Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Apontamento para a História da Medicina Militar. A Marinha
Contra-almirante MN
Rui Manuel Rodrigues de Abreu
No entender de Orlando Ribeiro, na “Introdução Geográfica à História de Portugal” - “Portugal é mediterrâneo por natureza e Atlântico por posição”.
 
A situação geográfica de Portugal, determinante na sua evolução histórica, repercute-se na importância que assume no contexto das linhas de navegação medievais.
 
Portugal é uma nação marítima.
 
Ainda hoje e ao longo da sua costa passa um enorme fluxo marítimo, tendo Lisboa uma situação privilegiada como porto.
 
Dividem-se os autores sobre a importância duma marinha de estado portuguesa nos alvores da nacionalidade: a marinha real destinada à defesa e ao combate naval.
 
As indicações relativas a acções marítimas na reconquista cristã são escassas, sobretudo no que se refere a combates navais, o que não elimina a possibilidade de que o auxílio militar por via marítima e fluvial tivesse existido.
 
Frei António Brandão opina que, até 1180, os portugueses pouco usaram as operações navais.
 
Vasconcelos e Menezes, considerava que no século XII, o domínio muçulmano das rotas marítimas ao longo da costa portuguesa era quase absoluto.
 
Rodrigues Pereira defende que as primeiras referências a uma marinha nacional, armada a expensas do erário público, coincide com a conquista de Lisboa.
 
A maioria dos autores inclina-se para que, não obstante as expedições, quer contra o poder muçulmano, quer contra os nossos vizinhos, não é credível a existência de uma marinha preparada, organizada e sempre pronta para os combates navais. Uma força permanente portanto.
 
Mas lendário para uns, sem quaisquer dúvidas para outros, existe o relato das acções de D. Fuas Roupinho, o primeiro Almirante português, com o combate naval do Espichel e a expedição a Ceuta. Referências a uma armada de vinte e uma galés.
 
Daí o facto de outros eruditos, mais recentemente, terem vindo a defender que a marinha de guerra real tinha já um peso marcante nos alvores da primeira dinastia.
 
Sendo objecto de controvérsia a própria existência de uma marinha da coroa portuguesa até ao reinado de D. Dinis, com documentação escassa e confusa, o problema em relação ao apoio sanitário das armadas ainda é mais complicado.
 
Não controversa é a assunção de que a partir de D. Dinis se poderá considerar que Portugal passou a dispor de uma Marinha de Guerra.
 
Sabe-se como se organizava a comando superior, sabe-se como era feito o recrutamento das guarnições, nem sempre fácil e por vezes violento. O mar foi sempre um elemento hostil e as adversas condições a bordo não favoreciam o voluntariado. Trata-se do sistema das vintenas com o seu responsável - o “vintaneiro”. Este recrutava “gente de mar” - remadores e marujos.
 
Havia depois a “gente de guerra”, besteiros e infantes destinados ao combate que se desenrolava nos convés, em plataformas oscilantes, e muitas vezes já a meter água.
 
A legislação, progressiva vai-se apurando ao longo dos tempos e suces­sivos reinados, sempre com a pretensão de criar um corpo militar especiali­zado na marinha, retirado predominantemente de uma população ligada a póvoas marítimas ou rios, habituada a barcos, à água, ao manejo e apetrechos de embarcações.
 
É suposto que existiria algum apoio sanitário, nomeadamente no decorrer de campanhas longas, como as do reinado de D. Fernando. Mas mesmo nestas, conhecendo-se as consequências dramáticas com número crescente de doentes e baixas, não há referência a quem os tratava e com o quê.
 
Teremos que nos localizar no tempo: os físicos, leia-se médicos, com curso universitário, veste talar, eram uma raridade só ao alcance dos extractos elevados da sociedade.
 
Não é credível que embarcassem salvo para prestar assistência ao seu patrono de elevada hierarquia social.
 
Restam-nos os barbeiros sangradores e eventualmente barbeiros cirur­giões, ofícios apesar de tudo pouco frequentes e considerados como artesãos, equiparáveis a um açougueiro, ourives ou alfaiate. Alguns seriam habilidosos, outros nem tanto…
 
Vamos ter que esperar pela dinastia de Avis, pelas “Crónicas” do Zurara e pelo nosso século de ouro para começarem a surgir referências ao apoio sanitário a bordo de navios de guerra, essência das marinhas militares.
 
Zurara na sua “Crónica da Guiné”, e a propósito de um ferimento provocado por uma flecha, menciona o emprego de “triaga”, medicamento ou mezinha célebre na época, de composição complexa, espécie de panaceia universal, que só poderia ter sido confeccionado no reino.
 
Tal significa que a caravela, saía do porto de armamento com entre outras coisas, “medicamentos”, eventual arsenal de lancetas e pessoal que os sabia administrar ou usar.
 
Tudo aponta para que, à medida que as navegações oceânicas iniciadas por determinação do Infante progrediam, tenha existido a preocupação de prestar cuidados de saúde, de acordo com os padrões da medicina de então, com a eficiência expectável.
 
No “Esmeraldo de Situ Orbis”, Duarte Pacheco Pereira, ao noticiar a preparação cuidadosa da frota de Vasco da Gama refere que “os mantimentos de pão, vinho, farinha, carnes, legumes e cousas de botica e assim armaria e bombardaria, tudo foi dado com tanta abastança quanto à necessidade do caso convinha, e muito mais”.
 
Ora estas “cousas de botica” eram precisamente o conjunto de medica­mentos, arsenal cirúrgico, frascos, almofarizes, etc. arrumados numa caixa de não pequenas dimensões e que a bordo funcionava como o cerne de uma espécie de serviço de saúde.
 
Conhecem-se as composições de várias boticas ou caixas de botica sendo o primeiro rol conhecido um de 1509.
 
A Caixa de Botica da capitânea de Fernão de Magalhães é composta por 65 itens distribuídos por “águas” “unguentos” “óleos” e “pós”.
 
Num artigo do Prof Carlos Silveira, ilustre Farmacêutico Naval, publicado em 1952, está transcrito o “Rol da Botica para os cem homens de navegação de uma Nau para a Índia, de quinhentos e cinquenta até seiscentos tonéis”.
 
Nele se descriminam os produtos, alguns dos quais ainda se sabe a composição - “Unguento amarelo” (resina de pinho amarela, azeite e cera) e de outros perdeu-se completamente o significado - “unguento encarnativo”, “água de boca danada”, “água de língua de vaca”. Acresce que as medidas deste rol - canadas para os líquidos, arráteis para os sólidos variavam conforme o porto de armamento. O arrátel tem cerca de 459 gramas. A canada era a décima segunda parte de um almude, que no século XVIII era 25 litros, mas em Lisboa no século XVI eram cerca de 17 litros, diferente do de Viana da Foz do Lima, ou do Porto…
 
Também devemos ter em conta que nos séculos XV, XVI, os navios de el-rei, ou seja os navios do estado - eram conforme as necessidades, ora predominantemente mercantes - com maior tonelagem - naus e navios, ora predominantemente para guerra, com predomínio no Índico para galés e fustas e posteriormente galeões, e no “mar oceano”, o atlântico, em que as caravelas foram sendo substituídas por galeões.
 
Tal não significa que as naus não levassem “gente de guerra” e artilharia, nem que os galeões não trouxessem especiarias ou “Panos de cambaia”.
 
De qualquer forma, havia já uma organização precisa para o armamento de um navio, quer se destinasse à costa da Mina, quer à Índia.
 
O processo burocrático-administrativo distribuía-se por dois organismos. Por um lado a selecção do pessoal - a “Armação da frota”; por outro lado o apetrechamento e abastecimento do navio, a cargo dos “Armazéns de El-Rei”.
 
A primeira estrutura funcionava através das “casas” sucessivamente designados por “Casa de Ceuta”, “Casa da Guiné” “Casa da Guiné e da Mina” e finalmente “Casa da Índia”, e cabia-lhe recrutar marinheiros, mestres, galeotes e mesmo o pessoal superior, tecnicamente habilitado: pilotos, oficiais, carpinteiros, e igualmente os profissionais de saúde daquele tempo: físicos, cirurgiões, cirurgiões barbeiros, barbeiros sangradores, boticários, só providos nos respectivos lugares após nomeação em Alvará-Real.
 
Aos “Armazéns”, com as funções hoje distribuídas pelos Abastecimentos e Serviços Financeiros, na cadeia logística do material, tanto forneciam tonéis, pregaria, artilharia, cordame e poleame, mas também as “cousas de botica” e a “Despensa d’el-rei para os doentes”, portanto medicamentos e apósitos e um conjunto de alimentos, considerados mais delicados ou de fácil digestão, suportados pelo erário público e destinados aos doentes de bordo, quer da marinhagem, quer da gente de guerra, quer dos passageiros, já que estes, antes da partida tinham de fazer embarcar, antecedendo-os, os mantimentos que julgassem necessários para seu sustento durante a viagem.
 
Há importantes relatos que se vão estendendo quase até ao século XVIII de conflitos a propósito da “Despensa d’El-Rei para os doentes” e das negociatas torpes dos seus encarregados…
 
Já atrás falámos dos grupos profissionais ligados à saúde.
 
Ora o físico era uma criatura rara, e como tal, só em casos excepcionais fazia parte da guarnição de uma armada, quanto mais de um navio.
 
Geralmente pertenciam ao séquito pessoal do principal personagem - Capitão-Mor, ou Governador ou Vice-Rei em trânsito.
 
Há um relato conhecido, de Mestre João - físico de D. Manuel e que embarcou na armada de Cabral. Curto. De acordo com estilo da época começa: “Senhor: o Bacharel mestre João, físico e cirurgião de V. Alteza…”
 
Pois o relato, fala sobretudo de astronomia e astrologia e a única referência a um assunto de saúde, numa armada que teve de tudo, desde naufrágios a epidemias é do próprio de “uma perna que tenho muito mal, que de uma coçadura se me fez uma chaga maior que a palma da mão”, e sobre saúde disse!
 
É pouco crível que o envio de Mestre João Farras na armada tenha tido algo a ver com a organização sanitária da mesma.
 
Personagem principal a bordo do ponto de vista sanitário seria o cirurgião, ou o barbeiro cirurgião, e alguns ajudantes sangradores.
 
Sabendo-se o nome dos três cirurgiões que acompanharam a viagem de Colombo, sabendo-se que na viagem do Gama, dada a similitude de tonelagem e guarnição foi um cirurgião por navio, conhecem-se vários nomes dos participantes, desde degredados até um escravo negro.
 
Não é nunca referido o nome de qualquer dos cirurgiões sendo de presumir que nenhum deles regressou a Portugal.
 
Na época do apogeu da nossa expansão, com navios da coroa a dominarem o Índico e a estenderem-se para o Pacífico há notícias e relatos de uma organização sanitária de suporte, moderna para a época. Com as limitações do conhecimento médico, ainda medievais em que o Físico dominava Filosofia e Astrologia como disciplinas básicas.
 
Com o advento de Inquisição, no século XVI a censura estendeu-se às obras “modernas”. Eram objecto apreensão quaisquer obras de cirurgia ou anatomia exibindo o corpo humano consideradas licenciosas, sendo a prática de dissecação de cadáveres coisa demoníaca, uma total abjecção.
 
Por outro lado até 1495, muitos dos físicos do reino eram de origem judaica sefardita, quer portugueses, quer castelhanos expulsos pelos Reis Católicos e acolhidos por D. João II.
 
Com a morte deste soberano e as medidas tomadas pelo seu sucessor, grande parte deste corpo profissional debandou para outras partes mais tolerantes.
 
No reinado de D. Sebastião achavam-se arrolados em Lisboa 57 Físicos, 60 Cirurgiões Barbeiros. Poucos para as necessidades!
 
Do ponto de vista sanitário, algumas características basilares dos navios pouco se alteraram ao longo dos séculos XVI, XVII e parte do XVIII, condicionando marcadamente a saúde dos navegantes.
 
Naus, Galeões, foram aumentando de tonelagem, de complexidade vélica, de armamento, mas alojamentos, despensas, cozinhas e vivência a bordo pouco se modificaram.
 
Ainda que aceitemos que o comum dos homens da época fosse muito menos exigente a respeito das condições de habitabilidade, adaptando-se à exiguidade do espaço, encontramos reunidas a bordo três condições ideais para a génese de doenças: a promiscuidade, o deficiente arejamento e a dieta monótona e carente.
 
Muitos dos relatos sobres as condições sanitárias, doenças, maneiras de estar a bordo, intervenientes na prestação dos cuidados, ficam a dever-se não a médicos ou cirurgiões, mas sim a um conjunto notável de cartas que vários padres jesuítas nos deixaram, narrando com grande pormenor os acontecimentos ocorridos nas viagens que os levaram para o Oriente ou para as capitanias do Brasil.
 
No nosso século, habituados a coisas tão simples com a existência de fósforos, papel higiénico, água corrente e com fartura, é-nos necessário um esforço de imaginação para calcular com viviam por vezes, duzentas a trezentas pessoas, coabitando numa cubicagem inferior a um dos modernos arrastões costeiros.
 
Não havia instalações sanitárias a bordo, com aliás também não as havia em terra, sendo as necessidades fisiológicas mais elementares feitas pela borda fora em condições de recato e de segurança precária, exigindo sempre uma condição física normal, inexistente num doente.
 
A temperatura nas cobertas inferiores atingia nos trópicos valores próximos dos 50ºC. Na segunda coberta ia armazenada água que mesmo misturada com vinagre, degradava-se rapidamente.
 
A limpeza das instalações, dos corpos e da roupa não seria famosa sendo a água doce um bem precioso, sempre rateado, sendo muito mais frequentes os relatos em que faltou dos que aqueles em que parece ter chegado. Era habitual que quase todos os capitães a partir do terceiro mês de viagem impusessem a “regra de beber”, com capitação draconiana de água doce por dia.
 
A falta de água em conjunto com uma alimentação altamente salgada para os parâmetros actuais e quase sem frescos foi uma das causas mais frequentes de doença e mesmo morte a bordo, por todos os séculos XVI, XVII e XVIII.
 
As regras para as aguadas, decorrentes de experiência acumulada, eram muito rígidas, tendo sempre como pano de fundo a necessidade vital deste elemento.
 
Autores como Gago Coutinho e Vasconcelos e Menezes, debruçaram-se sobre este assunto, calculando a capitação diária para a gente embarcada, fora de períodos de restrição, em 2 litros/dia.
 
Quando a inexperiência do piloto ou as condições adversas do mar e do tempo prolongavam a derrota, para lá dos quatro meses aparecia o “mal da sede” o “mal das gengivas”o “mal dos inchaços” e por fim mortes diárias.
 
Ano de 1560, o Boticário Henrique Dias, embarcado na nau “S. Paulo” a caminho de uma das feitorias do Índico, relata: “por ser o nosso piloto novo nesta carreira…meteu-se tanto a terra na Costa da Guiné…que andámos nesta paragem, bordo ao mar bordo à terra, bons três meses, com o adoecer toda a gente…
 
Havia já neste tempo na nau duas dúzias de doentes de febres e alguns de inchaços”
 
Outro relato do Irmão Manuel de Morais da Companhia de Jesus poucos anos depois:
“E assim sustentamos os doentes que não padecessem de todo, porque alguns deles não eram doentes senão de pura fome, e outros das gengivas e das pernas que quase todos as incham no Cabo da Boa Esperança onde já todas as coisas de comer não têm substância”
 
E da tal “Despensa de El-Rei para os doentes” que incluía entre outros itens marmelada, ameixas passadas, galinhas, ovos, lentilhas, vinho doce, pão de trigo e um delicioso “passarinhos quando se acharem”, motivo de trapaças e queixas:
Carta de Martim Afonso de Castro para El-Rei de 12 de Dezembro de 1565:
“Senhor por descargo da minha consciência direi a Vossa Alteza os imensos e grandes trabalhos que passam os pobres homens desta carreira da Índia, e creia V. A. que depois da vontade de Deus todos morrem de puro desamparo, porque não parece que somos cristãos porquanto pouca mi­sericórdia e piedade se usa com os doentes, e pela pouca conta que se tem com eles, porque tudo o V. A. manda dar vai entregue ao Capitão e despenseiro, e, quando lho pedem para os doentes dizem que tudo está podre, e que o comeram os ratos e parece que esta sem razão, pois V. A. manda em cada nau um capelão, que deste se deve confiar a Botica e todos as coisas dos doentes.”
 
Ao que parece Barbeiros e Cirurgiões não eram tidos em grande conta… Exigia-se-lhes habilidade nas sangraduras, ou em cozer uma ferida. De mezinhas provavelmente sabiam pouco e na sua maioria eram analfabetos.
 
Já que naquele universo onde as gastroenterites, escorbuto, tuberculose, doenças tropicais, febris, espiroquetoses, avitaminoses, causariam devas­tações terríveis e fulminantes, os tratamentos eram quase tão violentos com a doença.
 
Diz Diogo de Alcáçova em exposição que dirige a D. Manuel, datada de 1505, na Índia:
“…e como chegamos sobre o pracel de Sofala, adoeci de febres, e levei-as até junto com Sofala e fiquei delas com o estômago mui danado das purgas que me deram…de que estive para me finar”
 
Alguma sorte teve Diogo de Alcáçova já que a regra mais geral era finarem-se...
 
Temos estado a abordar os navios de El-Rei, na sua vertente de transporte de gentes e mercadorias.
 
Mas o pão-nosso da Armada no Índico era a Guerra naval e operações anfíbias.
 
Já aqui assumem papel mais importante os cirurgiões e as regras.
 
Em qualquer dos regimentos dados aos Capitães-Mores das Armadas se consigna o cuidado que estes deveriam observar a respeito da saúde do pessoal.
 
Verifica-se como ponto comum que na maior parte dos relatos de combates os feridos eram encaminhados ou transportados para local previamente combinado sendo “todos ali logo curados e os mais perigosos levados aos navios”
 
Não há grande pormenor para além da “cura dos feridos”. A maioria dos procedimentos era de grande simplicidade: a desinfecção era feita com azeite quente, nas feridas com locas profundas provenientes de lançadas ou flechas introduzia-se uma mecha embebida em toucinho, ou óleo de coco e sumo de limão.
 
 Procurava-se estancar a hemorragias com alúmen.
 
Por vezes em face do peso maior dos feridos era mandado fazer “esprital em terra”, utilizando panos de vela e armações de paus.
 
Vasco da Gama mandou levantar um em Angediva em 1502.
 
Em 1525 a igreja da fortaleza de Calecut foi transformada em hospital de campanha.
Aqui era mais natural que se acumulassem os cirurgiões e eventualmente alguns físicos e sobretudo e desde muito precocemente a utilização de médicos locais, munidos das suas técnicas e dos seus medicamentos.
 
Quando da tomada de Goa, Afonso de Albuquerque mandou a D. João de Lima um dos seus capitães evacuar por mar os indisponíveis, após concentração no “esprital do campo” para a fortaleza de Cananôr onde as condições eram mais confortáveis e com melhores recursos.
 
No “diário” de D. Álvaro de Castro aparece a descrição detalhada das “Fustas dos doentes”, verdadeiros navios-hospital com vários cirurgiões, onde feridos e doentes seguiam remetidos para um hospital de retaguarda.
 
Não deixa de ser curioso que aparentemente em todo o ultramar português, os cirurgiões serviam muitas vezes a bordo e outras em terra, mas as designações são quase sempre confusas e variadas conforme as origens. Sendo geralmente designados pelo nome próprio e só muito raramente com o apelido, é tema para especulação de eruditos. Saber-se se se está a falar sempre na mesma pessoa: aqui “Mestre Afonso - físico”, noutras “Mestre Afonso - cirurgião” e também da mesma época “Doutor Afonso Costa nosso físico”, “Mestre Diogo - físico e cirurgião”.
 
Mas não obstante descrições pormenorizadas de viagens, cenas, desem­barques e combates navais, com referencias a feridos e doentes ficam anónimos os prestadores de cuidados de saúde.
 
Em 1502 saíram para a Índia três Armadas no seu conjunto com um efectivo impressionante para a época e mesmo para as potenciais marítimas europeias do mediterrâneo: foram vinte naus, com mais de 1800 soldados - gente de guerra, fora a marinhagem e os especialistas. Como comandantes três elementos dos prestigiados Gamas: Vasco da Gama comandou uma, seu tio, Vicente Sodré, outra e da terceira era comandante o outro Gama, Estêvão. Escrivão deste último, Tomé Lopes tudo registou com pormenor. As três Armadas encontraram-se em Angediva onde estava montado o tal “esprital” cheio de doentes das armadas de Vasco da Gama e Vicente Sodré.
 
Não obstante a soma de detalhes Tomé Lopes não achou necessidade de informar quantos profissionais de saúde aí se achavam! É de supor que nestas armadas seguissem vários cirurgiões, eventualmente mais que um por nau e muito provavelmente físicos.
 
Na segunda metade do século XVI já havia uma rede hospitalar dispersa pelas margens do Índico e mais longe.
 
Coube ao Padre Luís de Almeida SJ, homem “conhecedor de Medicina” fundar o primeiro hospital do Japão.
 
Outra originalidade desta rede hospitalar era que já em 1512, no rol ou relação da Botica de Cochim, a par com os manipulados e remédios ocidentais já vamos encontrar muitos medicamentos compostos por drogas orientais e de fabrico local, bem como a colaboração de médicos “da terra” vaydias e panditos, muito mais conhecedores das patologias tropicais e locais que os poucos europeus, mesmo de cultura universitária, ignoravam por completo.
 
Trabalho monumental e grande contributo dos portugueses para a medicina mundial o celebérrimo tratado de Garcia d’Orta, castelovidense de origem judaica, chegado à Índia em 1532, onde, pacientemente e já com características renascentistas, modernas, tratou de compilar os novos conhecimentos os “Colóquios dos Simples e Drogas da Índia” publicado em Goa em 1563.
 
Este marco do conhecimento médico foi divulgado na Europa por acção de outro médico português - Cristóvão da Costa, já próximo dos finais de quinhentos.
 
Este período esplendoroso foi fugaz. De 1542 em diante a maioria dos Hospitais, na origem militares e navais foi entregue às Santas Casas da Misericórdia. Subsistindo o de Goa por vários séculos, os outros entraram em rápida decadência, acompanhando o ocaso do Império Português do Oriente.
 
Antes do final do século, o de Chaul estava em ruínas, o de Diu fechava metade do ano por falta de verbas. O de Moçambique foi arrasado num ataque de holandeses. O de Malaca e Cochim abandonados por falta de verbas.
 
Em 1614 um anónimo insurgia-se em manifesto contra o facto das naus da carreira da Índia já não levarem nem botica nem cirurgião.
 
A crise de 1580 acabou com a entrada e subida ao trono português de Filipe II de Espanha, Filipe I de Portugal, Imperador/Rei dum império falido, a quem caiu em sorte um magnifico porto atlântico - Lisboa e uma Armada que ainda assim tinha os melhores e maiores navios do mundo.
 
Filipe preocupou-se com a Armada e com as gentes de mar e guerra que nela andavam.
 
Em Lisboa e ao contrário do Império do Índico, não havia nenhum hospital vocacionado para a Armada Real da Coroa de Portugal e tão só pequenas casas, por vezes designadas por hospital, mas sem físicos nem pessoal sanitário, pertença de variadíssimas confrarias de mareantes, de pescadores, frutos de doação ou de pios votos.
 
A Grande Armada que partiu para a Inglaterra foi constituída em Lisboa, aproveitando a experiência da “Casa da Índia” e dos “Armazéns d’El-Rei” no aprontamento de grandes frotas, nela participaram os melhores galeões portugueses, na ordem das 500 a 620 toneladas.
 
O apetrechamento sanitário também foi feito em Lisboa, com numeroso pessoal para guarnecer um hospital de campanha, distribuído por duas Urcas: a “Casa da Paz Grande” e a “S. Pedro El Mayor” mobilizando 85 homens da área de saúde.
 
São conhecidos os nomes da quase totalidade dos médicos e cirurgiões embarcados, alguns dos quais afectados às unidades de infantaria embarcadas (gente de guerra), como sejam os portugueses licenciados Francisco Reinoso e Francisco de Melo.
 
Na relação, alguns dos portugueses surgem com grafias castelhanas como António Perez, que algumas fontes identificam como Cirurgião-Mor da Armada, embarcado no galeão português “S. Marcos”, de longe o que possuía a equipa sanitária mais numerosa.
 
No galeão “S. Filipe” outro cirurgião português é José Visconde. Era protomédio desta Armada, autoridade sanitária máxima, Francisco Martinez.
 
Como era hábito nestes tempos, não havia um corpo clínico permanente. Para cada navio, ou para cada Armada os cirurgiões e seus ajudantes, por vezes designados “moços” (denominação que predominou na Marinha de Guerra Portuguesa até aos nossos dias - moço de botica) eram contratados. Começam a ser frequentes as referências a “enfermeiro”mas com um conteúdo profissional mal esclarecido.
 
É do conhecimento histórico o resultado da Grande Armada e o que aconteceu aos galeões portugueses.
 
Já está mitificado o que essa perda representou para o poder naval português, com os historiadores do século XVIII e os do romantismo a descarregarem todos os males da pátria e a perda do império, à perda da independência e aos Filipes, período algo demonizado na nossa história.
 
A perda da superioridade naval e a queda de praças sucessivas no Índico e depois no Atlântico Sul, deveu-se mais ao colapso económico/financeiro do reino, e ao superior grau de manobra dos navios holandeses, que evitavam a todo o custo a abordagem, privilegiada pelos portugueses.
 
Também na Índia as feitorias e fortalezas cresceram em número e consumo de homens de armas que não chegavam para tanto.
 
No período da expansão máxima, apontam alguns autores como de 30 000 portugueses dispersos pelos Açores, costas do Brasil, feitorias africanas, praças na Índia e da Insulíndia até ao Japão. A população do reino não chegaria na altura aos 2 000 000.
 
De facto os Filipes foram olhando pelo seu reino, que Filipe II, o primeiro de Portugal, referia ser seu porque “o herdara, o comprara e o conquistara”. No tempo dos Filipes é criado o primeiro corpo militar profissional português: o Terço Real da Armada.
 
Em 1605, Filipe, o segundo de Portugal, dirigiu uma carta ao provedor e irmãos de Santa Casa, em Lisboa, referindo a sua preocupação por “o desamparo em que se viam as suas gentes de mar e de guerra da sua Armada do Mar Oceano quando adoeciam” e determinava “a conveniência de haver no Real Hospital de Todos os Santos uma enfermaria particular e desocupada em que as gentes do mar e guerra das armadas do mar oceano se pudessem curar”.
 
Não é de agora a proverbial lentidão administrativa: em 1607 nova carta régia do mesmo Filipe enviada às mesmas entidades determinava que “enquanto não se faz a dita enfermaria e se provenha para ela todo o necessário, se façam recolher e cuidar naquele Hospital os ditos soldados das armadas do mar oceano”.
 
Não se conhece o desfecho da iniciativa real.
 
Sabe-se sim que em 1621, o pessoal de guerra das armadas da Coroa de Portugal era assistido no Hospital Militar do Castelo, sito no Castelo de S. Jorge.
 
Muito do pessoal “do mar” era assistido em modestíssimos hospitais, dispersos pelos bairros ribeirinhos de Lisboa, pertencentes a confrarias de mareantes e pescadores, sem corpo clínico ou outro cuidado que não o que a cristã caridade impunha…
 
Como é sabido o esforço das novas potências marítimas sofre um incremento notável a partir de 1620, com aumento das depredações dos holan­deses, corsários ingleses e franceses, causando forte comoção a conquista de S. Salvador da Baía em 1624.
 
Reinava Filipe IV de Espanha e III de Portugal, senhor de um império, onde o sol não se punha, mas atravessando uma crise financeira tremenda e com guerra a sustentar na Europa e no resto do mundo.
 
É então organizada a “Jornada dos vassalos” com um conjunto de armadas, sustentadas pela nobreza, clero, corporações e cidades, já que o tesouro real estava exaurido.
 
As Armadas reuniram-se em Cabo Verde.
 
A Armada Portuguesa, comandada por D. Manuel de Menezes e tendo como Almirante D. Francisco de Almeida era composta por vinte e dois navios, dos quais vários galeões. Além do “Terço da Armada”, seguiram os terços “Velho de Portugal” e o “Terço de Moniz Barreto” respectivamente com 1 577, 2 300 e 1 505 homens “de guerra”.
 
Há conhecimento dos mantimentos, quintais de pólvora, armaria etc. embarcados em Lisboa. E pormenor interessante, em quanto importou a “Dieta d’El-Rei para o Hospital”: 360 carneiros, 2 720 galinhas, 1 000 perus (tudo vivo) 200 quintais de passas de figo, ameixas secas, amêndoas, açúcar, “bolos brancos”, conservas e enxergões, almofadas, lençóis e mantas. Mais uma vez seguramente arrolados número apreciável de cirurgiões e licenciados em Medicina, dada a fina-flor da nobreza embarcada.
 
Não deixa de ser curioso recordar que nova armada luso-espanhola com 23 navios da coroa de Portugal e 18 da coroa Espanhola, sob o comando de D. Fernando de Mascarenhas como Capitão-General do Mar Oceano, saiu de Lisboa em 1638, com destino à reconquista do Recife. Do ponto de vista sanitário foi uma catástrofe. Em Cabo Verde onde a Armada se concentrou, declarou-se uma terrível epidemia com mais de 3 000 óbitos que levou à sua quase ineficácia e prolongou a estadia em Cabo Verde por cerca de um ano.
 
As batalhas navais foram várias e confusas ao largo do Recife e de Paraíba e a reconquista foi atrasada por vários anos.
 
Em 1640 estalam as revoluções da Catalunha, de Andaluzia e de Portugal, começando as campanhas de restauração, com a série de sucessos das armas portuguesas, mas prolongando-se quase até ao fim do século XVII.
 
Em 1653 a Armada Portuguesa para a reconquista do Recife é composta por 77 navios. Recife volta a ser dos portugueses em 1654.
 
Luanda que caíra nas mãos dos Holandeses em 1641 é reconquistada por uma força expedicionária Brasileira, sob o comando de Salvador Correia de Sá, ele próprio já nascido no Brasil.
 
Durante os finais do século XVII já existiam como proto-unidades de saúde de Marinha, o Hospital da Ribeira das Naus e a Enfermaria da Galé para tratamento dos calcetas, ou forçados.
 
No reinado de D. João V ainda a Marinha Real tinha a dimensão e prestígio para a sua intervenção na Batalha Naval do Cabo de Matapan, contra os turcos.
 
Mas o reinado de D. João V é um reinado longo, de paz e com muito dinheiro… que foi gasto em despesas sumptuárias conhecidas. Exército e Marinha caíram em rápida e progressiva decadência.
 
Há que esperar por D. José e pelo seu Ministro para se poder começar a falar de Saúde Naval.
 
A renovação da esquadra, do exército e da modernização do país são aceleradas pelo terrível terramoto de 1755.
 
Desapareceu o Hospital do Castelo, ficou arrasado o Arsenal da Ribeira. É constituído o Hospital de S. João de Deus em Santos.
 
Por decreto de 1756 é criado o primeiro corpo permanente de Cirurgiões da Armada, com um “regimento dos Armazéns” para o serviço em terra, e o “Regimento das Fragatas” para o serviço a bordo. O primeiro quadro tinha dez elementos. Quando D. Martinho de Melo e Castro assume a Secretaria do Estado dos Negócios da Marinha e do Ultramar, inicia a sua profunda reforma da Marinha, começando pela educação científica dos seus oficiais e futuros oficiais.
 
Em 1790 começam a surgir disposições mais consistentes relativas a organização do Serviço de Saúde Naval, com a publicação de vários diplomas em que o quadro é aumentado, se implementa a graduação dos cirurgiões e dos físicos, se criam as categorias de primeiros cirurgiões e Cirurgião-Mor da Armada, com um Físico-Mor e vários médicos de 1ª e 2ª classe, se estabelece a obrigatoriedade da prestação de serviço em terra, no então Hospital do Tronco ou Hospital Militar da Corte.
 
Também deve ser salientado que os médicos e cirurgiões deste quadro de Saúde Naval, transitavam, por vezes a seu pedido, outras por conveniência de serviço para médicos ou cirurgiões de guarnição de regimentos e fortalezas, nomeadamente no Brasil e nos estabelecimentos ou hospitais de África portuguesa ou da Índia, e ou regimentos locais do Exército.
 
Em 1796, assume a pasta da Marinha e Ultramar outro notável Ministro - D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que prossegue a obra iniciada pelo seu antecessor e que entre outros assuntos dedica particular atenção à Saúde Naval, entendendo que o serviço deveria dispor de um Hospital privativo.
 
Por alvará régio de 16 de Outubro de 1796, pouco mais de uma mês depois de ter assumido a pasta, é instalado o Hospital numas casas da rua do Olival a Alcântara, sob a direcção de Inácio Xavier da Silva então Físico-Mor da Armada.
 
Cedo se verificou que a precariedade das instalações era incompatível com um serviço cuidado e passado oito meses, é transferido o Hospital para as instalações do Convento do Desterro, que já servira de Hospital provisório aquando do terramoto.
 
Mas Sousa Coutinho pretendia um Hospital “sólido, cómodo e sadio”, diligenciando junto do Príncipe Regente D. João para a necessidade de uma construção e raiz: um Hospital novo e não a adaptação de outras instalações.
 
Foi eleito para o efeito o local do antigo Colégio de S. Francisco Xavier, também conhecido como Hospício dos Jesuítas ao Paraíso, sito na rua com o mesmo nome, a Santa Clara.
 
Desde a expulsão da Ordem que estava transformado em recolhimento de mulheres, na dependência do todo-poderoso Diogo Inácio de Pina Manique, Intendente-Geral da Polícia.
 
A relação de D. Rodrigo com o Príncipe Regente deveria ser sólida (e era, como a história o veio a demonstrar), já que não obstante o terror reverencial que o Senhor Intendente provocava, em ofício de 6 de Julho de 1797, mandou sua Alteza o Príncipe, despejar a casa e que Diogo Inácio procurasse outro poiso para as recolhidas, no que foi prontamente obedecido.
 
Data de 27 de Setembro de 1797, o Alvará Real com força de Lei assinado por D. João, o Príncipe em nome da sua Augusta mãe a rainha, que mandava constituir um empréstimo de 150 000 cruzados destinado a construção do novo Hospital “com Laboratório Químico e Dispensatório Farmacêutico”.
 
Obras começadas, num período de turbulência europeia com o erário público desgastado, com a diplomacia portuguesa a evitar os apetites espanhóis e de Bonaparte, no rescaldo da Guerra do Rossilhão, onde nos vimos metidos sob pressão e que só serviu para fragilizar ainda mais a posição portuguesa.
 
Em 1800, as obras foram suspensas, foi constituído novo empréstimo e em 1801 prosseguem as obras, com o empenho pessoal do Príncipe Regente, ampliada a verba para 215 000 cruzados, não sendo já Ministro da Marinha e do Ultramar D. Rodrigo de Sousa Coutinho.
 
Foi o Hospital inaugurado, em cortejo solene em 1 de Novembro de 1806 e desde então e até hoje não deixou nunca de funcionar como tal.
 
O Hospital Real da Marinha era um edifício de boa traça, com evidente qualidade, obra do arquitecto italiano Francisco Xavier Fabri, em Portugal desde 1790.
 
Do primitivo Colégio Jesuíta pouco se aproveitou. Tratava-se para a época dum edifício moderníssimo, com três corpos e um horto botânico em socalcos até à margem arenosa do Tejo que corria lá em baixo. A panorâmica era (e é) soberba, “os ares limpos e lavados”. Fabri foi ao pormenor das tubagens para águas quentes e frias, concepção das cozinhas e sistemas de aquecimento das águas do Balneário. Do ponto de vista conceptual repleto de soluções inovadoras.
 
Em “Memória” de sua autoria Fabri descreve, com manifesto entusiasmo as soluções que encontrou.
 
Do Hospital original já só restam desenhos e alçados. Sobreviveu a Farmácia, jóia preciosa da arquitectura especializada dos alvores do século XIX.
 
Curiosamente o primeiro “Regulamento do Serviço de Saúde Naval” aparece, ainda o Hospital estava no Desterro, sendo Cirurgião-Mor da Armada Teodoro Ferreira de Aguiar, autor de um bem elaborado plano de um “Curso de Cirurgia” para funcionar no Hospital Real da Marinha, que veio a servir de matriz para as Escolas Médicas-Cirúrgicas de Lisboa e Porto.
 
Teodoro Ferreira de Aguiar transitou, a seu pedido, para o Exército em 1805. Foi Cirurgião-Mor do Exército e com papel de relevo quer na organização do Serviço de Saúde e dos Hospitais do Exército, quer na Medicina Portuguesa.
 
Médico ilustre deste primeiro corpo clínico do Hospital de Marinha, Bernardino António Gomes (o pai), médico, botânico e químico com prestigio europeu, autor dos estudos sobre os alcalóides da quina e do “Ensaio Dermatoso­grahico” e do “Tratado das Boubas” considerado o pai da dermatologia portuguesa.
 
Inácio Xavier da Silva é Director do Hospital Real da Marinha até 1824 - 27 anos!
 
Na sua regência, inaugurou o novíssimo Hospital, que até ao Hospital D. Estefânia, será o único hospital construído de raiz na cidade de Lisboa, assistiu à partida da Corte e família real para o Brasil, coabitou com os cirurgiões e médicos franceses do exército de Junot, assistiu em 1811 à passagem do Hospital para a dependência da Administração Central dos Hospitais Militares, sob as ordens do Físico-Mor do Exército José Carlos Barreto, com a nova designação de “Hospital Militar de Santa Clara”. Era director quando a estátua do Príncipe D. João é, em 1814, colocada no nicho onde ainda está, continua director quando por ordens de Beresford em 1816, o Hospital é devolvido à Junta da Fazenda Naval. Assiste à Revolução de 1820, vendo o Hospital passar a ser designado por “Hospital Nacional da Marinha”. É ainda director quando D. João VI regressa do Rio de Janeiro.
 
No período conturbado iniciado pela Abrilada, já no governo de D. Miguel, acumula o Hospital funções de hospital-presídio sendo-lhe gradeadas as janelas chegando a albergar 512 internados. Pela única vez na sua história centenária tem a dirigi-lo um Oficial de Marinha, um Capitão-Tenente, mais interessado em questões securitárias que no bom funcionamento hospitalar...
 
Em 24 de Julho de 1833, o Conde de Vila Flor, mais tarde Duque da Terceira entra em Lisboa à frente das forças liberais.
 
Logo em Outubro de 1833, através de portaria, Sua Alteza Real o Duque de Bragança D. Pedro, nomeia para Director do Hospital de Marinha outro Bernardino António Gomes, filho do anterior, que em 1828 fora obrigado a exilar-se em Paris, por perseguição política, na altura aluno do 2º Ano de Medicina, em Coimbra, sendo já licenciado em Matemática. Formou-se em Paris e mercê dos contactos com outros emigrados e de acordo com as suas ideias, íntimo do Duque de Palmela, acompanhou-o para a Terceira.
 
Desembarca com o “exército libertador” no Mindelo.
 
Durante o cerco do Porto chefia os hospitais militares e tem um papel determinante na implementação das unidades sanitárias e de combate à terrível epidemia de cólera que então grassava na cidade. A portaria concedia amplos poderes a Bernardino para que no exercício das suas funções propusesse “as reformas e melhoramentos que achasse convenientes a bem do serviço do mesmo hospital... tendo sempre em vista o bom tratamento dos enfermos e a economia da fazenda pública”.
 
D. Pedro tinha-o em elevada consideração, não espantando que reconhecendo-lhe o valor demonstrado nos difíceis dias do cerco, lhe confiasse não só a gestão da saúde naval como a de todas as estruturas sanitárias do ultramar português. O que espanta é que Bernardino António Gomes tinha então 27 anos!
 
Bernardino António Gomes é graduado em Capitão-de-Fragata, são-lhe dados plenos poderes e fica na dependência directa do Ministro.
 
Dotado de uma energia própria da sua idade, com uma capacidade de trabalho invulgar, sob a sua direcção são tomadas medidas que revolucionam a Saúde Naval:
- Extintos os cargos de Físico-Mor e Cirurgião-Mor.
- Criação em quadro único de médicos e cirurgiões.
- Criação do lugar de “médico de dia”, com permanência de 24 horas seguidas no Hospital.
- Obrigação de médicos nos navios no quadro prestarem serviço no Hospital.
- Nova tabela de dietas com peso científico.
- Concursos públicos para fornecimento de víveres e medicamentos.
- Obrigatoriedade da presença dos farmacêuticos no Hospital.
- Criação do Conselho de Saúde Naval da Armada e do Ultramar mais tarde designado por Conselho Superior de Saúde Naval encarregado de fixar doutrina e procedimentos no campo da saúde.
- Reavaliação curricular de todos os cirurgiões e boticários (farmacêu­ticos).
- Proposta de criação, no âmbito da “Repartição da Marinha” (organismo de administração central de Marinha Real) de uma “Repartição de Saúde Naval”, longínqua antepassada da actual Direcção de Saúde, “a fim de estabelecer o nexo entre as diferentes partes do Serviço de Saúde Naval”.
- Novo “Regulamento de Saúde Naval”, a substituir o de 1801, completamente desactualizado, aprovado em Fevereiro de 1835. Documento moderníssimo viria a servir de “modelo” para todos os que se lhe seguiram até 1938.
 
Após reorganização do Hospital e dos serviços de saúde a bordo, volta a sua atenção para a componente sanitária do Ultramar português, com disposições que vão desde o recrutamento e admissão de pessoal habilitado, carreiras e remunerações, instalação de hospitais, medidas profilácticas e de combate a epidemias.
 
Propõe a criação de Escolas Médico-Cirúrgicas em todas as capitais das possessões portuguesas o que se veio a verificar apenas em Goa e no Funchal.
 
Subsistiu a de Goa desde 1847 até aos nossos dias, actualmente Faculdade de Medicina e Decana das faculdades da Universidade de Goa.
 
Bernardino Gomes (filho) é justamente considerado como um dos pais fundadores da moderna psiquiatria. Impressionando com a maneira desu­mana como eram tratados os doentes nas então “enxovias de S. José que mais parecem abrigos para feras ou um despejo de resíduos inúteis”.
 
Cria no Hospital de Marinha o primeiro Serviço Hospitalar de Psiquiatria, com características de modernidade, modelo depois copiado para o estabelecimento do Hospital de Rilhafoles, de cuja comissão de instalação fez parte.
 
O seu trabalho “Dos Estabelecimentos de Alienados nos Estados Principais da Europa, 1843”, publicado pela primeira vez em 1844 no jornal da “Sociedade de Ciências Médicas” (de que mais tarde veio a ser Presidente), obriga colegas e instituições a encararem com visão moderna doentes e doenças mentais.
 
Professor de Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, fundador e relator da “Gazeta Médica”, acabou por pedir a demissão dos seus lugares na Marinha, sendo o requerimento com que a solicita, um documento interessante onde salienta “ter servido sob as ordens de 16 Ministros de Marinha com os quais sempre conservou a melhor harmonia e boa inteligência”.
 
Depois de justificar o pedido com os seus múltiplos afazeres, como Professor de Medicina, académico e médico, constatando que “o serviço do Hospital e da saúde dos navios do estado e do Ultramar está regulamentado, que os quadros de saúde estão preenchidos por pessoas competentes e que o Conselho (Superior Naval) tem em si os bons elementos com que funciona há dez anos”, por si só, constituem sinal inequívoco de já não ser necessário e ter cumprido o que, por portaria, lhe fora exigido há catorze anos. Termina pedindo que em qualquer ocorrência extraordinária de serviço lhe seja consentido prestá-lo no Hospital da Marinha na “simples qualidade de médico”.
 
Viveu até 1877, Médico da Real Câmara, gozando da elevada consideração quer de D. Maria II quer dos dois reis seus filhos.
 
Não obstante as considerações do Dr Bernardino António Gomes no seu pedido de demissão de 1847, com a sua saída, começou de novo a instalar-se a desorganização. Não teve sucessor à altura, como se poderá constatar por um “Relatório” do então cirurgião de 1ª Classe João Francisco Barreiros, designado superiormente para efectuar uma inspecção ao Hospital de Marinha.
 
Data de 1855 e é demolidor: corpo de cirurgiões, todos septuagenários, com achaques, faltas numerosas e pouca assistência ao serviço. Arsenal cirúrgico com falhas, degradado e ultrapassado. Enfeimeiro-Mor com mais de oitenta anos. Porteiro com quase noventa, estavam decrépitos, ressentindo-se a disciplina com este corpo de macróbios.
 
Horto botânico mal cuidado. Iluminação deficiente. Os aguadeiros que fornecem água ao Hospital descuidavam o serviço. Mobiliário gasto. Perce­vejos. Até encontrou pensionistas, estranhos à Marinha, a viver na “Enfermaria dos alienados”.
 
Felizmente que em 1856 toma conta da Direcção do Hospital e do Conselho outro médico de elevada craveira: Manuel Maria Rodrigues Bastos, com um passado de 14 anos como Director dos Serviços de Saúde de Angola.
 
A ele se deve a criação do corpo de enfermeiros da Armada em 1860, cujo ensino e formação viria a começar no Hospital em 1890, escola que perdurou até 1979 e que tantos profissionais distintos preparou não só para a Marinha, como para o País.
 
Rodrigues Bastos unifica o quadro de Enfermagem contemplando quer o Hospital quer os navios e o quadro do Ultramar. Inicia obras de vulto na modernização do edifício do hospital com instalação de água corrente da Companhia, reorganização dos circuitos de distribuição de águas quentes e frias.
 
São criados os quartos de oficiais. A capela passa para onde ainda hoje se encontra. Os gabinetes de Direcção são instalados onde estão. Cria regras para uma estatística nosológica mais moderna, desaparecendo os “males gálicos”, “doentes ethicos”e “Males de pele”, que não obstante o avanço da medicina continuam a aparecer como em 1820, substituídos por “siflis”, “dermatoses” e “tísica”.
 
Melhoram-se as dietas, cria-se uma lavandaria moderna e aparece nova forma de iluminação. Renova-se o arsenal cirúrgico. Aparecem as “Caixas de Médico” a bordo. Os leitos passam a ser de metal. As janelas e janelões são rasgados, retiradas as grades de 33, são equipadas com gelosias, generalizam-se os guarda-ventos. A entrada da Sala do Príncipe, fica reservada para entrada de visitas e entidades, acabando o arraial matinal diário com vendedores de hortaliça, galinhas e outros fornecedores que até então utilizavam a porta principal.
 
D. Pedro V visita o Hospital, que depois das obras de modernização é considerado na imprensa Lisboeta como “gozando de justificado conceito pelo asseio e rigor com o serviço nele é desempenhado”.
 
Em termos de organização é criado o “corpo de Aspirantes a Facultativos Navais” que precedem em mais de um século o actual “Curso de Médicos Navais” na Escola Naval. Funcionou com bons resultados até ao advento da República.
 
São tornadas obrigatórias inspecções médicas regulares para avaliar o estado das guarnições e efectivos. Antes da partida para as estações ultramarinas, todos os navios, guarnição e passageiros são inspeccionados. Revo­luciona com uma disposição simples o transporte da vacina (antivaríolica) para o Ultramar: a inoculação prosseguia durante toda a viagem, passando de um elemento para outro, de modo a chegar uma pústula com o vírus vivo ao porto de destino.
 
Rodrigues Bastos impôs regras básicas de higiene, insurge-se contra o recrutamento para a Armada, feito à moda antiga percorrendo tascas e lugares mal frequentados “porque de vadios incorrigíveis e ratoneiros de profissão não se podem fazer bons marinheiros”. Propõe o fim imediato da classe dos “pajens” rapazitos quase impúberes que entravam para bordo com 11 e 13 anos...” que são inúteis e um elemento de imoralidade a bordo e nos quartéis”.
 
É da sua autoria o novo “Regulamento de Saúde Naval”, o de 1860. É aumentado o quadro médico. Melhorados os vencimentos.
 
Deve-se a Rodrigues Bastos a norma, ainda hoje vigente, de que a bordo, a autoridade médico-sanitária dos médicos ou cirurgiões embarcados devia ser acatada, como passou a ser, pelos Comandos.
 
Entretanto tinha sido constituída uma “Junta de Saúde Naval” com poderes sobrepostos aos do Conselho. Os conflitos tornam-se cada vez mais frequentes com paralisia crescente na capacidade de decisão.
 
O novo Ministro extingue o Conselho de Saúde Naval em 1868. Nomeia Rodrigues Bastos Presidente da Junta e novo Director para o Hospital - o Dr Faria e Silva.
Rodrigues Bastos sente-se melindrado. Sai em 1869 com o posto de Capitão-de-Mar-e-Guerra.
 
A Armada que na sequência da independência do Brasil e das guerras civis se vira reduzida à expressão mais simples tendo inclusive como corpo, alguns conflitos com o novo poder constitucional (o “Guião dos Engulhos”) entra num período de reformulação e renovação orgânica e de meios, nos finais dos anos 50 e até 80 do século XIX.
 
As estruturas de saúde nos anos 70 passam a dispor dos seguintes órgãos: Corpo de Saúde Naval; Repartição de Saúde Naval e do Ultramar; Junta de Saúde Naval; Junta Consultiva de Saúde Naval; Hospital da Marinha; Serviço de Saúde do Corpo de Marinheiros da Armada. Ao médico naval mais antigo e mais graduado (CMG) cabia o cargo de Inspector de Saúde Naval, entidade que persistiu até ao primeiro quartel do século XX.
 
A Marinha foi sempre pioneira em territórios tão variados como a construção de navios em ferro e depois em aço, as primeiras caldeiras e máquinas a vapor.
 
Não ficou de fora a Saúde Naval. O primeiro pedido de expansão do Hospital data de 1892...sem resultado prático até hoje.
 
São criados os Laboratórios de Bacteriologia. Surge a iluminação eléctrica.
 
Em 1897 é criado o ensino de “Higiene e Doenças Tropicais” nos dois primeiros anos na Escola Naval, depois no Hospital e finalmente no topo oriental da Cordoaria já tornada em 1902 “Escola de Medicina Tropical” e nos anos imediatos com um hospital acoplado. São as matrizes da actual “Escola de Higiene e Medicina Tropical” e “Hospital de Egas Moniz”.
 
São nomes ilustres os seus primeiros professores e directores: os Médicos Navais António Maria de Lencastre, Aires Kopke e Silva Teles, este um caso de invulgar eclectismo: além do exercício de Médico Naval, foi professor de várias cadeiras do Curso de Medicina Tropical, e posteriormente Director do mesmo Instituto. Foi igualmente Professor Catedrático da Faculdade de Letras, Reitor da Universidade de Lisboa e... Ministro da Educação.
 
Ligados ao Ultramar temos entre outros João Cesário de Lacerda, José Pereira do Nascimento, antropólogos de mérito, Rodrigues Braga que chefiou os Serviços de saúde e logística sanitária das companhias de África de 1895.
 
António Maria de Lencastre deixa o seu nome também ligado à criação dos serviços de luta antituberculosa no ano de 1908. Descendente dos Condes da Lousã, ainda aparentado com a família real, pediu a sua passagem à reforma quando da implantação da República.
 
Em 1908 foi publicado novo “Regulamento de Saúde Naval” onde aparecem referidas as primeiras especializações médicas do Hospital da Marinha: Análises Clínicas e Bacteriologia, antepassado do Serviço de Patologia Clínica; Gabinete de Física e Electricidade Médica de onde vieram a sair os Serviços de Radiologia e Fisiatria.
 
Os exames e admissão ao quadro de médicos navais são de grande rigor com provas teóricas e práticas e técnica operatória em cadáver.
 
O corpo clínico do hospital da Marinha sendo reduzido para os parâmetros actuais tinha grande prestígio não só dentro da Marinha como no meio médico nacional.
 
Com a implementação da República é graduado e assume a Direcção do Hospital o então já cirurgião distinto Alexandre de Vasconcelos e Sá, fundador duma moderníssima “Sala de Cirurgia”, antepassada dos actuais “Blocos Operatórios”, com anestesia moderna, mesa operatória móvel e iluminação adequada. Sala que mereceu a visita do Presidente da República Dr António José de Almeida.
 
A transição para a República não foi isenta de “acidentes” e “incidentes”, alguns dos quais caricatos.
 
Nos anos de 1912 ainda um Director do Hospital justificou superiormente que tinha hasteado a “Bandeira da Cruz Vermelha” por ser esta “muito mais económica” que a “Bandeira da República” não implicando “tal facto” qualquer “desconsideração pelo regime, sendo (o próprio) “tão bom republicano como os demais”.
 
Um médico naval esteve entre os oficiais que tomaram conta do “Adamastor”: Andrade Sequeira que viria a ser o primeiro Governador Civil de Portalegre do novo regime e mais tarde Governador da Guiné.
 
Morais Sarmento é outro dos grandes cirurgiões da Marinha e do país.
 
Foi na vigência de um dos primeiros governos da nova república que foi expressa a “intenção” de “mudar” o Hospital da Marinha, por este estar “Acanhado” no sítio onde laborava desde a sua inauguração.
 
A atenção dirige-se para o Convento das Salésias, à Junqueira. Nomeada para estudar o assunto uma comissão presidida por Aires Kopke, esta concluiu, ao fim de uns meses de trabalho, pela falta de condições do local e custos elevadíssimos na adaptação do velho casarão para o fim que lhe destinavam. Morreu aqui o projecto e o Hospital da Marinha ficou onde está.
 
A primeira República teve vida atribulada, com uma guerra mundial pelo meio, um império colonial a defender, em quase constante agitação social, “putchs” militares e à beira de bancarrota.
 
A saúde naval foi cumprindo, já que era quem conhecia melhor o ultramar e as suas condições higiénico-sanitárias. Aponta-se como facto curioso que o primeiro morto em combate português na 1ª Guerra Mundial, se regista no Norte de Moçambique e é um Sargento Enfermeiro da Armada...
 
Viveram-se tempos de miséria.
 
Foi preciso esperar pelos anos 30 do século XX para se assistir a outro período de expansão e reorganização da Saúde Naval.
 
Deste período salienta-se dois médicos navais distintos:
 
Júlio Gonçalves, natural da Índia Portuguesa, que nos primeiros anos de carreira participa em campanhas de pacificação no Sul de Angola. Foi um competente administrador e organizador exemplar. Concebeu de raiz uma maca para ser usada a bordo, que ficou com o seu nome, e que nos anos oitenta do século XX com poucas alterações foi recomendada para uso nas Marinhas NATO.
 
Já no fim da década, Tovar Faro, nascido em Alter do Chão, que em 1TEN, conhecedor dos estragos que as doenças sexualmente transmitidas causavam quer no pessoal da Armada, quer a nível nacional, funda o “Dispensário de Higiene da Armada” com um programa de profilaxia daquelas doenças, sendo autor de um opúsculo, ainda hoje com espantosa actualidade, que ficou célebre: “Doenças Venéreas - Conselhos aos Marinheiros”. As medidas então tomadas, com a obrigatoriedade do uso do “relógio”, um nome porque ficou conhecido o pequeno frasco de vidro com sabão mercurial, que toda a guarnição deveria exibir antes de desembarcar em qualquer porto, foram simples mas eficazes.
 
A estatística dos anos seguintes regista o êxito da campanha. Urologista de profissão, foi no seu tempo que o hospital aumentou, com todas as construções para lá da fachada sul do plano primitivo. Foram arranjadas e embelezadas as salas do Príncipe, com os azulejos da Viúva Lamego que aí se encontram. Reformulado o Bloco Operatório, que ficou sendo o mais moderno de Lisboa. Reaberta ao culto a Capela, que havia sido profanada em 1910.
 
Em 1948, já CMG MN e Director do Hospital da Marinha, vem a ser nomeado Enfermeiro-Mor dos Hospitais Civis de Lisboa, cargo que exerceu por quase uma década, com o mesmo espirito de bem servir.
 
Entretanto o Instituto de Medicina Tropical havia recebido a sua carta de alforria.
 
Não obstante foram ainda médicos navais grandes especialistas e presti­giosos investigadores daquela casa: Máximo Prates; Fraga de Azevedo; Tito Serra Simões; Carvão Gomes.
 
No Hospital vão-se autonomizando especialidades médicas.
 
A Radiologia nos alvores da 1ª Guerra Mundial; a Urologia nos finais da década de 20. Com a 2ª Guerra Mundial desenvolveu-se autonomamente com grande prestígio a ORL e a Oftalmologia. O primeiro Serviço de Anestesia do universo hospitalar português nasce no Hospital da Marinha pela mão do então 1TEN Mário Santos, em 1948.
 
Desse tempo citemos, correndo o risco de imperdoáveis esquecimentos: Telmo Correia, Radiologista de grande prestigio, colaborador habitual de Fernando da Fonseca; Galvão Rocha, assistente de Egas Moniz na Faculdade de Medicina, insigne internista, médico da Presidência da República; Gualter Marques, pneumologista, aluno, assistente e amigo do Prof. Tapia que na Marinha tornou obrigatória a vacinação pela BCG, só vários anos depois generalizada no país. Nobre Leitão, pioneiro na microcirurgia otológica, Professor convidado de ORL da Faculdade de Medicina; Almeida Amaral psiquiatra que em 45 foi nomeado Director do Hospital Miguel Bombarda; Viriato Gouveia que lhe sucedeu na neuropsiquiatria; Mayer Garção, oftalmologista; Jaime Almendra na Dermatologia, entre outros.
 
Já mais contemporâneos: Félix António, internista, que foi Director do Hospital e Director de Saúde Naval, profundo conhecedor de história de medicina naval, Académico da Academia de Marinha; Ferraz de Abreu, cirurgião. Deputado e Presidente do PS; Orlindo Gouveia Pereira, Psiquiatra, Professor de Psicologia, introdutor das teorias comportamentais; Cortes Simões, Cardiologista, que esteve na origem e desenvolvimento da Medicina Hiperbárica e da Fisiologia e Fisiopatologia do Esforço; Manuel Carrageta, Professor da Faculdade de Medicina; Carlos Silveira, farmacêutico, Professor da Faculdade de Farmácia, Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, que montou o Laboratório de Análises Fármaco-Toxicológicas da Marinha, onde pela primeira vez se montou um programa de rastreio a consumos abusivos. Laboratório de referência nacional e europeia.
 
Em 1956 é criado o primeiro curso de Oficiais de Reserva Naval, cursos que se sucederão por mais de trinta anos. Gerações sucessivas de médicos cumprem o seu serviço militar na Armada. Muitos desempenharam e ainda desempenham funções de direcção quer na rede hospitalar nacional quer no corpo docente das várias Faculdades de Medicina do país, de nome eminente no campo da medicina. Muitos passaram pelo Hospital de Marinha e pelos navios e serviços de Saúde do Ultramar português.
 
Em 1961 inicia-se o ciclo final do Império.
 
As campanhas de África voltam a servir de escola para médicos e enfermeiros.
 
 O Hospital reage adequadamente à nova situação como hospital final da cadeia de evacuação dos diversos Serviços de Saúde espalhados pelos diversos territórios Operacionais das então províncias da Guiné, Angola e Moçambique, mantendo-se ainda em Cabo Verde um Serviço de Saúde do Comando Naval.
 
Só em 1971, pelas necessidades e consumo médicos acrescidos a maior parte dos Médicos de bordo foram devolvidos ao Hospital ou a Serviços de Saúde em terra. Escaparam as fragatas e corvetas de Moçambique (Bloqueio da Beira) e os navios em trânsito para o Ultramar.
 
No início da década de 70 do século XX, dá-se o alargamento de assistência médica e hospitalar aos familiares dos militares da Marinha. Nos primeiros anos na Casa da Saúde do Alfeite e a partir do final da década no Hospital da Marinha.
 
Em 1979, a Escola de Enfermagem da Armada com quase um século de existência é incorporada na Escola do Serviço de Saúde Militar.
 
Em 1989 entra em funcionamento o Centro de Medicina Hiperbárica, prestando assistência aos três ramos - é um Serviço de Utilização Comum - e é usado maioritariamente por utentes civis. Foi modernizado em 1999.
 
A UTITA - Unidade de Tratamento Intensivo a Toxicodependentes e Alcoólicos, que começara no hospital nos finais da década de oitenta, passa para instalação própria e na dependência da Direcção do Serviço de Saúde igualmente nos finais de 90.
 
A partir de 75, a Marinha, por intermédio da Direcção do Serviço de Saúde, começa a assumir a especialização dos Médicos Navais que até então se diferenciavam por sua conta e risco graças à boa vontade e horários facilitados concedidos pelos seus Comandantes. Em 1999 é criado o “Curso de Médicos Navais” na Escola Naval com a colaboração da Faculdade de Medicina.
 
Depois do 25 de Abril e com a mudança do rumo político do País, houve que reformular estruturas e adequá-las a uma carreira médica naval menos aliciante mantendo grandes exigências no recrutamento, impondo sacrifícios, disponibilidade total e com degradação constante do nível de vencimentos.
 
Coisas nada populares hoje em dia, nesta sociedade com o primado dos direitos, dos quais os mais badalados serão os “Adquiridos”, menos vocacionada para os deveres e achando perfeitamente dispensáveis as Forças Armadas.
 
O ambiente não é novo e ciclicamente vai aparecendo na História de Portugal. Muitas vezes teve como consequências períodos de sofrimento e de atribulação.
 
Mas a memória dos homens é curta.
 
 
 
Bibliografia
 
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Obras de História:
“HISTÓRIA DA MARINHA PORTUGUESA”
Edição Academia da Marinha (Vol. I 1997 e Vol. II 1999).
“NOVA HISTÓRIA MILITAR DE PORTUGAL”
Direcção: Manuel Fernando Barata Severino Teixeira
Círculo dos Leitores, Lisboa 2003 (5 volumes).
“HISTÓRIA DE PORTUGAL”
Direcção: João Medina
Ediclube, Lisboa 1993 (15 volumes).
“HISTÓRIA DA MEDICINA MILITAR PORTUGUESA”
Carlos Vieira Reis. Edição Estado-Maior do Exército,
Lisboa 2004 (2 volumes).
 
*      Ex-Director do Serviço de Saúde da Marinha.
 
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2006-10-21
791-0
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REVISTA MILITAR @ 2024
by CMG Armando Dias Correia