Nº 2632 - Maio de 2021
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Editorial
General
José Luiz Pinto Ramalho

Desde o pretérito dia 21 de maio, concretizada a alteração da sua estrutura de comando superior e a concentração de todo o poder hierárquico no Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), e com a visão de uma surpreendente multidão de inesperados especialistas em Defesa Nacional e em Organização da Instituição Militar, as Forças Armadas (FFAA) estão agora aptas a “responder com maior acuidade e eficácia, bem como a optimizar a sua operacionalidade face aos novos riscos de segurança, de um mundo pós Guerra Fria, globalizado e digitalizado, em que as novas tecnologias alteram os riscos e as formas de ataque à segurança dos Estados” (opinião de um especialista). Na Assembleia da República foi salientado que no “novo conceito de segurança nacional, as Forças Armadas têm um papel social decisivo e que hoje não fazem a guerra, fazem a paz”. A nível da tutela, a justificação para a atual visão do reforço do comando conjunto centralizado decorre, na conjuntura atual e que se evidencia, do que “são as guerras híbridas, a ciber-guerra e o uso das tecnologias disruptivas”.

Ficam assim relegadas para o passado e definitivamente arredados da cena internacional os conflitos entre Estados, o confronto convencional, os atentados à soberania, nos domínios marítimos, aéreos ou terrestres, as situações de facto consumado, a necessidade de uma capacidade militar operacional, quer para caracterizar uma agressão perante uma situação de conflito, bem como dispor da resistência adequada para fazer funcionar os mecanismos políticos e diplomáticos de contenção, seja dos aliados, dos amigos ou das organizações internacionais garantes do Direito Internacional.

Ficaram também por identificar as falhas de eficácia e eficiência no desempenho das Forças Nacionais Destacadas, nos vários Teatros de Operações em que têm sido empregues, não referidas pelas autoridades internacionais com quem têm atuado, mas certamente detetadas pelos novíssimos especialistas, promotores da atual reforma ou alteração como, ciclicamente, vai sendo mencionada. A tutela também não conseguiu esclarecer, até agora, o efeito negativo que os Ramos, Exército, Marinha e Força Aérea, produziram na ação de comando do CEMGFA, no quadro da lei que está em vigor.

Os portugueses têm assistido ao realçar do desempenho das FFAA no processo de vacinação, apresentado como se isso fosse o paradigma das suas missões futuras. É um facto que esse desempenho tem estado à altura da missão atribuída, no quadro do brio profissional, dedicação e competência que é apanágio da condição militar, mas importa reconhecer que esta missão foi atribuída às FFAA, porque as instituições do Estado que a deveriam fazer foram incapazes, a realidade que representa uma vulnerabilidade grave, o que pelos vistos, face à omissão do seu reconhecimento, não constitui qualquer preocupação e parece ser aceite como natural e sem significado ou responsabilidade, para quem quer que seja.

De referir, também, que se assistiu a uma argumentação, dita estratégica, de desvalorização da conflitualidade internacional. Contudo, a recente situação de pré conflito entre a Rússia e a Ucrânia, com dezenas de milhares de militares na fronteira, a tensão nos mares do Sul da China, a constante realidade desafiante de Taiwan, a convivência instável das duas Coreias, o diferendo na fronteira Indo-Chinesa, os conflitos no Afeganistão, no Sahel, no Golfo da Guiné, no Médio Oriente, na Síria, na Líbia, a postura estratégica no domínio militar da Rússia, da Turquia, do Irão e de Israel, a par da assertividade em termos internacionais da China, não serão certamente, construções fantasiosas da Comunicação Social.

Portugal já teve um Ministro da Defesa Nacional (MDN) que, para liquidar programas de reequipamento em curso afirmava que “confiava mais no soldado e no corpo a corpo do que num helicóptero ou numa viatura blindada” e assim desperdiçou-se, de forma leviana e irresponsável, uma verba da ordem dos cem milhões de euros, com a retirada do programa do helicóptero NH-90, e foi interrompido o programa das viaturas blindadas Pandur.

Recentemente, outro ex-MDN veio referir que a “defesa da Pátria era algo do passado, hoje o que contava era ser produtor de segurança internacional”. Fica a interrogação, se a missão constitucional da defesa militar da República passou a ser irrelevante? Este ex-governante fez ainda outra afirmação, com carácter surpreendente e apresentada como inovadora, ”de que a actualidade exigia militares profissionais e comando estratégico”. Então, aqui, cabe a pergunta: desde a Primeira Guerra Mundial (I GM), quando é que ambas as situações não existiram ou foram dispensáveis?

Embora tenha sido posta a ênfase nas virtualidades declaradas acerca das propostas sobre a estrutura superior de comando das FFAA, o discurso esteve sempre omisso sobre que tipo de conflitualidade, em termos de conjuntura internacional, pode causar preocupação aos portugueses e o que deve ser contemplado pelo Sistema de Forças Nacional e, também, relativamente ao momento em que se prevê colmatar as graves deficiências, quer em recursos humanos quer nos sistemas de armas distintivos do Exército, da Marinha e da Força Aérea, situação de falta de investimento e de execução de programas que se arrasta, desde 2009.

Estamos perante prioridades mal estabelecidas; é urgente a resolução da carência de recursos humanos, materiais e financeiros, que permitam a manutenção, operação e renovação dos atuais sistemas de armas, em particular do Exército. Manter umas FFAA enfraquecidas, em risco de obsolescência, demonstrando cada vez mais dificuldades no cumprimento das suas missões, incluindo as de soberania é prosseguir um investimento ruinoso de sobrevivência e de recuperação cada vez mais difícil.

Uma boa parte daqueles especialistas, claramente motivados pelos desenvolvimentos europeus na área da defesa, deixaram escapar o debate estratégico sobre as “forças armadas do futuro”, em países europeus tidos por referência, concretamente, o Reino Unido e a França, designadamente para cenários de um conflito maior, envolvendo todo o espectro das capacidades militares convencionais, a par das novas tecnologias disponíveis. Este novo cenário expressa-se no acrónimo HEM (Hipótese de um Empenhamento Operacional Maior), com o envolvimento das capacidades operacionais terrestres, navais e aéreas e com a preparação psicológica e criação da resiliência na sociedade, para poder ser confrontada com um nível de baixas, nunca visto desde a II GM. Os oponentes neste cenário não são nomeados, mas facilmente se identificam nas fronteiras da Aliança, no Norte de África e na região Índico-Pacífico, onde cinco potências nucleares procuram exercer a sua influência, em alguns casos demonstrando clara hostilidade.

Na elaboração desta verdadeira reforma existe o reconhecimento de que trinta anos de operações de paz e uma última década de combate ao terrorismo e de contra-insurreição, degradaram a capacidade de comando aos níveis operacional e tático e as efetivas capacidades operacionais para combater uma guerra de média ou alta intensidade e um conflito entre estados com potenciais de combate equiparáveis.

Essa postura implica rever a atual mecanização e blindagem das unidades de manobra, o apoio de fogos, de combate e logística de campanha, um recrutamento mais exigente e o investimento na inovação e modernização dos sistemas de armas, reservas de guerra e treino adequado a esse ambiente operacional, com a recuperação dos escalões táticos, a nível divisionário e brigada. Em termos políticos, em matéria de gastos com a Defesa, afirma-se o reconhecimento da proposta da Aliança no investimento de 2% do PNB na Defesa e de alocação de 20% dessa verba em modernização e redução das carências, designadamente, em “air-lift” e “air-refuling”.

A aposta vai também para as novas tecnologias de informação e atuação no ciberespaço, passando a Força Aérea a ser considerada “air and space” e a Marinha, a aumentar o número de navios de superfície e a sua capacidade oceânica. Contudo, é realçado o risco da excessiva confiança e dependência da tecnologia, reconhecida como um factor adicional da força, quer em termos de automatização quer em digitalização e geração de dados, mas que tem tendência a poder degradar-se, à medida que se processa o combate, podendo, inclusive, deixar de estar disponível e ser, uma vez mais, fulcral recorrer ao elemento humano e à sua capacidade de inovação e de lidar com a surpresa.

Para quem desvaloriza a conflitualidade internacional e considera que a defesa do país só se faz “garantindo a segurança internacional a milhares de quilómetros” e junto da sociedade, com uma memória histórica de guerra no território nacional que data do Séc. XIX, dos tempos das Invasões Francesas, as considerações dos parágrafos anteriores parecerão desajustadas e dispensáveis.

No entanto e até como nos mostra a História de Portugal, manda a prudência que não se criem vazios estratégicos, pois estes serão sempre ocupados por outros e não necessariamente em termos consentâneos com o interesse nacional, designadamente, se tal for no domínio da segurança e defesa e, também, que se reconheça que para um país com a dimensão estratégica do nosso, capacidades e competências nestes domínios, que se degradem ou eliminem, dificilmente serão reconstituídas ou recuperadas em tempo oportuno. Também no âmbito da política externa e da afirmação na cena internacional, se Portugal deixar de ter capacidade para ser co-autor e co-responsável pelas decisões e sua aplicação no contexto dos grandes acontecimentos da segurança internacional cooperativa, também passará a ser um país dispensável.

Nas últimas semanas, falou-se muito em visões do passado. Não tirar lições da experiência vivida é sinal de pouca sabedoria e demonstra tiques de arrogância e de leviandade. Não ter em conta a relevância das tradições históricas, como referia o Professor Borges de Macedo, designadamente, quando estas se tornam divergentes em relação ao ambiente externo ou conjuntural envolvente e ganham autonomia e se transformam em marcas identitárias, corre-se o risco de diluir o seu carácter distintivo e perder-se a matriz onde assenta a sua coerência. Será que continua válido o aviso do Padre António Vieira, dirigindo-se ao Rei e a propósito dos militares, referindo, “cuidai deles Senhor, pois alturas haverá que podeis precisar deles e não os tenhais”?

A recente Carta assinada por 28 CEMGFA e Chefes dos Estados-Maiores dos três ramos, todos na situação de reforma, constituiu para sociedade nacional, opinião pública e política, um efetivo sobressalto cívico, face ao espaço mediático que ocupou. No entanto, a missiva, apesar das numerosas referências feitas ao seu aparecimento e a quem a assinou, ainda não produziu da parte dos seus destinatários e comentadores qualquer argumento contra o seu conteúdo, nem respostas à pergunta nela contida, designadamente, “que Forças Armadas pretende o País?”.

No entanto, face às múltiplas intervenções de jornalistas, políticos, comentadores e cidadãos interessados, parecem criadas as condições para se debater, finalmente, “as Forças Armadas que deve ter o País, que políticas públicas de recrutamento, retenção e valorização da condição militar devem existir para garantir os recursos humanos necessários, qual o investimento financeiro que o País considera correto fazer e que missões devem desempenhar”. É um debate nacional, incontornável e urgente, que o Governo dificilmente poderá evitar, conduzido de forma abrangente, responsável e com sentido patriótico.


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* Presidente da Direção da Revista Militar.

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José Luiz Pinto Ramalho

Nasceu em Sintra, em 21 de Abril de 1947, e entrou na Academia Militar em 6 de Outubro de 1964. 

Em 17 de Dezembro de 2011, terminou o seu mandato de 3+2 anos como Chefe do Estado-Maior do Exército, passando à situação de Reserva.

Em 21 Abril de 2012 passou à situação de reforma.

Atualmente exerce as funções de Presidente da Direção da Revista Militar e de Presidente da Liga da Multissecular de Amizade Portugal-China.

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by CMG Armando Dias Correia