General José Luiz Pinto Ramalho*
No período desta edição da Revista Militar, assistiu-se à demissão do Primeiro-ministro do atual Governo e iniciou-se uma crise política que terá, desejavelmente, o seu epílogo em 10 de março do próximo ano, quando tiverem lugar as eleições legislativas e a consequente formação do novo governo do País, o que deverá ocorrer, se dentro da normalidade, durante o primeiro semestre.
É uma crise que ocorre numa circunstância de grande incerteza da conjuntura estratégica internacional, com duas guerras a decorrer, com uma situação económica em que se procura controlar a nível mundial a inflação; o mercado da energia continua instável; os desafios das alterações climáticas agravam-se e em que as grandes organizações internacionais, referenciais da estabilidade internacional no passado, parecem não conseguir estar à altura dos acontecimentos internacionais que vivemos na atualidade.
No que toca aos conflitos abertos, a guerra na Ucrânia caminha para o seu segundo ano. Do lado ucraniano há uma alteração estratégica no plano operacional, de perda de iniciativa em toda a linha de contacto, tendo de assumir uma postura de cariz defensivo, resultante quer do falhanço da sua contra ofensiva da passada Primavera, quer de uma diminuição do apoio militar e financeiro americano, fruto da polarização política neste país e também de alguns bloqueios a nível da UE. Não são estranhas às atuais dificuldades, as divergências públicas, quanto à condução das operações, entre Volodymyr Zelensky e Valerii Zaluzhnyi e as posições de oposição política, quer no interior do partido que detém a maioria no Parlamento, quer das críticas públicas por parte do Presidente da câmara de Kiev.
Quanto à guerra de Israel com o Hamas, estamos perante o impasse da quebra de negociações e manutenção em cativeiro de mais de uma centena de reféns e um nível de baixas civis e de destruição de infraestruturas, inaceitável e cada vez mais condenado pela comunidade internacional. A continuação dos bombardeamentos indiscriminados e as dificuldades colocadas, seja à entrada seja à distribuição da ajuda humanitária, tem contribuído para o contínuo aumento das críticas internacionais e para o isolamento de Israel.
Relativamente às Organizações Internacionais, estamos perante uma ONU relativamente paralisada, em que o Secretário-geral se assume como “voz da consciência internacional”, o Conselho de Segurança é bloqueado pelo “direito de veto” e a Assembleia-geral, embora sem carácter vinculativo, assume a condenação internacional de Israel e este prossegue uma atuação de impunidade e desrespeito por aquilo, já reconhecido por 153 países, que são as normas do Direito Internacional Humanitário. Os EUA, apesar de um discurso no sentido da minimização das baixas civis, não podem deixar de ser acusados de conivência e apoio indefetível do aliado israelita que continuam a sustentar a nível militar. Uma afirmação de apoio que, na realidade, procura esconder a incapacidade de levar Israel a alterar o seu comportamento operacional, situação que, vozes na Administração americana referem, só se alterará com uma atitude idêntica à de Henry Kissinger, em 1970, quando este suspendeu, em simultâneo, o apoio militar e o “veto” no Conselho de Segurança na ONU.
Quanto à OTAN, sob a afirmação formal de uma renovada coesão e maior dinamismo político, continua confrontada com divergências de fundo, relativamente à sua política de futuro para com a China e a instabilidade no Índico-Pacífico e a efetivação da sua política de investimento na defesa, por parte dos diversos países membros, que elimine lacunas e reforce a dissuasão. Paralelamente e apesar da proclamada coesão, ainda não se conseguiu gerar o consenso necessário para admitir como membro de pleno direito a Suécia.
Por último, a União Europeia, depois de uma atuação voluntarista, durante mais de um ano, por parte da Presidente da Comissão e das expectativas criadas a diversos atores internacionais, em particular à Ucrânia, eis-nos perante reais dificuldades, quer relativamente a um processo de alargamento quer, em particular, ao processo interno de reformas, para que aquele possa acontecer. A flexibilidade na condução daquilo que são os princípios da União, tem permitido não só os comportamentos da Hungria e da Polónia, como têm gerado, inexplicavelmente, dificuldades orçamentais. A esta situação não é estranha a sobreposição de ações externas por parte da Presidente da Comissão e do Responsável pela Política Externa da UE, fruto do excesso de protagonismo ou falta dele, de cada um dos atores referidos.
Constitui igualmente fator de incerteza para a estabilidade política europeia, as diversas eleições que vão ter lugar no espaço europeu, a continuada subida de votações em partidos radicais ou dos extremos do espectro político e, em particular, o resultado das eleições nos EUA, no final do ano. É nesta conjuntura estratégica que o futuro governo do país terá de estabelecer as suas prioridades e objetivos de governação, não esquecendo que a estratégia total nacional comporta três desígnios que são interdependentes – o Desenvolvimento, a Segurança e a Justiça Social.
Nesse sentido, seria vantajoso que fossem recuperadas as críticas produzidas durante o Seminário realizado pela Comissão de Defesa Nacional da Assembleia da República, sobre as Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, que alertaram para o seu carácter redutor, centrando apenas as suas preocupações no quadro de responsabilidades do Ministério da Defesa Nacional, para a sua falta de objetividade na atribuição de responsabilidades estratégicas de execução, para além de lacunas graves na identificação de objetivos.
No caso da Segurança, em termos da Estratégia Total do Estado, o País parece viver alheado da realidade da guerra no centro da Europa, entre a Rússia e a Ucrânia, não refletindo na realidade orçamental, quer as necessidades de investimento, nas nossas Forças Armadas, quer a urgência de colmatar graves lacunas de recursos humanos e materiais.
Os futuros Primeiro-ministro e Ministro da Defesa Nacional têm de reconhecer que a atual situação da Instituição Militar, indispensável à Estratégia Geral Militar do Estado, decorre de três decisões estruturais que são verdadeiramente disruptivas para o seu normal funcionamento.
A primeira, a “Reforma 20-20”, que alterou e comprometeu o fluxo de recrutamento, estabeleceu um teto de efetivos global de 30 a 32 mil militares sem qualquer racional de sustentação, desarticulou o sistema de saúde militar, transformando aquilo que era uma reserva estratégica nacional neste domínio, em mais um utente do SNS, comprometeu o apoio social aos militares e aos seus familiares, afetando igualmente a sua Condição Militar e, também, inviabilizou vários projetos de reequipamento, designadamente no Exército, em particular o Projeto Cooperativo Internacional, o Helicóptero NH-90, com pesados custos para o erário público.
A segunda, tem a ver com a decisão de igualizar a estrutura superior dos três Ramos, sem atender aos seus aspetos específicos e identitários, ignorando que têm dimensões distintas, exigências de formação e instrução diversificadas, que a sua atuação operacional específica ocorre em ambientes operacionais muito concretos e os seus sistemas de armas que são distintivos em cada Ramo.
A terceira, prende-se com a recente Reforma da Estrutura Superior das Forças Armadas, recentemente aprovada, mas não completamente implementada, face às reais incongruências que se antecipavam, quer para as relações dos Ramos com a Tutela quer destes com o Estado-Maior-General das Forças Armadas em questões administrativas próprias, situações antecipadamente alertadas, que o Governo agora demitido se limitou a ignorar, mas também em que o principal partido da oposição, foi conivente.
Mas as atuais dificuldades das Forças Armadas centram-se também no desinvestimento com que têm sido confrontadas, com a carência dramática de recursos humanos, principal problema, a que não é estranho o não reconhecimento da especificidade da Condição Militar e as condições de dignificação e atratividade da Instituição Militar, a todos os extratos da sociedade nacional, não só para as praças, mas também para as carreiras de sargentos e oficiais em regime de contrato.
Igualmente, o não cumprimento das metas da Aliança Atlântica de 2%, para os Orçamentos de Defesa, tem impedido a modernização, a inovação e a eliminação de lacunas operacionais evidentes, indispensáveis ao cumprimento das nossas responsabilidades internacionais, mas também às missões constitucionais de soberania e à constituição das necessárias reservas de guerra. Isso reflete-se na execução da Lei de Programação Militar, naturalmente concebida e vocacionada para o investimento, mas de onde têm sido desviadas verbas para a manutenção de sistemas de armas existentes, comprometendo a sua finalidade primária.
Seria importante e pedagogicamente muito útil que, durante o próximo período que antecede a campanha eleitoral e durante a mesma, os partidos encontrassem espaço para debater e esclarecer, entre políticos e a sociedade civil, que Forças Armadas queremos ter, quanto estamos dispostos a investir em termos da nossa defesa e segurança e como antevemos a resolução dos problemas e a falta de recursos, humanos e materiais, que foram enumerados. É um desafio que fica.
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* Presidente da Direção da Revista Militar.
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