Nº 2652 - Janeiro de 2023
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Em democracia, os exércitos só devem ocupar-se da defesa militar
Capitão-de-mar-e-guerra ECN
Jorge Manuel Pereira da Silva Paulo

1. Introdução

A presença de militares na segurança interna em Portugal é uma constante desde a Guarda Real de Polícia, criada em 1801. Esta presença manteve-se em sucessivos regimes e devia ter acabado em 1982 com a 1ª Revisão Constitucional. Mas não: sobreviveu com a Armada ainda a dominar a Autoridade Marítima; só na década de 1990 a PSP deixou de ser militarizada; e ainda são oficiais do Exército que comandam a GNR. Causa perplexidade o atraso de décadas para encerrar o modelo do Estado Novo e adotar em pleno o modelo constitucional pós-1982, inerente a um Estado de Direito Democrático (EDD), no caso da Polícia Marítima (PM). Poucos admitirão militares do Exército a mandar parar e fiscalizar viaturas, sem ser em estado de sítio e em guerra; mas poucos se incomodam com militares da Armada em serviço nas Forças Armadas (FA) a mandar parar um navio e a fiscalizarem-no no mar, ou a cidadãos nas praias – exceto em casos muito específicos são medidas de polícia nos dois casos.

Em Portugal, a Constituição (CRP) e a lei estabelecem o que os exércitos podem fazer e como atuar. O modelo filosófico-político é idêntico aos modelos dos demais EDD, mas muitos não os entendem. Várias pessoas pensam que os exércitos devem atuar na segurança interna com poucas limitações, dirigindo as forças e serviços de segurança (FSS) ou substituindo-as; várias vozes têm defendido uma revisão da CRP para atribuir aos exércitos competências próprias na segurança interna (Prata, 2010; Santos, 2010; Borges, 2013; CDS, 2019: 200; PSD, 2021: 6). Embora o essencial esteja dito há décadas, importa considerar posições recentes e reafirmar as grandes lições do passado neste âmbito. É isso que visa este artigo, que constitui uma revisão e atualização de Paulo (2014, 2018).

Após esta introdução, caracteriza-se a racionalidade do modelo filosófico-político que a CRP adotou em 1982, típico das democracias. A seguir explica-se o enquadramento constitucional e legal em Portugal relativo à atuação dos exércitos fora da defesa militar. O artigo termina com um resumo e algumas considerações finais.

 

2. A racionalidade do modelo filosófico-político da Constituição

A racionalidade do modelo adotado pela CRP em 1982, e mantido desde então, resulta da natureza do EDD, das consequências diretas que ele tem sobre a organização da segurança nacional, e dos equilíbrios políticos que foi possível alcançar naquela data.

 

2.1. Estado de Direito Democrático

No EDD o povo é o soberano, e cada cidadão é um fim em si mesmo: por isso, tem um direito inalienável à vida e à liberdade; e é responsável por conduzir a sua vida (Lasswell, 1951: 194). A liberdade concretiza-se numa esfera de autonomia individual, que todos, incluindo os poderes públicos, estão obrigados a respeitar; por isso, o EDD prefere a resolução pacífica de conflitos. A democracia requer liberdade e igualdade, para que todos os cidadãos possam viver com dignidade e realizar-se. O EDD é um sistema de regras, tipicamente estabelecidas nas constituições, que visa e permite acomodar a diversidade de posições dos cidadãos (Bobbio, 1987: 18), com três características principais e mais duas derivadas, que se interpenetram (Novais, 2006: 73-102; Moreira e Domingues, 2020: 22):

(1) O império da lei, a primeira parte da rule of law, da qual um corolário é o princípio da legalidade1, princípio de precedência de lei ou princípio da reserva vertical de lei (Otero, 2019: 733) ou, em termos mais abrangentes, o princípio da juridicidade, que se traduz na supremacia da lei, e na igualdade perante a lei geral e abstrata. Um corolário da supremacia da lei, onde haja conflito entre a eficácia das decisões e a lei na atuação da Administração Pública (AP), diz que a lei prevalece sobre aquela eficácia, exceto num estado de necessidade2. O império da lei tem três partes: a supremacia da lei (subordinada à constituição), por oposição aos poderes arbitrários e prerrogativas de pessoas, grupos ou dirigentes; a igualdade de todos, incluindo órgãos e agentes do Estado, face à lei geral e abstrata; e a legitimidade que resulta de emanar do povo soberano (Dicey, 1889: 171-183; Laubadère, 1970: 79-157; Novais, 2006: 55; Bingham, 2010: 3-9).

(2) Um elenco de direitos e liberdades fundamentais (a outra parte da rule of law), em geral plasmados em códigos penais e legislação avulsa, para dar certeza jurídica a todos os cidadãos, sobretudo de minorias, sobre a esfera da sua autonomia individual, face às maiorias e aos diversos poderes. A lei define os crimes, como atos que a comunidade considera muito nocivos para si própria, a ordem, o indivíduo ou quaisquer grupos, por violarem direitos importantes ou fundamentais.

(3) A separação dos poderes executivo, legislativo e judicial, tendo cada qual a sua esfera de autonomia própria, para evitar, através do controlo mútuo, os abusos, que a concentração potencia (Novais, 2006: 73-102). A independência dos tribunais é um dos principais aspetos em que se concretiza este princípio.

Servindo as anteriores, importa referir mais duas características:

(i) A democracia representativa, na qual os governantes emergem da competição política e de eleições livres e universais, com um mandato do povo para o governar. Ninguém tem mais legitimidade do que os políticos eleitos, pois ninguém pode reivindicar que representa o povo sem se ter submetido a eleições (Weber, 1946: 225-226; Lourenço, 2013: 99-100).

(ii) A supremacia civil, “[…] o princípio basilar de toda e qualquer Democracia[…]” (Lourenço, 2013: 68), um instrumento e um processo da governação política3, pelos quais os setores da segurança nacional estão subordinados aos órgãos de soberania, em especial àqueles cujos titulares são democraticamente eleitos (Pereira, 1924: 102; Vagts, 1959: 103; Oehling, 1967: 84-90, 219-224 e 236; Diez-Alegria, 1973: 44; Santos, 1976a, 1979: 55-64; Carrilho, 1994; Dahl, 1989: 245; Gunther et al, 1995: 7; Kohn, 1997; Vaz, 2002: 81; Feaver, 2003: 61; Matos, 2008: 103; Barany, 2012: 26-30; Miranda, 2018: 3):

“a tradição da supremacia do poder civil constitui uma barreira moral e legal contra a tentação de alguns militares pelo poder” (Santos, 1977: 3).

“Civilian supremacy is reached through a process consisting, first, of the removal of the military from powerful positions outside the defense area and, second, of the appointment and acknowledgement of civilian political superiors in the defense and military areas” (Agüero, 1995: 126).

“[...] in a consolidated democracy there are no areas of administration outside the control of the elected leaders” (Serra4, 2010: 31).

“É o seu estatuto fatalmente privilegiado – a detenção da força bruta – que autolimita politicamente a instituição militar. Não é possível acumular nas mesmas mãos os dois gládios – o da força pura e o da supremacia política – sem confiscar de maneira tirânica a liberdade civil. De todos os cidadãos, aquele que precisa de ser mais democrático é o militar” (Lourenço, 2013: 127).

O conceito foi moldado ao longo do século XVII em Inglaterra (Schwoerer, 1974: 137-154); a sua expansão na Europa no século XX foi considerada um avanço civilizacional:

“The great modern fact is the huge standing army that is a severe custodian of the law, is obedient to the orders of a civil authority and has very little political influence, exercising indirectly at best such influence as it has. Virtually invariable as that situation is in countries of European civilization, it represents a most fortunate exception, if it is not absolutely without parallel, in human history” (Mosca, 1939: 232-233).

 

2.2. A organização da segurança nacional em democracia

O EDD prefere a prevenção à repressão, porque nesta é mais intenso o uso da força, um mal a evitar, porque penetra a esfera de autonomia individual, e pode causar danos irreversíveis no indivíduo e na sua dignidade. Para a segurança, o uso da força visa dissuadir o opositor e, se isso falhar, travá-lo.

No EDD pode fazer-se uso da força, mas só em último recurso, sob a autoridade legítima e sem excesso ou com proporcionalidade (Castro, 2003: 73):

“[…] a eliminação da violência armada constitui um objectivo basilar do Estado moderno. Por norma, o poder público não destrói as armas, mas concentra-as nas mãos do aparelho estatal, retirando o seu usufruto à maioria dos cidadãos comuns. Aliás, o Estado caracteriza-se precisamente por deter esse monopólio da coacção.” (Clemente, 1998: 138).

A desproporção e os excessos repugnam as democracias, como, por exemplo, a Royal Navy constatou quando não pôde usar as armas das suas fragatas contra os modestos meios da guarda costeira da Islândia e se viu assim derrotada nas três “guerras do bacalhau” (cod wars) (Grove, 1987: 330-333; Welch, 2006: 274). A desproporção e os excessos suscitam reações onde ocorrem, como sucede amiúde no Brasil, sobretudo pelos relevantes custos colaterais (Rodrigues e Armstrong, 2019; Magalhães, 2021), onde o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso não está plasmado na sua Constituição.

Os diferentes contextos e fins, externo e interno, determinaram uma divisão da produção da segurança entre segurança interna e defesa nacional5. Esta doutrina já era defendida no século XIX (Constant, 1815: 209-219); é hoje consensual e típica dos EDD (Lapa, 1953: 29; Finer, 1962; Santos, 1976a; Lourenço, 1978: 6; Amaral, 1983, 1986: 123; 1989; Huntington, 1991; Bebler, 1994; Goodman, 1996; Agüero, 1997; Diamond, 1997; Morais, 2000; Ferreira, 2001: 190; Cohen, 2002; Bateman, 2003: 3; Diogo, 2004: 130-137; Brooks, 2005; Pion-Berlin, 2005; Colaço, 2010, 2014, 2018; Pereira, 2010: 84-85, 2012a: 14-16, 2012b: 414; Lioe, 2011; Barany, 2012: 26-33; Solvik, 2014: 11; Miranda, 2018: 4-6). Ela defende a existência de dois instrumentos do Estado – ou “agencies of civil power”, na expressão de Vagts (1959: 103) – especializados no uso da força para produzir a segurança nacional, os exércitos (FA) e as polícias (FSS):

“One – let us call them ‘soldiers’ – is directed against other armed forces with the object of defeating them. The action of the other – let us call them ‘police’ – sets out to maintain or re-establish the required degree of law and public order within an existing political entity, typically a state. Victory, which has no necessary moral connotation, is the object of one force; the bringing to justice of offenders against the law, which does have a moral connotation, is the object of the other. Such a distinction is easier to draw in theory than in practice, however” (Hobsbawn, 2010: 22).

“National security is a matter of safeguarding the state’s sovereignty over its territory and population. Public security is the ability of a government to maintain the civil order necessary for the execution of basic functions such as commerce, transportation, and communication. Citizen security has to do with the capacity of individuals and groups to exercise the political, economic, civil, and human rights that make them citizens” (Shemella, 2006: 138).

No EDD, os exércitos têm uma orientação externa e atuam contra inimigos:

“[…] a defesa da integridade do território é o fim permanente, razão de ser da existência das Forças Armadas” (Santos, 1976b: 9).

As polícias têm uma orientação interna, podendo fazer uso da força, mas tipicamente de baixa intensidade, e defendem a segurança dos cidadãos:

“[…] las fuerzas de policía […] viven una vida aparte de los ejércitos y, sobre todo, por razón del adversario, normal y sensiblemente inerme, al que deben enfrentar, su armamento puede ser mucho más débil, […]” (Diez-Alegria, 1973: 15).

“[…] a força pública não procura por norma o extermínio do adversário da ordem instituída, apenas a punição jurídica em sede judicial e a ressocialização do desvio social” (Clemente, 1998: 50). E mais à frente: “Os direitos dos cidadãos constituem um dos fins da função policial, daí a natureza excepcional do uso da força física e excepcionalíssima do uso das armas de fogo, por parte das Forças de Segurança. […] torna-se já pouco aceitável que a segurança pública seja assegurada com recurso usual às armas de guerra (espingardas, metralhadoras, carros de combate, etc), salvo em circunstâncias gravíssimas de alta violência e de terrorismo e de guerra civil” (Clemente, 1998: 51).

A segurança nacional tem outros dois pilares, que não são abordados neste ensaio: os serviços de informações, cujo produto se destina às polícias e aos exércitos; e os serviços de proteção civil, visando a segurança-safa das pessoas e do seu património.

Este modelo de produção de segurança está interiorizado e assente nos EDD, por boas razões: a segurança ante ameaças externas pode obrigar a dissuadir, resistir e retaliar, até aos mais altos níveis de intensidade do uso da força, podendo chegar à destruição generalizada; isto é, os exércitos operam contra inimigos, que visam dominar ou destruir pela ameaça ou uso da força. Militar “significa o treino para o uso da força máxima numa dada organização social” (Matos, 2008: 91). Como notam vários autores:

“In defensive just as in offensive warfare, it is necessary to pursue a great aim: the destruction of the enemy army, either by battle or by rendering its subsistence extremely difficult” (Clausewitz, 1812: III.2.3).

“[…] the military alone can protect itself, make its demands credible, and threaten to use the most violent means at the disposal of the state.” (Perlmutter, 1977: 281).

“[…] military force can be used to hurt. In addition to taking and protecting things of value it can destroy value. In addition to weakening an enemy militarily it can cause an enemy plain suffering […]” (Schelling, 1966: 2).

“Aquilo que distingue definitivamente a profissão militar de todas as outras é a sua finalidade última: a administração organizada da violência armada” (Vaz, 2002: 103).

A doutrina de atuação militar é incompatível com a segurança interna no EDD, centrada na lei e no cidadão, cujos direitos têm de ser respeitados e perante o qual o uso da força, bem como a sua ameaça, devem ser mínimos ou nulos. A segurança interna centra-se na manutenção e na reposição da ordem e da segurança públicas (polícia administrativa), na investigação criminal (polícia judiciária) e nas informações; todas estas vertentes se subordinam às exigências de obtenção e preservação da prova, para elaborarem uma acusação e para a apresentarem a um tribunal, com os acusados, para julgamento (law enforcement) (Laubadère, 1970: 63-65; Caetano, 2013: 1153-155; Valente, 2014: 45-74; Brito, 2017: 285-298).

A disponibilidade dos mais altos níveis de intensidade do uso da força no âmbito interno é raramente proporcional à ameaça ou ao desafio, por não haver oposição equiparável; desse modo, criam-se oportunidades para os exércitos interferirem ilegitimamente na vida política e social, extraírem benefícios setoriais, ou destruírem provas, mesmo que involuntariamente. A desproporcionalidade e o abuso de poder são inaceitáveis no EDD, e podem ocorrer por abuso dos militares, e pelo uso dos exércitos por um governo para resolver crises internas:

“Armed forces with independent access to information on internal matters are also incurably inclined to intervene in a country’s internal affairs” (Serra, 2010: 72).

Em poucas palavras: as polícias dirigem-se a cidadãos, evitam usar a força e visam a obtenção e preservação da prova; os exércitos visam inimigos e admitem a destruição como resultado:

“Military forces […] are normally trained for missions that are quite different from those necessary for achieving effective homeland security. […] While law enforcement officers are trained to use force as a last resort, soldiers are trained to use it in the first instance. […] Soldiers are not police officers, and the danger is always present that they will use force in a manner that is inappropriate in the domestic context” (Clarke, 2006: 1).

Desde Lasswell (1941), validado pelas experiências da América Latina desde os anos 1960s (Stepan, 1986), emergiram consensos académicos e políticos, nos quais só a existência de um complexo ambiente de ameaças, com ramificações internas, justifica alargar as missões dos exércitos da defesa à segurança interna; numerosos autores de referência defendem o mesmo:

“[…] it became impossible to be an expert in the management of violence for external defense and at the same time to be skilled in either politics and statecraft or the use of force for the maintenance of internal order. The functions of the officer became distinct of those of the politician and policeman” (Huntington, 1957: 32).

“[…] je repugne personnellement à considerer les Forces Armées sous l’angle du maintien de l’ordre […] forces de police dont c’est le rôle” (Beaufre, 1964: 148).

“Num regime democrático, as FA não são uma super-polícia do governo […]” (Santos, 1976b: 17).

“[…] não fornecer a ninguém qualquer pretexto a que, no futuro, pudesse invocar-se o conceito amplo de defesa nacional para tentar justificar a intervenção militar na solução de crises políticas internas” (Amaral, 1989: 659).

“External military missions are the most conducive to healthy patterns of civil-military relations, whereas nonmilitary, internal missions often engender various pathologies” (Desch, 1996: 13).

“Tasking the military with everyday law enforcement, as opposed to maintaining order as a last resort, pits the military against the people, with a loss of trust and confidence, eventual alienation on both sides, and a diminishing of civilian control” (Kohn, 1997: 145).

“[…] as FA são estruturadas pelas tarefas que a sociedade lhes atribui – pelas missões que lhes dá” (Matos e Bacalhau, 2001: 47).

“[…] o militar […] possui os meios para modificar, se necessário pela força, a ordem constitucional, […]” (Vaz, 2002: 86).

“Como as FA têm o inimigo mais poderoso, têm que ter o máximo poder de fogo possível numa dada organização política; deste poder de fogo resulta que as FA são suscetíveis de submeterem pela força qualquer segmento da organização política; […]” (Matos, 2008: 90).

“[…] the absence of the threat of a coup d’état does not resolve all the problems relating to interventions by the military” (Serra, 2010: 25).

“An essential step in the process of bringing the military under control is turning the police into a civil body” (Serra, 2010: 74).

As tarefas não-militares podem distrair os exércitos da sua razão de ser, e daquilo em que são insubstituíveis (a sua missão tradicional, a defesa militar), com indesejável perda de eficácia, posição que foi imortalizada pelo General Sherman, e secundada por mais autores:

“We should keep the peace always; but not act as bailiff constables and catch thieves. That should be beneath a soldier’s vocation” (Thorndike, 1894: 342; divulgando uma carta de 1875).

“In some nontraditional missions such as peacekeeping and humanitarian assistance, the civilians themselves are the mission. In these cases, a warrior mentality is not what is needed to achieve success. Military personnel trained as warriors find themselves trying instead to understand and adapt to a law enforcement mentality” (Shemella, 2006: 137).

Além disso, para que os exércitos tenham competências próprias na segurança interna, têm de ter autoridade sobre as polícias, o que pode confundir os seus agentes: em vez de defenderem a segurança do cidadão podem vir a ser empregues para defender a segurança do Estado ou do governo em funções; em vez de servirem o cidadão podem ser tentadas a vê-lo como “inimigo interno”, o que é inaceitável em democracia (Ballbé, 1983: 463; Amaral, 1989: 658; Ferreira, 2001: 190).

 

2.3. Impactos da segurança nacional em democracia

O efeito mais claro da segurança nacional sobre o EDD é a existência de exércitos, de polícias e de serviços de informações. Estando na essência da democracia a aversão ao uso da força, e a preferência pelo diálogo e pela negociação, para encontrar compromissos satisfatórios para os cidadãos envolvidos em conflitos, a mera existência de dispositivos para usar e gerir a força, ainda que legítima, divergem da, e podem chegar a opor-se à, essên-
cia do EDD.

Outro efeito é a pressão da segurança pelo secretismo ou, pelo menos, para delimitar e impor um “domínio reservado”. Trata-se de ocultar táticas e vulnerabilidades, para impedir atores com vontades ameaçadoras de se prepararem e ganharem vantagem num conflito. É sabido que nos exércitos “predomina a prática do segredo”, mas também nos serviços de informações (Rourke, 1961: 77-83; Janowitz, 1968: 17; Feaver, 2003: 57; Ramalho, 2019: 111).

Em ambos os casos podem estar em causa atuações ocultas ou ilegais, cuja exposição não só anulará os seus objetivos, como pode revelar violações da lei ou colocar o respetivo Estado em situações embaraçosas. O segredo opõe-se à transparência, fundamental para o funcionamento saudável de uma democracia. Gera-se, assim, uma tensão entre o segredo e a transparência, e emergem complexos dilemas para enfrentar e resolver.

Dois efeitos, associados ao uso da força (ou, pelo menos, da autoridade apoiada pela força), são a preferência da segurança pela prevenção, e pela repressão que impeça eventuais reações. Os exércitos e as polícias tendem a preferir a prevenção, porque esperam mais eficácia e mais baixos custos se atuarem perante indícios de ameaças, do que terem de reagir a, e enfrentar, ataques. O EDD também prefere prevenir a reprimir, para evitar penetrar e ferir mais a esfera de autonomia individual (o valor primordial); mas em ambas podem ocorrer abusos. E devem admitir-se exceções.

Por outro lado, os servidores do Estado também têm visões e interesses próprios (que podem divergir dos anseios e dos desígnios das populações que se obrigaram a servir), e que podem tentar prosseguir, explorando as suas posições – sem se saber previamente se, quando e como o farão. Há séculos que foi identificada esta questão, como um problema:

“L’armée méprisera toujours un sénat, et respectera ses officiers. Elle ne fera point cas des ordres qui lui seront envoys de la part d’un corps composé de gens qu’elle croira timides, et indignes par là de lui commander” (Montesquieu, 1748: 136).

“The liberties of a people are in danger from a large standing army, not only because the rulers may employ them for the purposes of supporting themselves in any usurpations of power, which they may see proper to exercise, but there is great hazard, that an army will subvert the forms of the government, under whose authority, they are raised, and establish one, according to the pleasure of their leader” (Brutus, 1788: 495).

Autores mais recentes concordam:

“But to believe that the military are not an effective pressure group on the organs of government is to commit a political error.” (Janowitz, 1960: vii). E reforça: “Clearly, the political behavior of the military, like that of any large organization, is grounded in strong elements of personal and organizational self-interest” (285).

“Como as FA têm o inimigo mais poderoso, têm que ter o máximo poder de fogo possível numa dada organização política; deste poder de fogo resulta que as FA são suscetíveis de submeterem pela força qualquer segmento da organização política” (Matos, 2008: 90).

“The armed forces can inflict significant harm on the democratization process through the pursuit of their own narrow institutional interests or their intimidation of potential rivals” (Goodman, 1996: 38).

“When senior officers enjoy great prestige and possess advanced bureaucratic skills, when they believe that their capacity to fulfill their missions may be at risk, or when they doubt the competence of the civilian leadership, politicians can face great obstacles in exercising their authority” (Barany, 2012: 27).

Não se trata de todos os militares usarem enviesadamente o poder que possuem. Mas cabe notar que a posse de armas – em especial das armas mais poderosas de um país – confere um grande poder sobre pessoas, o qual cria nalguns a tentação, e a outros dá a oportunidade, para realizar fins particulares; e, noutros, cria uma atitude de reverência face a militares, só pelas suas posições ou presença. Mesmo numa forma benigna, e nem sempre o é, o Estado e os seus servidores constituem, por vezes em simultâneo, causa de segurança e de ameaça:

“While the state provides some security to the individual, it can only do so by imposing threats.” (Buzan, 1991: 50). E ainda: “The state is a major source of both threats to and security for individuals. Individuals provide much of the reason for, and some of the limits to, the security-seeking activities of the state” (35-37)

 

2.4. A viabilidade dos exércitos

Sobretudo, depois da Guerra Fria, as operações militares passaram a ter teatros muito variados; e alargou-se o espetro de missões, da guerra às chamadas missões de paz. Os exércitos são empregues num alargado espetro de tarefas e de uso da força; as operações poderão ser menos intensas, mas ainda mais complexas do que a guerra tradicional. A aproximação de algumas tarefas militares às tarefas policiais, usando a força com baixa intensidade ou sem a usar, levou alguns autores a chamar constabulary forces aos exércitos (Everts, 2002: 78; Easton e Moelker, 2010: 20-22):

“The military establishment becomes a constabulary force when it is continuously prepared to act, committed to the minimum use of force, and seeks viable international relations, rather than victory” (Janowitz, 1960: 418).

Mas da redução que se observa da guerra tradicional entre Estados não se pode inferir que os exércitos se tornaram, se vão tornar, ou se devem tornar, em polícias muito robustas ou “superpolícias”. Não desapareceram as diferenças substantivas entre exércitos e polícias nem desapareceu a eventual necessidade de usar a força até à destruição; só os teatros de operações militares se afastaram de vários Estados europeus. A invasão da Ucrânia pela Rússia ilustra esta tese, entre muitos outros factos que se podem invocar. Por isso, a necessidade e a missão dos exércitos não desapareceram, nem nada sugere que vão desaparecer.

Apesar do alargamento de missões, tem havido receios de perda de importância dos exércitos, que têm levado vários militares a procurar a legitimidade social através de um papel ativo na segurança interna (Horta, 1991). Seguindo uma tradição antiga, existem significativos setores dos exércitos que desejam uma conceção abrangente da defesa (Morais, 2000: 59-61; Santos, 2010); e invocam-se as capacidades dos exércitos para suprir deficiências das polícias, perante ameaças com componentes externas ou muito violentas. Mas, como já referido, as tarefas não-militares podem distraí-los da sua missão militar, e podem criar divisões internas, em ambos os casos com indesejável perda de eficácia:

“não tenhamos dúvidas que umas Forças Armadas capazes de tudo fazer mas incapazes de fazer a guerra não são Forças Armadas” (Santos, 1980: 61).

“o combate na guerra continuará a constituir a sua [dos exércitos] razão de ser, pelo que deverão resistir à tentação de esquecerem essa missão, em tempos de apoio difícil por parte de opiniões públicas mais recetíveis a aceitar despesas com o bem-estar social do que com a segurança, evitando encontrar fundamentos para as suas existência e missão em ações de polícia ou daquilo que passou a designar-se por ‘missões de interesse público’ (como se a sua missão principal não constituísse a sua missão de interesse público por excelência)” (Santo, 2014: 349).

Mesmo concetualmente, não é por uma ameaça externa se projetar no plano interno que passa a ser interna. De resto, pela definição de ameaça, todas as ameaças externas visam conseguir impacto interno; simetricamente, não é por uma ameaça que ocorre no plano doméstico ter origem ou alguma componente externa que se torna em ameaça externa. No EDD, não é a origem nem o local de concretização da ameaça que determinam a maneira de a enfrentar ou a resolver; o que é decisivo é o mecanismo pelo qual se enfrentam as ameaças, que começa por considerar uma ameaça concreta como uma violação da lei, doméstica ou internacional.

No EDD, não são as capacidades que dão a autoridade (ou as competências), mas a lei (Paulo, 2012, 2013). Em democracia, o emprego dos exércitos é restrito no plano doméstico, e não é vinculativo nem automático por ocorrerem ameaças externas:

“Missions linked to internal security should be short lived, not permanent […] carried out under civil control and subject to civil legislation” (Serra, 2010: 86).

 

3. O contexto português

3.1. A missão dos exércitos

A CRP estabelece, desde 1982, que a “República Portuguesa é um Estado de direito democrático” (art.2º); de 1976 até 1982 dizia apenas “Estado democrático”.

A CRP (só desde 1982) atribui uma única missão aos exércitos: a defesa militar da República face a ameaças externas (nº1 do art.º 275º e no nº2 do art.º 273º da CRP). Portanto, rejeita que as FA tenham competências próprias no plano doméstico; assim se eliminou a possibilidade de se definir um inimigo interno. Só está prevista uma exceção, que é a lei marcial ou estado de sítio, previsto no art.º 19º e no nº 7 do art.º 275º da CRP (em vigor) e regulado pela Lei Orgânica 1/2012 (LO 1/2012, que alterou e republicou a Lei 44/1986).

Estas normas estão densificadas na lei: nº 1 do art.º 24º da Lei 29/82, LDNFA; nº 1 do art.º 22º e nº 1 do art.º 24º da Lei orgânica 1-B/2009, Lei de Defesa Nacional, LDN-2009, normas mantidas nas alterações, LDN-2014 e LDN-
-2021; art.º 2º da Lei orgânica 1-A/2009, Lei Orgânica de Bases de Organização das Forças Armadas, LOBOFA-2009, normas mantidas nas alterações, LOBOFA-2014 e LOBOFA-2021; e nas leis orgânicas de cada um dos exércitos.

A CRP adotou (só desde 1989) o princípio da proporcionalidade ou princípio de proibição do excesso (nº 2 art.º 266º CRP), que vincula o Estado, e os servidores do Estado nesse âmbito, a “provocar com a sua decisão a menor lesão de interesses privados compatível com a prossecução do interesse público em causa” (Canotilho, 2003: 266-273).

A necessidade de afastar os exércitos das funções de polícia também foi reconhecida em Portugal: desde 1993, os oficiais do Exército na GNR estão desligados do seu ramo, e a PM adotou em 1995 um modelo civil. Mas a PM é chefiada por oficiais da Armada, quase todos hierarquicamente dependentes do comandante da Armada (CEMA), e é composta por pessoal militarizado, conceito com dignidade constitucional desde 1982 (art.º 270º), mas sem definição jurídica rigorosa. Em contraste, está em curso na GNR a substituição definitiva dos militares do Exército por militares da Guarda nos comandos de topo, tal como é recomendável em democracia (Serra, 2010: 74).

O enquadramento jurídico da divisão da produção de segurança fixou-se e densificou-se com o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (CC-PGR) 147/2001, que interpretou o conteúdo daquelas normas da CRP, e as balizas da eventual atuação dos exércitos na segurança interna. Este parecer homologado esclarece e estabelece que as FA não podem, por princípio, intervir na segurança interna, o que inclui a direção ou o controlo de polícias. A doutrina também vai neste sentido (Miranda, 2020: 607-616):

“O conceito constitucional de defesa nacional passou a ter como vector essencial a segurança do País contra agressões ou ameaças externas, através das Forças Armadas, distinguindo-se da defesa da ordem interna, constitucionalmente cometida à polícia.

Podemos dizer que a preocupação fundamental que presidiu à alteração dos preceitos acabados de referir foi, por um lado, separar a defesa nacional da defesa da ordem interna (segurança interna) e, por outro, redefinir o modelo constitucional das Forças Armadas, em conformidade com o que vigorava nas constituições democráticas do mundo ocidental, através da sua subordinação de forma inequívoca e substancial ao poder político” (CC-PGR, 2001: 3102).

“A defesa militar perante ameaças externas ao funcionamento de sectores de produção e abastecimento alimentar, industrial e energético, dos transportes e das comunicações, na medida em que constituem interesses vitais para o bem-estar e segurança das populações, compreende-se na previsão do nº2 do artigo 273º da CRP e no nº 1 do artigo 2º da LDNFA” (CC-PGR, 2001: 3105).

Apesar da única missão dos exércitos, a CRP admite que colaborem “em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações” (nº 5 do art.º 275º). Com a 4ª Revisão Constitucional, adotada pela lei constitucional 1/97 (agora nº 6 do art.º 275º), passou explicitamente a incluir a proteção civil (Miranda, 2018: 12; Alves, 2018: xi-xiii). Deduz-se das normas da CRP, que ela só autoriza os exércitos a atuar fora ou além da defesa militar contra ameaças externas, se, cumulativamente, houver decisão dos órgãos de soberania nesse sentido; se as capacidades dos exércitos forem insubstituíveis; se houver necessidade; e se houver proporcionalidade (ou não houver excesso) no seu emprego. Ou, ainda, a CRP não veda a participação dos exércitos na segurança interna, na proteção civil ou noutras políticas, apoiando ou colaborando com quem as dirige; a CRP só impede que tais missões sejam dos exércitos, ou que estes as dirijam.

A colaboração só é legítima e lícita após decisão dos órgãos de soberania nesse sentido, se os exércitos tiverem capacidades sobrantes e não faltarem à sua missão. Ainda assim, só podem apoiar, ou colaborar com outras entidades, sob a autoridade destas e com uma baliza temporal delimitada. Mas isso tem custos. Afetar os militares dos exércitos a missões não-militares prejudica a sua prontidão operacional (mesmo que não prejudique a prontidão estrutural, caso não haja cortes no dispositivo); para ela ser reposta nos padrões exigidos, é necessário tempo e recursos para o treino e a manutenção dos sistemas (Betts, 1995: 23-34; Cunningham, 2003: 714-716). Porque o primeiro dever de um dirigente é cumprir a missão do serviço que dirige, a ineficácia e a ineficiência na afetação de recursos não são aceitáveis, e é absurdo que os exércitos falhem, ou estejam pouco empenhados, na sua missão por estarem ocupados com outra ou outras alheias. O primeiro dever de um servidor público é cumprir a missão do seu serviço. Enquanto os órgãos de soberania podem fazer uma ineficiente e má escolha política, os executantes nos serviços públicos não têm essa opção, pois estão vinculados a obedecer:

“[…] civilians have the right to be wrong; soldiers […] do not have the right to be insubordinate” (Barany, 2012: 27).

Janeiro (2010) analisa diversas opções de colaboração dos exércitos com outras autoridades. Sobre o mar, é possível, respeitando a CRP, que a Armada colabore com as polícias e exerça vigilância, por esta ser uma tarefa de observação e recolha de informação6, que pouco ou nada interfere com a esfera de autonomia dos cidadãos, se forem respeitados os padrões legais de privacidade. Já a fiscalização, por penetrar essa esfera, não é permitida aos exércitos, e em especial à Armada. Só as polícias têm legitimidade e competência legal para vigiar e aplicar medidas de polícia, as quais colocam a fiscalização no âmbito da segurança interna:

“[…] as autoridades e as medidas de polícia constituem o substrato da actividade desenvolvida pelos actores do sistema de segurança interna” (IPRI, 2006: 31).

As medidas de polícia estão previstas na lei, em concreto, no capítulo V (art.º 28º a art.º 34º) da Lei de Segurança Interna (LSI) e devem ser conjugadas com o disposto na Lei da Organização da Investigação Criminal (LOIC).

A colaboração dos exércitos com outras entidades é definida e concretizada pela articulação entre os respetivos órgãos administrativos de topo: de comando dos exércitos (CEMGFA) e de direção superior do serviço a apoiar. No caso da segurança interna é o Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna (SG-SSI), conforme previsto na lei:

“As Forças Armadas colaboram em matéria de segurança interna nos termos da Constituição e da lei, competindo ao Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna e ao Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas assegurarem entre si a articulação operacional.” (art.º 35º da LSI-2008)

Esta norma está espelhada na Lei de Defesa Nacional, lei orgânica 3/2021:

“1 – As forças de segurança colaboram em matéria de defesa nacional nos termos da Constituição e da lei.

2 – Compete ao Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e ao Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna assegurar entre si a articulação operacional, para os efeitos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 24.º” (art.º 48º da LDN-2021).

As normas administrativas que regulam a colaboração só recentemente foram aprovadas pelo Governo (DN, 2019; Marcelino, 2019, 2020); foi um processo longo, devido às resistências corporativistas (Varela, 2010; Freire, 2018). É este modelo que deve regular a colaboração da Armada com as autoridades marítimas, e a sua intervenção na política pública de Autoridade Marítima.

Entretanto, foi confirmado o modelo e concluídas as reformas da defesa de 2009 e de 2014, pela LO 2/2021 (LDN-2021) e a LO 3/2021 (LOBOFA-2021), densificadas pelo DL 19/2022 (alterou as orgânicas do EMGFA e dos exércitos) e pelo despacho 032/CEMGFA/2022. Com esta reforma, os comandantes dos três exércitos passaram a depender hierarquicamente do CEMGFA, exceto quanto a matérias específicas dos seus exércitos (como os salvamentos marítimo e aéreo), em que os comandantes dos exércitos continuam a depender diretamente do MDN.

 

3.2. A inserção dos exércitos na Administração Pública

A CRP estabelece o império da lei: “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei […]” (nº 2 do art.º 266º; na CRP-1976 era o nº 2 do então art.º 267º). A lei é o fundamento e o limite da atividade administrativa (nº 1 do art.º 3º do DL 4/2015, Código do Procedimento Administrativo, CPA); é uma expressão do princípio da legalidade (Canotilho, 2003: 256). Os órgãos e serviços administrativos estão vinculados ao disposto na CRP e na lei, incluindo convenções internacionais ratificadas e regulamentos comunitários; só podem decidir e atuar com base em normas legais que os habilitem a tal, e não os podem escolher.

Os exércitos, bem como as autoridades marítimas, estão integrados na Administração Pública e pertencem à administração direta do Estado através do MDN; por isso, estão sujeitos ao poder de direção do Governo, de acordo com a CRP e a lei (Canotilho, 1984: 139-141; Fernandes, 1990: 12-23): nº 1 do art.º 23º da LDN-2021; nº 2 do art.º 1º da LOBOFA-2021; nº 1 do art.º 4º DL 183/2014, lei orgânica do MDN (LOMDN-2014); e as leis orgânicas dos três exércitos (alínea b) do art.º 7º da LOBOFA); já assim era nas versões anteriores dos referidos diplomas, desde 1982. Por isso, “os militares […] devem ser considerados trabalhadores ou funcionários públicos de pleno direito” (Fernandes, 1990: 17; no mesmo sentido, Laubadère, 1970: 308-314; Laubadère e Venezia, 1997: 157-169). E têm a especificidade, única nos funcionários públicos, de jurarem fidelidade ao EDD, através da CRP, ao qual podem ter de dedicar a vida (Canotilho, 1984: 147).

 

3.3. Os exércitos no plano doméstico

A integração dos exércitos na administração direta do Estado, hierarquicamente subordinada ao Governo, é um dispositivo formal que concretiza a supremacia civil, estruturante do EDD, e a ele inerente. Mas a supremacia civil só se garante limitando em permanência a autonomia e o espaço de intervenção doméstica dos militares dos exércitos; conclusão que resulta em larga medida de longa experiência por todo o mundo, e em particular de dois séculos em que os exércitos em Portugal tiveram competências domésticas próprias, foram usados pelos governos para atuarem internamente, ou intervieram por os seus dirigentes assim o decidirem:

“Since the early nineteenth century the Portuguese armed forces have always been at or close to the surface of power” (Wiarda, 1989: 139).

É essencial ter presente que existe, há muito, e é reconhecida, uma desconfiança dos oficiais dos exércitos em relação aos políticos (Serra, 1975: 139):

“[the military officer corps] is suspicious of and hostile toward civilian parties and politicians.” (Wiarda, 1989: 125 e 136); e mais adiante: “[…] the MFA had a common hostility to all political parties, which it saw as divisive and as detracting from the truly national interest, which it alone represents”.

Mouzinho de Albuquerque (1855-1902) marcou essa posição (Telo, 1996: 45-47) e foi uma referência heroica do Estado Novo (Wheeler, 1980). Esta desconfiança é indissociável das intervenções militares na vida política da Monarquia Constitucional de 1820 a 1851, na I República e já no “Estado Novo” (Serra e Matos, 1982; Ferreira, 1992; Tilly, 1993: 79-89; Marques, 1996; Caeiro, 1997: 174-175; Valente, 2005: 57-58; Lousada, 2007; Matos, 2008: 210-
-232; Miranda, 2018: 13-14), que contrariaram a norma (com origem na Revolução Francesa): “A força pública é essencialmente obediente. Os corpos armados não podem deliberar”7. De facto,

“[…] não há nenhuma grande modificação na estrutura do Poder político em Portugal que não tenha por detrás, aberta ou veladamente, por acção ou omissão, a mão do instrumento militar” (Santos, 1980: 263).

“[…] one of the more interesting aspects of the revolution in Portugal was the effort of the military to cement its power further, to subordinate civilian politics to the military authority, and to erect institutional structures to safeguard the military’s continuance as the final voice on national affairs” (Wiarda, 1989: 139).

“[…] a presença dos militares no poder, […], não iria parar. E a revolução de 1820 é disso o primeiro exemplo. Daí em diante, assistir-se-ia a toda uma dinâmica de luta pela aquisição, manutenção e exercício do poder político, toda ela subordinada à filosofia militar. […], de instrumento de uma classe – a nobreza – passa a instituição militar a instrumento do poder […]” (Caeiro, 1997: 41).

Também no “Estado Novo” os exércitos tinham tarefas domésticas:

“O Estado assegura a existência e o prestígio das instituições militares de terra e mar exigidas pelas supremas necessidades de defesa da integridade nacional e da manutenção da ordem e paz pública” (art.º 53º da Constituição de 1933).

De notar o modo como Salazar decidiu integrar os militares no regime:

“[…] Salazar elevated the armed forces to the role of ‘moderating power’ historically reserved for the crown, thereby securing the loyalty and support of the military while at the same time retaining the backing of all but the most fervent of the monarchists, integralists, and Catholic traditionalists” (Wiarda, 1989: 173).

Na sequência do golpe militar de 25 de Abril de 1974, o decreto-lei 310/74 criou o COPCON8, uma nova unidade militar, com atribuições e competências, e atuação, sobre a ordem e a segurança públicas (Carrilho, 1994: 45). Encarnando um papel moderador, análogo ao que Salazar lhes atribuiu no “Estado Novo”, os exércitos, pelo Conselho da Revolução, impuseram os Pactos MFA-Partidos (1975 e 1976), que marcaram a versão da CRP-1976, a qual (além de manter o Conselho da Revolução, como órgão de soberania militar, regulado pelo art.º 113º e artºs. 142º a 149º) para tutelar o regime atribuiu aos exércitos competências no plano doméstico (Wiarda, 1989: 111-112): “As Forças Armadas Portuguesas garantem o regular funcionamento das instituições democráticas e o cumprimento da Constituição” (art.º 273º). A manutenção da ordem interna era reconhecida pela Armada como uma das suas missões (Marinha, 1980).

Por fim, o primeiro Presidente da República eleito, o General Ramalho Eanes (1976-1986), tentou em 1981 reforçar a ação legislativa do Conselho da Revolução no âmbito militar (Ferreira, 1989: 430); e manifestou reservas à 1ª Revisão Constitucional, partilhadas por numerosos militares, sobretudo nos mais altos escalões (Ferreira, 2001: 190); e vetou a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA) em 1982. Em especial, opunha-se à extinção do Conselho da Revolução, às fronteiras entre defesa e segurança interna, à redução da autonomia dos exércitos, e à subordinação dos exércitos ao MDN e ao Governo (Amaral, 1983: 483-489). Findo o seu mandato, Eanes tornou-se presidente de um partido (Partido Renovador Democrático), cuja formação teve a sua influência pessoal, composto por diversos militares seus aliados e apoiantes (Manuel, 1996: 58).

Estas opções, e os seus resultados, revelam um padrão de desejo, e de presença e intervenção na vida política e na governação, dos exércitos e de militares no ativo. Esta experiência levou numerosos políticos, académicos e cidadãos por todo o mundo a concluir que, no EDD, os exércitos não devem ter atribuições e competências domésticas próprias, exceto se estiver em vigor a lei marcial (Bruneau e MacLeod, 1986: 12-24). Assim, a mudança de 1982 no modelo constitucional não foi circunstancial como reação ao período revolucionário de 1974-1975, como defendem alguns autores (Ribeiro, 2010: 11-12), mas uma mudança radical e estrutural, com fortes razões históricas.

Importa notar que os militares dos exércitos, por terem na sua posse as armas mais poderosas do país, estão sujeitos a um dever especialmente forte de isenção9, que impõe restrições aos seus direitos e liberdades, admitidas na CRP (art.º 270º e nº 4 do art.º 275º) e reguladas em lei de valor reforçado (art.º 25º a art.º 34º da LDN-2021). Em concreto, os militares estão vinculados aos princípios da imparcialidade e da neutralidade políticas, dos quais emergem as restrições, por exemplo, à sua liberdade de expressão, matéria destacada no parecer do CC-PGR 2/2008:

“[…] não podendo eles «aproveitar –se da sua função, do seu posto ou da sua arma para qualquer intervenção política» (cabendo nesta interdição todos os actos típicos de intervenção militar na política, desde as simples tomadas de posição políticas de um chefe militar, até, bem entendido, aos actos insurreccionais)” (ponto III, p.2357)

Esta restrição está densificada no RDM, uma Lei Orgânica, que estabelece que

“2 – Em cumprimento do dever de lealdade incumbe ao militar, designadamente:

a) Não manifestar de viva voz, por escrito ou por qualquer outro meio, ideias contrárias à Constituição ou ofensivas dos órgãos de soberania e respectivos titulares, das instituições militares e dos militares em geral ou, por qualquer modo, prejudiciais à boa execução do serviço ou à disciplina das Forças Armadas” (art.16º)

Esta restrição e a correspondente norma legal merecem especial destaque, pois são relevantes face às posições assumidas por vários militares na efetividade de serviço, de comandantes da Armada a seus subordinados, nomeadamente sobre a política pública de Autoridade Marítima. Com a subordinação hierárquica dos comandantes dos exércitos ao CEMGFA, introduzida pela reforma de 2021 (LO 2/2021 e LO 3/2021), este adquiriu competência disciplinar sobre aqueles; de acordo com o RDM (art.84º e art.89º), os comandantes dos exércitos passaram a poder ser responsabilizados no plano disciplinar.

 

4. Considerações Finais

Em democracia, os exércitos e as polícias têm missões distintas, sem prejuízo de uns poderem colaborar com os outros: os exércitos tratam do uso da força militar contra ameaças externas; e as polícias tratam de garantir a ordem e a segurança públicas, no respeito pela constituição e a lei do país.

Não é por uma ameaça ser externa, ou por um ou vários exércitos terem capacidades úteis, que se justifica ou determina, automaticamente, o emprego dos exércitos contra tal ameaça, ou o estabelecimento da lei marcial – pela qual as polícias ficam parcial ou totalmente subordinadas aos exércitos.

A CRP só autoriza os exércitos a atuar na segurança interna nos termos das normas constitucionais e legais aplicáveis, se forem cumpridas várias condições: tem de haver uma decisão dos órgãos de soberania nesse sentido e proporcionalidade no seu emprego. Esta decisão pode decorrer da declaração de um estado de exceção, ou inserir-se numa colaboração (ocasional ou permanente) com as autoridades competentes, a seu pedido e com balizas bem delimitadas.

Atribuir às FA competências próprias na segurança interna (ou na proteção civil ou noutro setor) porque isso aumenta a sua aprovação social e ajuda a contrariar a sua retração inverte o sentido da prestação do serviço aos cidadãos, e impõe ao cidadão a preferência do servidor. É, ainda, uma ineficiente afetação dos recursos públicos. E, pior, torna inevitável e a curto prazo a instabilidade política, como os dois últimos séculos mostram em abundância.

 

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1 Opõe-se-lhe o Princípio da Liberdade, que regula o domínio privado: “[…] our present day distinction between the public sphere (which is covered by law) and the private one (where, as in ordering one’s household or making one’s will, for example, people are supposedly free to do as they please) […]” (Creveld, 1999: 4).

2 A não ser assim, os servidores públicos podiam contornar reiteradamente a lei, para garantir a eficácia das decisões e das políticas públicas, fundando essa linha de ação no seu conhecimento superior e único das matérias. Além disso, o estado de necessidade tem de ser demonstrado.

3 Condição necessária ao exercício da democracia, mas não condição suficiente, como se prova pela subordinação dos exércitos a regimes autoritários e totalitários civis, por exemplo, na Alemanha nazi ou na Itália fascista (Carrilho, 1994: 87).

4 A sua relevância resulta de ter sido MDN em Espanha (1982-1991), na fase de consolidação do respetivo EDD.

5 O rigor terminológico determina que se distinga a atividade (defesa) da finalidade (segurança). Assim, é mais rigoroso usar a expressão “defesa interna” para alcançar a segurança interna, tal como se fala em “defesa nacional” para alcançar a segurança face ao exterior; mas “não se deve dar grande valor [a estes desvios entre a doutrina e a prática nos países e nas organizações internacionais], desde que se perceba e se aceite a respectiva natureza e propósito.” (Ribeiro, 2011: 47).

6 A vigilância integra a primeira fase das quatro que se podem distinguir na fiscalização: vigilância e deteção; identificação; inspeção (inclui a visita a bordo de navios); e (eventual) detenção. (Ponte, 1982: 854-855).

7 Nestes termos, ou noutros equivalentes, de acordo com o art.12º do Título IV da Constituição Francesa de 1791 (“La force publique est essentiellement obéissante; nul corps armé ne peut délibérer.”), que reproduz o art.12º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, nas constituições portuguesas de: 1822: art.172; 1826: art.115; 1838: art.122º; e 1911: art.69º (Almeida, 1981; Amaral, 1983: 112).

8 O autor não conseguiu encontrar diploma legal de revogação.

9 Todos os elementos das administrações públicas estão vinculados a um dever de imparcialidade, ou de isenção, estabelecido na lei, por exemplo, no art.9º do CPA.

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2023-07-10
15-42
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia