Nº 2557/2558 - Fevereiro/Março de 2015
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
As análises em torno das transições nas guerras dos últimos cem anos
General
Luis Valença Pinto

1Cumprimento os meus colegas de mesa, Professores José Subtil, Miguel Santos Neves e Luís Tomé. Saúdo também todos os presentes.

Cumpre-me esboçar uma abordagem sobre “As análises em torno das transições da Guerra nos últimos cem anos”. Ensaiá-la-ei como se de um “fresco” se tratasse.

O último século foi especialmente pródigo em matéria de modificações da Guerra.

Não foram mudanças abstractamente concebidas na frieza e distância de nenhuns gabinetes, foram alterações consonantes com a evolução do contexto político e estratégico e que, pela sua vez, também influenciaram as redefinições desses contextos.

Naturalmente que alguns saltos tecnológicos, particularmente relevantes, também contribuíram para essas modificações da Guerra.

Houve mudanças na tipologia das Guerras. Todos sabemos que acerca disto há uma pluralidade de leituras. Do que devemos retirar que nenhuma tem a força dos axiomas ou é definitiva.

Tentando uma síntese necessariamente redutora e limitada, talvez se possa dizer que:

– até ao início da Guerra Fria o tempo foi basicamente o da guerra clausewitziana, com saltos tecnológicos e operacionais consideráveis, ligados ao aparecimento dos blindados, da arma aérea, do submarino ou das armas químicas, mas sempre mantendo uma perspetiva que fazia com que a guerra continuasse a ser, no essencial, “a continuação da Política por outros meios”;

– passou-se depois para o período da Guerra Fria, muito complexo e no fundamental dominado ao mesmo tempo pela corrida aos armamentos, incluindo a corrida ao nuclear, pela perceção da arma nuclear como arma política, pelo espetro da destruição mútua e pela dissuasão nuclear, isto é, pelo desenvolvimento de uma abordagem estratégica assente na não-ação e regida pelo paradoxo da “determinação para usar meios que não se queriam usar”;

– mas a Guerra Fria foi também um tempo percorrido por processos ideológicos fortes que estimularam, viabilizaram e largamente sustentaram guerras de matriz revolucionária, em grande número associáveis a conflitos de emancipação colonial; valorizou-se então a intimidade entre combatentes e população e a usura;

– emergiram depois, em consonância com a constância da Crise e com o surgimento de novas ameaças, assimétricas e transnacionais, os conflitos de resposta às crises ou de estabilização, potenciados por e também causadores de uma nova e preocupante figura, a dos “Estados-Falhados”;

– e apareceu também, assente em novas, e para alguns, sedutoras, tecnologias, a ideia de guerra limpa, uma ideia intrinsecamente contraditória.

 

E as várias tipologias coexistiram e coexistem, segundo fórmulas e ponderações que compreensivelmente estão também ligadas às diferenças de contexto entre os vários espaços geopolíticos.

E as novas armas somaram-se às velhas armas.

Mas em todos os modelos pós-clausewitzianos, a Política não se silencia ou interrompe quando as armas falam, bem ao contrário, a Política continua e tem mesmo que se intensificar. Esta é uma enorme diferença.

Mas houve também mudanças, ou se não mudanças, pelo menos adições, no objecto e nas preocupações de Segurança e, consequentemente, nos fundamentos da violência, que deixaram de se resumir à salvaguarda da independência e da integridade do território, para também considerarem a salvaguarda ou pelo menos a pretensão de salvaguarda, das vidas, bens e direitos das pessoas.

Com consequentes transições nas lógicas da Segurança. Se no modelo clássico a lógica era win-loose, com o modelo mais contemporâneo surgiu uma lógica diferente de win-win, estimulando que nesses conflitos não haja propriamente vencidos e todos se possam sentir vencedores.

A natureza e as traduções do Poder flexibilizaram-se. A capacidade coerciva não é suficiente e muitas vezes não é a mais adequada para exprimir Poder. A capacidade de influência e de algum modo a atractividade são hoje instrumentais para esse fim.

Passou a ser mais difícil visar a segurança sem atender às pessoas e, muito menos, contra as pessoas, o que faz delas Atores do Sistema. Aí está uma evolução bem positiva.

Em nome dela surgiram novas figuras de Direito, de fundamento sólido, mas susceptíveis de aplicações discutíveis e até perversas. Exemplos são o dever/direito de ingerência e a responsabilidade de proteger.

E houve também mudanças na compreensão do espaço de recurso à violência, que cessou de ser o espaço nacional próprio e/ou os espaços contíguos, incluindo o dos aliados, para se reportar a todos os espaços onde se entende que medram ameaças que fazem perigar a Paz, a estabilidade e o modo de vida das sociedades. As fronteiras deixaram de ser linhas de defesa ou isóbaras de poder, para adotar a conceção dita pós-vestefaliana, para se tornaram referências dinâmicas, sobretudo ligadas aos interesses, em correspondência com as necessidades de protecção e afirmação desses mesmos interesses.

Também no que toca aos espaços identificáveis como “Teatros de Operações” a transição foi muito grande, à terra e ao mar juntaram-se, primeiro, o ar e, depois, o espaço, além do mais recente espaço virtual. E, num outro plano, a Guerra não está mais confinada aos tradicionais campos de batalha, fossem eles terrestres, navais ou aéreos, onde meios militares se confrontavam com meios militares. Ela passou a ser travada em todo o lado, por exemplo, sobre os complexos industriais, as infra estruturas essenciais e os meios urbanos. Surgiram mesmo processos violentos, caraterizáveis como sendo de guerra ou guerrilha urbana. E ocorreu igualmente a mediatização da Guerra, tornando os media, ao mesmo tempo, espaço de confronto e terreno de decisão.

Daqui resulta o esbatimento da diferença entre os atores da Guerra, sejam eles sujeitos ou objectos. Não é mais espontânea e nítida a separação entre militares e civis, entre combatentes e não-combatentes. E surgiram fenómenos espúrios e trágicos, como os genocídios, os senhores da guerra, as crianças-soldado e a violência indiscriminada sobre as mulheres.

E também cessou o monopólio dos Estados e Coligações como protagonistas da Guerra. A par com eles, irrompeu uma multiplicidade de novos Atores: quase-Estados, Igrejas e Religiões Transnacionais, incluindo as ligadas ao crime organizado e ao terrorismo. Todos tendo como relevante a natureza de atores políticos agindo num Mundo globalizado, interdependente e tornado mais pequeno e mais próximo por via das novas tecnologias.

E com essa ampliação, aliás reforçada com as novas preocupações de Segurança, novos vetores de atuação surgiram de modo marcado nos conflitos contemporâneos: vetores políticos, diplomáticos, económicos, financeiros, sociais e culturais, abrindo caminho à fórmula bem conhecida e identificada da Comprehensive Approach.

Por essa razão, por ninguém, nem nenhuma organização, ser por si só suficiente, a busca da Segurança privilegia hoje os modelos cooperativos e a atuação em parcerias. E se a Segurança Clássica é de base nacional ou aliada, a Segurança Cooperativa, com as suas preocupações ligadas às pessoas, carece de uma base mais cosmopolita.

Nesta nova contextualização observa-se uma maior interpenetração entre os níveis da Política e da Estratégia, uma clara prevalência da Estratégia Total ou Grande Estratégia, o reforço das Estratégias Gerais e a subalternização ou quase anulação das Estratégias ditas Particulares. Nada disto é indiferente para a compreensão do fenómeno Guerra na actualidade.

Nestes cem anos, assistimos a um outro desenvolvimento extremamente importante. Refiro-me à afirmação formal da preocupação internacional e comum de promover a Paz e a Segurança, admitindo-se mesmo a hipótese de recorrer à violência na promoção desse fins. É uma preocupação que encontrou forma quase inicial na Sociedade das Nações, criada na esteira da I Guerra Mundial. E se é um facto que não teve então grande eficácia, como a II Guerra Mundial exuberantemente comprova, não é menos verdade que, institucionalizada desde 1945, a Organização das Nações Unidas, em particular no seu Conselho de Segurança, tem vindo a ter um papel regulador da violência e da Guerra. Sabemos todos das dificuldades, imperfeições e insuficiências dessa ação. A nossa legítima ambição desejaria mais, mais célere e melhor. Mas essas circunstâncias não devem obstar a que se reconheça a singularidade e a relevância deste desenvolvimento.

Se alguma coisa dessa natureza já ocorrera no período da Sociedade das Nações, foi com as Nações Unidas que se estabeleceu o conceito de Operações de Paz, ou Operações de Resposta a Crises ou Operações de Estabilização. E com elas veio a figura nova do conflito sem inimigo ou quase sem inimigo.

Mas com esta pretensão de alcance global de regular e restringir o uso da força, coexiste a realidade que corresponde ao aumento das despesas militares que se verifica. Uma realidade que só é significativamente diferente na Europa e que tem maior prevalência nas regiões da Ásia-Pacífico e do Médio Oriente. Não são porém as armas que provocam as guerras.

 Surgiram também no palco da Guerra as empresas privadas, definindo o que alguns já designam como a empresarialização da Guerra. Mas convém atentar no que realmente são as funções que essas empresas asseguram, para, identificando o seu contributo, ponderar se se inscrevem ou não, de modo relevante, nos fins da Guerra como processo político e, porventura, relativizar o seu atual significado.

Como referi esta intervenção traduz uma leitura imperfeita e atrevida.

Como conclusão, igualmente imperfeita e atrevida, talvez se possa dizer que nos últimos cem anos foram muitas as transições que se verificaram no fenómeno Guerra. Mas que, no essencial e com a exceção do facto nuclear, com o seu carácter absoluto, e da intervenção, ainda que relativa, de regulação no âmbito global das Nações Unidas, no fundamental tudo é como sempre foi.

Usando uma imagem da Análise Combinatória, dir-se-ia que, sem dúvida, se assistiu e assiste a diferentes arranjos, a diferentes combinações e a diferentes permutações, que surgiram novos discursos que geraram novas percepções, mas que, no essencial, os elementos e factores em presença são os mesmos.

A esta constância devemos juntar a constância da necessidade da Paz e a compreensão que ela radica na Justiça, entendida como a ausência de exclusão ou descriminação negativa na ordem política, económica ou social.

Afinal, estamos perante um fenómeno que tem acompanhado a humanidade em todo o seu percurso. Um fenómeno de matriz política e determinado por pulsões humanas e sociológicas. Um fenómeno que encontra nisso os parâmetros da sua continuidade e das suas alterações. Um fenómeno que importa conhecer e compreender, recusando determinismos e inevitabilidades, como também deve ser atitude distintiva da espécie humana.

É por isso que se justifica estudar com rigor e critério as utilíssimas ferramentas interpretativas que o pensamento nos tem recentemente facultado. Dou como meros exemplos os contributos de Rupert Smith ou de Mary Kaldor. Mas, ao mesmo tempo, é talvez adequado relativizá-los, não lhes outorgando o selo de obras doutrinárias e definitivas, o que aliás não corresponde nem ao espírito dos seus autores nem ao espírito inquieto e insatisfeito que nos deve reger no contexto académico e verdadeiramente científico.

A mim, maravilha-me que a obra sobre a guerra em que encontro maior frescura, sempre renovada actualidade, absoluta abertura e novas pistas de reflexão, seja a que Sun-Tzu ou Sunzi nos legou, e que foi escrita há 2500 anos.

Há pois um enorme e fascinante espaço de investigação sobre o fenómeno guerra.

Muito agradeço a vossa atenção.


1Conferência “GUERRA MUNDIAL E RELAÇÕES INTERNACIONAIS – 100 anos depois de 1914”, II Congresso Internacional do OBSERVARE, Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa, em 2-3 de julho de 2014.

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Luis Valença Pinto

Nasceu em Lisboa, em 7 de fevereiro de 1946, ingressou na Academia Militar em 14 de outubro de 1963 e passou à situação de Reforma em 7 de fevereiro de 2011, perfazendo mais de 47 anos de serviço efetivo nas Forças Armadas.

Foi promovido ao posto de General em 6 de Agosto de 2003, quando assumiu as funções de Chefe do Estado-Maior do Exército, que exerceu até 5 de Dezembro de 2006, data em que assumiu as funções de Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, responsabilidade que deteve até à passagem à Reforma.

Presentemente, é Professor Catedrático Convidado no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e no Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, sendo investigador em ambas as instituições.

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