General José Luiz Pinto Ramalho*
Com a recente eleição de Trump e as suas declarações de que os europeus deveriam gastar 5% do PIB em Defesa, a par da campanha conduzida pelo Secretário-geral da OTAN, Mark Rutte, relativa a que os “2% decididos na Cimeira de Gales em 2014, já não são suficientes para responder aos desafios da Aliança no futuro”, estão criadas as condições para que na Cimeira de Haia, em finais de junho deste ano, seja aprovada uma nova meta de pelo menos 3%. Aliás, tem sido este número que tem vindo a ser discutido nas reuniões preparatórias, conduzidas pelo IMS/OTAN.
Tem-se falado em aumentar a despesa, têm sido apontados números, mas não se tem clarificado quais são os novos desafios, que lacunas é necessário colmatar na Aliança, qual é a orientação estratégica para justificar o aumento de despesa. Não basta referir apenas a ameaça russa, que é por demais conhecida e bem caracterizada. Dever-se-á também, em termos nacionais, ver como encaixar essa despesa (recorda-se que ainda existem nove países que têm um gasto na Defesa inferior aos 2%) e também como devem os países da União Europeia (UE) acomodar essa despesa tendo em conta as regras orçamentais da UE.
Pode dizer-se que a perceção da necessidade do aumento da despesa com a Defesa está assumida pela componente europeia da Aliança; contudo, há aspetos que os países de menor dimensão estratégica, com é o caso nacional, devem ter em especial atenção. Como primeiro referencial estratégico, o país não deve abdicar de ter umas Forças Armadas equilibradas, consentâneas com a sua dimensão estratégica, que não crie “vazios estratégicos” nos espaços aéreos, nacional e atribuídos à nossa responsabilidade, no espaço marítimo, designadamente no espaço interterritorial e ZEE (não descurando o eventual alargamento da plataforma continental) e, igualmente no território nacional, continente e ilhas, uma presença militar que materialize a soberania, evite situações de facto consumado e seja capaz de caracterizar uma potencial agressão.
Igualmente não são aceitáveis decisões de um qualquer “Diretório Europeu”, que defina missões estratégicas nacionais, privilegiando a atuação militar num qualquer espaço de atuação operacional, em detrimento de outros, ou mesmo em moldes mais restritivos, vocacionar as Forças Armadas Nacionais para determinadas missões, sem cuidar das missões constitucionais, quebrando igualmente uma harmonia e equilíbrio que deve existir entre os três Ramos.
Em termos nacionais, importa ter presente o desinvestimento a que as Forças Armadas têm estado sujeitas ao longo das últimas duas décadas, em que se comprometeram projetos cooperativos de reequipamento, se assumiram políticas de pessoal, do QP e de Contrato, que conduziram a uma quebra de recrutamento e à atual carência de recursos humanos. Igualmente, tem-se adiado um debate sobre estas questões, mesmo num quadro de guerra na Europa e no não cumprimento dos compromissos assumidos quanto ao investimento na Defesa, a par da ausência de tomada de decisões políticas, quer quanto às políticas públicas de prestação e serviço militar quer relativamente ao reequipamento, em áreas críticas para a defesa nacional, como é o caso da Defesa Aérea e, também, no domínio da constituição de reservas de guerra (nos últimos três anos, o MDN abriu os depósitos militares à ajuda à Ucrânia, mas não procedeu à reposição das munições e dos sistemas de armas que forneceu).
O país tem de ter presente que, como membro de pleno direito da Aliança, deve contribuir para a consistência dos três pilares da coesão entre os aliados que são, respetivamente, a solidariedade política em situações em que a mesma é exposta; a disponibilidade para o cometimento de tropas, começando pelos objetivos de forças que assumiu na estrutura militar integrada; e, por último, na satisfação do “burden sharing” pelo qual se responsabilizou. Neste último ponto, o país tem estado a falhar e o estabelecimento de prazos dilatados para o seu cumprimento não justifica o atraso, fere o seu prestígio e mina a sua credibilidade no empenhamento como parceiro.
A UE abordou a questão da necessidade do aumento da despesa em defesa, no seu “Retiro Estratégico”, salientando que a principal fonte de recursos para essa finalidade devem ser os orçamentos nacionais, podendo ainda recorrer-se à divida pública, quer no Banco Europeu de Investimento ou através de outros empréstimos bancários, ou seja, nada de novo. Ficou em aberto uma decisão quanto a essa despesa ser excluída dos objetivos e das regras orçamentais, ou a eventualidade de uma nova emissão de dívida europeia para sustentar o reforço do investimento na defesa ou um PPR para a área da defesa, constituindo “um instrumento comum, que pode passar por uma dívida comum”, temas que ficaram para estudo e decisão futura.
Está também em cima da mesa a possibilidade do estabelecimento de uma “golden rule” para isentar as despesas de defesa do cálculo do défice orçamental, subsistindo uma dúvida se esse investimento se aplica apenas às capacidades militares ou, como é do agrado de vários países, incluindo o nosso, que devem abranger despesas diretas e indiretas, como sejam salários e pensões, mas também gastos com a defesa civil, investimentos em infraestruturas, caso de aeródromos, aeroportos, pontes ou mesmo vias de comunicação e outras, situação que ajudará a cumprir metas percentuais estabelecidas, mas não necessariamente o reforço das capacidades militares que, no final da linha, é o que está em causa.
Depois da visita do Secretário-geral da OTAN a Portugal, o Primeiro-ministro anunciou um esforço para antecipar de um ano (2029), a convergência para os 2%, informando que vários Ministérios estavam a coordenar medidas nesse sentido, As Forças Armadas têm igualmente trabalhado no sentido da melhor orientação da aplicação do esforço financeiro, não esquecendo que 20% da verba consignada em Orçamento deve ser aplicada em reequipamento e inovação, trabalho esse coordenado pelo EMGFA que se focalizou em três grandes áreas de prioridades: Recursos Humanos, Sistemas de Armas e Infraestruturas.
Estamos num momento de decisão estratégica, fortemente influenciada pela atual conjuntura internacional que, apesar dos desafios reais e atuais, não nos deve fazer esquecer a análise estratégica nacional relativamente aos cenários de emprego das Forças Armadas, tendo presente o interesse nacional e a dimensão estratégia nacional, ao nível do nosso potencial estratégico que é determinante na definição do Sistema de Forças Nacional (SFN). Os Cenários reconhecidos como determinantes e consentâneos com o interesse nacional, são os seguintes: participar na Defesa Coletiva no quadro da OTAN (Art.º 5.º); participar na Defesa Cooperativa no âmbito da ONU; integrar a PESD no seio da UE; apoiar a Política Externa em situações de crise que envolvam cidadãos nacionais, incluindo a nossa participação na CPLP; apoiar superlativamente a Segurança Interna, em situações de caos e nos termos das Leis do Estado de Sítio e de Emergência; desenvolver as OMIP em proveito das populações, em situações de catástrofe e pandemia ou de apoio ao desenvolvimento.
Com base nesses cenários e nos níveis de forças a empenhar em cada um deles, foi definido um SFN, com os Sistemas de Armas distintivos de cada Ramo, capaz de responder a todo o espectro da conflitualidade atual (alta, média e baixa intensidade), às missões específicas de cada um deles e à possibilidade de ser parceiro nas coligações multinacionais, no âmbito das Alianças e Organizações Internacionais que o país decidiu integrar.
Nesse sentido, em termos nacionais devemos preservar, na Marinha, a capacidade oceânica, submarina, hidrográfica e os Fuzileiros, ampliando-a para a “guerra de minas”; na Força Aérea, as capacidades de Interdição e Defesa Aérea, Transporte, Vigilância Marítima, Apoio Aéreo às Forças Terrestres e Busca e Salvamento, ampliando também para uma capacidade no domínio dos UAV, com carácter operacional, na vigilância e possibilidade ofensiva; no Exército, uma componente com meios pesados, médios e ligeiros, incluindo Forças Especiais, organizada em três Brigadas, com unidades de manobra, de apoio de fogos, de apoio de combate e de apoio de serviços.
Paralelamente, os últimos três anos de conflito na Ucrânia e também no Médio Oriente demonstraram que a atual conflitualidade exige novos meios de resposta e esse aspeto tem de estar presente na inovação e naquilo que é necessário acrescentar às capacidades que, sumariamente, foram referidas atrás. Comecemos por recordar os avanços feitos na guerra da informação e na capacidade “ciber” que se instalou nas Forças Armadas, assim como na aérea da defesa biológica (laboratório, equipas de intervenção e capacidade de deteção, contenção e neutralização de agente biológicos), tão útil durante a Pandemia e que, infelizmente, não foi ampliada para a área hospitalar militar com contenção biológica, apesar das propostas apresentadas nesse sentido (antigo Hospital de Belém).
Deve igualmente ser tido em consideração o conceito da “Nova Tríade”, capaz de ampliar o potencial estratégico de atores de menor dimensão estratégica, assente na capacidade de utilização ofensiva no domínio do ciber espaço, das tecnologias de informação, na obtenção informação relevante e em tempo real, na existência de Forças Especiais, muito especializadas, com grande capacidade de projeção e rapidez de atuação, capazes de operarem drones e meios letais diversificados e, ainda, uma capacidade de artilharia capaz de colocação de fogos diversificados com grandes alcances, complementados por drones ofensivos com alcances idênticos ou superiores.
Os novos nichos de competências, face aos desafios operacionais da atualidade, implicam capacidades para as Forças Armadas no domínio da IA, da Robótica, da Computação Quântica, das Tecnologias de Informação, incluindo espacial, que lhe permita o acesso à informação por satélite, visual e geolocalização e a utilização de drones (FPV, vigilância e capacidade ofensiva operacional). Igualmente não podem ser descurados, no quadro da UE, o desenvolvimento de projetos comuns, sustentados em financiamento comum, para além de outros projetos cooperativos estabelecidos entre parceiros mais restritos. No entanto, merece especial referência, pela lacuna existente a nível nacional, o projeto europeu e o correspondente financiamento, da criação de um Escudo de Defesa Aérea e Anti-Míssil e o que isso pode representar na participação e criação de reais capacidades neste domínio, a nível de cada um dos países membros.
No último Editorial referiram-se os valores do PIB nacional e o significado de se avançar para um orçamento de Defesa de 3%. Estamos perante uma oportunidade de fazer bem aquilo que há décadas temos deixado de fazer. Oxalá que a desejada resolução do Conflito na Ucrânia e o eventual estabelecimento da “golden rule” na UE, perversamente, não venha a manter o “status quo” e que as necessárias capacidades militares operacionais, nacionais e da Aliança não se constituam, ficando verdadeiramente em causa, a garantia da Paz e a materialização do conceito da Dissuasão.
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* Presidente da Direção da Revista Militar.
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