Nº 2557/2558 - Fevereiro/Março de 2015
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Reflexões acerca do Declínio Relativo do Hégemon Norte-americano: uma (re)configuração do poder?
Mestre
Paulo Duarte

Introdução

A palavra declínio assusta. Como conceber que os Estados Unidos, vencedores da II Guerra Mundial, detentores da moeda mais forte do mundo, estejam agora em declínio? Tal perceção incomoda o espírito, alimenta debates e provoca reações intensas. Os meios de comunicação, por seu turno, também contribuem para dar a impressão de uma América mais forte do que realmente é. É uma palavra ridícula, o declínio.

Como é que o país, que enche de fast-food vários estômagos, desde Pequim ao Brasil, de Sidney a Tóquio, e deslumbra o mundo com os magníficos filmes made in Hollywood, pode estar em declínio?

Por outro lado, como é que este Estado, que já fez chegar o homem à lua, conseguirá explorar a superfície de Marte, se, na realidade, parece perder a hegemonia?

Estará a terra da Coca-Cola, da General Motors, da Motorola, da Ford, da IBM ou da Microsoft a atravessar um vale de lágrimas?

O país que tem as maiores forças armadas do mundo, que patrulha os oceanos, que controla os céus e domina a terra, estará no fim do seu apogeu?

São questões complicadas, cujas respostas se dividem entre os partidários da supremacia ininterrupta e aqueles que, ao invés, anunciam o seu fim. Entre uma e outra abordagem crítica, acreditamos que a medida certa se situa antes no meio. Ou seja, não defenderemos aqui a teoria radical de um declínio absoluto, mas optaremos pela demonstração de um declínio relativo, que é algo natural na história das grandes potências. Como Brzezinski também constata, “para todas as potências, o declínio é inevitável; […] a hegemonia é uma fase histórica transitória [...]; com o tempo, mesmo que ainda longe, a hegemonia americana tende a esbater-se” (2004: 283).

Convictos de que o comportamento, o poder ou a influência dos Estados não são suscetíveis de se traduzir em realidades tangíveis, fórmulas matemáticas, ou meras estatísticas, assumimos, desde já, que o recurso ao método qualitativo, através da análise hermenêutica, é, indiscutivelmente, a metodologia em que assenta a presente investigação. Neste sentido, é imperativo penetrar na esfera da subjetividade, isto é, da compreensão da causalidade inerente à ação dos diversos atores, que nos chega através da análise de toda uma panóplia de artigos científicos, monografias, teses, entre outras fontes disponíveis face à temática em estudo, de forma a procurar entender o que leva os Estados Unidos a agir desta ou daquela maneira.

Dito isto, partimos da premissa do declínio relativo do hégemon para traçarmos possíveis cenários face à emergência de novos atores no xadrez mundial, e o seu impacto face à estrutura do poder internacional e interação entre as grandes potências. Começando por apresentar as raízes e marcas do declínio relativo dos Estados Unidos, terminaremos com o esboço de um cenário multilateralista, opondo-o a outro unilateralista, e projetando, inclusive, a coexistência de ambos (multilateralismo e unilateralismo) no que concerne ao posicionamento do hégemon no sistema internacional. Destacaremos, em especial, a sua relação com o ‘velho aliado’ europeu e questionaremos até que ponto a China poderá representar uma ‘ameaça’ à hegemonia norte-americana neste novo século, em que o poder mundial se encontra fragmentado e diluído, contrariamente ao que sucedia no passado.

 

Breve contexto histórico

No rescaldo da II Guerra Mundial, um novo mundo tenderia a emergir. O Nazismo estava finalmente vencido, enquanto que, discretamente, uma das potências libertadoras revelava as suas ambições na construção da nova Europa. De facto, Stalin procurava, há alguns anos, um lugar para a União Soviética no cenário mundial. Winston Churchill, que suspeitava das intenções do líder soviético (e que não era movido pelo “idealismo messiânico” de Roosevelt), preocupava-se ao ponto de falar sobre a famosa ‘cortina de ferro’ que ameaçava liberdades (Wilde, 2008: 11). Da mesma forma, o telegrama que George Kennan (1969) tinha enviado ao Departamento de Estado norte-americano, é, a este respeito, revelador da nova tensão que prevaleceria entre os dois gigantes de Yalta. A mensagem de Kennan está relacionada com a existência de um sistema ‘neurótico’: “Impermeável à razão, a URSS é perfeitamente sensível à força. […] Estamos em presença de uma força política fanaticamente ciente que não pode existir um modus vivendi permanente com os Estados Unidos” (Roosens, 2001: 3).

A sovietização foi prosseguindo ao mesmo tempo que outra guerra se tornava cada vez mais evidente: a Guerra Fria. Foi um conflito que opunha duas potências, dois sistemas, mas também duas ideologias, duas culturas. Como resultado, o mundo estava a tornar-se bipolar, situando-se cada pequena ou média potência, na esfera de influência de um dos dois gigantes. O equilíbrio do terror ou a ‘paz beligerante’, que caraterizavam este período, foram marcados por um clima de desconfiança mútua, onde americanos e soviéticos evitavam um confronto direto a qualquer custo. O receio do poder nuclear exigia uma coexistência pacífica, uma maneira de fazer guerra, escolhendo métodos originais baseados na dissuasão, no equilíbrio de forças e no recurso a terceiros (intermediários).

A partir de 1991, já não se falaria em União Soviética. Perante o colapso do bloco soviético, os Estados Unidos seriam os únicos a ocupar o primeiro lugar na hegemonia mundial. Mas antes do gigante soviético deixar de existir, refira-se que o dólar, como sublinha André Kaspi, já beneficiava de “uma posição de quase monopólio nas transações de ações, comerciais e industriais”. Além disso, “é a moeda de reserva, especialmente porque, até 1971, o seu valor havia sido definido em relação ao ouro” (2008: 212).

Não obstante, a supremacia americana não estava relacionada apenas com o aspeto económico. Na verdade, depois de o inimigo ter desaparecido – incluindo, obviamente, o seu exército (exército vermelho) – os Estados Unidos já não tinham motivos de preocupação: de ora em diante, dominavam sozinhos o mundo. A nova Rússia não era capaz de proporcionar um combate sofisticado, particularmente porque enfrentava sérias dificuldades internas. A perestroika e a glasnost destinavam-se a reparar, o mais possível, as lesões de tantos anos de negligência que haviam afetado o antigo império autocrático e que ainda ameaçavam a Rússia de Gorbatchev. Planos centralizados, uma burocracia asfixiante, os privilégios das elites, o desrespeito pelo meio ambiente e pelas liberdades, entre vários outros fatores, necessitavam ser repensados.

Do outro lado, a América das liberdades, da economia de mercado, do respeito pela democracia e pelos direitos humanos conhecia a prosperidade e a hegemonia. Em suma, os Estados Unidos eram superiores em todas as áreas: “a força militar, o desenvolvimento económico, a inovação tecnológica e a influência cultural” (Kaspi, 2008: 213). Mas até quando?

 

Oscilações no Poder

Atualmente, o poder mudou. Se antes se impunha pela simples força das armas, exigindo e obtendo, consequentemente, o respeito do inimigo, atualmente este tem-se tornado, cada vez mais, um contestatário face ao poder. No passado, o poder era um elemento de equilíbrio no sentido de que “era funcional na cena internacional, regulava as alianças, organizava as proteções [...]” (Badie, 2004: 277). Atualmente, com o fim da bipolaridade, novos atores reivindicam um lugar na arena política mundial. Estes procuram agora impor os seus próprios pontos de vista, mais do que aceitar o status quo.

Num mundo cada vez mais globalizado, os atores sentem indignação e insatisfação em relação à hegemonia dos EUA. Eis então que surge o caos e a desordem que a potência do passado já não é capaz de controlar ou reprimir. Isto explica, de acordo com Joseph Nye, que os EUA terão mais dificuldade em atingir os seus objetivos no século XXI (1990:175). Mas este é um fenómeno que não sucede apenas com os EUA porque, na realidade, qualquer potência que tem grande poder irá encontrar obstáculos à sua hegemonia. Por outro lado, o autor acredita que o poder é disseminado principalmente por causa de cinco fatores. Nomeadamente, “a interdependência económica, os atores transnacionais, o nacionalismo em funcionamento nos estados fracos, as transferências de tecnologia e os novos problemas políticos” (Nye, 1992: 166). Além disso, o facto de os atores serem individuais e múltiplos ao mesmo tempo, quase anónimos e invisíveis, torna ainda mais difícil conter os seus movimentos e exige uma negociação e um consenso, frequentemente, muito difíceis e lentos.

Richard Haass também partilha este ponto de vista, referindo-se aos perigos causados pela existência de um mundo ‘apolar’. Da mesma forma, Haass acredita que a apolaridade será a causa de uma série de ameaças provocadas por terroristas, por estados malfeitores, entre outros. Se o autor afirma que a emergência desta apolaridade é inevitável, defende, no entanto, a ideia de que os atores podem tentar contrariar os seus efeitos negativos, para que a ordem global seja o menos instável possível (Haass, 2008).

A antiga potência está então ameaçada. Dilui-se, enquanto a arena política se fragmenta. Além disso, não sabemos muito bem como será estruturada a nova ordem pós-bipolar. Na verdade, “sabemos o que perdemos; não adivinhamos o que ganhamos” (Badie, 2004: 280). De qualquer forma, e apesar das perturbações no poder, outro autor, Brzezinski, acredita que os Estados Unidos dispõem de um poder extraordinário neste novo século. Brzezinski afirma que isso é evidente nas “capacidades de intervenção militar à escala mundial”, no “carácter sensível da sua vitalidade económica para a saúde da economia mundial”; ao nível do “dinamismo tecnológico (...)” e da “difusão para além das fronteiras de todas as facetas da sua cultura de massas (...)” (2004: 7).

À semelhança de Bertrand Badie, o próprio Brzezinski também se refere à existência de ameaças ao poder dos EUA, de contestação à hegemonia norte-americana por parte de atores rivais. Em suma, a potência vê a sua segurança ameaçada. Se compararmos alguns antigos impérios com os EUA da atualidade, observamos que a América é mais vulnerável aos desafios de segurança do que era, por exemplo, a Inglaterra no século XIX. Por outro lado, a questão não é saber se a hegemonia americana irá desaparecer num futuro mais ou menos distante, porque a história é feita de mudanças. Pelo contrário, o debate deve centrar-se numa questão mais importante, ou seja, em saber quem irá substituir os EUA. Note-se, contudo, que não comungamos da visão de que a decadência do hégemon é uma tendência inexorável ou irrevogável em todas as áreas, já que a nível cultural (o soft power, o ‘sonho’ americano) e militar, por exemplo, os Estados Unidos continuam a deter a superioridade sobre as demais potências.

A problemática da instabilidade do poder na esfera política também é apreciada por James Rosenau. De acordo com este autor, a hegemonia está em declínio, as fronteiras estão a dissipar-se e a autoridade ou o poder (considerado em termos gerais) é cada vez mais contestado. Em suma, o mundo está em mudança (como sempre esteve, na verdade), mas esta mudança é marcada por um caráter de imprevisibilidade no que diz respeito ao poder. Enquanto a governança mundial vacila, os sistemas sociais deterioram-se, os conflitos entre grupos aumentam e a ordem tradicional é posta em causa. Portanto, não é de surpreender que a governança possa ter lugar na ausência de governo, enquanto os modelos de poder estão a ser reestruturados. A turbulência na antiga ordem e a mudança para uma nova ordem é acompanhada por vários fenómenos como o terrorismo, a poluição do meio ambiente, a globalização das economias, o tráfico de drogas, a diminuição das distâncias graças às novas tecnologias, entre outros fatores (Rosenau, 1992). Todas estas evoluções não significam, porém, que os governos se tornam completamente inativos, mas que muitas das suas competências podem ser agora atribuídas a outras entidades que não o governo.

Para concluir esta parte, digamos que a ordem e a governança estão intimamente ligadas na medida em que esta última condiciona e modela a natureza da ordem do sistema político. Uma existe apenas porque a outra está presente, e vice-versa. Da mesma forma, também é possível existir governança na ausência de governo (Rosenau, 1992). Alguns poderão pensar, a este respeito, que a ausência de uma autoridade central – capaz de impor a força se necessário – conduzirá talvez à anarquia. Nesta perspetiva, provavelmente não estaríamos muito longe do caos se os EUA (que possuem o maior exército do planeta) renunciassem ao seu ‘papel de polícias do mundo’. A questão é, então, saber o que pode acontecer se a Potência quiser ficar à margem do mundo (como, de facto, sucedeu no passado), ou se já não é suficientemente poderosa para gerir tudo e todos ao mesmo tempo.

As teses declinistas têm sido recorrentes nos círculos intelectuais norte-americanos ao longo dos últimos anos. Na verdade, desde o fim da Segunda Grande Guerra, que a temática do declínio tem estado presente no discurso nacional acerca do papel mundial dos Estados Unidos. Mas a obra de Paul Kennedy, The Rise and Fall of the Great Powers, em 1989, seria um importante catalisador do debate sobre se os Estados Unidos estariam, ou não, em fase de declínio ou de renovação. Ora, daqui resultou uma especulação sobre se os Estados Unidos estariam, afinal de contas, na mesma trajetória declinista que outros grandes poderes imperiais que lhe antecederam, como Espanha, França, ou a Inglaterra. A este respeito, Joseph Nye (1990) argumenta que o cenário experimentado pelos Estados Unidos no final do século XX é bastante diferente daquele vivenciado pela Grã-Bretanha no início do século, o que explica que analogias históricas ‘soltas’ e teorias políticas falsamente deterministas sejam mais problemáticas do que as meramente académicas, no sentido em que, segundo Nye, podem contribuir para desviar a atenção dos americanos relativamente à verdadeira natureza da sua situação.

O debate sobre o declínio dos EUA é um debate sobre a relevância da história, ou seja, “os declinistas afirmam que factos passados tendem a repetir-se e que a história da política mundial pode ser caraterizada como uma ‘sucessão de hegemonias’ [...], como um ‘padrão observável de emergência de grande potência’, ou como uma série de ‘ciclos longos’” (Beckley, 2012: 22). Autores como Robert Gilpin comungam da perspetiva realista do declínio norte-americano, defendendo, por outro lado, que a tendência para a quebra ou fragmentação do sistema aumenta consideravelmente com o relativo declínio do hegemon. Gilpin (1987) procurou traçar um cenário geral do declínio económico relativo dos Estados Unidos, o que também tem o seu impacto sobre a hegemonia global que estes exercem no domínio político-militar.

Especialistas como Michael Cox argumentam que “a questão não é se o declínio vai acontecer – já sucedeu – mas até que ponto os Estados Unidos conseguirão ajustar-se ao processo” (2007: 653). No entanto, Cox reconhece que “os Estados Unidos ainda dispõem de um hard power considerável”, e que “irão, durante algum tempo, permanecer o ator internacional mais proeminente ao qual os outros tenderão a recorrer quando estiverem em dificuldades” (2007: 653). Fareed Zakaria adota uma posição semelhante. Em The Post-American World, Zakaria (2008) prefere não colocar o ênfase no declínio da América, mas antes na ‘ascensão de todos os outros’. Zakaria (2008) defende que o poder relativo dos Estados Unidos, na verdade, não tem diminuído significativamente, acreditando que a potência norte-americana poderá reter a maior parte do seu domínio político internacional, já que afinal de contas, segundo o autor, o seu declínio é económico – e não geopolítico – e relativo, ao invés de absoluto.

 

Avaliando o declínio (relativo) do hégemon

Interessante e intemporal sobre o comportamento da América em relação ao resto do mundo é a obra de William Fulbright, cujo título é bastante comprometedor: The Arrogance of Power (A Arrogância do Poder). Constatamos que as grandes nações como os Estados Unidos tendem a entender o seu poder como um “sinal da graça de Deus” (Fulbright, 1966: 3). Assim, estes acreditam que são diferentes dos outros países, encarregados de uma missão ‘universal’, com responsabilidade em relação a outras nações (Hassner, 2003: 57). Isto significa que os seus padrões de vida são concebidos como os mais corretos e, portanto, devem ser estendidos a outros povos. É quase um ‘dever’, uma missão de fazer sair das ‘trevas’ estas nações e, além disso, tal deve ser realizado porque se acredita que Deus assim o deseja. Estabelece-se, portanto, uma espécie de dicotomia entre o bem e o mal, que rege as políticas externas das grandes potências. Por exemplo, o Presidente Mckinley acreditava que Deus tinha confiado aos americanos o dever de civilizar e cristianizar os habitantes das Filipinas.

Às vezes, o sucesso e a supremacia podem já conter paradoxalmente, em si, o germe do (seu) declínio, se a grande potência não souber gerir bem a questão da hegemonia. Com efeito, não é de excluir que, perante a existência, em simultâneo, de vários compromissos, a superpotência nem sempre seja capaz de garantir os meios suficientes para atingir todos os seus objetivos. E isto pode, como consequência, arruinar o seu poder e hegemonia. Além disso, uma nação que está concentrada principalmente nos assuntos que lhe são externos corre o risco de desperdiçar os seus recursos – tanto materiais como humanos – bem como de prejudicar a sua reputação (Rachman, 2011). Pensemos, por exemplo, no caso do Vietname, em que os americanos tinham a força necessária, mas não souberam adaptá-la às realidades do terreno. Esta guerra, dispendiosa em termos financeiros e de vidas (4 ou 5 milhões de mortos, incluindo os do Laos e do Cambodja), marcou, por outro lado, de forma assaz negativa o prestígio dos Estados Unidos (Chomsky, 2004: 45). Como tal, a derrota vietnamita parecia dar razão a Mao Tsé-Tung, que havia sustentado a tese de que “os Estados Unidos eram um tigre de papel” (Wallerstein, 2002: 8). Utilizando o seu poder militar, os americanos acreditaram poder estabelecer a democracia num território sem experiência democrática; pensaram que era possível fazer emergir um governo honesto onde havia corrupção. (Hadas, 2012). William Fulbright afirma que nunca sucedeu que uma nação tivesse alcançado uma prosperidade sustentável através de uma política externa ambiciosa. Mas, ao contrário, garante que algumas potências se arruinaram por terem gasto as suas energias na política externa, negligenciando, ao mesmo tempo, os seus assuntos internos (Fulbright, 1966).

 

A (in)utilidade militar da superpotência

Reiteremos que os Estados Unidos possuem o exército mais forte do mundo, o que lhes confere um autêntico poder marítimo, aéreo, terrestre sobre qualquer outra nação, considerada individualmente. No entanto, se se tiver em conta que ‘a guerra é impossível entre democracias’, e que “a democracia triunfa em todo o lado, chegamos a este paradoxo terminal de que os Estados Unidos se tornam, enquanto potência militar, inúteis para o mundo e terão de conformar-se com o facto de serem apenas uma democracia entre as outras” (Todd, 2003: 21). Com efeito, em Fin de L’histoire, Francis Fukuyama havia sugerido que a ‘democracia liberal seria universalizada’, o que resultaria na afirmação da ‘paz eterna no planeta’ (Todd, 2003). No entanto, se o leitor seguir este raciocínio, não ficará surpreendido com o facto de a América recear que o mundo já não necessite dela (Keck, 2014). Essa apreensão de se tornar inútil também se deve ao facto de o mundo ter vindo a tornar-se cada vez mais alfabetizado e democratizado. Aprendendo cada vez mais a ler e a escrever, os cidadãos da ‘aldeia global’ tornam-se mais próximos da realidade nacional e internacional. Em consequência, eles já não receberão tão passivamente o que a televisão e outros meios de comunicação transmitem. Pelo contrário, serão cada vez mais ativos, tentando decodificar o real. Daqui resulta a formação de um novo espírito e de uma nova consciência.

De ora em diante, o homem alfabetizado começa a interpretar os factos sem os filtros que lhe são impostos mais ou menos discretamente. Este ‘novo’ homem, torna-se progressivamente um ator crítico perante as ideologias dos regimes totalitários e ditatoriais. Pouco a pouco, apercebe-se que aqueles que estão no poder utilizam frases feitas, estereotipadas e simplistas para melhor controlarem a consciência e voz coletivas. Na medida em que as pessoas têm acesso à informação e são, efetivamente, capazes de a descodificar, já não aceitam qualquer ‘coisa’. Em suma, preferem a paz a um discurso belicista.

Além disso, a par da alfabetização, existe também outro fenómeno, não menos importante: o declínio da fertilidade (Todd, 2003). A mulher emancipa-se. Olha para as sociedades ocidentais, onde um ou dois filhos é encarado como um número aceitável e perfeito. Menos filhos significa menos dinheiro gasto, menos pobreza, mais qualidade de vida. Em suma, duas palavras a reter: democracia e modernidade. Em conclusão, a América belicista sai perdedora num contexto de paz generalizada, quando escolhe fazer a guerra no mundo para afirmar o seu poder e defender os seus interesses, pois já não dispõe da mesma legitimidade para o uso da força (Keck, 2014).

 

Uma economia em declínio?

Segundo os declinistas, uma das principais causas do declínio (relativo) da América é a economia. Tocamos aqui num ponto forte. A relação de forças inverte-se. Os Estados Unidos já não são o gigante económico que provoca receio. Pelo contrário, os declinistas argumentam que, hoje em dia, são os americanos que estão preocupados com a globalização da economia e com a emergência de novos atores (People’s Daily Online, 2011). Além disso, o debate sobre o declínio económico dos Estados Unidos é denso, controverso e impregnado de ideologia, paixão, subjetividade... Talvez porque não se trata de um país qualquer, mas de uma grande potência. No entanto, os fenómenos em questão apresentam um caráter objetivo; baseiam-se em números e não em desejos. Verifica-se que os Estados Unidos consomem mais do que produzem, vivem à custa do mundo (Umberto, 2003).

A pergunta “Como gerir uma superpotência economicamente dependente, mas politicamente inútil?”, levantada por Emmanuel Todd, expressa o dilema que agora preocupa os líderes de Washington (2003: 26). A balança comercial dos Estados Unidos tornou-se instável e o seu défice é alarmante. Não há equilíbrio entre o que os Estados Unidos consomem e o que exportam (People’s Daily Online, 2011). Os partidários das teses declinistas argumentam que é duvidoso que os Estados Unidos ainda sejam uma potência hegemónica. Lembram, por exemplo, que “em abril de 2009, no encontro do Grupo dos 20, em Londres, o Presidente Barack Obama reconheceu que os Estados Unidos já não são capazes de desempenhar [esse] papel, [sendo que] o mundo conta cada vez mais com a China (e com a Índia e outros Estados emergentes) para ser a locomotiva da recuperação global” (Layne, 2009: 170).

Isto é curioso se tivermos especialmente em conta o facto de que os EUA tinham sido anteriormente a potência económica dominante no pós-II Guerra Mundial. Recordemos o ‘milagre’ que o plano Marshall representava para uma Europa mergulhada na miséria e fome. Não tencionamos, todavia, debater aqui as duplas intenções de tal plano perante o chamado ‘perigo vermelho’. Limitamo-nos a constatar a ironia da história, já que esta se encontra em constante mudança. Hoje, a Europa já não tem fome. Pelo contrário, é o velho continente (entre outros atores económicos mundiais) que deve alimentar, com os mais variados produtos, uma América ávida. Além disso, os números do défice comercial dos EUA não enganam. Citemos aqueles para o ano de 2001: “um défice de 83 mil milhões de dólares face à China, 68 face ao Japão, 60 face à União Europeia, 30 mil milhões face ao México, 13 face à Coreia, 4,5 face a Israel, 3,5 face à Rússia e 0,5 para com a Ucrânia” (Todd, 2003: 80). Todd sublinha que, por estranho que pareça, a grande parte do défice dos EUA não diz respeito às necessidades primeiras de uma economia; pelo contrário, em vez disso, são outros materiais, entre os quais principalmente produtos manufaturados, que constituem a maior fatia do défice, a saber, “366 mil milhões de dólares em 2001” (2003: 80). A agricultura tornou-se, também, um campo afetado por este declínio relativo. Um ‘mundo inundado de comida’ é algo que Paul Kennedy já havia profetizado e alertado em Naissance et déclin des grandes puissances. Em que é que isto pode representar uma ameaça à economia norte-americana? Com efeito, num mundo onde a comida é abundante, existe, por conseguinte, um rápido declínio dos “preços agrícolas e das exportações de alimentos americanas”, o que afeta, entre outros, os agricultores dos Estados Unidos (Kennedy, 1989: 583).

Os declinistas realçam o facto de ser principalmente devido à ajuda indireta dos países ocidentais que o mundo possui excedentes agrícolas. Na verdade, tais potências financiam pesquisas, que visam encontrar uma maneira de aumentar a produção agrícola noutros países. A consequência é que estes países acabaram por se tornar, eles próprios, grandes exportadores de produtos alimentares e, portanto, potenciais competidores da América. Isto, por sua vez, gera um enorme protesto no setor agrícola, nos Estados Unidos, culminando finalmente com medidas protecionistas. No entanto, é preciso ter prudência na avaliação, porque a visão anti-declinista defende que “a indústria alimentar dos EUA é a maior do mundo, representando quase 13 por cento do PIB”, acrescentando que “os agricultores e produtores americanos nunca foram mais eficientes ou produtivos do que são hoje” (Edelman, 2010: 69).

Voltando aos argumentos partilhados pelos declinistas, não é só a agricultura que é afetada. Por exemplo, Kennedy também menciona no seu livro a existência de uma concorrência japonesa no que se refere aos ‘chips de silício’. O autor explica que estes entraram no mercado dos Estados Unidos com um valor mais baixo do que o seu preço de custo. Novamente, o descontentamento manifesta-se, desencadeando, uma vez mais, sentimentos protecionistas. Todos estes fatores têm como consequência o questionamento da supremacia americana em diferentes áreas de produção. Além disso, importa referir que este protecionismo sucede a uma época em que os americanos e os ingleses tinham dedicado a primazia a um mercado onde o estado não intervinha (Kennedy, 1989).

Em comparação com a indústria, podemos dizer que os americanos dominam os setores principais, o que não os impede, no entanto, de permanecerem deficitários em produtos relacionados com a baixa tecnologia, como refere Kennedy. A indústria química, os têxteis ou a siderurgia podem servir de exemplos a este respeito (Kennedy, 1989). No entanto, segundo Todd, a realidade é surpreendente, pois os Estados Unidos assistem, desde há alguns anos, mesmo no domínio da alta tecnologia, a uma situação que lhes é cada vez mais desfavorável. Todd indica aqui, por exemplo, o facto de, em 2003, a Airbus (europeia) e a Boeing (americana) terem produzido quase a mesma quantidade de aviões. Segundo o autor, “o excedente da balança comercial americana para produtos de tecnologia avançada passou de 35 mil milhões de dólares em 1990 para 5 mil milhões em 2001, e estava em défice em janeiro de 2002” (Todd, 2003: 81).

Por conseguinte, todos estes setores juntos ameaçam as finanças americanas, convertendo os Estados Unidos, até aqui o “maior credor do mundo”, como explica Paul Kennedy, no “maior devedor” (1989: 584). Obviamente, existem aspetos positivos na economia americana, a par de tudo o que acabámos de descrever. Note-se, por exemplo, que, apesar de tudo, o El Dorado americano continua, ainda hoje, a ser cobiçado por milhões de pessoas no mundo inteiro que procuram uma vida melhor. Além disso, sublinhe-se que os Estados Unidos estão na dianteira, no que diz respeito ao domínio da pesquisa, face aos demais países. Escusado será dizer, citando Beckley, que “os Estados Unidos aumentaram a sua liderança em termos de investigação e desenvolvimento, ao longo dos últimos vinte anos, sendo ainda responsáveis por 50% dos artigos científicos mais citados a nível mundial” (2012: 73).

No entanto, de acordo com os partidários do declinismo, a realidade é agora mais hostil aos objetivos de uma potência que quer continuar a manter a sua supremacia no mundo. Senão vejamos. Como é que o país, o maior devedor mundial, que de ora em diante está sujeito a uma concorrência feroz a nível internacional, e que dispõe, além disso, de uma balança comercial cujas trocas são desiguais, pode continuar a garantir o seu estatuto de superpotência? A resposta é: muito dificilmente (Hadas, 2012). Beckley acrescenta aqui que “uma vez que os Estados Unidos permitem que o dólar funcione enquanto reserva global e unidade de troca, devem executar défices da balança de pagamentos persistentes para abastecer o mundo com liquidez” (2012: 26). No entanto, Beckley explica que “fazer isso prejudica não só a competitividade das exportações dos EUA, mas também a confiança dos mercados e bancos centrais no dólar, aumentando assim o risco de um colapso do dólar” (2012: 26). Mais importante, o autor argumenta que “os governos estrangeiros que detêm reservas do dólar dependem da prosperidade dos Estados Unidos com vista ao seu progressivo crescimento económico, estando, portanto, ‘aprisionados’” (Beckley, 2012: 30). Outros, como Fareed Zakaria, embora admitam que os Estados Unidos enfrentam um declínio económico (não geopolítico), argumentam que “os problemas que afligem a economia dos EUA – consumo excessivo, baixa poupança, défices orçamentais e de conta corrente, e dependência face a credores estrangeiros – poderiam ser corrigidos, exceto se o sistema político americano se revelar incapaz de empreender as reformas necessárias” (apud Layne, 2009: 155).

Por sua vez, os defensores das teses anti-declinistas, como Daniel Drezner, sublinham que, “apesar de antes de 2008, inúmeros analistas de política externa terem previsto uma crise iminente na governação económica mundial, no seu conjunto, o sistema funcionou” (2012: 2). Entre as várias razões que explicam que o sistema tenha funcionado, Drezner destaca que “o poder relativo dos Estados Unidos foi subestimado; o compromisso institucional pré-existente de uma ordem económica aberta tornou mais fácil o reforçar do status quo; a eficiência relativa de eras anteriores de governação económica mundial tem sido sobrestimada, exagerando o contraste entre o passado e o presente” (2012: 4). Tais factos levam-nos, por conseguinte, a mitigar a natureza frequentemente derrotista subjacente ao discurso dos partidários do declínio económico da superpotência norte-americana, já que como referido, o sistema, com todos os seus pontos fracos e previsões de falha, funcionou, apesar de tudo.

Voltando aos argumentos apresentados pelos declinistas, estes defendem que não é suficiente dispor de um poder militar mais forte do que o de qualquer outro país considerado individualmente. Com efeito, é necessário, na prática, que os outros Estados reconheçam a hegemonia americana. Uma questão curiosa a propósito dos Estados Unidos foi colocada por Paul Kennedy: “Se um dia uma guerra eclodisse no mundo, como poderiam os Estados Unidos lidar com esta, uma vez que não teriam uma indústria suficientemente capaz de satisfazer todas as suas necessidades?” (1989: 587). Kennedy defende que “o facto de [uma potência] possuir o maior exército do mundo é certamente um fator importante, mas insuficiente, na medida em que nenhum exército pode alimentar a população” (1989: 587).

No âmbito do presente debate sobre os aspetos económicos, qual a relação entre as despesas que os americanos consagram à defesa e os seus efeitos na economia? Este é um ponto importante, especialmente se adotarmos uma perspetiva comparativa entre os Estados Unidos e as principais potências económicas mundiais. Os declinistas argumentam que, visto que a única superpotência mundial ambiciona manter a sua hegemonia militar, é provável que outros setores da economia venham a ser negativamente afetados (People’s Daily Online, 2011). Enquanto países como a Alemanha ou o Japão consagram grande parte dos seus investimentos à melhoria e desenvolvimento do setor comercial e da investigação, os americanos estão mais preocupados com a defesa. Tal manifesta-se, entre outros, no canalizar da atenção dos especialistas, principalmente para a investigação militar, na expetativa de que a superpotência possa dispor da tecnologia mais avançada que lhe permita lidar com qualquer cenário de guerra. Paul Kennedy (1989) alerta para os perigos inerentes a um excessivo enfoque no progresso militar, do qual poderá resultar um enfraquecimento da atenção consagrada aos setores civis. Robert Kagan salienta que “as forças aéreas e terrestres americanas estão equipadas com o armamento mais avançado, sendo as mais experientes em combate real, [capazes] de derrotar qualquer adversário numa batalha frente a frente; […] O poder naval americano continua a ser preponderante em qualquer região do mundo” (2012: para. 12). Beckley acrescenta aqui que “a superioridade militar permite aos Estados Unidos utilizar a força sem guerra…” (2012, p. 29). Sob este ângulo de análise (declinista) não surpreende que a economia americana revele um forte défice e uma alta dependência face ao exterior (Wallerstein, 2013). Ao mesmo tempo, outros países, com menos preocupações ao nível da segurança, retiram vantagens em termos comerciais (Rachman, 2011).

A escolha entre a defesa e o setor civil emerge, cada vez mais, como a questão crucial. Estarão os líderes de Washington dispostos a pagar qualquer preço para garantir a supremacia da segurança? Serão eles capazes de conciliar os desafios resultantes de uma economia mundial altamente competitiva com a manutenção da maior máquina de guerra do mundo? Sejam quais forem as respostas, importa ter-se em conta o facto de a realidade e própria sucessão dos acontecimentos a uma escala planetária não esperarem pelos americanos. Pelo contrário, são os americanos que devem correr contra o tempo, para tentarem inverter o perigoso rumo da sua economia (Rachman, 2011). A este respeito, os declinistas apontam uma relação causal entre o declínio económico da superpotência e o esforço desesperado dos seus líderes para o travar. Na verdade, segundo os declinistas, Washington parecia acreditar que uma série de operações belicistas no Médio Oriente e na Ásia poderiam ser a solução para parar o enfraquecimento da economia americana (Hadas, 2012). Mas um projeto tão ambicioso falhou, sendo que os EUA não conseguiram controlar estas regiões vitais de um ponto de vista estratégico, suscetíveis de lhes permitir, eventualmente, possuir cerca de 70% dos recursos de petróleo do mundo (Rachman, 2011). O problema, na conceção declinista, é que os líderes americanos aspiraram muito alto, sendo que na prática têm vindo a perder cada vez mais influência na Eurásia. Além disso, e concluindo este ponto, por que é a Eurásia tão importante para os Estados Unidos? Porque é nesta região, onde vive “75% da população mundial”, que “o essencial do destino político e militar universal é jogado” (Brzezinski, 1997: 18). Neste contexto, os declinistas salientam a obsessão dos Estados Unidos em manter a sua supremacia neste espaço tão vital em recursos humanos e energéticos, entre outros (Wallerstein, 2013).

 

Uma (re)configuração do poder?

No início deste artigo, procurámos explicar que o poder (incluindo as relações de poder) está a mudar. Este facto incontestável explica que os americanos tenham motivos mais que evidentes em se mostrar apreensivos face a possíveis ameaças à sua hegemonia neste novo século. Por outras palavras, enquanto o declínio (relativo) da América avança, outros atores parecem emergir. Para além dos EUA, a famosa pentarquia Palmerstoniana engloba: “a Rússia, a China, a Índia e o Japão”. Nesta fórmula de poder para o século XXI, “a Europa desapareceu”, enquanto a Ásia concentra as atenções (Schmiegelow Partners, 2008: 21). Com efeito, se lançarmos um olhar sobre “as recentes taxas de crescimento das duas nações mais populosas do mundo, China e Índia”, bem como sobre o seu enorme potencial em termos de “território, trabalho e capital”, veremos quão importante a Ásia é (Schmiegelow, 2006: 10). Como destaca Henrik Schmiegelow, “o modelo de integração e de desenvolvimento asiático parece praticar, de forma mais consistente do que a América, uma filosofia (que é no fundo) norte-americana: a filosofia do pragmatismo” (2006: 18).

Obviamente, por muito conhecedor e/ou reputado que seja um especialista em relações internacionais, não é possível nem sensato afirmar-se nada com total certeza, pois os atores são sempre imprevisíveis. Entre as várias correntes de pensamento, é de destacar o debate entre os defensores da continuidade do multilateralismo e aqueles que defendem uma viragem para o unilateralismo. Estas duas correntes são importantes no que diz respeito à temática do declínio (relativo) norte-americano. Na verdade, se os EUA adotarem uma atitude mais unilateralista (e, portanto, ‘egoísta’), o seu poder tenderá a desgastar-se. E isto, talvez de forma mais célere do que se eles optarem por cooperar com as instituições e potências internacionais.

Voltaremos a este tema mais tarde. Discutiremos primeiro por que razão os aliados europeus deixaram os americanos agir unilateralmente após o 11 de setembro, embora seja, naturalmente, possível argumentar que a OTAN também interveio. Mas, mesmo aqui, importa citar Sophia Clement, segundo a qual, “embora os aliados da OTAN tenham invocado o artigo 5º após o 11 de setembro, a primeira vez na história da OTAN em que foi ativada a cláusula de defesa mútua, os EUA preferiram optar por sair da OTAN devido à lição que aprenderam através do processo de nation-building no Japão” (2003: 403). A autora acrescenta ainda que “os EUA tentaram limitar o envolvimento dos parceiros, quer bilateral quer multilateralmente, de forma a evitarem quaisquer constrangimentos políticos na condução das suas operações no Afeganistão” (Clement, 2003: 403). O debate acima especificado também nos ajudará a entender um pouco melhor o caráter dos americanos e as suas tendências ‘tão’ militaristas. Reiteremos, para o efeito, que as despesas excessivas com o armamento e as guerras podem ser portadoras do germe do enfraquecimento interno e conduzir, com o tempo, ao declínio relativo.

 

Velhos aliados, diferentes idiossincrasias

Onde estava a Europa quando a potência americana foi ferida pelo 11 de setembro? Onde estavam os europeus no momento em que os EUA precisavam deles? A resposta encontra-se, por exemplo, em Robert Kagan, quando este explica que “é hora de parar de fazer crer que europeus e americanos partilham a mesma visão do mundo, ou mesmo que eles vivem no mesmo planeta” (2003: 9). Com efeito, só se pode entender a ‘inação’ da Europa, por via de uma hermenêutica, isto é, através da compreensão da sua idiossincrasia e do contexto que a influencia. Na verdade, os europeus são apologistas da paz e do multilateralismo. Querem resolver os seus problemas através da diplomacia e do direito, em cooperação com os diversos atores. Ao mesmo tempo, esta maneira de ver o mundo encaixa-se bem no ideal de “paz eterna” de Kant, que contrasta com a “anarquia hobbesiana” (Kagan, 2003: 9). Esta última é, essencialmente, o mundo em que os americanos vivem, um planeta onde reina o caos e a desordem, os quais eles acreditam serem os únicos capazes de eliminar, pela força. Além disso, os sistemas hobbesianos são dificilmente compatíveis com a existência de estratégias multilaterais, que estão condenadas ao fracasso num mundo anárquico (Almeida, 2003). Os americanos suspeitam dos outros, da sua vontade de cooperar, da diplomacia. Por exemplo, as Nações Unidas revelam-se uma instituição por vezes útil, outras vezes um obstáculo a contornar, através do recurso ao unilateralismo (o Iraque é, a este respeito, um bom exemplo).

Os americanos concebem o mundo em termos de cálculos, tentam prever o comportamento das nações suspeitas, bem como a melhor estratégia para aniquilar o adversário e expandir a sua hegemonia. Não surpreende, portanto, que os americanos tenham receio, porque eles procuram-no através de uma política externa agressiva para com os mais fracos. Como dizia Barber, “o medo é a única arma do terrorismo, mas é muito mais poderosa contra aqueles que vivem na esperança e na prosperidade do que contra aqueles que definham em desespero e não têm nada a perder” (2003: 21).

Em conclusão, os americanos e os europeus parecem estar perante áreas em que discordam, incluindo a política externa: a escolha entre multilateralismo e unilateralismo, entre o recurso ao direito e à diplomacia, ou à força. Certamente, todos querem a paz, mas os métodos para a alcançar são diferentes: ao contrário dos europeus, os americanos tendem muitas vezes a recorrer à guerra para obter a paz. Além disso, a configuração geográfica também ajuda a explicar as diferenças de pontos de vista relativamente ao que os europeus e americanos consideram como novas ameaças. Como tal, Kagan explica que “os americanos têm uma exigência irracional de segurança total, sem dúvida porque viveram durante séculos protegidos por dois oceanos” (2003: 51). Por sua vez, “os europeus sabem o que é viver na insegurança, porque a tal se habituaram durante séculos” (Kagan, 2003: 51). Não obstante as suas idiossincrasias, a Europa e os Estados Unidos são interdependentes. O poder económico complementa a força militar. Uma tal complementaridade é benéfica não só para o ‘velho’ e para o ‘novo’ continentes, mas também para o próprio sistema mundial que necessita de estabilidade e de um líder. E se a Europa não dispõe verdadeiramente de um poderio militar, à semelhança do Japão, ela exerce, contudo, influência na cena internacional. Por outro lado, se a Europa provém de “Vénus”, como sugere Kagan, então ela é dotada de “uma sensibilidade particular, suscetível de guiar o seu aliado americano” (2003: 51).

 

O debate Unilateralismo vs Multilateralismo

Alguns autores defendem, no âmbito da nova ordem mundial, que os EUA devem concentrar-se principalmente nos seus assuntos internos e resistir a qualquer multilateralismo, exceto no caso em que os interesses americanos estejam em perigo. Trata-se de um unilateralismo puro e duro que visa satisfazer apenas os objetivos americanos, incluindo os seus desígnios expansionistas, ou seja, imperialistas. O impacto dos atentados do 11 de setembro contribuiu para dissipar as dúvidas inerentes ao debate do ‘unilateralismo versus multilateralismo’, uma vez que a maioria dos analistas tende a afirmar que os EUA assumiram uma postura cada vez mais unilateral ao nível da sua política externa. Neste sentido, a ofensiva iraquiana representaria apenas o primeiro passo da nova ‘grande estratégia imperial’ da Administração Bush que visava dominar o mundo e destruir qualquer potência que tentasse desafiar os EUA (Chomsky, 2004). Além disso, a velha ideia de “agir multilateralmente, quando possível, mas unilateralmente sempre que necessário”, que foi repetida por Madeleine Albright (como embaixadora das Nações Unidas), atesta até que ponto os americanos estão dispostos a adotar esta estratégia (Cit. por Chomsky, 2004: 199).

No entanto, os estados aliados (à exceção da Inglaterra, por exemplo), bem como de uma grande percentagem da opinião pública norte-americana e internacional (para não dizer a maioria), não comungam dos mesmos objetivos que o ‘Tio Sam’. Neste contexto, podemos questionar se a lição iraquiana não será, em última análise, um modelo de ‘cooperação seletiva’ que Richard Haass acredita ser o pilar das relações entre os EUA e os seus aliados no século XXI. Tudo indica que sim. Na verdade, os aliados parecem ter outras preocupações para além do imperialismo e da segurança, tão importantes para Washington, o que explica que, neste novo século, as alianças formais tendam a ser ainda mais reduzidas. Além disso, na nova ordem internacional não haverá “aliados permanentes”, nem “adversários permanentes”, mas “apenas interesses permanentes” (Schmiegelow Partners, 2008: 7).

No entanto, o unilateralismo não se limita apenas à questão do 11 de setembro e suas sequelas. Também está presente quando os americanos se recusam a assinar o protocolo de Quioto, os acordos de redução de armas ou a aceitar e apoiar as regras e instituições que dizem respeito às grandes problemáticas internacionais. O unilateralismo receia e é hostil a qualquer ideia de regra ou regulamentação opressiva.

Neste contexto de prossecução de interesses que não recebem o consentimento dos aliados, é legítimo perguntar se o multilateralismo ainda tem hipótese de sobreviver na nova ordem. Sim, dirão certamente os defensores desta abordagem, realçando os inúmeros casos em que os EUA, renunciando ao seu isolacionismo, colaboraram na construção de um mundo melhor. Os exemplos da OTAN ou das Nações Unidas, atestam, na prática, que os americanos se têm envolvido, desde há vários anos, na cooperação (Almeida, 2003). Neste sentido, o multilateralismo é um elemento caraterístico da própria identidade dos EUA, e que não se pode simplesmente apagar sejam quais forem os novos desafios.

Como é que os EUA se irão posicionar no futuro? Na verdade, ainda têm a oportunidade de dizer ao mundo que estão presentes pela força, ou de esperar que o próprio mundo reconheça o seu poder. Também podem escolher entre lutar sozinhos contra o terrorismo e a anarquia, ou cooperar com os outros países. Mas, como explica Brzezinski, “entramos numa era em que a aspiração à segurança nacional no isolamento é uma quimera” (2004: 282). Isolados, os americanos não terão a força para suportar os “ressentimentos e a inveja” (Brzezinski, 2004: 282). Ou, como sublinha Nye, “querer decidir sozinho o destino do planeta permite, talvez, obter triunfos em matéria de política externa, mas isto não é suficiente para resolver a miríade de problemas impossíveis de tratar, a não ser através da cooperação internacional” (1992: 228). Com efeito, os partidários de uma atitude multilateralista defendem que é do interesse americano aceitar e apoiar as regras e instituições que têm por objetivo lutar contra o terrorismo, contra a SIDA, o tráfico de droga, a pobreza e outras grandes questões e desafios transnacionais. Os interesses dos EUA podem também coincidir com os de muitos outros países, e vice-versa. Egoístas, tenderão a esmorecer com o tempo; cooperativos, semearão um futuro melhor para eles e para os outros. O sucesso da estratégia americana será ainda mais notório se os outros entenderem aonde a América quer ir, o que pretende fazer e como quer fazê-lo.

Em conclusão, se o 11 de setembro reforçou o unilateralismo norte-americano, seria, no entanto, simplista considerar a futura política externa norte-americana apenas em termos unilaterais ou multilaterais. Na verdade, nada impede que estas duas caraterísticas se complementem. Por outro lado, os EUA devem perceber que já não são a superpotência que foram no passado, mas, ao invés, são tão-somente uma grande potência entre outras. Isto significa que a sua ação, para ser eficaz, deve ser enquadrada e auxiliada pela ação de outros grandes estados (os EUA já não podem continuar a operar unilateralmente como no passado, porque o poder mudou). A cooperação deve ser selada com “grandes potências regionais”, tais como o par “Franco-alemão na Europa, a Rússia na Eurásia, a China e, talvez o Japão, no sudeste da Ásia, a India, no sul da Ásia” (Huntington, 1988/89: 5). Mas deve ser também levada a cabo com qualquer outra potência, desde que esta manifeste vontade em percorrer um caminho de paz e de prosperidade.

Se preferirmos falar em termos de ‘polaridade’, poderemos, talvez, dizer que o sistema internacional atual tem caraterísticas tanto unipolares como multipolares. Tal significa que o mundo é “unipolar do ponto de vista militar”, e é, ao mesmo tempo, “multipolar do ponto de vista económico e, principalmente, cultural” (Hassner, 2003: 63). Estas duas caraterísticas, não obstante as suas diferenças, “podem perfeitamente coexistir”, especialmente num contexto onde o poder e os atores são complexos e imprevisíveis.

 

O fator China

Imprevisível e complexo é, por exemplo, o caso chinês. A China abastece os americanos com os mais variados produtos, mas, por outro lado, não se compadece necessariamente com o declínio dos EUA. Neste sentido, a China é, possivelmente, cúmplice da ‘eutanásia’ americana, porque se limita a responder ao pedido de consumo desenfreado de Washington. Mas, ao fazê-lo, não só permite o ‘suicídio’ económico dos EUA, como também beneficia com isso (Keck, 2014).

A China dispõe de um grande potencial para se tornar uma superpotência. Apesar dos problemas internos, o país ocupa uma enorme dimensão territorial, conta com uma imensa mão de obra e vê sua economia a crescer a um ritmo acelerado. Além disso, o facto de a China ser capaz de mobilizar cerca de 300 milhões de soldados e de modernizar cada vez mais o seu exército, explica que o seu poder militar não possa ser negligenciado no caso de uma possível guerra nuclear ou convencional (Bertonha, 2008). Em suma, enquanto os EUA vêm a sua economia enfraquecer, a China parece estar a acordar. E, se recordarmos a velha frase ‘Quando a China acordar, o mundo tremerá’, então perceberemos que este país pode passar do estatuto de ameaça (para qualquer outra potência) para uma situação em que igualará ou substituirá os EUA[1].

O que é, então, necessário para que a China, com o seu potencial demográfico, cultural, económico, militar e diplomático, mostre que acordou? É uma mera questão de tempo, se mantivermos, obviamente, todos os outros fatores constantes. Porque, como explica Bertonha, “a China é, entre os potenciais candidatos ao estatuto de superpotência (União Europeia, Rússia, Índia, Japão, Brasil), aquele que tem de enfrentar menos obstáculos” (2008: 34). Não é necessário lembrar que nada é certo e que vários autores têm muitas e diferentes opiniões sobre o futuro da ordem mundial. Mas uma coisa é certa: a China está lá e não a podemos ignorar ou subestimar.

Finalmente, podemos dizer que o estatuto que a China tiver adquirido em função dos acontecimentos, ditará então o seu comportamento: continuar ou não a colaborar com os americanos. De acordo com George W. Bush, “a China já não é um parceiro estratégico, mas antes um competidor estratégico”, o que revela que ela é encarada como um perigo para os EUA (Bertonha, 2008: 34). Mas também é considerada como uma “ameaça potencial aos seus vizinhos”, se considerarmos, por exemplo, as “diferenças ideológicas”, ou “as rivalidades de poder”, isto de acordo com Michèle e Henrik Schmiegelow (2007: 17).

 

Conclusão

Nesta etapa, reiteramos que, ao falar em declínio, fizemos seguir esta palavra do adjetivo relativo entre parênteses. Fizemo-lo propositadamente, porque não queremos que, a qualquer momento, o leitor pense que os Estados Unidos se encontram numa situação de declínio absoluto. Preferimos, enfim, as repetições conscientes à ideia de esquecimento involuntário.

Então, por que não podemos falar de declínio absoluto para os Estados Unidos? Assim como os grandes impérios da história, os Estados Unidos, também podem cair. Quando? Ninguém sabe. O autor de Naissance et déclin des grandes puissances é claro a propósito da questão de saber se os Estados Unidos podem manter a sua situação atual “[...] não, porque nunca foi dado a nenhuma sociedade manter-se no topo, permanentemente, porque isso significaria que se congelavam as diferenças nas taxas de crescimento, de progresso tecnológico e desenvolvimentos militares que já existem há muito tempo” (Kennedy, 1989: 591). Vários fatores impedem-nos de afirmar que este declínio será absoluto. De facto, basta apenas lembrar a dimensão geográfica, o número de habitantes ou os recursos que os Estados Unidos possuem. Este conjunto é bastante significativo e poderoso para permitir que os Estados Unidos ocupem uma posição de peso, quaisquer que sejam as perturbações de poder na cena política. Da mesma forma, o facto do exército dos Estados Unidos, a cultura e a ideologia serem preponderantes e estarem implantados por todo o lado explica que não possamos condenar os Estados Unidos às trevas (embora este tenha sido o destino de alguns impérios no passado).

De facto, concordamos com Eric Edelman, quando o autor menciona que “os Estados Unidos são o primeiro Estado-líder internacional da história moderna com preponderância decisiva em todas as componentes subjacentes do poder: económica, militar, tecnológica e geopolítica” (2010: 64). Também vale a pena mencionar Zakaria (2008), que argumenta que os Estados Unidos podem permanecer no centro do sistema internacional durante muito tempo, porque ainda há um mercado forte para o poder americano, por razões geopolíticas e económicas. No entanto, segundo Zakaria (2008), a maneira de preservar o seu estatuto fundamental na política internacional é através do seu soft power, não do seu hard power.

Também partilhamos da opinião de Nye de que os EUA dispõem dos recursos ideológicos e institucionais suaves para manter o seu lugar de líder nos novos domínios da interdependência transnacional, uma vez que o país continua a ser a maior e mais rica potência, bem como a mais capaz e suscetível de moldar o futuro. Mas, como adverte Nye (1990), a questão crítica consiste em saber se os EUA terão a liderança política e visão estratégica para converter os seus recursos de poder em influência real num período de transição da política mundial.

No entanto, o declínio, enquanto processo natural deve ser interpretado com realismo e conhecimento da História uma vez que as paixões nacionalistas e as emoções só complicam o caminho que os americanos estão atualmente a seguir. A paixão é incompatível com a razão porque confunde a inteligência. Por outro lado, o realismo tenta encontrar a melhor maneira de retardar o declínio que, como vimos, é inevitável na vida de uma grande nação. Enquanto o sistema se torna multipolar, isto não significa que os EUA se irão diluir num complexo jogo de atores, perdendo as suas particularidades. No entanto, serão menos fortes do que hoje em dia, mas mais poderosos do que qualquer outro país considerado individualmente. Neste contexto, a questão de saber se os Estados Unidos estão ou não em declínio deve, de ora em diante, dar lugar à verdadeira questão: quem irá substituí-los neste novo século? Só o futuro o dirá, mas, neste momento, já existem alguns ‘candidatos’ a este lugar: a China, o Japão, a India ou a Rússia. É claro que a União Europeia não deve certamente ser negligenciada, apesar de alguns, como os americanos Palmerstonianos, não a incluírem na Pentarquia do século XXI. É, certamente, poderosa ao nível económico (e, é preciso acrescentar, militarmente fraca), tal como o Japão, mas é a China que parece concentrar todas as atenções. Quando este enorme país acordar, então poderá abalar não só os americanos, fortemente dependentes dela, mas o mundo.

Como nota Zaki Laidi, “considerando o potencial da China, as ambições da Rússia e da Índia, constataremos [...] que não é impossível que a ordem mundial do século XXI seja marcada pelo retorno da lógica do poder” (2003: 22). Se isso acontecer, não surpreende que os americanos vejam a sua hegemonia ameaçada num mundo multipolar. Então, tentarão fazer de tudo para “evitar desafiadores” ao seu poder (Laidi, 2003: 22). Assim, é legítimo pensar que se a China se torna mais forte (como, de facto, os indicadores atuais sugerem), vai querer ter uma palavra a dizer sobre os assuntos regionais e, até mesmo, mundiais. Isto explica que a relação entre os dois gigantes, os Estados Unidos e a China, pode ir da cooperação ao conflito. Taiwan também é um ponto nevrálgico no relacionamento entre as duas potências, mas isso não significa que, apesar do desafio, os dois países estariam realmente dispostos a usar armas nucleares. De tal modo que a China está bem consciente da importância em manter um ‘cliente’ tão especial que lhe permite desenvolver a sua economia.

Impregnadas de um misto de paixão recíproca e de desconfiança mútua, as relações sino-americanas oscilam entre a cooperação e a rivalidade. Com efeito, embora a China se revele um parceiro indispensável para as questões da proliferação nuclear e do terrorismo, não deixa, todavia, de ser encarada em certos círculos políticos norte-americanos como um ‘concorrente estratégico’. Pequim contesta, por seu lado, a política de cerco que Washington conduz a seu respeito, de forma a circunscrever a potência chinesa. Ambígua, a atitude norte-americana face à China baseia-se num misto de prudência tática e de indeterminação estratégica. Certos autores criaram, além disso, o termo de ‘endigagement’, que traduz uma estratégia destinada a ‘isolar politicamente Pequim’, procurando, contudo, manter simultaneamente uma ‘parceria ativa no que diz respeito às questões económicas e comerciais’. Atuando nos ‘mesmos terrenos’ (nomeadamente em África e na Ásia), as duas potências querem garantir o seu acesso às matérias-primas, bem como controlar os ‘gestos do outro’. O futuro da sua relação, incluindo o risco de um conflito potencial, será determinado essencialmente pela maneira como Washington e Pequim fizerem face à sua competição económica, à questão de Taiwan, aos direitos do homem e à governança mundial. Mas, neste momento, os dois países não são nem ‘inimigos supremos’ nem ‘parceiros duradouros’.

Não obstante todas estas apreensões, rivalidades e desconfiança, ‘a ameaça chinesa’ face à hegemonia norte-americana é, por ora, reduzida devido aos problemas internos (instabilidade social, alta corrupção e desequilíbrios abissais entre as zonas costeiras ricas e um interior pobre, desmazelo ambiental, entrave que a natureza do Partido Comunista coloca paradoxal e curiosamente ao crescimento e progresso do país) . Tal não quer dizer, contudo, que os chineses não lutem para reencontrar o caminho da ‘tentação imperial’, para voltarem a ser a ‘grande nação’ que foram no passado.

Esta amálgama de ‘destino manifesto’, de ‘missão histórica’, de nacionalismo, de prestígio e nostalgia de um passado glorioso poderá, um dia, fazer da China uma superpotência. Como sublinha H. Christophe, “excetuando algum grande incidente, imprevisto ou um grave erro de estratégia por parte do Partido Comunista chinês, Pequim parece dispor de todas as vantagens em mão para o conseguir” (2006: 8). De facto, “as fraquezas de hoje serão, talvez, as forças de amanhã, sendo dificilmente concebível que um estado tão grande, territorial e demograficamente, não desempenhe um papel mais importante no futuro” (Christophe, 2006: 8). Nesse momento, ainda longínquo e incerto, não é de excluir que a China se torne, um dia, um ator ‘ameaçador’. Mas esta possibilidade não deve ser encarada como um fenómeno anormal. Pelo contrário, ela inscreve-se na dinâmica natural do ‘nascimento e declínio das grandes potências’, onde ora um ou vários estados dominarão, ora declinarão.

Todavia, por ora, apesar do relativo declínio que os Estados Unidos atravessam, estes tenderão a permanecer a única superpotência mundial, ou seja, o hégemon, a curto e médio prazo. Na verdade, não existe, em termos militares e/ou económicos, qualquer potência ou conjunto de potências que possa ainda fazer frente ao poderio norte-americano, que gaste mais em defesa do que todos os outros países juntos (segundo Beckley, “o orçamento da defesa dos EUA excede 1,5 mil milhões de dólares, ou seja, oito vezes maior do que o da China e está a aumentar, mesmo excluindo o financiamento suplementar para as guerras no Afeganistão e no Iraque”) (2012: 83). Além disso, como conclui Barry Eichengreen, em ‘Privilégio Exorbitante’, não existe ainda nenhuma moeda que possa substituir o dólar como meio de troca global. Note-se que, apesar de tudo, a economia norte-americana permanece a maior do mundo e, apesar de ter produzido uma crise sistémica em 2008, ela mostra sinais claros de recuperação e de retoma da produção. Os EUA ainda possuem, para todos os efeitos, a parcela mais lucrativa das cadeias globais de produção (inovação, design, alta tecnologia), o que, mesmo sob uma perspetiva marxista ou dependentista, ainda significa que os EUA controlam sistematicamente a produção global. Não há tampouco qualquer indício ou prova de que a existência de défices sistemáticos gere necessariamente o declínio de uma superpotência. Diferentemente de qualquer outro país, os EUA podem produzir défices, porque são responsáveis pela moeda de troca do sistema e são ainda os responsáveis pela liquidez global (facto destacado pelas potências emergentes quando reclamaram de uma ‘guerra cambial’ e um ‘tsunami monetário’, nos anos seguintes à crise de 2008).

Em geral, concordamos com os argumentos de Edelman, que sustentam que a primazia duradoura da América e a duração do momento unipolar serão claramente assunto de debate intensificado nos próximos anos. Uma “avaliação adequada”, como acrescenta Edelman, dependerá “de como vamos tentar medir o poder dos países que podem tornar-se polos adicionais num mundo multipolar, e como podemos avaliar a força duradoura e capacidade para o renascimento da América” (2010: 30).

Dito isto, seria interessante se outros investigadores e estudos dedicassem mais atenção ao fenómeno chinês, ou seja, aos contornos e consequências que a emergência da China na arena mundial pode trazer para o equilíbrio de poder, em particular para a sobrevivência do hégemon americano enquanto única superpotência mundial nos anos vindouros.

 

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[1]  Em 1973, Alain Peyrefitte publicou uma obra intitulada “Quand la Chine s’eveillera, le monde tremblera”. Para aprofundar o conhecimento sobre este assunto ver http://www.chine-informations.com/actualite/quand-la-chine-se-reveillera-le-monde-tremblera_2421.html.

 

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by COM Armando Dias Correia