Pouco depois de ter tomado posse, a 20 de janeiro de 2021, em plena pandemia COVID-19, o presidente Joseph R. Biden Jr. publicaria uma Orientação Estratégica de Segurança Nacional Interina (Interim National Security Strategic Guidance – https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2021/03/NSC-1v2.pdf) em março do mesmo ano, com a intenção clara de tranquilizar os cidadãos em geral e os mercados em particular, com uma nova postura dos EUA (em oposição à de Trump) relativamente às questões internas e externas. Efetivamente, depois de um período eleitoral muito conturbado (invasão do Congresso, a 6 de janeiro de 2021), que colocou em causa os valores da democracia e da liberdade da maior potência do Mundo, era importante marcar uma posição em termos da visão americana de futuro, e com a maior celeridade possível.
Entretanto, ultrapassada pela invasão da Ucrânia por parte da Rússia, a 24 de fevereiro de 2022, a nova administração Biden, só em outubro de 2022 publicaria a National Security Strategy, October 2022 (NSS – https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2022/10/Biden-Harris-Administrations-National-Security-Strategy-10.2022.pdf), claramente marcada pela Guerra na Ucrânia, mas também pela instabilidade no Indo-Pacífico, com especial destaque para as crises de Taiwan e das Coreias.
No essencial, o novo documento estratégico está em linha com as primeiras orientações, seja no que respeita à postura dos EUA relativamente à China e à Rússia, seja no que concerne a questões transnacionais como as alterações climáticas, seja ainda no que respeita a questões internas que afetam a coesão dos EUA.
Assim, e ao contrário do que era habitual, a publicação da nova Estratégia de Segurança dos EUA não foi tão divulgada internacionalmente, nem teve as tradicionais respostas da China e da Rússia, seja porque envolta pela Guerra da Ucrânia, seja porque em linha com o documento interino de 2021, seja ainda pelo equilíbrio da linguagem estratégica, menos ofensiva do que a constante no Conceito Estratégico da NATO, aprovado na cimeira de Madrid a 29 de junho de 2022 (https://www.nato.int/strategic-concept/). Pretendemos, assim, fazer uma leitura estratégica do documento de 48 páginas e que termina com a frase: «não há tempo a perder».
O documento contém a tradicional introdução do Presidente, que traduz, num discurso personalizado, o essencial da Estratégia de Segurança Nacional, entretanto trabalhada por todos os atores da segurança nacional, desde o conselheiro para a segurança nacional (Jake Sullivan) no âmbito do pilar Institucional, até ao pilar do Congresso, passando pelo da “Academia”.
Está organizado em cinco capítulos, respetivamente: I, A Competição para o que vem a seguir; II, Investir na nossa Força; III, As nossas prioridades Globais; IV, A nossa Estratégia por Regiões; e V, Conclusão.
Na prática, trata da caracterização dos ambientes externo e interno, do reforço das potencialidades nacionais, do estabelecimento de prioridades, das estratégias e grandes linhas de ação por regiões do globo e de umas considerações finais, com algumas mensagens para o exterior, mas também para o interior. Deste modo, dá orientações aos vários escalões e tenta dissuadir as vontades opositoras, desta vez interna (para os republicanos não respeitadores dos valores da democracia) e externamente (em especial para a China e a Rússia). Tem bem presente o futuro a promover, assim como os objetivos a atingir, as oportunidades a explorar, as alianças a fortalecer e os instrumentos a desenvolver (o problema político), assim como o levantamento das ameaças ou desafios, dos obstáculos a contornar e dos instrumentos e das linhas de ação que devem ser adotados.
Vejamos agora os aspetos essenciais deste documento…
No capítulo I, “A Competição para o que vem a seguir”, é assumido que os EUA e o Mundo enfrentam hoje dois desafios estratégicos: a competição geopolítica entre as grandes potências; e as ameaças compartilhadas, como as mudanças climáticas.
E a solução passa, no caso do primeiro desafio, pelo respeito dos princípios fundamentais de autodeterminação, integridade e independência política. A orientação vai no sentido de serem respeitadas as instituições internacionais, apoiados os países que pretendem determinar as suas próprias escolhas de política externa, e respeitados os direitos humanos universais e a economia global.
No caso das ameaças compartilhadas, o segundo desafio, e além das mudanças climáticas, são relevadas a insegurança alimentar, as doenças transmissíveis, o terrorismo, a escassez de energia e a inflação. O documento sublinha que estes desafios estão no centro da segurança nacional e internacional e que devem ser tratados como tal, o que exige cooperação acrescida dos governos, mesmo num ambiente internacional competitivo, onde vai imperando o nacionalismo e o populismo.
A preocupação passa pelo elevado risco de conflito entre as grandes potências e entre as Democracias e as Autocracias, claramente em choque para demonstrarem qual sistema de governação que pode oferecer o melhor para o seu povo e para o Mundo. Neste sentido refere que os EUA continuam a ser a maior potência do Mundo, ao nível da economia, da demografia, da inovação e do poder militar, mas que a qualidade da democracia em casa afeta a força e a credibilidade da liderança no exterior, numa mensagem clara para a necessidade de coesão interna. E a solução passa pela cooperação para enfrentar os desafios compartilhados na era da competição, numa postura multilateral de apoio a todos os países, independentemente do tamanho ou força, no exercício da liberdade de escolhas que sirvam aos seus interesses.
Refere, ainda, e de modo explícito, os interesses nacionais dos EUA: proteger a segurança do povo americano; expandir a prosperidade e as oportunidades económicas; e perceber e defender os valores democráticos «no coração do modo de vida americano». Em linha com os interesses, define, de modo claro, o objetivo político: «queremos uma ordem internacional livre, aberta, próspera e segura». Na prática, é a busca de uma ordem livre e segura, sem agressão, coação e intimidação. E para alcançar esse objetivo são definidas “três linhas de esforço”, designadamente:
1) investir nas fontes subjacentes e ferramentas do poder e influência americanos;
2) construir a coligação mais forte possível de nações para aumentar a influência coletiva, para moldar o ambiente estratégico global e para resolver problemas compartilhados;
3) e modernizar e fortalecer as Forças Armadas, para que sejam equipadas para a era de competição com as grandes potências, mantendo a capacidade de enfrentarem a ameaça terrorista.
O capítulo II, “Investir na nossa Força”, desenvolve em pormenor o investimento no poder nacional para manter uma vantagem competitiva, implementando uma estratégia industrial e a inovação moderna, investindo no povo, e fortalecendo a democracia. Aborda, ainda, a necessidade de usar a diplomacia para construir as coligações mais fortes possíveis, através da cooperação transformativa, de um Mundo inclusivo e próspero.
Na modernização e fortalecimento das Forças Armadas sublinha que a Estratégia Nacional de Defesa se baseia na «dissuasão integrada», ou seja, na combinação perfeita de capacidades para convencer potenciais adversários de que os custos de suas atividades hostis superam os seus benefícios, o que implica mais integração: entre domínios, regiões, em todo o espetro do conflito, em todo o governo dos EUA, com aliados e parceiros. E para isso será necessário mais e melhor coordenação, trabalho em rede e inovação.
No Capítulo III, relativo às “Prioridades Globais”, destaca em síntese, a necessidade de «superar a China e conter a Rússia». E sublinha que são de extrema importância três linhas de esforço interligadas:
1) lidar com os desafios à ordem internacional colocados pelos concorrentes estratégicos;
2) abordar os desafios globais;
3) e moldar as regras da tecnologia, da segurança cibernética e do comércio e economia.
Desenvolve depois, em pormenor, cada uma destas três linhas de esforço, incluindo nos desafios globais as alterações climáticas, a segurança energética, as pandemias e a biodefesa, a insegurança alimentar, o controlo de armamento e a proliferação de armas de destruição maciça, o terrorismo e o crime organizado transnacional («que leva a um número crescente de vítimas, ao mesmo tempo que amplia outros desafios globais consequentes, da migração aos ataques cibernéticos»).
Termina o capítulo, abordando a maneira de moldar as regras do futuro, ao nível tecnológico, da segurança do ciberespaço, do comércio e da economia, dos reféns e “detidos injustos” e da corrupção (considerada como ameaça fundamental ao Estado de Direito).
O capítulo IV, relativo à “Estratégia dos EUA por Regiões”, reitera as prioridades dos EUA na luta pelos seus objetivos políticos, num Mundo crescentemente interligado:
1) Promover um Indo-Pacífico livre e aberto;
2) Aprofundar a aliança com a Europa;
3) Promover a democracia e a prosperidade compartilhada no Ocidente;
4) Apoiar a desescalada e a integração no Médio Oriente;
5) Construir parcerias EUA-África do século XXI;
6) Manter um Ártico pacífico;
7) Proteger o Mar, o Ar e o Espaço.
E para concretizar as prioridades globais com as suas capacidades de intervenção global dá orientações específicas, em jeito de linhas de ação estratégica, como:
– fortalecer a diplomacia americana, modernizando o Departamento de Estado, incluindo através da recente criação de um novo gabinete para o ciberespaço e política digital;
– adaptar a Comunidade da Inteligência, inclusive alinhando as organizações para lidarem melhor com a concorrência, adotando novas ferramentas de dados e aprimorando a integração de matéria-prima;
– melhorar o alerta precoce e a previsão nos EUA e no Mundo para ameaças de doenças infeciosas e pandemias, aumentando o apoio aos Centros de Controle de Doenças e Centros de Prevenção de Surtos, Previsão e Análise;
– reorganizando o Gabinete do Subsecretário de Defesa para Políticas no sentido de aprimorar o foco em tecnologias emergentes e elevar a atenção dos líderes para as regiões críticas;
– reforçar o Serviço de Segurança Cibernética do Departamento de Segurança Interna, ao nível da contratação, do desenvolvimento e da retenção de talentos cibernéticos diversificados e de primeira linha;
– tornar a assistência ao desenvolvimento mais acessível e equitativa, aumentando o envolvimento e reorientando 25 % da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional para o financiamento de parceiros locais e duplicando o trabalho no empoderamento de mulheres e raparigas;
– expandir o envolvimento com as partes interessadas e construir a capacidade de parceria com o setor privado, filantropia, comunidades da diáspora e sociedade civil;
– priorizar o papel da tecnologia na segurança nacional, elevando o Gabinete da Casa Branca de Política Científica e Tecnológica para uma agência de nível ministerial e membro pleno do Conselho Nacional de Segurança.
No capítulo V, relativo às “Conclusões”, volta a mostrar confiança no sucesso por uma ordem global livre, aberta, próspera e segura. Reitera os dois desafios principais, da concorrência dos rivais para moldar a ordem internacional e dos desafios compartilhados, incluindo as mudanças climáticas, as pandemias, e a segurança alimentar, que definirão o próximo estágio da vida humana. E que fortalecerá a democracia em todo o mundo, depois de a fortalecer em casa (investindo no povo, na capacidade industrial, na resiliência), facto indissociável da liderança a nível mundial, do reforço da credibilidade no cenário mundial. Volta a destacar a necessidade do aprofundamento e da expansão das relações diplomáticas, não apenas com os aliados democráticos, mas com todos os Estados que compartilhem a sua visão de um futuro melhor, na competição estratégica com a concorrência dos seus rivais estratégicos. Reforça a importância da modernização das Forças Armadas, em especial na busca de tecnologias avançadas e no investimento nas pessoas.
E termina, ligando a história ao futuro, referindo «a América aproveitará este momento e enfrentará o desafio. Não há tempo a perder».
Em resumo, podemos identificar as seguintes linhas de pensamento e ação:
– o Mundo encontra-se num momento de viragem do sistema político internacional;
– apesar da adversidade decorrente da competição estratégica, da pandemia e da instabilidade da economia global, existem desafios e oportunidades no sentido de ir ao encontro dos interesses dos EUA, em especial ao nível da segurança e da prosperidade;
– na disputa pelo futuro do nosso Mundo, a República Popular da China assume a intenção e tem a capacidade para remodelar a ordem internacional a seu favor, enquanto a Rússia continua a dominar a instabilidade mundial na sequência da invasão da Ucrânia, mas também da ameaça de utilização de armas nucleares, ambas as potências minando as Democracias e exportando valores mais ligados a repressão no interior e coação no exterior;
– os EUA são fortes no exterior porque são fortes em casa e por isso continuarão a defender os valores da democracia no Mundo, numa competição global entre Democracias e Autocracias;
– os EUA continuarão a investir no poder nacional para manter a competitividade, investindo na indústria moderna, na inovação estratégica, no povo americano (através da educação) e no fortalecimento da sua democracia (na sequência das profundas divisões internas entre Democratas e Republicanos);
– em termos diplomáticos, os EUA continuarão a investir no fortalecimento de coligações e na transformação da cooperação, aprofundando a ligação e a coesão dos aliados através da NATO, da AUKUS, e das relações com os países europeus em geral e países do Indo-Pacífico;
– entre os desafios (ou ameaças) compartilhados, os EUA assumem a prioridade da segurança climática e energética, das pandemias e da biodefesa, da insegurança alimentar, da não proliferação e do controlo de armamento e do terrorismo;
– ao nível das regras a moldar, a NSS destaca a tecnologia, a segurança do ciberespaço, o comércio e a economia;
– em termos de prioridades por áreas do globo, é indiscutível a hierarquia Indo-Pacífico e Europa, a que se segue a promoção da democracia e da prosperidade no hemisfério ocidental, o apoio à desescalada e à integração no Médio Oriente, as parcerias com África, a manutenção da paz no Ártico e a proteção do Mar, do Ar e do Espaço;
– a Estratégia Nacional de Defesa baseia-se na dissuasão integrada, o que implica mais integração: entre domínios, regiões, em todo o espetro do conflito, em todo o governo dos EUA, com aliados e parceiros. E para isso será necessário mais e melhor coordenação, trabalho em rede e inovação.
Na prática e como referido nas conclusões, os dois grandes desafios que os EUA pretendem enfrentar nesta Estratégia Nacional de Segurança são claros:
– a concorrência dos rivais que pretendem moldar a ordem internacional, superando a China e contendo a Rússia;
– e os desafios (ou ameaças) compartilhados, lutando para diminuir o impacto das alterações climáticas, das pandemias e da segurança alimentar, que moldam a vida futura da Humanidade.
Mas esses dois desafios só são ultrapassados se for fortalecida a democracia nos EUA e em todo o Mundo, através de investimento no povo, no multilateralismo, na capacidade industrial, na educação e na ciência, na economia e na resiliência nacional, aumentando, assim, a credibilidade no cenário mundial e garantindo as consequentes vantagens competitivas.
O documento é coerente, simples, conciso, simultaneamente pragmático e sonhador e com uma linguagem de esperança num período de guerra na Europa e de grande conflitualidade no Indo-Pacífico e no Médio Oriente. Mas a grande questão será o impacto da teoria com a realidade…
Efetivamente, o pragmatismo estratégico dos EUA ao nível dos conceitos de ação (e apesar do idealismo do planeamento), é comum a Democratas e Republicanos, numa linha de pensamento que vem do final da Segunda Guerra Mundial, fiel ao internacionalismo liberal (com exceção de Trump). Na prática, tem estado assente na capacidade de os EUA moldarem o Mundo, com base numa liderança sustentada no direito internacional, na economia de mercado, nas instituições multilaterais, na democracia e na liberdade. No fundo são os três eixos estruturantes a dominar a NSS, respetivamente: económico, cultural e militar. No entanto, o que marca esta Estratégia de Segurança Nacional, relativamente às anteriores, pode resumir-se e enquadrar-se a dois níveis:
– em termos internos, na preocupação enorme com a sustentabilidade da democracia (ferida por Trump), a par do tradicional investimento na economia, no desenvolvimento e no bem-estar;
– ao nível externo, na preocupação especial com a competição estratégica, decorrente do crescendo de poder da China (e daí a prioridade para o Indo-Pacífico), no âmbito de uma trindade EUA-China-Rússia, mas também com as questões transnacionais, designadamente com as alterações climáticas, a segurança alimentar e as pandemias, entendidas como fatores influenciadores da vida da Humanidade.
Em resumo, o futuro está bem caracterizado e sustentado, assim como os valores a defender, seja a nível interno ou externo, ficando claro que «é prioritário superar a China e conter a Rússia» e investir no multilateralismo para combater as ameaças e desafios transnacionais, das assumidas alterações climáticas ao terrorismo, passando pelas pandemias, pela insegurança alimentar, pela proliferação de armas de destruição maciça, pelo rearmamento e pela cibersegurança.
No entanto, o número de atores é cada vez maior, assim como a complexidade do sistema político internacional, o que reduz o peso das decisões e intervenções dos EUA. Por outro lado, o número de países não propriamente democráticos está em crescendo, sendo importante atraí-los para a coligação da democracia, que se pretende alargada e separada dos regimes autocratas. Em simultâneo, o número de países “não alinhados” com a competição estratégica é crescente, podendo determinar decisões menos respeitadoras do direito internacional e dos valores democráticos. E, finalmente, o apoio económico e financeiro dos aliados (caso dos países europeus da NATO) às causas da democracia não tem sido proporcional ao plano das intenções, reduzindo a liberdade de ação e o poder económico relativo dos EUA.
Resta saber se a realidade vai permitir seguir esta linha estratégica, apesar de tudo flexível, seja no âmbito da competição estratégica na Guerra da Ucrânia ou em Taiwan, seja na luta contra os verdadeiros riscos e ameaças transnacionais. Só sabemos que o tempo dará a resposta… E daí a Estratégia de Segurança Nacional dos EUA terminar com a frase: «Não há tempo a perder…»
Vogal da Direção da Revista Militar. Presidente da Comissão Portuguesa de História Militar.