podiam ser usadas com aquela finalidade. Também indica que esse número é consideravelmente alargado num texto manuscrito do cosmógrafo Manuel Lindo, anterior a 1550, tal como sucede no Regimento Náutico de João Baptista Lavanha (1595), onde, para além das estrelas, se encontram explicados os procedimentos a efectuar para o cálculo das latitudes a partir das respectivas alturas meridianas. O segundo progresso resultou dos trabalhos de Pedro Nunes. Este avanço encontra-se explicado no Tratado da Sphera, onde o grande cosmógrafo utiliza a poma para obter a latitude, a partir de duas alturas extra-meridianas do Sol e dos azimutes magnéticos da observação. Este método foi experimentado por D. João de Castro na sua viagem à Índia em 1538, quando efectuou uma observação sistemática do magnetismo. Para além de ter concluído que a declinação magnética não variava de forma proporcional com a longitude, demonstrando, assim, que não fazia qualquer sentido continuar a buscar uma relação (altura leste-oeste) entre estas duas grandezas independentes, esclareceu que a distância excessiva apresentada nas cartas, entre a costa do Brasil e o Cabo da Boa Esperança, se devia ao desacerto entre os rumos magnéticos e os rumos verdadeiros. Nesta sua primeira viagem à Índia, D. João de Castro identificou, igualmente, o fenómeno conhecido como desvio da agulha, que é o ângulo formado entre o Norte da agulha e o Norte magnético.
 
Nos fins do primeiro quartel do século XVI foi adoptada a direcção do Norte verdadeiro como eixo de orientação das cartas, pelo que o meridiano do lugar adquiriu importância na determinação da posição do navio. Por seu turno, a longitude surgiu por força da graduação do Equador em graus idênticos aos dos meridianos, tendo sido inicialmente designada por altura de leste-oeste. Doravante, as cartas náuticas passaram a ser construídas com base nas coordenadas ortogonais da latitude e da longitude, traduzidas numa quadrícula de paralelos e meridianos, traçados de cinco em cinco ou de dez em dez graus, de forma a apresentar lados iguais. Apareceram, assim, as cartas planas quadradas, denominação um tanto ambígua, dado que todas as cartas, qualquer que seja o seu sistema de construção, estão representadas num plano. Não obstante, importa notar que a quadrícula implantada na carta foi uma consequência da introdução das escalas de latitudes e longitudes. Na realidade, tal não passou de um artifício teórico-matemático, uma vez que não favoreceu o traçado mais correcto da carta, dada a impossibilidade que havia em calcular a longitude a bordo de forma distinta da estimada. Com efeito, dotada de soluções adequadas para o cálculo da latitude, a náutica astronómica portuguesa nunca conseguiu encontrar uma solução para o problema da determinação da longitude, coordenada essencial para a fixação rigorosa de um ponto na superfície da Terra.
 
Embora incapaz de determinar a longitude, a náutica astronómica portuguesa foi responsável pela evolução da cartografia portulana para a cartografia de latitudes e, posteriormente, para a cartografia plana quadrada, processo que abriu caminho à cartografia matemática, que Pedro Nunes começou a desvendar no Tratado em Defensão da Carta de Marear. Para além disso, foi essencial ao terceiro período da estratégia 3C, porque conferiu mais rigor e segurança à navegação e viabilizou uma representação geográfica da Terra mais precisa. Por isso, no início do século XVI os navios portugueses puderam cruzar o Atlântico em todas as direcções. Os Cortes Reais foram à Terra Nova, Vasco da Gama chegou à Índia e Cabral aportou ao Brasil onde, logo a seguir, Gonçalo Coelho efectuou um monumental levantamento hidrográfico costeiro. Em 1509, D. Francisco de Almeida venceu a batalha naval de Diu, que deu o domínio do Índico aos portugueses. Dois anos depois foi explorada a Insulíndia e Afonso de Albuquerque conquistou Malaca (1511), um importante entreposto comercial do sudoeste asiático. A partir desta base de implantação, diversos pilotos portugueses realizaram o levantamento sistemático da hidrografia do extremo Oriente, com objectivos essencialmente mercantis, que, por sua vez, abriram caminho à chegada à China em 1513 e a Tanegashima, no Japão, em 1543.
 
 
4. Conclusões
 
A estratégia 3C foi concebida e posta em prática pelos portugueses para conhecer, comerciar e combater no mar e a partir do mar, em três períodos sucessivos: 1415-1487; 1487-1509; e 1509-1550. Assentou no desenvolvimento progressivo e harmonioso dos navios e das técnicas náuticas, que constituíram os dois pilares fundamentais dessa estratégia. Com efeito, por um lado, os avanços das viagens de descobrimento dependeram da evolução das características determinantes dos navios, que conferiram maior abrangência às actividades marítimas e proporcionaram melhor desempenho operacional. Para além disso, os progressos das viagens de descobrimento também foram possíveis pela evolução das técnicas náuticas, que trouxeram maior rigor e segurança à navegação e permitiram uma representação geográfica da Terra mais precisa.
 
Quanto aos navios, os portugueses utilizaram vários tipos, com características determinantes bem distintas, devido ao facto da sua dimensão propiciar diferentes capacidades de carga, de armamento e de pessoal, ao mesmo tempo que o respectivo aparelho vélico conferia várias possibilidades em termos de velocidade e manobrabilidade. Tendo em vista a afirmação da relevância marítima de Portugal entre os séculos XV e XVI, a diversidade de navios disponíveis foi explorada, no âmbito da estratégia 3C, de forma a complementarem-se no seio das frotas, armadas e comboios, o que, no essencial, passou pelo aproveitamento da versatilidade da caravela, da capacidade de carga da nau e do poder de fogo do galeão.
 
Relativamente às técnicas náuticas, importa referir que os instrumentos, os processos e os documentos utilizados ou produzidos pelos portugueses, permitiram a prática da volta do largo, o ponto de esquadria conferiu corpo a um novo paradigma de posicionamento no mar, que associou a latitude ao rumo e à distância percorrida pelo navio, ao mesmo tempo que a cartografia incorporou, com vantagem, os avanços materializados pela adopção da escala de latitude, pela correcta implantação da linha do Equador e pela disposição dos lugares em consonância com respectiva latitude. Tendo em vista a afirmação da relevância marítima de Portugal entre os séculos XV e XVI, as várias técnicas náuticas foram exploradas no âmbito da estratégia 3C, de forma a superar as exigências colocadas pela navegação em novas circunstâncias, o que, no essencial, passou pelo aproveitamento da qualidade dos instrumentos, da adequação dos processos e do rigor dos documentos náuticos.
 
No primeiro período da estratégia 3C (1415-1487), a caravela, navio versátil e ligeiro, dotado de grande manobrabilidade e pequeno calado, foi utilizado com o intuito de conhecer e explorar em segurança a novel extensão da costa africana, bem como os arquipélagos atlânticos recém-descobertos. Neste período, as técnicas náuticas mais avançadas utilizaram as agulhas de 32 rumos e a carta-portulano, primeiro com o ponto de fantasia e a toleta de marteloio, a que se seguiu o ponto de esquadria e a adopção do módulo de 66 2/3 léguas por grau de meridiano. Estes avanços foram proporcionados, em grande medida, pelo advento do quadrante e da navegação por alturas, tendo sido optimizados com a introdução do Regimento do Norte, que, posteriormente, permitiu a determinação da latitude a partir da observação da estrela Polar.
 
No segundo período da estratégia 3C (1487-1509), e tendo em vista o transporte de grandes quantidades de mercadorias pela rota do Cabo, ao mesmo tempo que se procurava afirmar a presença de Portugal no Índico, a nau constituiu a opção acertada, não só pela capacidade de carga, como pelo armamento de que dispunha. Tanto pela necessidade de continuar com a imprescindível componente de levantamento hidrográfico, como de conferir maior segurança às praças do Índico, foi desenvolvida a caravela redonda, navio de considerável porte, que combinava as vantagens dos aparelhos da nau e da caravela latina, onde sobressaíam as capacidades de carga e defesa autónoma. Neste período, as técnicas náuticas assentaram, em grande medida, na introdução da escala de latitudes, com o consequente traçado do Equador e dos Trópicos nas cartas náuticas, que exigiu o levantamento da latitude dos lugares. O astrolábio foi o instrumento preferido, com as diferentes tabelas de declinação do Sol a permitirem determinar a latitude a partir da observação deste astro, sendo que o regimento das léguas trouxe maior rigor à navegação em alto mar. Acresce que a noção da existência da declinação magnética trouxe consigo a escala oblíqua de latitudes, sendo ainda de realçar a introdução do módulo de 18 ¾ léguas ou 75 milhas e o desenvolvimento do Regimento do Cruzeiro do Sul.
 
Por fim, no terceiro período da estratégia 3C (1509-1550), a evolução da conjuntura estratégica ditou o aparecimento do galeão, com o intuito de dar escolta às naus carregadas com as riquezas do Oriente e de combater o crescente número de opositores aos interesses que Portugal pretendia afirmar naquelas paragens. Neste período, as técnicas náuticas evoluíram para a determinação da latitude a partir de alturas extra-meridianas do Sol, bem como por recurso a outras estrelas, sendo de realçar o aparecimento da balestilha e da poma. Foi também por esta altura que ficou clara a ausência de relação entre a longitude e a declinação magnética, além de ter sido identificado o desvio da agulha. No que concerne à cartografia, as novas cartas planas recorreram à concepção ortogonal, sendo orientadas em função do Norte verdadeiro, além do Equador ter inscrita a graduação em longitude.
 
Entre os séculos XV e XVI verificou-se sempre uma forte conexão entre os tipos de navios e as técnicas náuticas, nos quais se alicerçou a afirmação estratégica de Portugal nos mares, primeiro no Atlântico e, mais tarde, no Índico. Por isso, pode dizer-se que a concepção e operacionalização da estratégia 3C pelos portugueses, foi possível graças aos aperfeiçoamentos que se verificaram em ambos os pilares de sustentação desse plano estratégico - os navios e as técnicas náuticas - cuja evolução foi sendo reciprocamente ditada, tanto pelos avanços da dimensão e do aparelho vélico dos navios, como pelos progressos dos instrumentos, processos e documentos náuticos.
 
Face ao exposto, podemos afirmar que o desenvolvimento progressivo e harmónico dos navios e das técnicas náuticas permitiu inaugurar uma nova etapa no conhecimento geográfico (conhecer), alcançar e controlar as fontes das riquezas no Oriente (comerciar) e, ao mesmo tempo, conter a oposição às pretensões portuguesas (combater). Por conseguinte, esta conjugação de objectivos veio a revelar-se fundamental para que Portugal iniciasse a era do poder marítimo, caracterizada pelo emprego global e simultâneo de navios em actividades científicas, económicas e político-militares, destinadas a garantir o uso do mar em função dos interesses nacionais em tempo de paz ou de guerra, o que permitiu alcançar um lugar de enorme relevância marítima nos séculos XV a XVI.
 
 
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*      Subchefe do Estado-Maior da Armada. Doutorado em Ciência Política. Vogal da Direcção da Revista Militar.
 
1  Richard Baker, «Perspectives on the 15th century ship», Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua época, actas, vol. II, pp. 202-203.
2  António Marques Esparteiro, Três Séculos no Mar, vol. 3, p. LV.
3  João da Gama Pimentel Barata, Estudos de Arqueologia Naval, vol. II, p. 32.
4  Idem, ibidem, p. LIV.
5  Idem, ibidem, p. LIV.
6  Ricardo Cerezo Martínez, La Cartografía Náutica Española en los siglos XIV, XV y XVI, p. 37.
7  Actualmente, a variação da agulha traduz a soma algébrica da declinação magnética com o desvio da agulha, sendo que a segunda corresponde à influência do campo magnético do navio. No entanto, cumpre referir que no período do nosso estudo a variação da agulha era sinónimo daquilo que hoje designamos por declinação magnética.
8  Luís de Albuquerque, A Comissão de Cartografia e a Cartografia Portuguesa Antiga, p. 8. Refere este autor que a mais antiga carta que apresenta escala de latitudes é anónima e datável de c. 1500.
9  Depois de 1415, o valor adoptado para o grau do meridiano foi de 162/3 léguas ou 662/3 milhas. No final do século XV, talvez por se reconhecer a exiguidade deste valor, passou a ser de 171/2 léguas ou 70 milhas, como acontece na carta de Cantino. Mais tarde, foi introduzido o valor de 183/4 léguas ou 75 milhas para o grau de meridiano, que apresenta um erro, por defeito, de apenas 7%.
10 Teixeira da Mota, «Some Notes on the Organization of Hydrographical Services in Portugal Before the Beginning of the Ninteenth Centuty», Imago Mundi, The Journal of the International Society for the History of Cartography, n.º 28, vol. L, p. 8.
11 Luís de Albuquerque, Dicionário da história dos Descobrimentos Portugueses, vol. II, p. 795.
 
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