A Grande Guerra em África:
Os que inovam, os que se adaptam e os outros
António José Telo e Nuno Lemos Pires*
“A Grande Guerra em África: Os que inovam, os que se adaptam e os outros” é um magnífico livro da autoria do Professor Doutor António José Telo e do Coronel Tirocinado Nuno Lemos Pires, ambos distintos professores da Academia Militar e autores de uma vasta obra na área da História Militar. Com a chancela da Fronteira do Caos e o apoio da Comissão de Evocação do Centenário da Grande Guerra, este livro diferencia-se dos restantes publicados sobre a mesma temática pelas seguintes razões:
– Em primeiro lugar, pela qualidade e inquietude dos autores, dois historiadores reconhecidos, inteligentes, inovadores e prospetivos, com formação diversificada (um civil e um militar – que se complementam), com gosto pelo contraditório e muito especialmente pela liberdade de pensamento;
– Em segundo lugar, pela visão abrangente, que sobrepõe a manobra global ao caso sempre específico de Portugal, que faz análise comparativa, que faz o necessário enquadramento geral para uma guerra global e que, no fundo, sobrepõe a floresta ao embondeiro;
– Em terceiro lugar, pelo recurso a novas fontes britânicas, belgas, sul-africanas, americanas e alemãs, que sustentaram novas visões e novas perspetivas sobre muitos aspetos da Grande Guerra em África;
– Em quarto lugar, pela coragem dos autores, ao romperem com a visão institucional e com as leituras cronológicas, ao romperem com os erros e as ilusões, e ao inovarem, criando uma nova visão realista, sem preconceitos e devidamente integrada em termos políticos, estratégicos e táticos;
– Em quinto lugar, pelo facto de marcarem a agenda editorial com a Grande Guerra em África, indo ao encontro das preocupações do Dr. Manuel Carvalho (diretor do Jornal Público), autor da excelente obra publicada em 2015 e intitulada “A Guerra que Portugal quis esquecer”.
Com cerca de 298 páginas, o livro está escrito com uma linguagem simples, com mapas e legendas notáveis (em especial no capítulo VI, com destaque para o mapa das páginas 220 e 221), com excelentes notas de rodapé e muito bem ilustrado.
Depois de uma leitura sofrida, porque muito sofrida foi a Grande Guerra em África, destaco dez aspetos para os leitores da Revista Militar, a saber:
1. O título é particularmente feliz, pois efetivamente na Grande Guerra em África “os que Inovaram” foram os alemães, “os que se adaptaram” foram os Belgas, os Britânicos e os Sul Africanos e “os outros” fomos nós, os Portugueses de então, com vasta colónias e marcados indelevelmente por uma guerra civil intermitente.
2. A introdução e as conclusões são de leitura obrigatória, pois traduzem a alma deste livro, sem deixarem de incentivar o leitor à leitura cuidada dos seis capítulos, deliberadamente (e felizmente) mais analíticos que descritivos, a saber: I. Antecedentes e Precedentes da Guerra em África; II. Angola – 1914 A Guerra errada no sítio errado; III. A Surpresa de 1914; IV. 1915 – O ano da expectativa estratégica; V. Os alemães expulsos da África Oriental Alemã; VI. O ano de todas as surpresas.
3. Os autores cuidam da originalidade do teatro africano e destacam esta Grande Guerra como a única vez em que os grandes poderes europeus lutaram entre si na África subsaariana e com três grandes visões em confronto: a clássica dos impérios tradicionais (Portugal); a da “obrigação de civilizar” (maioria dos grandes poderes); e a do caminho da emancipação (que dava então os primeiros passos).
4. A excecionalidade de Portugal mediu-se pelas condições atrozes em que acabou por enviar para África 33.483 militares (21.053 para Moçambique com 4.821 mortos e 12.430 para Angola, com 810 mortos) para além dos recrutados localmente. Mas mediu-se, também, pela exportação para África das clivagens internas (entre guerristas, como Afonso Costa, Norton de Matos e João Chagas e antiguerristas, como Pimenta de Castro e Sidónio Pais), decorrentes de uma guerra civil intermitente, na qual os militares foram sacrificados pela má política e muito especialmente pelos republicanos radicais.
5. Os autores destacam onze fatores políticos internos e externos que minaram as operações militares (de Naulila a Quionga, passando por Nevala ou Negomano), a saber: 1. A Guerra civil intermitente; 2. A instabilidade do Poder Político; 3. A escolha política do comando militar; 4. O total irrealismo dos políticos republicanos radicais; 5. A diferença de meios e recursos entre Portugal e os Outros; 6. A interferência política na condução das operações; 7. O choque entre administrações; 8. A corrupção das administrações; 9. A África como local de exílio político de militares; 10. A mistura entre luta contra os alemães e as campanhas de soberania; 11. O mau relacionamento dos radicais com a Grã-Bretanha (só atenuado em 1918 com a habilidade política de Sidónio Pais).
6. A Alemanha constituiu um exemplo de inovação às circunstâncias, de flexibilidade, de iniciativa e de surpresa, tendo como estandarte Lettow-Vorbeck, que nas palavras dos autores (p. 279) “escreveu a história militar do futuro”. A este propósito, o combatente e escritor, Coronel Pires Monteiro, escreveu[1]: “O General Lettow-Vorbeck foi um verdadeiro adversário, um inimigo leal e decidido; as suas lições trazem-nos ensinamentos, que devemos considerar.”
7. Os aliados e em especial os britânicos revelaram uma rara capacidade de adaptação, e apostaram nos seus pontos fortes, nomeadamente “na vantagem do domínio do mar, dos lagos e rios, nos meios técnicos superiores e na abundância de recursos de todos os níveis”.
8. Portugal teve uma grande incapacidade de aprender, não só pelas razões políticas atrás apontadas, mas também por razões militares (e apesar do sucesso nas operações de soberania entre 1877 e 1918), com destaque para: os problemas de disciplina, corrupção e má organização; os problemas táticos e doutrinários; e os problemas de mentalidades e atitudes. Como bem relevam os autores, e apesar de todas as incapacidades, também houve verdadeiros comandantes como Alves Roçadas, Massano de Amorim e Garcia Rosado.
9. As verdadeiras consequências da Grande Guerra em África traduziram-se na mudança dos equilíbrios e do domínio, dado que o colonialismo passou desde então a ser entendido pela nova Sociedade das Nações “como uma fase transitória que visava preparar as condições para a emancipação dos povos africanos”.
10. Para os autores, existiu e ainda existe “um manto de mentira e deturpação sobre a participação portuguesa na Grande Guerra”, caso dos manuais escolares que ainda sublinham, entre outras histórias, que “Portugal entrou na Guerra a pedido do aliado, para a defesa das colónias atacadas e que isso foi conseguido de armas na mão, tendo-se mantido e mesmo alargado o legado colonial”.
Como orgulhoso filho de África (nascido em Angola), e em linha com o pensamento expresso dos autores, julgo que é altura de prestarmos a devida e merecida homenagem a todos os Africanos que lutaram, sofreram e morreram (cerca de 100.000 – ou seja, tantos como os Americanos que morreram nesta Grande Guerra) com o seu esforço para consolidar a visão de Woodrow Wilson (plasmada nos seus catorze pontos), que mais tarde se traduziria na emancipação dos povos.
Como bem escrevem os autores na página xiii, “No final «nada voltou a ser como dantes».”
Faço votos para que leiam este livro, pois certamente ficarão inquietos e seguramente retirarão ensinamentos para os dias de hoje, caso da nossa exigente participação na Multinational Integrated Stabilization Mission in the Central African Republic (MINUSCA), na República Centro Africana.
Ao contrário da Grande Guerra em África, “em que todos perderam muito e alguns ganharam pouco”, com a edição deste livro, todos nós leitores “ganhamos muito”. Os meus sentidos parabéns aos autores, por terem trazido à estampa este livro sobre a Grande Guerra em África, o qual merece, indiscutivelmente, uma edição em inglês e uma distribuição alargada a vários países e continentes.
Major-general João Vieira Borges
Comandante da Academia Militar
Sócio efetivo e Vogal da Direção da Revista Militar
Nota: A Revista Militar felicita os autores e agradece o exemplar que foi oferecido para o seu acervo.
Vogal da Direção da Revista Militar. Presidente da Comissão Portuguesa de História Militar.