Nº 2459 - Dezembro de 2006
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
EDITORIAL - Revolução nos Assuntos Militares e Revolução Militar
General
Gabriel Augusto do Espírito Santo
Desde que aconteceu o denominado «primeiro conflito no Golfo», em 1991, até hoje, longos e profundos debates têm decorrido na comunidade militar do denominado mundo ocidental, e da sua cultura guerreira, sobre a melhor forma de combater em futuros conflitos armados e desempenhar funções essenciais que sempre foram constantes no combate, como sejam o detectar, neutralizar ou destruir o adversário, manter o potencial de combate próprio, protegendo e sustentando as nossas forças, comandar e controlar as operações, no tempo, no espaço e no ritmo, sobrepondo-se ao opositor. Não pondo em causa Princípios da Guerra, como a surpresa, a iniciativa, o objectivo, a economia de meios, a massa e a manobra, procura-se discutir a melhor forma de a fazer. A literatura especializada sobre este assunto proliferou e alguns começaram a falar numa Revolução nos Assuntos Militares, tentando comparar as transfor­mações em curso, e devidas essencialmente a inovações tecnológicas, com outros períodos da História quando outras inovações tecnológicas fizeram o seu aparecimento (arma de fogo, mobilidade, comunicação à distância, armas nucleares e outras).
 
Progressivamente foi-se instalando a ideia de que uma superioridade tecnológica seria decisiva em futuros conflitos, que os tornaria mais curtos no tempo, menos intensos e com menores baixas. As estratégias militares procuraram adaptações a estes novos tempos, com as habituais discussões paroquiais entre Ramos das Forças Armadas sobre aquele que melhor aproveitaria as novas tecnologias e o qual, por isso, seria mais decisivo. Mas a ideia prevalecente foi constituir forças mais tecnológicas, mais aligeiradas e por isso com menores efectivos e mais projectáveis à distância. Começou a desenhar-se o combatente do futuro, que teve de continuar a ser humano pois ainda não havia alternativa, mas em cima dele tentou-se colocar tudo que se descobriu para ouvir e ver melhor, comunicar melhor, proteger melhor e matar melhor. Teve de deixar de movimentar-se e combater a pé pois a carga tornou-se demasiada para um homem só. Quanto à estratégia estrutural das forças quase todos se puseram de acordo em que as Forças de Reacção, subdivididas entre o imediato e o rápido, seriam solução económica e por isso inteligente.
 
Passados quinze anos começa a constatar-se que o velho princípio de pôr todos os ovos no mesmo cesto também se aplica às esperanças depositadas nas novas tecnologias para a força militar. No Afeganistão, no Iraque e no Líbano é evidente que forças militares com superioridade tecnológica ajudam, mas não é o factor suficiente para resolver conflitos. Frases que se tornaram hábito quando se fala de força militar, tais como «choque e espanto» ou «conquistar mentes e corações» devem ser complementadas por outra: «ter militares dispostos e preparados para combater».
 
A Revolução nos Assuntos Militares não terminou, não deve terminar e o pensamento militar deve manter-se atento a todas as evoluções tecnológicas, muitas das quais, e as mais recentes, tiveram o seu impulso inicial naquele pensamento. Deve acolher, como inovadoras, tecnologias que permitam neutralizar sem tirar a vida, ajudar a tratar e recuperar baixas, obter imagens em tempo real do que está a acontecer à distância ou de seguir as acções e decisões que se desenvolvem na hierarquia do comando, sem interferir com a iniciativa de cada escalão. A doutrina e o treino, assim como o conceito da operação, devem continuar a constituir o princípio da unidade de comando. Comando ou direcção centralizados são testemunhos de regimes autocráticos que a história vai apagando, ainda que lentamente.
 
A par desta Revolução nos Assuntos Militares uma outra, mais profunda e de consequências previsivelmente desastrosas, está a decorrer na sociedade/cultura a que pertencemos, e a que o pensamento militar deve estar atento: a Revolução Militar.
 
Não é uma Revolução armada, mas é uma revolução de paradigmas, conceitos e princípios que pode conduzir a modificações culturais, de valores e de conduta no estilo da civilização que adoptámos e que a vai deixar vulnerável.
 
Não é por acaso que pretendemos ligar esta Revolução às modificações atribuídas à Revolução nos Assuntos Militares. As duas estão interligadas e influenciam-se.
 
Os efeitos imediatos da queda do regime na União Soviética e os efeitos retardados das descolonizações deram origem a novos tipos de conflitos espalhados pelo globo, que alertaram a comunidade internacional, e o seu órgão mais representativo que é a Organização das Nações Unidas, para a instabilidade que provocavam para a segurança. Nascem conceitos para o emprego da força militar neste novo espectro do conflito, agora dividido em fases de prevenção, resolução e consolidação ou reconstrução. Os Estados e as suas administrações pensaram que a paz poderia conseguir-se com missões de apoio à paz, categorizadas burocraticamente em operações que não de guerra, e arrumadas em prateleiras diferenciadas de conservar a paz, forçar a paz ou de reconstruir a paz, onde entraram operações de auxílio humanitário. O pensamento militar, apressadamente e julgando que num mundo sem conflitos ficaria sem utilidade, acolhe com entusiasmo as novas ideias. Ainda que no desconforto de paragens desconhecidas, ajudar crianças a ir para a escola sempre era mais cómodo do que combater. Deste encontro de interesses, começam a nascer novos conceitos para as relações do Estado com as Forças Armadas e o seu papel no Estado, das relações das Administrações para a Condição Militar, das missões das Forças Armadas, da intromissão contínua da Administração na condução de operações militares, esquecendo o conselho militar oportuno.
 
Estas Revolução Militar que está em curso, cujos aspectos mais evidentes se traduzem em frases e práticas como sejam o controlo civil dos militares (alguém o põe em dúvida nas democracias?), a desmilitarização do Estado, a desterritorialidade da força militar, o diálogo e cooperação como forma primordial para resolução de conflitos, a cultura da prevenção do conflito, a inserção da condição militar no funcionalismo do Estado, o reconhecimento político de associações de militares ainda sujeitos à hierarquia de comando como parceiros de diálogo em questões de comando, conduziu à confusão sobre o papel da Instituição Militar no Estado, ao relacionamento Estado-cidadão/militar regulado por menu que é servido à la carte conforme os interesses de momento, e às missões e funções das Forças Armadas que foram, são e serão combater se necessário, já que essa é a sua obrigação expressa em Juramento.
 
Está em curso, de facto, uma Revolução Militar. Os efeitos negativos traduzem-se em insucessos na resolução de conflitos em que foram empenhadas forças militares. Porque directivas políticas não permitem adoptar o dispo­sitivo mais adequado no terreno, atacar objectivos com interesse militar ou adoptar Regras de Empenhamento adequadas. Porque se esquece um velho princípio, que vem dos romanos, e que diz que «para conquistar mentes e corações é preciso, primeiro, agarrar bem pelas partes baixas quem não acredita».
 
Não é só o pensamento militar que está preocupado com a situação criada que conduziu à falta de efectivos, à desmobilização de vontades, à falta da capacidade de combater. A OTAN e a União Europeia vão fazendo declarações de intenção. Os Estados membros vão dizendo que sim e fazendo o contrário. Alguns gritos isolados reclamam o retorno ao serviço militar obrigatório ou, calcule-se, entregar a juventude delinquente à tutela dos militares!
 
Acreditamos numa Revolução Militar nos seus aspectos positivos. Naqueles que vejam nas Forças Armadas uma Instituição fundamental do Estado, com os seus componentes dispostos a combater pelos interesses nacionais e não meros números a pesar na administração central. Naqueles que se traduzam numa maior competência e motivação dos militares, baseadas num ensino militar moderno eficaz, como desde à anos se pratica em Portugal. Naqueles que se traduzam na clarificação das relações Estado-cidadão/militar, deixando à Administração o que lhe compete e ao Comando aquilo que é obrigado pelo seu estatuto de Comandante. Naqueles que se traduzam em regulamentos de Serviço Interno e de Disciplina adaptados a uma condição militar de profissionais. Naqueles que estabeleçam um Estatuto para os Militares, com direitos, obrigações e carreiras bem definidas e que possam ser planeadas e adaptadas a uma sociedade em que vai prevalecer a mobilidade ocupacional. Naqueles que desenvolvam processos criativos e inovadores de dignificação da con­dição militar, trazendo para as fileiras homens e mulheres conscientes de que a sua primeira função é combater pela segurança e defesa da sua sociedade, mas que isso se materializa num contrato especial e diferenciado com a Nação. Naqueles que continuem a garantir a presença e o contacto dos militares com as populações da Nação, integrando níveis sociais e culturais diferenciados e trazendo para a Família Militar uma juventude que acredita e ama Portugal, e não só aqueles que não encontram ocupação noutro lado.
 
Essa será a verdadeira Revolução Militar na sociedade portuguesa, com identidade própria e objectivos próprios. A par de uma Revolução nos Assuntos Militares que permita às Forças Armadas Portuguesas terem material e equipamento capazes de combaterem conflitos simétricos ou assimétricos na idade da Informação, Portugal tem de pensar para que quer e o quer da Instituição Militar. Mantenhamos algo de soberania e deixemos de copiar porque é moda.
 
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*      Sócio Efectivo da Revista Militar. Presidente da Direcção.
 
 
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General

Gabriel Augusto do Espírito Santo

Nasceu em Bragança em 8 de Outubro de 1935.

É General do Exército, na situação de Reforma desde o ano 2000, depois de ter servido nas Forças Armadas Portuguesas durante 49 anos.

Além de Tirocínios e Estágios na sua Arma de origem possui os Cursos da Escola do Exército (Artilharia), Curso Complementar de Estado-Maior e Curso Superior de Comando e Direcção (Instituto de Altos Estudos Militares), Curso de Comando e Estado-Maior (Brasil) e o Curso do Colégio de Defesa Nato (Roma).

Falecido em 17 de outubro de 2014.

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by CMG Armando Dias Correia