Nº 2645/2646 - Junho/Julho de 2022
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
NATO 2022: Um Conceito Estratégico marcado pela Guerra na Ucrânia
Major-general
João Jorge Botelho Vieira Borges

 

“A força sem razão é destruidora [Rússia];

a razão sem força é impotência

[União Europeia]”1

1. Da perceção à realidade

No passado dia 29 de junho de 2022, foi aprovado na Cimeira da NATO em Madrid, um novo Conceito Estratégico2, “num tempo critico para a segurança, a paz e a estabilidade internacional”.

Foi com estas palavras que os chefes de Estado e de Governo dos membros da NATO assinaram o compromisso com um novo Conceito Estratégico (CE – o último tinha sido aprovado em 2010, na Cimeira de Lisboa), que visa delinear as grandes linhas de ação para o futuro da Organização político-militar que há mais de 73 anos “vem assegurando a liberdade e segurança dos aliados”.

Assumida como uma vitória política e estratégica da organização e das democracias em geral face à Rússia, em plena Guerra na Ucrânia, a aprovação do CE foi precedida pelo compromisso da Turquia de que não iria vetar a proposta de convite da NATO à Suécia e à Finlândia3.

Publicámos recentemente um artigo4 sobre os sete Conceitos Estratégicos da NATO, desde a sua criação em 1949 e recordamos o seu primeiro CE, denominado Strategic Concept for the Defense of the North Atlantic Area, aprovado num ambiente internacional em que a URSS era assumida como o inimigo real. Eis as grandes linhas de ação estratégica do CE de 1949:

– Conter o poder militar soviético (a estratégia militar de contenção);

– Manter uma economia de mercado estável e viável;

– Assegurar os valores do estado de direito, da democracia, dos direitos humanos, da economia de mercado e da liberdade, através da construção de um sistema de defesa coletiva eficiente (que ameace com a retaliação e “com todos os meios disponíveis”, no caso de agressão efetiva do inimigo a qualquer dos membros);

– Promover a paz, a segurança e o desenvolvimento na área do Atlântico Norte.

O paradigma da defesa coletiva assentava, já então, na Estratégia da Dissuasão, plasmada no artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte. Apesar das “coincidências”, não acreditamos na repetição da História (mas sim nas lições da História). Seguiram-se os CE de 1952, 1957, 1968, 1991, 1999 e o mais recente de 2010, de Lisboa. Participámos diretamente neste CE de Lisboa, o primeiro depois dos ataques terroristas de 2001, nomeadamente no âmbito das reuniões de reflexão na escola da NATO, em Roma, coordenadas pelo Allied Command Transformation (ACT – Comando Aliado da Transformação). Sem ameaça direta à NATO e aos seus membros, este CE sublinhava, então, a importância crescente da articulação entre meios civis e militares e a relação próxima entre os investimentos e a tecnologia (smart defence). As principais ameaças e riscos, eram então a proliferação de armas de destruição massiva, o terrorismo transnacional, os ciberataques, a pirataria, as alterações climáticas e as pandemias. Destacava, já então, a política da “Porta Aberta” e o investimento nas parcerias (ONU e UE, e ainda para as relações com Rússia). A cooperação OTAN-Rússia era entendida como estratégica para a criação de um espaço de segurança comum, trabalhada na expectativa da consequente reciprocidade por parte da Rússia. A leitura cuidada que fizemos dos sete conceitos estratégicos da OTAN, desde 1949 a 2010, confirmou, então, as características que a definem como uma Aliança político-militar, tendo como objetivo fundamental a defesa coletiva de um conjunto de nações, que cultivam um mesmo sistema de valores e um mesmo way of life, plasmados no Tratado do Atlântico Norte.

Entretanto, e depois dos avisos da Síria (2011) e da Crimeia (2014), assistimos, sem qualquer surpresa para os estrategistas, à invasão da Ucrânia por parte da Rússia, a 24 de fevereiro. Em linha com as cimeiras anteriores, que já tinham reposicionado a Rússia como uma ameaça à Paz e à estabilidade internacional, a de Madrid, em plena Guerra na Ucrânia, veio definir as grandes linhas de ação da organização para um novo Mundo na perspetiva dos Estados euro-atlânticos. Vejamos então uma análise mais estrutural do novo CE da NATO, sem nos deixarmos envolver pelo conjuntural da Guerra, seja na dimensão militar, política, diplomática, económica ou mesmo mediática.

 

2. O documento curto, claro e com «farda de combate»

Analisemos então o CE da NATO aprovado em Madrid, numa perspetiva estratégica, mais diretamente relacionada com a trilogia Ameaças-Objetivos-Meios. Houve uma alteração profunda das ameaças e, nesse sentido, para a NATO atingir os seus objetivos perenes, constantes no Tratado de Washington de 4 de abril de 1949, precisa de reforçar os seus Meios, ou seja, as suas capacidades. Tão simples como isso!

Para os Estados (sejam os EUA ou a Rússia), é mais fácil identificar os valores, os interesses e uma Estratégia de Segurança Nacional conducente a fortalecer potencialidades e a reduzir vulnerabilidades, tendo em consideração o ambiente interno e externo, por mais complexos que sejam. No caso de uma Organização Internacional como a NATO, constituída hoje por trinta Estados oriundos de diferentes continentes e regiões, que partilham valores e princípios como a Liberdade, a Democracia, o Estado de Direito e os Direitos Humanos, mas com interesses bem distintos (como se tem visto entre a Turquia e a Suécia e Finlândia), é mais difícil encontrar a necessária unanimidade para o levantamento de uma Estratégia credível e exequível e de cariz mais global do que regional. No entanto, torna-se mais fácil e célere, quando há uma ameaça comum. É o caso da Rússia, desde 24 de fevereiro de 2022!

Este CE, marcado pela Guerra na Ucrânia, é curto e conciso (tem cerca de 11 páginas), mas profundamente político e prospetivo. Organizado em 5 capítulos corridos em 49 pontos, faz uma avaliação dos desafios de segurança e aponta caminhos para os enfrentar no futuro. Vejamos então a organização do documento: 1. Prefácio; 2. Propósito e Princípios; 3. Ambiente Estratégico; 4. Principais Tarefas (Dissuasão e Defesa; Prevenção e Gestão de Crises; Segurança Cooperativa); 5. Garantindo o Sucesso Contínuo da Aliança.

O «Prefácio» caracteriza o ambiente da Cimeira, e assinala os pontos essenciais do documento, com destaque para a missão histórica da organização, para os valores e princípios da NATO, para a situação que se vive na sequência da agressão da Rússia à Ucrânia, para a defesa coletiva baseada numa visão de 360º, e para as três tarefas principais que são enfatizadas nos capítulos seguintes. Termina com a clarificação da visão: “nós pretendemos viver num Mundo em que a soberania, a integridade territorial, os direitos humanos e a lei internacional são respeitadas e onde cada País pode escolher o seu próprio caminho, livre de agressões, de coação e de subversão”.

O «Propósito e Princípios», constitui o enquadramento histórico da organização, sustentado pelos valores e muito especialmente pela salvaguarda da liberdade e da segurança dos aliados. Os valores comuns são identificados com a liberdade individual, os direitos humanos, a democracia e o Estado de Direito. Os princípios são associados aos dispostos na Carta das Nações Unidas (1945) e do Tratado do Atlântico Norte (1949). Destaca, no final, que continuará “a promover a boa governance, a integrar as mudanças climáticas, a segurança humana e a agenda Mulheres, Paz e Segurança”.

O «Ambiente Estratégico», é caracterizado em 14 pontos, começando por referir que “a área Euro-Atlântica não está em paz”, na sequência da violação das normas e princípios por parte da Rússia. Destaca, ainda, que as ameaças são globais e interligadas. Neste capítulo separa as Democracias dos Atores Autoritários, que desafiam os interesses, os valores e a democrática way of life. Refere ainda, os Competidores Estratégicos, que testam a resiliência, e procuram explorar a abertura, a interconexão e a digitalização das nações aliadas. Ambos interferem nos processos democráticos e nas instituições, colocando em causa a segurança dos cidadãos. Sublinha também que a Rússia é a mais significativa ameaça à segurança dos aliados, à paz e à estabilidade da área Euro-Atlântica. Apesar das sucessivas violações por parte da Rússia, destaca que a NATO não deixará de abrir canais de comunicação com Moscovo para gerir ou mitigar riscos, e para prevenir a escalada e aumentar a transparência. Destaca depois o terrorismo como ameaça mais assimétrica, em todas as suas formas e manifestações. O Médio-Oriente, o Norte de África e o Sahel fazem parte das preocupações da NATO, pela forma como afetam diretamente a segurança dos parceiros, em áreas interligadas como a segurança, a demografia, a economia e as alterações políticas. Pela primeira vez é feita uma referência à China, enquanto desafio aos interesses, segurança e valores, em função das suas ambições e políticas coercivas manifestadas através de instrumentos políticos, económicos e militares. Outra preocupação tem relação com a parceria entre a China e a Rússia, que vai contra as regras base do direito internacional e os valores e interesses da organização. Num segundo ponto, destaca abertura da NATO para um empenhamento construtivo com a China, num quadro de transparência recíproca. Sublinha depois questões preocupantes como o ciberespaço, o investimento de competidores estratégicos no espaço, a emergência de tecnologias disruptivas, a erosão do controlo de armamentos, do desarmamento e da não proliferação (destacando os casos de infratores como a Rússia, o Irão, a Coreia do Norte, a China e a Síria). Termina com uma referência importante às alterações climáticas, consideradas como um desafio do nosso tempo, com profundo impacto na segurança dos aliados. É ainda considerada como uma crise e uma ameaça multiplicadora, que pode exacerbar os conflitos, a fragilidade e a competição geopolítica.

As «Principais Tarefas da NATO», são divididas em três partes, respetivamente: a dissuasão e defesa; a prevenção e gestão de crises; e a segurança cooperativa. Na prática, o CE identifica conceitos de ação estratégica (muito genéricos), no sentido de garantir a defesa coletiva da organização. Entre estes destacam-se:

– é importante fazer face a ameaças em todos os domínios e direções, numa postura 360º;

– a postura da defesa e dissuasão é baseada num misto apropriado de nuclear, convencional e capacidades de defesa míssil, complementadas pelas capacidades ciber e espaço;

– deve ser melhorada a prontidão, a capacidade de resposta, a capacidade de implantação, a integração e a interoperabilidade das forças NATO;

– a segurança marítima é a chave da paz e da prosperidade;

– é importante agilizar a transformação digital;

– a segurança do uso e acesso ao espaço e ciberespaço é chave da dissuasão e da defesa;

– deve ser aumentada a resiliência sobre ameaças e desafios militares e não militares;

– deve ser aumentada a capacidade de defesa contra o uso coercivo da política, economia, energia, informação e outras táticas híbridas utilizadas por Estados e outros atores;

– a capacidade nuclear da NATO visa preservar a paz, prevenir a coação e deter a agressão, estando previsto o seu emprego em situações extremamente remotas;

– é importante continuar a investir na defesa NBQR;

– a estabilidade estratégica passa pelo controlo de armamento, pelo desarmamento e pela não proliferação;

– a luta contra o terrorismo é essencial para a defesa coletiva;

– a NATO deve continuar a prevenir e responder a crises;

– no âmbito da segurança humana, é importante cooperar com organizações como a ONU, a UE, a OSCE e a União Africana;

– a política de “Portas Abertas” é um sucesso, e vai continuar, pois as decisões são tomadas pelos Estados (casos da Bósnia e Herzegovina, da Geórgia e da Ucrânia) e as terceiras partes não podem interferir nos processos;

– deve haver investimento no diálogo político e na cooperação com parceiros;

– a UE é um parceiro único e essencial da NATO, podendo ambas reforçar, em conjunto, o seu papel no apoio internacional à paz e à segurança;

– a NATO deve fortalecer os seus laços com os parceiros que partilhem os valores e interesses baseados na ordem internacional;

– os Balcãs ocidentais e o Mar Negro são regiões com interesse estratégico para a Aliança, tal como o Médio-Oriente, o Norte de África, o Sahel, e o Indo-Pacífico (importante, tendo em atenção que os acontecimentos na região podem afetar diretamente a segurança do Euro-Atlântico);

– a NATO deve tornar-se numa organização internacional líder na resolução do impacto securitário das mudanças climáticas.

Finalmente, «Garantindo o Sucesso da Organização», funciona como umas conclusões ou considerações finais, articuladas em apenas três pontos:

– que investir na NATO, com unidade e solidariedade, é a melhor maneira dos aliados contribuírem para a paz e a estabilidade;

– que os aliados devem partilhar equitativamente responsabilidades e riscos para a defesa e segurança de todos;

– e que a NATO é indispensável para a segurança Euro-Atlântica.

Na prática, este capítulo constitui uma mensagem relacionada com a necessária coesão da organização, no sentido de continuar a garantir “a paz, a liberdade e a prosperidade”.

Depois desta leitura do documento, segue-se uma análise crítica, ainda a quente e assumidamente condicionada pelo desconhecimento das questões que terão levado a maior debate no interior da própria organização, para além da conhecida posição da Turquia relativamente à candidatura da Suécia e da Finlândia na NATO.

 

3. Análise: A Este tudo de Novo...

Sendo uma organização político-militar, e em face da postura da Rússia na Ucrânia, a vertente política do CE foi clara e unânime no sentido de identificar a Rússia como principal ameaça da NATO, aos seus membros (em especial aos do flanco Leste, que fizeram parte da URSS) e aos seus valores. Por outro lado, ficou claro que a “coesão” continua a ser o centro de gravidade político da organização.

Na linha da coesão, a vertente político-diplomática trabalhou, e bem, no sentido de ir ao encontro dos interesses da Suécia e da Finlândia em se juntarem à família NATO (após importante e oportuno “acordo de entendimento” dos dois países com a Turquia), países tradicionalmente neutrais, mas, entretanto, ameaçados pelo imperialismo russo. Com a sua entrada na NATO (após aprovação dos parlamentos nacionais), 97% da população europeia passará a estar protegida pelo escudo da NATO (faltando a Áustria, Irlanda, Chipre e Malta). Ainda, na vertente político-estratégica e até económica, foi importante a coordenação dos conceitos de ação estratégicos com a União Europeia, que tem liderado as sucessivas sanções económicas impostas à Rússia. A UE é descrita como um parceiro único e essencial da NATO, pois partilha os mesmos valores e complementa e reforça o apoio internacional à paz e segurança.

Na vertente militar, a NATO vem trabalhando e continuará a trabalhar, em termos de defesa coletiva, no sentido de dissuadir a Rússia, fortalecendo o flanco Leste, no âmbito da mais grave crise de segurança desde a II GM, mas também o flanco Sul. Neste âmbito, o aumento em oito vezes da disponibilização de forças para 300.000 militares (100.000 com prontidão até 10 dias e 200.000 entre 10 e 30 dias), com reforço da presença dos EUA na Europa, é o topo do iceberg das ações em curso.

Vejamos então, segundo outra matriz de análise mais simplista, o que é novo neste CE, e o que se mantém do antecedente, designadamente tendo por referência o CE de 2010, de Lisboa.

– As novidades:

• O assumido confronto global entre democracias e atores autoritários (questão a desenvolver pelos estudiosos de ciência política) em todas as áreas estratégicas; e, nessa linha, a importante presença, na cimeira, de países democráticos como o Japão, a Austrália, a Coreia do Sul e a Nova Zelândia;

• O alargamento da NATO à Suécia e à Finlândia, aumentando a fronteira da NATO com a Rússia em mais de 1340 km e reforçando o peso do Báltico e do Ártico;

• A Rússia, como a mais direta e significativa ameaça à segurança e à Paz (de parceiro estratégico no CE de 2010, passou a ameaça e perturbador nos flancos Leste e Sul e da liberdade de navegação dos Atlântico Norte, Ártico, mares Báltico, Negro e Mediterrâneo);

• A China, como desafio aos interesses, segurança e valores da NATO e implicitamente como competidor estratégico, em função da sua postura na Guerra na Ucrânia, mas, sobretudo, em função do empenhamento como ator global (instrumentos militares, políticos e económicos – tentando subverter a ordem internacional)5;

• A atenção ao flanco Sul e a visão 360º da NATO. É assumida a instabilidade permanente no flanco Sul (em especial no Médio-Oriente, Norte de África e Sahel), tendo em atenção o potencial demográfico do continente africano (a Nigéria terá o dobro da população em 2030!) e a segurança humana;

• As mudanças climáticas, como risco, mas também como desafio do nosso tempo, multiplicador de crises e ameaças, com consequências para a segurança dos aliados;

• Em termos militares, o deslocamento do centro de gravidade das forças da NATO, da Alemanha para a Polónia, mas também o investimento nas capacidades, na inovação e o desenvolvimento tecnológico (inclusivamente nos dois novos domínios: ciber e espaço). Ainda a prontidão para reagir em tempo útil, ao longo do flanco Leste, o que em tudo se aproxima aos tempos da Guerra-Fria.

– O que se mantém:

• Uma Aliança assumidamente defensiva, líder na gestão das implicações securitárias dos desafios globais numa visão de 360o;

• Os valores comuns defendidos pelos seus membros (liberdade individual, direitos humanos, democracia e estado de direito);

• A parceria estratégica com a UE em diferentes áreas (reconhecendo a necessidade de uma Europa mais forte para a segurança global em complemento da NATO);

• A reafirmação da política de “Porta Aberta” extensível às democracias europeias que partilhem os valores e sem interferência de terceiros;

• As três funções essenciais da NATO (dissuasão e defesa, prevenção e gestão de crises e segurança cooperativa), todas contribuindo para “a defesa coletiva e a segurança dos aliados” (afinal, a responsabilidade primária da NATO);

• As ameaças e riscos, desde os grupos terroristas (destaque dado a esta “ameaça assimétrica mais direta”) à proliferação de armas de destruição massiva, passando pelos ciberataques, pirataria e pandemias.

• E o vetor “Mulheres Paz e Segurança”, diretamente associado aos valores e princípios da organização.

4. Considerações finais: E depois do CE?

Os CE são documentos orientadores da condução política, estratégica e militar, no entanto, a alteração de alguns pressupostos, poderá levar a reajustamentos adequados a novas situações ou mesmo a novos cenários geopolíticos e geoestratégicos.

Num determinado momento, marcam uma leitura Euro-atlântica do «Mundo Novo em Mudança»6, neste caso, dominado pela trindade EUA-Rússia-China (que designámos como «Donos do Mundo»), mas com outros atores influenciadores como a UE, os BRICS, o G7 e a própria NATO. De acordo com James Der Derian (Universidade de Sidney), será um Mundo Heteropolar, pois os atores têm naturezas distintas, agem em diferentes níveis de análise e têm capacidades e formas de ação igualmente diversas. Daqui a algum tempo, meses ou anos, mesmo os académicos deixarão de ler e citar o CE, porque estará certamente desatualizado ou desajustado. Mas isso faz e fará sempre parte da lei da vida dos CE, sejam eles dos Estados ou das Organizações Internacionais. Caberá aos decisores e estrategos encontrar os melhores caminhos, esperemos que em linha com a paz, a justiça, o desenvolvimento e o respeito pelo direito internacional.

Para terminar, deixamos algumas mensagens, preocupações e sugestões, que podem alterar o sentido da História (com mais paz e justiça), mas em tudo dependentes da evolução da Guerra na Ucrânia, senão vejamos:

– o centro de gravidade da NATO é e continuará a ser a coesão entre os aliados (e a Rússia e Putin sabem bem disso e trabalham diariamente para a divisão da NATO, da UE e do G7);

– o principal dilema dos próximos meses e anos será entre «manter a defesa coletiva na linha da frente leste» (com o consequente reforço de capacidades e investimento em S&D, tecnologia e inovação) e «manter a coesão das democracias» (testadas ciclicamente pelos barómetros, influenciadores de crises económicas e de valores, e que marcam os ciclos eleitorais);

– a preocupação da NATO deverá estar na evolução do posicionamento da China (eleições em Taiwan, em 2024), dos BRICS e do próprio sistema político interno dos EUA (eleições presidenciais em 2024);

– a ação prioritária da NATO, nos próximos meses e anos, passa também pelo reforço das capacidades militares dos diferentes membros (tal como a Alemanha e a Polónia7 já fizeram, e como Portugal deverá fazer, independentemente da sua situação económica), caso contrário, deixará de ser dissuasora relativamente à Rússia e a outros atores com narrativas revisionistas;

– a comunidade internacional não pode perder o combate do Direito Internacional e dos Direitos Humanos em função das conjunturas mais ou menos adversas (guerra), caso contrário, o futuro da ONU e dos nossos filhos e netos será bem pior do que foi o da geração anterior.

Na conjuntura que atravessamos, entendemos que é importante recordarmos, para as partes em confronto na Guerra na Ucrânia, as prioridades da estratégia de Sun Tzu: a melhor estratégia é derrotar a estratégia do inimigo; a segunda melhor estratégia é derrotar/dividir os aliados do inimigo; a terceira melhor estratégia é combater o inimigo; e a última estratégia é destruir as cidades do inimigo. Quinhentos anos antes de Cristo, já o pensamento chinês entendia que a estratégia indireta era a melhor opção, utilizando preferencialmente todas as formas de coação em detrimento da militar, trocando tempo por espaço e por vidas, e conquistando os objetivos sem combates e perda de vidas humanas. No entanto, para que esse «sonho» tenha lugar, é preciso haver dissuasão (com base em recursos humanos e materiais suficientes e adequados a cada tempo e situação), mas também que haja respeito pelos valores e princípios constantes na Carta das Nações Unidas (1945) e na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), dois dos principais estandartes da Humanidade.

______________________________

1 Telo, António José, Borges, João Vieira, Pires, Nuno Lemos, Dar Uma Razão à Força e uma Força à Razão, Nexo, Alcochete, 2018, p. X.

2 In https://www.nato.int/nato_static_fl2014/assets/pdf/2022/6/pdf/290622-strategic-concept.pdf

3 Memorando de entendimento assinado no dia 28 de junho, entre a Turquia, a Suécia e a Finlândia, que permitiu iniciar o processo de adesão destes dois últimos países nórdicos e neutrais.

4 Borges, Vieira (Major-General), “70 anos de Conceitos Estratégicos da OTAN”, in EMGFA, 70 anos de Portugal na Aliança Atlântica, Lisboa: EMGFA, dezembro de 2020, pp. 247-266.

5 Esta opção foi muito discutida no seio da NATO. Uma outra opção (em linha com o pensamento de Sun Tzu), passaria por não associar a China à Rússia, no sentido de as dividir, enfraquecendo a cooperação que tem facilitado, pelo menos indiretamente, a ação da Rússia na Guerra na Ucrânia. A reação da China foi imediata. No dia 30 de junho, um comunicado da missão chinesa junto da União Europeia referia: “Nunca iniciámos uma Guerra ou invadimos outros países. Não interferimos nos assuntos internos de outros países, não exportamos ideologias ou impomos sanções unilaterais. A NATO deve parar de provocar confrontos ao traçar linhas ideológicas, a abandonar a mentalidade de Guerra-Fria, a não denegrir a China. Daremos respostas firmes e determinadas a qualquer ato que prejudique os nossos interesses...” (in https://www.dn.pt/internacional/china-opoe-se-ao-novo-conceito-estrategico-da-nato-esta-cheio-de-preconceitos-ideologicos-14980735.html).

6 Expressão que utilizamos em “Telo, António José, Borges, João Vieira, Pires, Nuno Lemos, Dar Uma Razão à Força e uma Força à Razão, Nexo, Alcochete, 2018”, em vez da mais utilizada “Nova Era”, que tem sido utilizada pela China e pela Rússia nos seus conceitos estratégicos de segurança nacional, tendo como objetivo alterar aquilo que denominam de hegemonia dos EUA e do ocidente. Curiosamente, o Chanceler alemão, Olaf Scholz, num discurso proferido no dia 27 de fevereiro de 2022, no Bundestag, referiu que “o Mundo entrou numa Nova Era, com a invasão da Ucrânia pelas tropas russas, uma violação infame do direito internacional” (in https://pt.euronews.com/2022/02/27/olaf-scholz-o-mundo-entrou-
numa-nova-era-com-a-invasao-da-ucrania).

7 O governo alemão decidiu reforçar o seu orçamento para a defesa com um fundo espe-
cial de 100 mil milhões de euros, no sentido de modernizar as suas Forças Armadas (deci-
são tomada a 30 de maio). Por outro lado, foi assumido que aumentaria o orçamento da defesa acima dos 2% do PIB (in https://www.publico.pt/2022/05/30/mundo/noticia/governo-
oposicao-alemanha-chegam-acordo-aumentar-gastos-defesa-2008286). Entretanto, o Ministro da Defesa da Polónia, Mariusz Blaszczak, anunciou, no dia 4 de julho, que Exército polaco será reforçado com 15.000 novos soldados ainda em 2022, como parte de um plano para ampliar a sua capacidade militar e melhorar os resultados obtidos em simulações militares contra uma hipotética invasão russa. O programa inclui aumentar os gastos com defesa para 3% do PIB e modernizar o equipamento, com a compra de 250 carros de combate Abrams e 32 aviões F-35 (in https://observador.pt/2022/07/04/polonia-prepara-se-para-uma-invasao-
russa-e-reforca-exercito-com-15-000-soldados/).

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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia