Nº 2585/2586- Junho/Julho de 2017
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Um príncipe português, D. Fernando Sanches, filho de D. Sancho I, Conde da Flandres, na formação e consolidação da França no século XIII – A Batalha de Bouvines, de 27 de Julho de 1214 –
Tenente-general
José Lopes Alves

Pórtico

“Depois de Bouvines, construiu-se na paz e na prosperidade a nova

ideologia das monarquias administrativas e sagradas nas quais o Rei

se não declarava mais Rex Francorum (Rei dos Franceses) mas,

com maior verdade, Rex Francis (Rei da França)”

John Hopkins

(Do seu livro “Filippe Auguste”)

 

 

1. Introdução

Países, regiões e governantes

A estrutura geográfica, física e política, da extensa bacia do Canal da Mancha era formada, nos fins do século XII e princípios do século XIII, do lado norte, pela Inglaterra com os seus ducados e condados, sempre em luta pela supremacia local, e, do lado sul, pela Bretanha e Normandia, também feudos da coroa inglesa, o último desde 1204, e governados pelo Rei Ricardo Coração de Leão e, a seguir, pelo seu irmão Rei João Sem Terra que Ricardo, não tendo descentes directos, designou seu herdeiro.

Figura 1 – Condado da Flandres.

 

Ainda do lado sul, no continente europeu, seguiam-se para leste: o Reino da França, governado por Rei Filipe Augusto, com Paris como capital; o condado da Flandres ou Flandre, governados, sucessivamente, pelo conde Balduíno IX, por sua filha, viúva, D. Joana de Constantinopla e pelo conde Fernando, príncipe de Portugal, filho segundo de D. Sancho I e neto de D. Afonso Henriques, que com a condessa Joana casara; o condado de Burgonha, governado pelo conde Hainaud de Dammartin; ainda mais para leste, com fronteira com os dois condados definida pelo Rio Escalda, o império da Alemanha, governado pelo imperador Otton de Brunswick. Os dois condados reconheciam a soberania francesa do Rei Filipe Augusto, mas ambos ansiavam ser independentes, enquanto o Rei João Sem Terra e o imperador Otton aspiravam sobrepor-se ao monarca francês.

Vivia-se então um período agitado das instituições monárquica e do feudalismo e a movimentação de populações entre países e regiões com prejuízo para a sua estabilidade, indo encontrar-se, por exemplo, na Flandres, franceses e belgas nas sua maior parte, mas também flamengos, alemães e gentes doutras origens. Consequentemente, nessa área nordestina da Europa podia então identificar-se um país que era pelos outros considerado objectivo a prejudicar – o Reino da França, de Filipe Augusto – ainda porque, para além da sua supremacia regional, dispunha do importantíssimo apoio do Papa Inocêncio III, sempre pronto a despender meios financeiros e a utilizar a sua poderosa e temida arma, a excomunhão, quando os conceitos da Igreja Católica, por ele proclamados, não eram respeitados e seguidos. E é assim que, no período de dois ou três anos que vai seguir-se, se reúnem condições que conduzirão à Batalha de Bouvines, em meados de 1214, nas quais sobressai a formação duma coligação contra a França promovida pelo rei inglês, pelo imperador alemão e pelos dois condes há muitos anos sujeitos à soberania da França.

 

O Papado e os seus conceitos

Voltando ao ambiente instável que existia nos princípios do século XIII, na sequência do que se verificava nos fins do século anterior e à influência da Igreja Católica, a generalidade dos historiadores considera, de facto, que a Europa Ocidental começa a libertar-se da desordem política e da anarquia do feudalismo, indo encontrar no direito romano as bases do novo poder que se advoga o Papado contra os países e povos que não aceitam “que o seu poder real era uma delegação da sua autoridade”.

Então, os tribunais tornam-se, efectivamente, instrumentos com poder e as monarquias electivas dão lugar às mais poderosas monarquias hereditárias, como Guilherme, o Conquistador, em Inglaterra, que viveu entre 1066 e l087, e Filipe Augusto, em França, no século seguinte, que se tornam na realidade paladinos do novo sistema de governação contra o poder feudal, a despeito de este tentar sobreviver e manter a herança dos plantagenetas, família fundada por Henry Plantageneta, no primeiro caso, e dos Capetas, fundada por Hughes Copeto, no segundo.

Será, portanto, nesta ambiente global que vão decorrer nos anos seguintes a afirmação e consolidação dos dois países em torno do Canal, a imposição da Alemanha junto e para lá do Rio Escalda e dos condados da Flandres e de Burgonha “à borda do Canal”, estes ainda que subordinados ao Rei de França. Mas, não era ainda tudo: imposto pelo Papado havia que respeitar os conceitos, firmando o poder real, “de que todo o território vinha do rei e de que toda a justiça era também uma delegação da sua superior autoridade”. Era, de facto, esta nova estrutura, governativa, diríamos hoje geopolítica e geoestratégica, que relacionava o Papa com os reis e, estes, com os nobres e populações do seu estado, num conjunto físico e humano em que eram demarcados territórios e figuras que os governavam.

 

Bouvines e a sua área

Mas, o que era Bouvines? Situada no centro geoestratégico da Flandres, era, nos primeiros anos do século XIII, uma pequena vila, certamente dotada de alguma fortificação, atravessada pelo Rio Morck, afluente da margem esquerda do Rio Deuille, por sua vez tributário do já citado Rio Escalda que servia de fronteira. Como ainda hoje, creio, ao tempo da Batalha, grande parte da planície francesa a sul do Canal repousava em terreno ondulado e alagadiço e com pequenos núcleos e linhas de montado a separar trechos cultivados, geralmente cerealíferos. Estava-se, então, no período das ceifas e de recolha de produtos da terra, com grande parte do solo coberto de restolho, o que, sob sol de brilho e calor intensos, tornava o ar sufocante, dificultando a marcha das tropas, em especial da peonagem. Em torno de Bouvines, a alguns quilómetros, destacavam-se povoações de alguma importância, como Lille, a norte, Tournai, a leste, e Douai, a sul.

 

2. Intervenção do Príncipe D. Fernando de Portugal

Considerações históricas

Causa surpresa, à primeira vista, ver o príncipe de Portugal dum país ibérico longínquo, filho segundo de D. Sancho I e nos primórdios da fundação da sua nacionalidade, inserido nos problemas da situação polícia vigente no nordeste da Europa que conduziram à Batalha de Bouvines, na qual, deve dizer-se, desde já, não beneficiou dos prazeres do destino e da fortuna. Todavia, essa presença ficou a dever-se, para além doutras razões previsíveis que a seu tempo serão enunciadas, às amistosas relações estabelecidas entre a Flandres e Portugal desde a sua fundação. Os belgas e flamengos, como se sabe, auxiliaram Portugal nas lutas contra os muçulmanos a caminho da Terra Santa para a 3ª cruzada, na tomada de Lisboa, em Outubro de 1147, dez anos mais tarde na conquista de Setúbal, fundaram Vila Franca de Xira e, mais tarde, muito depois do seu tempo, nos séculos XV a XVII, cooperaram no financiamento das esquadras que partiam para o Ultramar, no equipamento dos navios e na comercialização dos produtos transportados. Estas relações tiveram início com o primeiro conde da Flandres, Balduíno IX, o “Braço de Ferro”, que chamando ao condado pessoal especializado, o tornou também centro fabril no campo da tecelagem, bem à frente da França, Alemanha e Países Baixos. O desenvolvimento verificado foi de tal monta, que algumas vilas e cidades puderam proclamar-se independentes e algumas outras se instauraram em repúblicas, fora da suserania real ou condal.

Estas relações consolidaram-se com os casamentos da princesa D. Matilde, irmã de D. Afonso Henriques, com o conde da Flandres, Filipe de Cliton, em 1184, e do próprio príncipe D. Fernando com a condessa Joana, também da Flandres, em 1212, filha de Balduíno IX e viúva em segundas núpcias. A princesa Matilde teve larga, ao que se afirma paga com 50000 ducados, no casamento do sobrinho-neto, sendo principalmente devido a ele que o filho de D. Sancho I e, repita-se, irmão de D. Afonso II, terceiro rei de Portugal, entra na história dos países ribeirinhos do Canal da Mancha.

 

O casamento

Pelo que acaba de ser dito, conclui-se que eram de início muito favoráveis as condições de ambiente que apadrinhavam a aproximação do príncipe a todos os estados europeus do nordeste, e em especial do Rei Filipe Augusto. O espírito de aventura que então reinava, acicatado entre os nobres pelas cruzadas à Terra Santa e, talvez, o ambiente pesado que se vivia na corte com o príncipe seu irmão e futuro rei, cedo chamado a acompanhar o pai no governo do Reino, daria por vezes origem a divergências quanto às decisões tomadas. Deste modo, a sua saída para França terá sido uma libertação pessoal, para além do prestígio que lhe acarretava deixar o irmão e o pai à vontade no desempenho, sem a sua interferência, das suas funções de governo.

A sua admissão na corte do Rei Filipe Augusto, uma corte rica que só podia “viver vivia mesmo à francesa”, barulhenta, cheia de nobres e vassalos e com a particularidade de o monarca, como era seguido noutras cortes, entre as quais a portuguesa, manter uma espécie de colégio onde eram ensinados alguns filhos e filhas de nobres mais destacados, para eventual futura utilização nos serviços e, a par disso, aproveitar a situação para controlar e reforçar a soberania sobre os condados, foi imediata. Não se conhece se Fernando de Portugal frequentou o referido colégio, mas é sabido que foi na corte que conheceu e conviveu com a filha do conde Balduíno IX da Flandres, Joana, e que com ela se ligou pelo casamento.

Joana de Constantinopla era já viúva em segundas núpcias, tinha um filho de cada casamento e viria a desempenhar com Fernando, então conde da Flandres, papel primordial,

A cerimónia do casamento, a expensas do Rei, verificada em Janeiro de 1211, foi particularmente incentivada pela tia-avó do príncipe, Matilde, como se afirmou já. No entanto, logo seguir, houve um mal-entendido entre o filho do Rei, Luís, futuro Luís VIII, o pai e o novo conde que seria motivo de permanente animosidade entre as duas casas. Efectivamente, no dia em que o conde e a condessa prestavam homenagem em Paris ao seu suserano, o príncipe Luís, com pouco mais de vinte anos, à frente dum pequeno exército, atacava-lhes e ocupava as povoações da Flandres – Aire e Saint-Omer – que poucos anos antes lhe haviam cedido ao condado, ocupação com a qual o casal, pelo tratado de Point-à-Vendim, teve de se conformar, embora protestasse e alimentasse a ideia de a redimir na primeira oportunidade. Seria um dos grandes factores que conduziu também a Bouvines.

Só em 22 de Janeiro de 1212 os novos condes assumiriam efectivamente a chefia do condado e, na sequência do evento de ocupação anterior feita pela França e da instabilidade ‘crescente gerada pela claudicação do feudalismo, foram mal recebidos em algumas localidades.

 

Agravamento da situação

Pela mesma altura em que estes acontecimentos decorrem, do outro lado do Canal, o Rei Ricardo Coração de Leão, sem herdeiros directos ao trono de Inglaterra, entrega-o a seu irmão, o príncipe João Sem Terra, entidade que o Rei Filipe Augusto tinha por muito instável e, em conformidade, começou a recear novos ataques ingleses contra o seu território a leste e a sul da Normandia. Convocou então todos seus condes para assembleia em Soissons, na qual a ameaça seria discutida e tomada decisão sobre os meios a reunir para lhe fazer face. Na sua ideia estava um ataque preventivo contra o solo britânico de além-Canal, a realizar por desembarque na sua costa, avisando ainda o imperador Otton da sua iniciativa e das razões que a isso o levavam. Estava, de facto, muito receoso dum ataque inglês.

Na sua reacção às ideias de Filipe Augusto, pelas ofensas que dele tinha recebido e vinha recebendo, o conde Fernando não compareceu em Soissons e informou o Rei de que não tomaria parte em qualquer ataque contra o solo inglês. Pior ainda, no entanto, desembarcou secretamente na costa inglesa e convidou o, já Rei, João Sem Terra a comandar uma coligação contra o monarca francês, a qual seria constituída pelo seu país, a Inglaterra, pelo seu condado, pelo condado de Burgonha e pelo império alemão. João Sem Terra deu a sua aprovação e imaginaram que do outro lado, no continente, se lhes oporia um exército comandado pelo Rei Filipe Augusto, com os seus nobres, muitos mercenários e destacamentos da Bretanha e Normandia, sob domínio britânico, gascão, belga e flamengo, apoiado pelo Papa. Seria sensivelmente o mesmo exército, com 20.000 a 30.000 homens, que Filipe Augusto pensava reunir para invadir a Inglaterra. O efectivo do exército da coligação seria bem maior, talvez cerca de 100.000 combatentes.

 

3. A guerra na área do Canal

1.ª Operação – Expedição contra a Inglaterra

O monarca francês era inteligente, duro, determinado, tinha a experiência de campanha colhida na 3.ª cruzada e, embora não dispusesse das riquezas da Flandres, que era um condado efectivamente desenvolvido e rico, e da Alemanha, nem dos baús cheios de libras da Inglaterra, que tudo podia comprar, após a assembleia de Soissons, com o apoio do Papado e de algumas dezenas de nobres mercenários também experimentes, tratou do planeamento e organização do assalto ao solo inglês. Antes, porém, pensou na segurança da operação, que era, a bem dizer, a segurança do seu próprio território enquanto estivesse ausente e, nessa conformidade, verificou que, na realidade, só do norte e leste lhe vinha a ameaça, visto que, no sul, três reis ibéricos tinham derrotado, em Navas de Tolosa, em Julho de 1212, o outro inimigo da Europa, os muçulmanos. A conselho do Papa Inocêncio III, tentou ainda chamar para o seu lado, diga-se que sem resultado, os dois condados sob sua soberania, Flandres e Burgonha, fez um tratado de acerto de limites de território, desde há muito pendente com o Condado Champanhez, e completou metade que faltava da muralha de Paris, cento e três metros de espessura ao nível do solo, cuja primeira metade tinha sido iniciada em 1190. E preparou-se, na realidade, para os dois anos de guerra movimentados do ponto de vista político, estratégico, religioso e militar, os de 1213 e 1214.

Deste modo, nos princípios de 1213, o Papa dá sentido ao seu apoio material e espiritual a Filipe Augusto com a seguinte missão: “Ir a Inglaterra executar a sua sentença de interdição, prender o Rei João Sem Terra e ocupar em força todo o seu territorio”. No preâmbulo da bula respectiva, Inocêncio III acompanhava a interdição de terras e gentes com a excomunhão do Rei e dos condes Fernando e Hainaud por desrespeito à Igreja e não acatamento dos seus ditames, no âmbito do seu conceito, já referido, de que “a dignidade real está abaixo da dignidade reliçiosa”. Então, utilizando, com outras, a verba de 50.000 libras concedidas pelo Papa, o Rei Filipe Augusto começa imediatamente a actuar, ordenando a concentração de 1500 velas equipadas e armadas na baía de Gravellines, sobre a parte mais estreita do Canal e, em 23 de Maio desse ano de 1213, apresenta-se na povoação para assistir à largada.

A partida, no entanto, com o espanto que poderá imaginar-se, não se verificará. Já estava tudo em frenesi, quando entra na baía um barco com mensageiro das autoridades religiosas inglesas com a informação de que o Rei João tinha decidido acatar os conceitos e determinações do Papa, aceitando a soberania da Igreja Católica. A partir desse momento, a Inglaterra estava novamente sob a protecção de Deus e, portanto, seria pecado mortal atacá-la. A cruzada imaginada e planeada por Filipe Augusto contra ela terminara, de facto, antes de ser iniciada.

 

2.ª Operação – Iniciativa bélica do conde Fernando

Como sucederia também com Filipe Augusto na facção inimiga, apesar de desgostar Inocêncio III que o apoiava, o conde da Flandres, pensando nas reivindicações territoriais que o opunham ao seu suserano, ligadas à ocupação das suas duas vilas, não deu importância à suspensão do desembarque em solo inglês. Secretamente, viajando de noite, vai a Londres conferenciar com o Rei João e propõe-lhe a constituição de uma coligação de forças contra o Rei Francês de que fariam parte o próprio Rei João, que assumiria o seu comando-chefe, ele, conde da Flandres, o conde de Burgonha e o imperador Otton. O objectivo englobaria também o Papa contra o qual todos se queixavam. O Rei João aceita imediatamente a ideia e, dias depois, iniciam o planeamento da operação e a preparação dos efectivos. O comando operacional do exército da coligação seria atribuído ao imperador.

Conhecedor do pacto contra este constituído, Filipe Augusto, tendo à sua disposição o exército preparado para invadir a Inglaterra, vai tomar a iniciativa das operações e iniciá-las contra o inimigo que parecia mais peri-
goso, o seu condado da Flandres, ao qual, como se disse, o ligavam bilateralmente diversas razões de desacordo. Sabia que o Papa continuaria a apoiá-lo e, deste modo, no verão de 1213, invade o território flandrino e, através de sortidas bem-sucedidas e destruições, no estilo de guerra irregular, começa uma luta que se alongará pelo resto do ano e pela primeira parte de 1214, com sol abrasador nos dois verões e tempo tempestuoso e frio no inverno, que só terminará com a Batalha de Bouvines, esta já outro tipo de acção.

Perante a iniciativa de Filipe Augusto, a coligação não ficou inactiva. A corte inglesa transfere-se, com o Rei João, para Douvres, na sua Bretanha, e será a partir daí que ele a dirige e comandará estratégicamente as tropas, como sucederá de imediato quando, sentindo-se os maus resultados que lhe advém da acção do afinal, seu rei, lhe pede auxílio.

Então, como haviam previsto, já se tinham aderido à coligação muitos belgas e flamengos que tinham reivindicações contra o Reino Francês.

 

 

4. 3.ª Operação – A Batalha de Bouvines[1]

Preâmbulo histórico

Escreveu, em 1935, o general Veigand, grande figura de militar e intelectual francês, que foi chefe do estado-maior general do comando do general Pétain, na Primeira Guerra Mundial, e membro da Academia das Ciências e Letras de Paris, no prefácio do livro de António Madeugen sobre a batalha, que a fundação da França se estendeu por cerca de 1500 anos, com trinta e cinco batalhas, das quais quatro verdadeiramente importantes, destacando-se, entre estas, primeiro, a de Bouvines e, a seguir, aquelas em que participaram Joana d’Arc (1412-1430) e, em apenas algumas, Napoleão Bonaparte (1789-1815), sendo, todavia, a de Bouvines a mais “créatice” (criadora). Depois de fazer referência a efectivos combatentes e ao seu espírito, ao armamento, equipamento e emprego, faz recordar que a unidade táctica de combate, a lança de 4 a 6 homens, era característica da época feudal em que se vivia e acrescenta que “Bouvines, no seu tempo, teve mais importância do que a Revolução Francesa na sua época, nela se pondo em campo e nela se realizando todos os interesses políticos, estratégicos e religiosos da altura”. Quanto aos interesses religiosos, lembra, na realidade, a enormíssima influência que a Igreja Católica, sob o papa Inocêncio II, e, diga-se desde já, sempre ao lado do Rei Filipe Augusto, dos franceses, teve no desenvolvimento da situação e na obtenção para o monarca de resultados positivos.

 

Marcha de aproximação para a batalha

Já com o Rei Filipe Augusto empenhado na Flandres, o Rei João será o segundo a agir. Planeando entrar e conquistar Paris, em Março, o seu contingente parte de Portsmouth e desembarca em La Rochelle, na Bretanha, a 16 de Fevereiro de 1214. Segue depois para Angers, onde se concentra em 17 de Junho, e ocupa a seguir Roch-au-Marin, em 19, donde parte, então, para leste. Como rei, atribuiu o comando do seu contingente de tropas a Guillaume de Salisbury, o qual, sendo muito alto e magro, e usando uma grande espada, era conhecido, à moda inglesa, pelo “Espada Comprida”. Juntaram-se a este contingente, logo a seguir, as tropas dos condes Reinaud de Dimmartin e Fernando de Portugal e, pouco depois, o contingente alemão de Otton de Brunswick. Em 12 de Julho, marcham do local de concentração na área do Escalda para sudoeste, para Bouvines, à procura do inimigo.

Figura 2 – A manobra – 1.ª fase.

Figura 3 – A manobra – 2.ª fase.

 

Por seu lado, o Rei Filipe Augusto, assessorado pelo filho (futuro Luís VIII, então com 27 anos), vai tendo conhecimento do movimento das tropas da coligação e, partindo do local de concentração em Péronne, a oeste, marcha, a 26 de Julho, para leste, pela área a norte de Bouvines, por Bouvais, Portive, Douais e Tournai, à procura do adversário. Embora se mantenha como comandante-chefe, o comando efectivo do seu exército é exercido por um eclesiástico, Guillaume de Breton, seu capelão, que vem desempenhando também as funções de chefe do estado-maior e que irá ser o principal cronista dos acontecimentos. E, ainda, nessa manhã de 26, sabe que os coligados estão indecisos quanto à sua posição geográfica no terreno e que decidirão ainda se irão dar batalha, uma vez que o conde Reinaud de Dammartin chamara a atenção de que, no dia seguinte, 27, era domingo e de que era proibido por Deus matar adversários em dia sagrado. O imperador Otton, no entanto, teria protestado de imediato contra a eventual intenção de não lutarem, tendo afirmado que, ou se batiam naquele dia ou retirava as suas forças do campo de batalha, abandonando a coligação e retirando definitivamente para as suas terras além Escalda.

Portanto, ao amanhecer de 27, os dois exércitos encontravam-se na mesma área, mas só a meio de manhã, principalmente pelo pó levantado na marcha, é que começaram a mostrar-se inteiramente e a definir-se perante o adversário. Filipe Augusto tomou, então, a estrada de Tournai para Bovines, que era acompanhada do lado sul por um vale arborizado, mas pouco expressivo, tendo por objectivo inicial a posse da ponte que, perto da sua entrada leste, poderia ser útil à sua manobra. E foi então que, apenas percorrido metade do percurso para Bouvines, observou ao longe que os vistosos elementos avançados da cavalaria alemã se preparavam para atravessar a estrada e seguir também para a vila, mas pelo lado norte da estrada. Deu ordem para inverter imediatamente a marcha das suas tropas para oeste e atacar o flanco esquerdo do inimigo, mas, decorrido algum tempo, verificou que o exército da coligação, o seu alvo, estava já parado e a dispôr-se para a batalha a oeste da vila e, precisamente, em frente das suas forças, o que muito beneficiava os franceses, visto o inimigo ir bater-se de frente para o sol, um sol extremamente luminoso e abrasador que assim se manteria pelo resto do dia.

 

Dispositivo final e conduta

O dispositivo para a batalha que ia travar-se, geometricamente linear para os dois exércitos, como já ao tempo se usava, tinha três corpos de cada lado, situados frente a frente no largo vale onde corria a estrada para Bouvines e o fundo dum ribeiro seco, afluente do Rio Morck, com uma ponte a algumas centenas de metros do seu acesso por leste.

O exército da coligação tinha, no centro, o corpo do imperador Otton com todos o seus nobres, no flanco direito, o do conde Guillaume de Sallisbury, com o conde Reinau de Dammartin no lugar do Rei João, e, no flanco esquerdo, o corpo de Fernando de Portugal. Ainda do lado direito, sob as ordens de Guillaume de Sallisbury, alinhava um batalhão de “Brabançons”, unidade com cerca de 500 experientes e duros soldados ingleses do tempo de Ricardo Coração de Leão com especial aptidão para a luta, aos quais competia, e costumavam fazê-lo, combater até à morte.

Figura 4 – Dispositivo para a Batalha.

 

O exército francês apresentava, no centro, em frente do imperador Otton, o corpo de Filipe Augusto, e, em frente dos condes de Sallisbury, à esquerda, e Fernando da Flandres, à direita, respectivamente, os corpos do conde Robert de Dreux e dos dois comandantes associados Études de Bourgonha e Frade Guerin, este, Bispo de Senlis. A sul do local da batalha existia a abadia de Cysoing, onde Filipe Augusto ouvira missa e fizera uma prelecção às suas tropas antes da batalha. Também antes da batalha, uma vez tomado o dispositivo planeado, o Rei Filipe mandou destruir a ponte sobre o rio Morcq para que os seus homens não tivessem a tentação de fugir e o inimigo não pudesse atacá-lo pela retaguarda.

Tendo começado com pequenas escaramuças frontais, no início da manhã, os combates estenderam-se intermitentemente por toda a área, até ao fim da tarde. O primeiro ataque em força foi das tropas alemãs do imperador Otton que chegaram a penetrar o corpo francês até ao centro da sua posição, onde se encontrava o Rei Filipe, matando-lhe o cavalo. O contra-ataque francês foi, porém, imediato e não com menor vigor, obrigando os alemães a recuar. Vendo que a situação nos flancos também não lhe era favorável, o imperador deu ordem de retirada, que os franceses, no entanto, não souberam explorar para o perseguir, limitando-se a aconselhá-lo, gritando-lhe que se rendesse. Ele, porém, sempre combatendo, continuou a sua apressada corrida para leste, respondeu-lhes que preferia matar-se a render-se, sendo pouco depois feito prisioneiro com os nobres que ainda o acompanhavam.

A queda do centro do seu dispositivo deu origem a que os coligados dos flancos claudicassem também em todos os embates em que ainda se empenhavam, sendo a seguir feitos prisioneiros e evacuados ao princípio da noite para a retaguarda, para um destino diversificado: os nobres e outros mais importantes foram encerrados em prisões especiais, aguardando eventual pagamento de resgate; a grande massa dos combatentes foi distribuída pelas comunidades onde ficaram a aguardar o mesmo e eventual pagamento, sendo entretanto utilizados nos trabalhos agrícolas, então, a sua maior actividade. Como se verificará a seguir, seria especialíssimo o destino reservado por Filipe Augusto ao conde Fernando de Portugal e ao imperador Otton da Alemanha.

O regozijo pela vitória ecoou e a alastrou rapidamente por toda a França, organizando-se cerimónias religiosas de grande espavento, festas e outras manifestações de contentamento durante vários dias, como agradecimento a Deus e ao Rei Filipe Augusto por terem firmado e consolidado a independência do território.

 

Tratados de Paz

Na sequência da batalha, sempre com a intervenção do Papa Inocêncio III ao lado de Filipe Augusto, foi discutido e assinado, em Paris, entre franceses e coligados, no mês de Setembro seguinte, um tratado de paz no qual era reconhecida, apesar da derrota sofrida, a continuidade física e política das comunidades alemã, belga, flamenga e da Flandres. O documento respectivo foi, primeiro, assinado entre os Reis Filipe Augusto e João Sem Terra e só depois facultado aos condes Fernando e Hainaude e aos nobres que governavam. Estabeleceu-se para o tratado uma validade de cinco anos e dispôs-se que as forças de cada signatário vencido não podiam estacionar no território dos vencedores ainda que pudessem atravessá-los. A observância do tratado e as divergências que eventualmente surgissem seriam submetidas a uma comissão arbitral e, sempre que as decisões desta comissão não fossem acatadas, era estabelecido um período de reflexão de sessenta dias, adoptando-se, então, outras medidas se prosseguisse a situação de impasse.

Antes da assinatura deste tratado, o Rei Filipe Augusto, aproveitando, sem dúvida, a precária situação em que ficara o condado da Flandres, com o conde preso, forçou a condessa Joana a fazer com ele um acordo, pelo qual lhe entregava as vilas fortificadas de Ypres e Vallenciene, na Bélgica, se propunha arrasar outras fortificações e nunca mais as levantar, e concedia ao Rei autorização permanente para utilizar o seu território sempre que o necessitasse. Foi o acordo de Melun, de 12 de Outubro de 1214, 77 dias depois da batalha.

 

5. Notas de remate

O destino dos prisioneiros Fernando e Otton

Fernando, príncipe de Portugal e conde da Flandres, teve um destino cruel e pleno de infelicidades que se prolongou por vários anos. Encarcerado, logo a seguir a Bouvines, na temerosa prisão do Louvre, em Paris, viu atribuírem-lhe o, aliás verdadeiro, libelo acusatório encimado pelas queixas do Rei Filipe Augusto e do Papa Inocêncio III que o responsabilizavam pela formação da coligação de que resultara a guerra e a batalha. Considerado, além disso, em sequência, “troféu de guerra”, foi apontado como anti-modelo da ética militar e política, desconhecedor da dignidade e de ter praticado acto de conjura contra o seu Rei. Metido numa velha e miserável carreta de varas, foi, durante vários dias, passeado por vilas, estradas e caminhos da França com numerosa e bem armada escolta militar e com prévio anúncio da sua passagem para que as populações se aglomerassem ao longo do itinerário e, como fizeram, o insultassem, apedrejassem e lançassem sobre ele todos os detritos possíveis ao mesmo tempo que gritavam ameaças de morte e o apostrofavam, clamando que se juntasse à condessa sua mulher e regressasse a Portugal, “terra de selvagens”. Chamavam-lhe propositadamente “ferrant” (ferrador), em de vez Fernand, dada a semelhança entre os dois vocábulos, apenas diferindo na consoante final.

Sempre muito maltratado, foi mantido na mesma cela até 1222 e só em 1227, 13 anos depois de preso em Bouvines, foi libertado e autorizado a reentrar na Flandres e juntar-se à mulher. Morreria em 1233, então com 45 anos, tendo o seu corpo sido inumado numa das abadias que bordam o Canal da Mancha.

O imperador Otton, que só pode ser preso num dos dias a seguir à batalha, teve, sem dúvida, tratamento mais humano do que Fernando de Portugal, embora tenha falecido na prisão. Por ordem de Inocêncio III, foi, como prisioneiro, entregue em 16 de Julho de 1215 à responsabilidade de João Sem Terra, onde foi mantido – especifica um cronista mais meticuloso – 6 anos, 4 semanas e 3 dias, até 4 de Janeiro de 1221, dia em que veio a falecer.

 

Condessa Joana de Constantinopla

Não são conhecidos outros elementos da sua biografia, para além dos apontados. Apenas se sabe, no entanto, que, enquanto o conde Fernando esteve preso e, posteriormente, procurou dedicar-se às populações do con-
dado, desfazendo a sua possível má imagem e a do marido junto delas e aumentando a sua prosperidade. À morte do marido casou, ao que parece, pela quarta vez, com um conde italiano e, quando morreu, legou o condado a sua irmã Matilde de Constantinopla.

 

Últimas notas

Antes da Batalha de Bouvines de 27 de Julho de 1214, em 12 do mesmo mês, houve um recontro preliminar em Roche-au-Mans, no qual se defrontaram, sem resultado visível para qualquer dos lados, 30.000 ingleses e 15.000 franceses e, a seguir, em 1302, como corolário de Bouvines, a Batalha de Contrai, na qual, tropas comandadas pelo flamengo Gean Dampierre derrotaram um exército francês de 50.000 cavaleiros, archeiros e peões, dando origem à Guerra dos Cem Anos (1337-1453).

A baía de Gravelines, no leste da costa da Normandia, seria teatro escolhido, até aos tempos presentes, doutras operações relevantes de invasão com o mesmo objectivo, mas também planeadas e não realizadas, como foram as seguintes:

– Cerca de 300 anos mais tarde, em 1588, o Rei Filipe II de Espanha e I de Portugal aprontou a “Invencível Armada” que seria desbaratada e destruída no local por forte tempestade, não realizando a missão;

– Em 1792, Napoleão Bonaparte prepara também expedição com o mesmo fito – invadir e ocupar a Inglaterra. O General Junot seria o comandante das forças desembarcadas, mas o Imperador teve de desistir da operação por julgar escassos os meios disponíveis e porque se sentia então ameaçado noutros teatros da Europa;

Em 1939-1942, Hitler também tomou disposições para levar a efeito a mesma invasão, não a efectivando por idêntico motivo que Bonaparte – falta de meios – e porque era então patente, a leste, a ameaça soviética.

 


[1]    Muitos historiadores consideram-na a mais bela batalha da Idade Média.

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2017-11-22
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Tenente-general

José Lopes Alves

Ex-Presidente da Direcção e Sócio-honorário da Revista Militar. Falecido em 30 de abril de 2018.

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