Nº 2596 - Maio de 2018
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
NATO: tempo para esperar?
General
Luis Valença Pinto

Introdução

Muitos não encontrarão grandes dúvidas no entendimento que o momento atual da Aliança Atlântica não é particularmente feliz e risonho. E isto, sobretudo, pensando na sua eficácia e no seu futuro.

Pode haver muita agitação em torno de temas, como uma eventual revisão e mesmo ampliação da estrutura de comandos, ou a identificação de fórmulas mais compósitas e não apenas financeiras, de reavaliar o burden-sharing (o que aliás não encerra nenhuma espécie de novidade…), ou de modelos de smart defense, etc.

Pode haver tudo isso. Mas o tratamento desses temas corresponde, no essencial, a um ativismo institucional e burocrático e não é o reflexo de um clima de saúde e pujança que, de momento, exista na organização. Em si mesmo, esse ativismo não tem mal, mas ele não deve fazer ignorar ou desviar o olhar e o espírito, da seriedade dos problemas que presentemente se colocam à NATO.

E a inquietação é legitimamente maior quando, de modo real e potencial, se compreende a NATO como a pedra angular do modelo de Segurança Coletiva de que as Nações que a integram carecem e, mais modernamente, como um Ator também capaz de agir nos novos contextos da Segurança Cooperativa e de dimensão humana, mediante práticas de cooperação e parceria, em particular com a União Europeia (UE).

É um entendimento que, de forma bastante generalizada, foi desenvolvido, foi existindo e, apesar de tudo, ainda existe. Desde 1949, com os primeiros doze Aliados, e, depois e sucessivamente, com catorze, quinze, dezasseis, até aos atuais vinte nove Estados-membros.

Foram e são múltiplos os seus fundamentos. Sem ser exaustivo, podem enunciar-se quatro particularmente relevantes e todos eles expoentes das capacidades e sobretudo do sucesso da NATO: o contributo decisivo da Aliança para a construção europeia; a vitória na Guerra Fria; a pacificação dos Balcãs Ocidentais e a inteligência e a plasticidade com que, no pós Guerra Fria, a NATO soube evoluir e ir-se adaptando, quase sempre por antecipação, às novas circunstâncias do ambiente político e estratégico.

No plano dos princípios e dos grandes enunciados, nada parece estar hoje posto em causa. Mas talvez seja de recear que essa seja apenas a aparência das coisas e que, porventura, tudo, ou pelo menos muita coisa, está ou vai ser posta em causa. Nuns casos, por ação, noutros, por omissão.

Claro que esta afirmação tão carregada ganha maior propriedade se não se excluir a hipótese das atuais dificuldade da Aliança terem um caráter transitório. É algo que deve ser feito. A bem do rigor e também da esperança, mas sempre evitando a ilusão.

Mas é também bom ter presente, mesmo quando isso custa a aceitar, que, por definição, as alianças não são eternas e que, se umas fenecem no curso da História, nesse mesmo curso outras muito provavelmente surgirão, com objetivos, processos e desejavelmente também resultados, análogos ou equivalentes.

 

Os problemas

Então, que problemas afligem e inquietam a NATO do tempo presente?

Poder-se-iam listar muitos, mesmo não indo além dos domínios técnico e organizacional. Domínios esses que, apesar de tudo, correspondem ao que é mais simples e mais acessível e onde, portanto, é muito mais fácil identificar e construir soluções.

Os males da NATO são hoje fundamentalmente políticos e estratégicos. E evidentemente que são esses os domínios essenciais e decisivos.

Há quem ache que a NATO começou a empalidecer quando cessou a ameaça soviética. Deve, porém, refletir-se que, a ser assim, era ténue e pobre o ligante da Aliança, uma vez que correspondia meramente a um fator exógeno.

Talvez não seja, porém, faltar à verdade entender que o essencial da NATO reside numa identidade de valores, interesses e princípios, sem prejuízo da então existente ameaça soviética ter, à época, constituído um importante catalisador.

E, se foi assim, no momento fundador e durante o período da Guerra Fria, foi essa mesma comunalidade que, no tempo seguinte, alicerçou as visões e propósitos que, de modo consensual e unânime, a Aliança espelhou nos seus Conceitos Estratégicos de 1991, 1999 e 2010, e nas opções e práticas deles decorrentes.

Então, onde e como se sentem e manifestam as aparentes fragilidades do presente?

A questão pode ser ponderada sob vários ângulos de abordagem mas, precisamente por causa do valor central da comunalidade, talvez se deva privilegiar a linha de raciocínio que se prende com a unidade e a coesão da NATO.

Pode começar-se pela crise do empenhamento europeu. Pela crise da vontade e do compromisso dos aliados europeus, empobrecendo a Europa, definindo um processo que facilitou caminhos e opções de unilateralismo norte americano e criando situações muito desequilibradas, injustificadas e insustentáveis, em termos de partilha de encargos – em si mesmo um indicador de coesão –, erodindo com isso o envolvimento norte americano e facilitando reações de incompreensão e desagrado e depois de intolerância, por parte dos EUA.

Atente-se, porém, que a debilidade da vontade e do empenhamento europeu em matéria de Segurança e Defesa – da sua própria Segurança e Defesa – também se manifestou no contexto da UE, com consequências diretas para a União e gerando fragilidades à Europa e por extensão à NATO.

As dificuldades que esse posicionamento trouxe para a NATO são de duas ordens de razões. Por um lado, porque expõem potencialmente os EUA a cenários de envolvimento que tinham, e hoje têm de modo muito reforçado, como lhes sendo indesejáveis e com isso abrindo brechas no campo aliado. Por outro lado, porque as insuficiências europeias fragilizam e estreitam, de forma objetiva, o espectro da cooperação UE-NATO, por mais que as vozes políticas soem diferentemente.

Ora, essa cooperação é algo que a resposta à maioria dos desafios de Segurança que se colocam à Europa, no nosso continente e na nossa vizinhança próxima, não pode dispensar e que, genericamente, pode ser traduzido pela articulação frutuosa do hard power militar da NATO (i.e., dos EUA) com o soft power político, diplomático, económico, financeiro, social e cultural da União, sem com isso fazer da UE um Poder civil.

A necessidade dessa articulação é particularmente gritante e evidente no que respeita às ameaças e aos riscos provenientes do Médio Oriente e do Norte de África, cuja génese e natureza requerem vetores de resposta de que a NATO não dispõe, colocando a Aliança na posição de, por si só, não estar apta a proporcionar estabilidade e segurança face a essas ameaças e riscos, designadamente à parte Sul do nosso continente.

Infelizmente, outros aspetos também agravaram e agravam a unidade e a coesão da NATO. Alguns são estruturais, enquanto outros são circunstanciais ou, pelo menos, aparentam poder ter apenas essa natureza.

Entre os estruturais tem que se destacar o facto, em si mesmo enriquecedor e sinal de atratividade e vitalidade, de serem hoje vinte e nove os Estados-membros. Porém, o que sucedeu é que, não tendo, até agora, havido engenho e arte na busca de novos métodos e novos procedimentos, deixou de ser inteiramente possível o debate participado e genuinamente construtivo que caraterizava a vida coletiva da Aliança, e passou, sobretudo, a existir uma sucessão de monólogos nacionais, o que não favorece o coletivo e que, ao mesmo tempo, estimula tomadas de decisão construídas à margem. Assim formuladas, essas decisões nem sempre associam, pelo menos no plano da convicção profunda e sentida, a totalidade dos Aliados, como é suposto e desejável, face à natureza intergovernamental da Aliança e ao inerente requisito de consenso e unanimidade. E uma coisa, é o consenso ativo e afirmado, outra, o consenso passivo e silencioso…

Com mais e melhor debate – mas isto é especulativo –, talvez tivesse sido possível evitar, ou pelo menos mitigar, algumas pulsões que se manifestam no Centro e Leste europeus. Não se devem excluir dessas perspetivas as visões que alguns têm relativamente à Rússia, mas particular atenção dever ser dada às derivas populistas e no limite formal da democracia que se verificam, em particular, na Hungria, na Polónia e na República Checa. E ninguém se pode alhear do princípio que faz da NATO uma aliança de democracias, o que manifestamente constitui uma das suas forças matrizes.

Outro e muito sério problema é o que está acontecer na Turquia. É despiciendo salientar a enorme importância da Turquia, seja pelo valor da sua posição geopolítica e geoestratégica, seja pelo seu potencial, do que a dimensão militar não é elemento menor.

A vários títulos e também, e talvez, sobretudo sob o ângulo da prática democrática, a Turquia está afastar-se da ordem ocidental de segurança e da condição de aliado responsavelmente livre, mas praticamente certo e inquestionável. O que é tremendamente inquietante.

Olhando agora para os desafios eventualmente suscetíveis de serem tomados como circunstanciais, releva entre todos os que decorrem da crise do mundo anglo-saxónico de que, no respeita à NATO, apenas se exclui o Canadá.

É uma crise, talvez mesmo uma deriva, que se traduz pelo cenário do Brexit e pela retórica da Administração Trump. Diga-se que, por enquanto, sobretudo retórica… Há quem, de modo muito provavelmente simplista, considere que o Brexit não acarretará consequências para a NATO. Há mesmo quem pense que o Brexit irá reforçar a NATO, na justa medida em que fará da Aliança o ponto de ancoragem dos britânicos à Segurança e Defesa da Europa.

Mas talvez essa tranquilidade seja ilusória. E ainda mais ilusório seja o otimismo que daí se quer fazer emanar.

O tema é vasto e complexo. Merecedor, por isso, de muita reflexão e de muita dúvida. Sendo redutor na análise e centrando a observação no que mais importa à NATO, são, porventura, três as considerações que mais se impõem fazer e que sustentam uma atitude de reserva inteiramente justificada.

Em primeiro lugar, a constatação de que, a concretizar-se, o Brexit afetará inapelavelmente a UE, afetando, portanto, também a NATO, na medida em que a cooperação entre as duas organizações é fundamental para a prossecução dos melhores interesses de ambas.

À segunda, corresponde uma forte e muito séria interrogação. O que será o Reino Unido após o Brexit? Conservará a sua atual unidade? Manterá ou reforçará o seu atual potencial? Terá a coesão económica e social que hoje genericamente se lhe reconhece? Quais as consequências?

Terceira consideração, como ficará a credibilidade britânica no seio da Aliança? Sem margem para uma segunda opinião, essa credibilidade, desde sempre, até agora, tem sido absolutamente intocável. Mas que desgaste sofrerá após uma evidência tão gritante de menos bom critério e de aparente cedência ao eleitoralismo e à demagogia populista, como ficou patente no enquadramento do referendo que levou à intenção de abandonarem União e hoje continua igualmente patente no modo tão hesitante, desorientado e por vezes contraditório como os britânicos reivindicam e intentam negociar os termos da sua separação?

E do outro lado do Atlântico Norte? O que se passa?

No quadro da NATO, só por distração, pudor ou conivência se pode ignorar o tema da Administração Trump.

É facto que, embora a contrario sensu, as teses prevalecentes na Administração Trump também parecem potenciar desenvolvimentos positivos, de que relevam dois, ambos resultantes da circunstância inequívoca de que a Europa é, hoje, assumidamente, a segunda prioridade dos EUA, precedida pela região Indo-Pacífico (e já não Ásia-Pacífico, o que, aliás, é uma evolução, pelo menos, parcialmente interessante).

Primeira nota para referir que, por mais que a Europa continue a ser importante para os EUA, os demais aliados terão que olhar com muito maior seriedade para o tema do burden sharing e para o compromisso estabelecido quanto à afetação de recursos à Defesa, em particular no plano das despesas de investimento.

Em segundo lugar, os aliados, e em particular os europeus, terão que ganhar consciência que, exceto quando estiverem em causa o nuclear ou a Rússia, não poderão repousar na expectativa de um quase automatismo de compromisso americano para com a Europa. Ou seja, terão que evoluir para serem progressivamente mais capazes para fazerem face, por si sós, aos problemas de Segurança e Defesa do continente europeu e da sua vizinhança próxima, do seu near abroad.

Um e outro destes dois desenvolvimentos serão benéficos para a Europa e para a NATO, ainda que seja de lamentar que resultem mais de fatores externos do que de convicção europeia própria.

Há, contudo, uma extensa lista de questões de diferente natureza, identicamente suscitadas pela atual Administração dos EUA, que forçosamente têm que preocupar a NATO, designadamente os seu membros europeus.

Pondo de lado o que resulta do comportamento errático e menos sereno do Presidente Trump (o que está longe de ser dispiciendo para a Aliança), é o plano geopolítico que deve merecer maior atenção. E isso porque essas perturbadoras questões radicam numa visão estranha do Mundo contemporâneo e do papel que, nele, os EUA têm e pretendem ter.

Para se evitar ser infundadamente especulativo, tome-se como referência e de modo factual e estreito, a Estratégia de Segurança Americana que o Presidente aprovou em 17 de dezembro último.

Uma primeira observação, prende-se com a perceção em que esse documento se baseia. E vale a pena começar por aí, porque os mitos e as ilusões são terríveis conselheiros e geram referências de pensamento perigosamente falsas.

A Administração Trump afirma no seu documento de estratégia que a América está de novo a liderar o Mundo e que, por esse motivo, os EUA são novamente muito admirados em todo o globo, tanto pelas Nações como pelos indivíduos.

Ora, parece que não só isso está longe de ser assim, como na História recente, provavelmente, nunca foi tão baixo e tão questionável o reconhecimento dessa liderança. E, evidentemente que uma má perceção da opinião política e da opinião pública relativamente aos EUA se repercute negativamente na perceção que exista quanto à NATO.

No que concerne à postura estratégica, observe-se que, mesmo tendo essa visão tão errada quanto ao valor presente da sua liderança, o que se identifica na nova Estratégia é que os EUA não querem ser um Poder normativo, mas antes um Poder impositivo.

E, mesmo quando se enuncia um princípio de balança de poderes, isso é feito afirmando o propósito que esse “equilíbrio” seja favorável à América, aos seus aliados e parceiros, mas, deve frisar-se que aliados e parceiros são compreendidos, não como iguais, pelo menos de jure, mas sim na perspetiva de serem Atores desejavelmente fortes, para que possam ampliar o Poder dos EUA.

De algum modo, é a retoma da visão de Brzezinski que, em 1997, em pleno período do unipolarismo americano, e na sua obra “The Grand Chessboard”, considerava os aliados e parceiros dos EUA como sendo estados vassalos…

Mas forçoso é reconhecer que, em larga medida, essa perspetiva está em linha com o princípio de “America first”, transformando-o de mero enunciado retórico para consumo interno, numa doutrina de política externa, sem cuidar do impacto desse postulado numa Aliança de iguais, cujo pressuposto essencial é a partilha de valores, interesses e aspirações. E isto, sem levar em linha de conta o impacto deste mesmo postulado noutros contextos, de que se destaca o das Nações Unidas, cuja filosofia moral, ética e política era bom que constituísse referência global.

Não pode espantar que, nessa mesma ótica, a nova Estratégia norte-americana se afaste da ideia do multilateralismo, para identificar o “soberanismo” (o que é diferente de soberania) como sendo o fator capaz de garantir Paz, segurança e prosperidade.

Obviamente que, afastando-se do multilateralismo, a nova Estratégia se afasta por definição de um contexto de organizações internacionais, de que a NATO é uma.

E, sem que queira acentuar dimensões negativas e por isso preocupantes, é igualmente verdade que quem se afasta do multilateralismo também se distancia de preocupações e de ambições, como, por exemplo, as ligadas à ideia de governança global, assente no Direito Internacional, no primado da Lei e nos esforços de regulação coletiva. São questões que se podem considerar que não tocam diretamente ou de muito perto a Aliança Atlântica, mas que não lhe podem ser indiferentes.

A atual Estratégia de Segurança dos EUA não exclui totalmente a presença em organizações internacionais, mas só a compreende sob liderança norte-americana, com o critério de proteger, acima de tudo, os interesses americanos e com a atribuição na tomada de decisão de um peso majorado aos EUA, enquanto parceiro achado mais forte e principal contribuinte.

E mesmo a Estratégia de Defesa dos EUA, datada de janeiro último, e de que só se conhece um sumário executivo de onze páginas, embora menos extremista (como seria de esperar das influências moderadoras do Secretário de Defesa, General Jim Mattis, e do Pentágono), reafirmando sem hesitação a presença e o interesse na NATO, não se afasta das ideias de competição estratégica e de que os aliados e parceiros devem ser uma “constelação” (sic) destinada a suportar a influência norte-americana e a garantir equilíbrios de poder que sejam favoráveis aos EUA.

Volte-se agora à Estratégia de Segurança para analisar o modo como, por ação e omissão, este novo texto americano encara algumas questões de segurança, limitando essa análise ao que tem implicações para a NATO e ignorando outras dimensões. O que é uma arriscada abstração. Talvez cinco questões relevem das demais.

Primeira, preconiza-se uma nova postura (o que é discutível) para o que chama de “flanco leste” da NATO, omitindo qualquer preocupação ou sequer referência, aos desafios que se colocam na frente sul da Aliança. O que é espantoso e absolutamente deplorável.

Segunda questão, a UE é completamente omitida. O que começa por reforçar as interrogações sobre a que Mundo essa Estratégia se reporta, mas, que, num plano mais objetivo, igualmente significa que não compreende ou não identifica o interesse e a imperatividade da cooperação NATO-UE.

A terceira questão prende-se com a visão que é espelhada relativamente à Rússia e à China. Não será porventura excessivo considerar que ambas as potências são diabolizadas neste novo documento norte-americano. Para os fins desta reflexão, pode colocar-se de lado a questão da China. Mas é absolutamente infundado associar estes dois países, como a nova Estratégia faz. Seja em termos de propósitos, como em termos de postura estratégica. Daí, só pode resultar artificialismo.

Todavia e por mais que seja espúria, não é essa associação o erro que, no contexto desta análise, deve merecer atenção. O que deve ser retido é que daqui resulta uma desajustada avaliação de um e outro desses importantes Atores. O que tem sérias consequências, designadamente, porque fundamenta a reintrodução de um clima de competição estratégica entre os EUA, a Rússia e a China.

A ideia de competição estratégica nunca é boa. Se existe, deve ser encarada. Mas tem consequências demasiado sérias para ser artificialmente criada ou estimulada.

Continuando a manter de lado a China e olhando exclusivamente para o que especificamente respeita à Rússia, são-lhe atribuídos, enquanto ameaça, um valor e um peso que provavelmente não tem. O que gera várias decorrências. Desde logo, porque lhe garante um reconhecimento e um peso como antagonista, que muito provavelmente é “música celestial” para a agressiva política externa russa. Será admirável que o senhor Putin não aprecie e agradeça essa leitura.

Depois, porque torna ainda mais inacessível e distante a cooperação entre o Ocidente a Rússia que, a poder acontecer, é algo de potencialmente muito valioso para o tratamento de muitos dos mais importantes dossiers de Segurança para a Europa e para o Mundo. Naturalmente que essa cooperação não pode ser promovida e praticada, enquanto os ventos soprarem de Moscovo como têm soprado e enquanto persistirem as atuais e intoleráveis violações russas ao Direito Internacional. Mas o alto interesse dessa cooperação e o propósito de, sem cedências, a retomar, não deve ser perdido de vista.

E recorde-se também que a Estratégia é uma doutrina de intenções e não uma doutrina de possibilidades e que, portanto, um documento estratégico que, no que tange aos recursos, se alicerça fundamentalmente nas efetivas possibilidades nucleares da Rússia, sem levar em linha de conta as suas muitas debilidades e não avaliando intenções, mediante a integração dos vários parâmetros, é um mau texto estratégico. E isso deve preocupar a Aliança.

A quarta questão, liga-se ao facto desta nova Estratégia não antecipar, nem enquadrar o risco de conflitos em torno do Ártico. É um risco que o degelo, com as consequentes disputas por recursos, e a provável abertura de novas rotas marítimas potenciam. Nas tensões daí emergentes neles podem vir a estar envolvidos cinco Estados-membros da Aliança (Canadá, Dinamarca, EUA, Islândia e Noruega), sendo a disputa aparentemente mais abrasiva a que opõe o Canadá e os EUA. Há nisto motivos fundados para, pelo menos, muita atenção e acompanhamento. Certamente pelo assunto em si mesmo. Mas também pelo receio que essa omissão possa corresponder a uma atitude de “posso, quero e mando”, um pouco como a China faz em relação às múltiplas disputas territoriais que se identificam no Mar do Sul da China.

Por uma ou outra dessas duas razões, porventura por ambas, esta tem que ser uma preocupação para a Aliança. O Ártico vai ser um dossier difícil nos próximos tempos. Também para a NATO, que só ganha em acompanhar e desejavelmente antecipar e influenciar positivamente, a evolução desse espaço geopolitico.

Finalmente, a circunstância de não se encontrar neste novo documento uma só palavra sobre mudanças climáticas ou aquecimento global, ou, mais genericamente sobre o ambiente, confirmando assim a incompreensível singularização em que o Presidente Trump colocou os EUA relativamente ao Acordo de Paris.

Isto é também algo que não pode deixar de criar perplexidade e desconforto na Aliança, para quem o ambiente, enquanto relevante problema de segurança, é questão a cuidar.

 

E Portugal?

O que é que tudo isto quer dizer ou traz de implicações para Portugal? Uma primeira observação é que não há nada de particular ou de exclusivo para o nosso país. Ou seja, a atitude portuguesa deve ser definida e conduzida no quadro da responsabilidade comum no seio da NATO. E talvez se deva centrar em três eixos:

– ser empenhado e ativo no coletivo da Aliança; certamente nas dimensões operacionais e técnicas, mas também nos grandes debates (se os houver…);

– ser empenhado e construtivo no quadro da UE e aí dando particular relevo e atenção ao processo de definição e construção de uma Cooperação Estruturada Permanente na área da Segurança e Defesa;

ser atento e precavido na relação com os EUA, acautelando interesses sem passividade ou muito menos subserviência, mas também sem “quixotismo”.

Pode, com propriedade, observar-se que Monsieur de la Palisse não diria melhor nem diferente. Mas, porventura, é mesmo essa a linha a adotar.

 

E o futuro coletivo?

Há, todavia, uma consideração adicional a fazer. Se tudo for normal, a Aliança visará a aprovação, em 2020, de um novo Conceito Estratégico, o que implica iniciar o correspondente exercício, em 2019. Residem aí, ao mesmo tempo, um risco, um desafio e uma oportunidade.

Portugal empenhou-se, e bem, na elaboração do atual Conceito. Como era seu dever.

O dever continuará a ser o mesmo. Pode, todavia, recear-se que o ambiente seja muito diferente. Designadamente, com os EUA a quererem fazer prevalecer a sua visão que se mostra tão significativamente diferente da de muitos outros Aliados.

Mas a elaboração de um novo Conceito é precisamente um momento para a afirmação de todas as visões, agindo com clareza e transparência, assumindo divergências e buscando um entendimento comum.

Ainda “vai passar muita água debaixo das pontes”.

Mas, nas condições de hoje, o entendimento da maioria dos Aliados e certamente dos da Europa Ocidental, quanto ao futuro e à evolução da NATO, talvez não se afastasse da conjugação realista, inteligente e pragmática e dos princípios da Segurança Coletiva e da Segurança Cooperativa.

Uma Segurança Coletiva, fundada e centrada nos valores comuns e não assumindo objetivamente nenhum inimigo pré definido.

Uma Segurança Cooperativa, com todos os que a queiram construir com a Aliança, numa lógica de win-win, de atenção à dimensão humana e assente nos instrumentos da cooperação, das parcerias e da ação multidimensional.

São princípios que informam o Conceito Estratégico de 2010 e que, na sua essencialidade e apesar de algumas alterações de contexto, parecem permanecer perfeitamente pertinentes e válidos. Difícil é antecipar que, neste tempo, essa leitura continue a ser subscrita por todos.

São princípios que, a persistirem, não assegurarão a perenidade da NATO, o que, aliás, é algo insuscetível de garantia e que em si mesmo não pode, nem deve, assumir o caráter de modelo sem alternativa.

Mas são princípios que viabilizarão a sua continuidade em termos úteis para os seus Estados-membros e para os desafios da Segurança contemporânea.

Para acautelar esse desiderato, talvez seja inteligente que, antes de rever o seu Conceito Estratégico, a Aliança reveja o momento desse exercício.

Um momento posterior ao atual mandato de Trump, seria provavelmente o mais desejável…

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2018-09-19
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Luis Valença Pinto

Nasceu em Lisboa, em 7 de fevereiro de 1946, ingressou na Academia Militar em 14 de outubro de 1963 e passou à situação de Reforma em 7 de fevereiro de 2011, perfazendo mais de 47 anos de serviço efetivo nas Forças Armadas.

Foi promovido ao posto de General em 6 de Agosto de 2003, quando assumiu as funções de Chefe do Estado-Maior do Exército, que exerceu até 5 de Dezembro de 2006, data em que assumiu as funções de Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, responsabilidade que deteve até à passagem à Reforma.

Presentemente, é Professor Catedrático Convidado no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e no Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, sendo investigador em ambas as instituições.

REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia