Nº 2645/2646 - Junho/Julho de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Editorial
General
José Luiz Pinto Ramalho

Depois da conquista de Lysychansk pelos russos, concretizou-se o controlo do Distrito de Luhansk, passando o objetivo operacional a ser o distrito de Donetsk. Nesta data, as forças separatistas pró-russas já controlam cerca de 60% do território do distrito, com excepção das cidades de Slovyansk, Kramatorsk e Bakhmut. A concretizar-se esta ocupação, os objetivos naturais para uma ação ofensiva consequente apontam para uma linha apoiada no Rio Deniepre, de norte para sul, controlando as cidades de Kremenchuc, Dnipro e Zaporizhzhia.

A guerra vai entrar numa nova fase, provavelmente mais violenta e mais agressiva do lado russo. As forças ucranianas que foram retirando de Luhansk têm vindo a concentrar-se na região de Donetsk, particularmente nas duas primeiras cidades referidas, onde foram reforçadas as defesas de posição; estima-se que os efetivos ucranianos presentes sejam de algumas dezenas de milhar.

As duas partes aceitaram fazer das cidades campos de batalha. Para os ucranianos favorece a defesa, para os russos restam três opções: aceitar o combate urbano, que representa a escolha mais difícil, mais baixas, menor capacidade de manobra e redução do apoio da artilharia, pela presença das forças russas nesse terreno; isolar e ultrapassar as cidades, mas os efetivos ucranianos presentes nas mesmas constituiriam uma ameaça à sua retaguarda; derradeira opção, cercar e transformar a área naquilo que várias vezes se tem mencionado como “caldeirão”, onde os fogos de artilharia procuram reduzir a resistência. Como se pode calcular, nesta opção, a destruição provocada nas cidades é devastadora, com as consequentes baixas civis.

Perante este cenário não é de estranhar que Putin tenha vindo referir que se iria assistir a uma nova ação das Forças Russas, em que a sua capacidade operacional seria distinta. Teremos de aguardar algum tempo para avaliar as condições em que a ofensiva russa se irá configurar e qual será a resposta do lado ucraniano; estamos a traçar cenários para um combate em cidades que distam entre 50 e 70 Km de Lysychansk e, mais ou menos, a mesma distância para os limites do Distrito de Donetsk e linha definida junto ao Rio Deniepre.

O resultado desta fase da guerra determinará em que condições poderá decorrer um cessar fogo e o eventual Processo Negocial. Se a Ucrânia conseguir parar a ofensiva, pode ir para a mesa das negociações com algum poder negocial; se a Rússia tiver êxito, podem estar em risco a cidade de Kharkiv e o porto de Mykolaiev, restando sempre a dúvida do que poderá acontecer relativamente a Odessa (incluindo o seu eventual isolamento, por força de uma ligação terrestre, com forças russas à Transnítria). Faz sentido, assim, que a Rússia, até ao outono (setembro/outubro) queira atingir os seus objetivos, provocar um cessar fogo, congelar o conflito e dar início a negociações numa posição de clara vantagem negocial.

Tem-se referido que a Rússia está a efetuar uma pausa operacional para descanso e reorganização de forças, mas a realidade no teatro de operações é a de que têm continuado os bombardeamentos, com aviões e mísseis em todo o país, designadamente sobre as cidades que são apontadas como objetivos prováveis desta nova fase da guerra, incluindo Kiev e Odessa.

O dilema político-militar de “Via Diplomática/Vitória Militar” continua a estar presente na avaliação dos diversos líderes políticos europeus, incluindo nos EUA, a quem tem cabido a liderança do processo, designadamente desde o início das reuniões de Ramstein.

Aliás, OTAN, UE e os líderes europeus têm aceitado uma liderança dos EUA, por vezes contraditória, em que Joe Biden diz que “a guerra tem de acabar com uma negociação diplomática e a realidade no terreno ditará os termos dessa negociação”, e o seu Secretário da Defesa anuncia, na primeira reunião de Ramstein, que “a intenção do prolongamento da guerra é o enfraquecimento da Rússia”.

Os europeus, sobre esta matéria, estão divididos; alguns líderes, com posições contraditórias estão de saída – Boris Johnson e Mario Draghi –, Emmanuel Macron tem problemas internos e, quer a OTAN quer a UE parecem ignorar que internamente nas duas Organizações os pontos de vista dos vários países membros sobre esta matéria não são necessariamente consensuais e, à medida que as dificuldades económicas crescem, designadamente em relação aos custos da energia e da inflação, as divergências vão tornar-se mais significativas. Os europeus estão a confundir entre a “finalidade da guerra para garantir a liberdade e a soberania da Ucrânia, e o que fazer e como queremos que seja a Rússia no futuro”, perdendo objetividade relativamente a possíveis soluções.

O prolongamento da guerra agudiza o risco de escalada. A Rússia pode, por um lado, ser tentada em determinado momento, por razões internas ou por carência de capacidades, a agudizar a violência operacional para tornar o conflito insustentável para a Ucrânia; por outro, em função de um apoio maciço do ocidente, a situação operacional no terreno torna-se desfavorável – é necessário ter presente que a Rússia, fruto das circunstâncias que se tornaram uma realidade estratégica, joga no teatro de operações da Ucrânia a sua reputação internacional como Grande Potência e a reputação das suas Forças Armadas: não pode aceitar, por isso, uma derrota.

Perante um cenário desta natureza, a sua doutrina militar (sobrevivência do Estado) prevê a utilização de armas nucleares, primeiro, ao nível tático e, se isso acontecer, há uma alteração radical do caráter político e militar da guerra, e fica a interrogação sobre que resposta o ocidente considere dever dar e poderemos caminhar para um quadro de confronto catastrófico (spill over ).

Assim, ou a Ucrânia consegue parar a atual ofensiva russa no Donetsk e mantém as cidades de Kramatorsk e Sloviansk e cria condições para, nesse contexto, chegar às negociações com alguns argumentos, ou a ofensiva russa, pelo contrário, tem êxito, com a conquista das cidades referidas e, nesse caso, a Rússia forçará as ações ofensivas em Kharkiv e Mikolaiv, procurando atingir o rio Deniepre (Dnipro e Zaporizhia), podendo isolar/atacar Odessa, através de uma ligação à Transnítria, cortando todo o acesso ao Mar Negro. Esta é uma situação inaceitável para a Ucrânia, que pode levar, de imediato, ao cessar fogo e às negociações, com nítida vantagem para a Rússia.

Relativamente às regiões ocupadas pela Rússia, dificilmente as abandonará, pois estamos a assistir a um processo de “russificação”, com a atribuição da nacionalidade (passaportes), circulação do Rublo, criação de infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, ligando toda a faixa ocupada a norte do Mar Negro, redes de TLM, envio de professores para ensinar a língua e a cultura, preparando, também, referendos que “justifiquem” uma anexação.

Este cenário tem um quadro temporal limitado. As operações militares tornam-se mais difíceis a partir de meados de outubro e só melhoram a partir do início da primavera. Nesta situação, poderemos estar perante um cenário que poderá não desagradar aos EUA e a vários líderes europeus. Entra-se num processo negocial, lento e difícil (com cedências territoriais, formais ou de facto), o ocidente pode não reconhecer os ganhos territoriais e mantém as sanções (enfraquecimento da Rússia) e, entretanto, inicia-se o processo de reconstrução da Ucrânia (investimentos) e o seu rearmamento, (mais investimentos), assistido-se à concretização de mais um congelamento de um conflito e adiando a sua solução.

 

Rota da seda

 

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General

José Luiz Pinto Ramalho

Nasceu em Sintra, em 21 de Abril de 1947, e entrou na Academia Militar em 6 de Outubro de 1964. 

Em 17 de Dezembro de 2011, terminou o seu mandato de 3+2 anos como Chefe do Estado-Maior do Exército, passando à situação de Reserva.

Em 21 Abril de 2012 passou à situação de reforma.

Atualmente exerce as funções de Presidente da Direção da Revista Militar e de Presidente da Liga da Multissecular de Amizade Portugal-China.

REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia