Esta é uma daquelas obras que vai marcar, profundamente, a historiografia portuguesa, designadamente no que respeita ao CEP e à participação portuguesa na Grande Guerra (GG).
Escrita por dois reconhecidos professores de História Militar da Academia Militar, um civil e um militar, o livro tem por base excelentes fontes francesas e inglesas, rompe com a visão institucional (factual, dos heróis, das batalhas e dos combates, e das fontes portuguesas), cria conhecimento e leva inevitavelmente à profunda reflexão e debate, seja a nível individual ou coletivo.
O livro faz parte de um projeto mais vasto, inserido no âmbito de uma linha de investigação sobre a GG, coordenada pelo Professor António José Telo e com o apoio da Comissão de Evocação da GG.
Com uma excelente edição de capa dura, o livro está organizado numa introdução, oito capítulos e umas conclusões. Os capítulos marcam o período do CEP desde os primórdios até ao 9 de Abril de 1918, respetivamente: I – Da Guerra Civil Intermitente à Guerra Global; II – O primeiro ciclo do confronto militar; III – A Grande Mentira – uma beligerância arrancada a ferros; IV – A preparação do CEP: Do milagre à realidade; V – O CEP em França; VI – O CEP como Corpo de Exército – Novembro de 1917 a Março de 1918; VII – A Tempestade da Primavera; VIII – La Lys – 9 de Abril de 1918.
O livro está muito bem conseguido em termos gráficos, desde a capa até às centenas de imagens trabalhadas (inclusivamente com cor – da autoria de Jorge Henrique Martins), que valem mais do que mil palavras e que obrigam e provocam os mais curiosos à leitura integral. E provocam porque as legendas das fotos, dos mapas e dos quadros não são neutras (só peca este livro por não dispor de um índice das gravuras, tão útil para os mais curiosos como facilitador de referências para os mais rigorosos).
O livro é inovador na escrita sobre o CEP, pelo menos em seis dimensões, que para mim constituem outras tantas razões para a leitura do livro:
1. Na postura de responsabilidade pela assunção e justificação científica de novas posições e ideias, sustentada sobretudo por fontes estrangeiras (em especial francesas e inglesas);
2. Na leitura do que não está, nem pode estar escrito do lado português;
3. Na perspetiva critica, realista, transparente, livre e desafiadora dos tabus e da visão institucional e clássica (entendida pelos autores – como uma “gigantesca mentira” no caso do CEP);
4. Na visão cuidada da vertente tática e da arte operacional (nunca se tinha explicado o que foi na realidade o 9 de Abril desta forma);
5. Na importante e invulgar visão holística da beligerância e do papel do CEP;
6. Na perspetiva singular da ação de comando dos diversos líderes e da relação dos militares entre si e com a boa, mas sobretudo com a má política (neste caso não deixam de sublinhar o importante papel da Escola do Exército e depois da Escola de Guerra, e do general Morais Sarmento – factos que por si só justificam que o lançamento do livro tenha sido feito na Academia Militar). Vale a pena ler entre as páginas 207 e 217, “o comando do CEP: intrigas e guerras internas”, entendida pelos autores como “uma selva” onde estava metido e perdido o próprio general Tamagnini.
Sobre as principais mensagens que nos deixam os autores, resumidas de modo exemplar nas conclusões, gostaria de destacar seis de entre elas:
1. O próprio título, que resume o essencial do livro – grande parte dos militares da GG e do CEP foram usados pela má política e pelos maus políticos (para perceber esta perspetiva foi necessário alargar a análise ao nível político, estratégico, diplomático, financeiro e de mentalidades);
2. A originalidade do caso português – com uma beligerância forçada por alguns – os guerristas – em nome dos seus objetivos (casos de Afonso Costa, João Chagas, Augusto Soares, Pereira de Eça e Norton de Matos) – que passavam por dar base firme ao “projeto radical”, por trazer a Grã-Bretanha (GB) para as obrigações da aliança, por conseguir créditos internacionais e por levar a cabo reformas adiadas, como a reforma do Exército, permitindo finalmente a criação de um Exército Miliciano;
3. A visão de que a GB não nos queria na Guerra e que sabia sempre mais do que nos informava e que se aproveitava frequentemente e diplomaticamente das divisões internas, aspeto importante mas que não deve apagar o papel relevante do aliado tradicional e estratégico que nos assegurou, a bem ou a mal, a manutenção das colónias;
4. O CEP como centro da “Grande Mentira” (que continuou a seguir à guerra, pois passou a ser regra que a beligerância não se deveria discutir numa altura de criação de heróis) e de clivagens nacionais, mas também como bode expiatório internacional (o comando militar britânico em França provou que também sabia lançar uma eficaz cortina de fumo, com tanta ou mais arte que os guerristas portugueses);
5. O CEP e La Lys, enquanto operação conjunta e combinada, ao nível da estratégia, da arte operacional e também da tática – em que, sem meios adequados, desfasados da realidade militar, cumpriu o seu dever de morrer na linha B! (Todas as operações militares têm, no mínimo, a dimensão política – o CEP é um excelente exemplo do que a má política pode fazer numa operação militar – aquilo que para um grande poder, como a GB, não passou de um incidente militar, foi um “desastre” para Portugal);
6. A diferença entre o discurso oficial e a realidade e a necessidade de trocarmos o discurso tradicional das vitórias morais e das derrotas heroicas, para darmos lugar à realidade – da instrumentalização dos militares pelos maus políticos e pelos aliados… (a culpa oficial foi dos militares que, com o seu mau desempenho anularam os efeitos benéficos que a politica guerrista tinha conseguido – visão falsa e cínica, também usada por parte de autores britânicos, pois o CEP portou-se “exatamente como os britânicos tinham planeado”).
Para os autores, apesar de cem anos passados, a visão que se tinha do CEP estava ainda envolta em profundo nevoeiro, tão espesso como aquele que protegeu as tropas alemãs no fatídico dia 9 de Abril. Com a leitura deste livro, a visão sobre o CEP fica certamente mais transparente e menos nebulosa, curiosamente à semelhança das obras iniciais sobre o CEP, escritas pelos veteranos como Gomes da Costa, Assis Gonçalves, Augusto Casimiro, Jaime Cortesão e mesmo Ferreira Martins, entre outros.
A publicação desta obra constitui assim, motivo de orgulho para a “Academia Portuguesa”, que passa a dispor de uma obra que pensa a guerra e Portugal, com uma visão mais holística, sustentada por novas fontes estrangeiras e escrita com coragem, com liberdade e com autonomia científica.
Incentivo os leitores da Revista Militar à leitura cuidada do livro e às necessárias reflexões, na certeza de que ainda não foi tudo dito, nem escrito, nem entendido – e julgo que nem nunca o será… pois aqui reside uma das riquezas da História!
Felicito os autores pela publicação desta magnifica obra, que materializa o seu pensamento, trabalho, experiência e reflexão profunda sobre a Grande Guerra, e que demonstra que ainda existe espaço para novas perspetivas, a bem da verdade histórica.
Deixo ainda, uma palavra de incentivo, para que continuem a publicar as obras planeadas no âmbito do projeto de investigação apoiado pela Comissão de Evocação da Grande Guerra. O preço a pagar é certamente muito pouco, comparativamente ao que pagaram – muitos com a vida – os portugueses do CEP, a quem é dedicado este livro.
Major-general João Jorge Botelho Vieira Borges
Vogal Efetivo da Direção da Revista Militar
Vogal da Direção da Revista Militar. Presidente da Comissão Portuguesa de História Militar.