General José Luiz Pinto Ramalho*
No passado dia 17 de novembro, a Comunidade Internacional, designadamente a europeia, foi confrontada com a decisão do Presidente Biden de levantar os limites que tinha estabelecido à Ucrânia, relativamente ao emprego de mísseis de longo alcance, no interior da Rússia (os mísseis em causa eram os ATACMS, com 300 Kms de alcance e, por extensão e “mimetismo”, os Storm Shadow do Reino Unido e os mísseis franceses Scalp). Embora a autorização tenha sido algo ambígua, referindo a sua aplicação apenas à região de Kursk, à semelhança do que já tinha sido apontado relativamente à região de Kharkiv, a verdade é que do lado ucraniano a interpretação parece ser mais ampla, como se depreende do ataque já realizado à região de Beryansk. Quanto ao seguimento da decisão americana por britânicos e franceses, há notícias que novos fornecimentos dos mísseis atrás referidos, já se possam ter concretizado.
Trata-se de uma decisão de Biden, algo inesperada e surpreendente, não só por estar de saída, por já haver um Presidente eleito e ter havido declarações relativas a uma transição pacífica, como pelo facto de eventuais consequências negativas desta decisão já não virem a ser geridas por quem a tomou. Mas inesperada também, porque durante meses, para não dizer mais de um ano, Biden rejeitou esta decisão com três argumentos, secundados pelo Pentágono: os custos do citado sistema de armas, as quantidades disponíveis em depósito e a morosidade do processo de reposição de “stocks”; os efeitos limitados, face quer aos objetivos apropriados, quer pela Rússia, perante essa possibilidade, ter retirado meios militares mais significativos para fora do alcance dos referidos mísseis; e, por último, o risco de escalada, designadamente com efeitos sobre a Ucrânia.
Os argumentos tornados públicos quanto à alteração da decisão e as razões do seu fundamento circunscreveram-se à necessidade de dar uma resposta à escalada introduzida pela Rússia, ao trazer para o Teatro de Operações tropas norte coreanas (de oportunidade duvidosa, já que a situação era conhecida desde finais de setembro) e, por outro lado, conferir à Ucrânia novas capacidade para uma melhor situação numa eventual ronda de negociações, que se admite possa acontecer depois da posse de Trump. Há também o reconhecimento de que a atual situação no terreno, em toda a frente, não é favorável à Ucrânia e, mesmo em Kursk, a permanência das forças ucranianas tem estado sobre pressão russa.
Nas últimas semanas, temos assistido a um discurso dissonante entre europeus e americanos, com os últimos a referir que “as guerras têm de terminar” e os primeiros, tanto a nível da UE, como da própria OTAN, a referir que é necessário apoiar a Ucrânia sem restrições de tempo ou de meios e a França, de forma explícita, a referir a possibilidade de colocar tropas no terreno, com declarações ambíguas do mesmo teor, por parte do lado britânico. Paralelamente, prossegue um debate perigoso, inconveniente e irresponsável sobre o eventual emprego de armas nucleares ou mesmo de uma guerra nuclear, como se fosse algo gerível e sem consequências irremediáveis para a Humanidade. Para agravar a situação de incerteza e aumentar a gesticulação estratégica em ambiente de crise, a Rússia lançou sobre a Ucrânia, na região de Dnipro, um Míssil Balístico Hipersónico, de Ogivas Múltiplas e de Médio Alcance (ORESHNIK).
Quanto à decisão de Biden, parece legítimo colocar um conjunto de questões para uma reflexão estratégica mais aprofundada, designadamente: a decisão correspondeu a um aumento da segurança estratégica da Ucrânia e a uma melhoria da situação tática no terreno? Está a contribuir para o reforço de uma eventual futura capacidade negocial? Contribuiu para uma contenção operacional da Rússia e para a desescalada do conflito, designadamente no interior da Ucrânia? E, em termos da estabilidade da conjuntura estratégica atual, assiste-se a um desanuviamento da tensão internacional, designadamente na Europa?
O que a realidade recente nos mostra é a Ucrânia a pedir uma reunião urgente do Conselho OTAN-Ucrânia, perante a posição russa, quer relativamente aos ataques às infraestruturas energéticas quer quanto à ameaça relativa aos centros de decisão política e militares, para pedir mais sanções contra a Rússia e mais meios de defesa anti-aérea, face à vaga de mísseis e de drones a que tem estado sujeita. Por outro lado, não se alterou a situação no terreno e a iniciativa ofensiva do lado russo tem-se mantido.
A verdade é que eventuais efeitos positivos para o lado ucraniano estão dependentes dos quantitativos de mísseis dos vários tipos, de que puder dispor e que lhe sejam oportunamente fornecidos; dos alvos que irá conseguir atingir e durante quanto tempo o poderá fazer e, ainda, como acomodar as consequências de uma resposta mais agressiva de Putin perante esse tipo de ações, Em termos temporais, até 20 de janeiro do próximo ano, data da tomada de posse de Trump, que se associa ao início de um eventual processo negocial para o conflito, existe um sentimento generalizado de receio de que se possa assistir a um conjunto perigoso de decisões irreflectidas que considerem dever ser irreversíveis pela nova Administração americana, mesmo correndo o risco de uma escalada grave, cabendo a pergunta de que forma os líderes europeus consideram poder ou dever ser a sua resposta estratégica nessa situação, quando não temos assistido à preparação de qualquer uma, seja qual for, em termos políticos ou materiais ou de preparação para as mesmas, junto das opiniões públicas nacionais.
Não parece assim que a decisão de Biden, também em termos da atual conjuntura estratégica, tenha contribuído para o desanuviamento internacional, nem para a procura de uma solução negocial que Zelensky já apontava para o ano de 2025 e também que, perante uma aceleração de processos político-diplomáticos que poderão ocorrer a partir de janeiro, a Ucrânia tenha tempo para melhorar, de forma significativa, quer a situação operacional no Teatro de Operações na frente leste e do sul quer a sua futura capacidade negocial.
Perante este quadro de análise, parece continuar em aberto quais os verdadeiros fundamentos estratégicos para a decisão que Biden tomou, pelos vistos de exclusiva responsabilidade e iniciativa sua e, tanto quanto consta, ao arrepio do conselho militar.
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* Presidente da Direção da Revista Militar.
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