Nº 2652 - Janeiro de 2023
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Uniformes do Exército Português 1862-1884

Uniformes do Exército Português 1862-1884

 

O Doutor Pedro Soares Branco, médico, professor, diretor clínico do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, e reconhecido investigador e autor de várias obras sobre iconografia e uniformologia militar portuguesa, publicou mais uma obra no âmbito da coleção “Uniformes do Exército Português”.

Uniformes do Exército Português 1862-1884, editado pela Fronteira do Caos, inclui dois tomos, num total de 875 páginas, estando organizado em: Introdução, Anos de 1862 a 1884, créditos fotográficos e uma breve tradução para inglês (de todas as legendas das gravuras).

É uma obra original, com elevado rigor na linguagem e fruto de uma investigação cuidada e aturada. Representa, no conjunto global da obra, de que não deve ser separada, o trabalho de uma vida dedicada à Micro-História, mas muito importante para a história militar como um todo, pelo rigor e pelo relacionamento direto e indireto, com o armamento, o equipamento, a organização, a tática, a logística, a doutrina, as operações, etc. Por isso partilha e troca conhecimento com muitos peritos referenciados nos agradecimentos, o que valoriza consideravelmente a obra.

Cada peça, imagem ou quadro explicativos constituem um exemplo da investigação, hoje limitada a quatro ou cinco investigadores, sendo assim um contributo singular para a história militar (e não só) de Portugal.

1862 a 1884 é o período do reinado de D. Luís I (até 1889), que incluiu o motim da janeirinha, a revolta militar promovida pelo marechal duque de Saldanha (que seria substituído por Sá da Bandeira), a subida ao poder de Fontes Pereira de Melo, a criação de vários partidos políticos, a revolução tecnológica, os surtos migratórios para o Brasil e para África, o processo de modernização do armamento do exército com material de origem inglesa. 1884 é inclusivamente o ano da conferência de Berlim, resultando o Mapa Cor de Rosa, que definia a partilha de África entre as grandes potências coloniais, mas também o ano de uma nova reforma do Exército, que aumentou o número de efetivos e dividiu o continente em quatro regiões militares. Neste período, depois de uma guerra civil marcante, as Forças Armadas já estavam pacificadas e subordinadas ao poder constitucional, sucedendo-se várias reformas que visavam adaptar a organização e o novo armamento à evolução estratégica e tecnológica da segunda metade do século, seja no exército metropolitano, seja no colonial. Daí as consequências para o fardamento e equipamento que Pedro Soares Branco nos descreve pormenorizadamente.

Na introdução, Pedro Soares Branco, começa por referir que entre 1862 e 1884, houve muitas e significativas alterações nos uniformes, casos da adoção de golas abertas para todo o Exército, da abolição do acostelado nos uniformes dos caçadores a cavalo e dos caçadores a pé, ou a extinção da classe dos porta-machados (que usavam vistosos uniformes com barretina de pele de urso e avental – mas pouco cómodos que levava algumas praças de pré a dizer que desertavam se fosse para esta classe).

Sublinha depois que a alteração mais notável (talvez até mais visível) neste período de 22 anos, terá sido a adoção alargada duma nova barretina, que muito contribuiu para o figurino “à francesa”, que passou a caracterizar o Exército e que só viria a ser alterado em 1885. Atribuiu outra alteração relevante às disposições da Direção Geral da Artilharia relativas à nomenclatura do material de guerra, que passou a ser dividido em sete classes. Por força desta mesma Ordem da DGA, a maioria dos artigos passou a ter, tal como hoje, além do nome, a designação do ano em que o respetivo modelo foi estabelecido (é o caso de “espada com bainha m/1862”).

Seguidamente apresentou, de forma ilustrada e comentada, a legislação sobre os uniformes no período compreendido entre os anos de 1862 e 1884. Abordou, nos mesmos moldes, a legislação sobre correame, armamento portátil, equipamento portátil e ferramenta portátil, bem como a legislação sobre arreios do cavalo.

O rigor e uma linguagem cuidada, incluindo importantíssimos excertos da Revista Militar (que nos situam no tempo em estudo), dominam o resto da obra (Revista Militar que é a mais antiga do Mundo publicada ininterruptamente – fundada em 1848). As imagens são excelentes e as legendas são muito claras para o público em geral e para os militares, historiadores e cineastas em particular. São tão claras e explicativas que incluem muitos comentários relativos ao desajustamento entre os modelos regulamentares e os efetivamente executados (desde o rei às praças de pré, passando por sargentos, oficias e alunos do Real Colégio Militar):

– dragonas com franjas invulgarmente compridas;

– modelos de botões e de bordados desajustados;

– dimensões adequadas a alguém com demasiada obesidade;

– calça, aparentemente de bombazina, não regulamentar;

– artigo de uniforme privativo, em vez de regulamentar…

– casaco que “deveria ter duas abotoaduras”;

– que por Circular do Ministério da Guerra de 17 de Maio de 1872 foi proibido o uso, com uniforme, “de berloques, chapéus-de-chuva, bengalas, laços de gravata, calças apertadas, capotes pelos ombros, etc., etc.”.

O suporte bibliográfico é vasto e as fontes primárias são maioritariamente:

– a coleção das ordens do Exército;

– a coleção oficial da legislação portuguesa;

– as ordens da Direção Geral de Artilharia

– e a Revista Militar;

Tal como vem no oportuno extrato da RM nº 3 de 15 de fevereiro de 1862, num artigo da autoria de Cunha Vianna: “É bom estudar o que há pelos países que temos como modelos; mas é também necessário prestar atenção ao país a que se pertence… A questão dos uniformes prende com a economia da administração militar, e com a da organização do exército, subordinada esta a muitas considerações, onde avultam as da natureza do país, seu sistema de defesa, e meios prováveis de fazer a guerra.”

Noutros artigos se chama a atenção para o custo elevado dos uniformes, para o elevado encargo para as praças, que os vendem na primeira oportunidade, para os atrasos na sua manufatura, que leva a atrasos de anos na uniformização do litoral para o interior. Afinal, são problemas que ainda hoje vivemos (e não só em Portugal – pelos vistos também os grandes exércitos como o da Rússia tem problemas deste tipo na Ucrânia, na sequência da mobilização parcial de 300.000 militares).

Constatamos facilmente que, durante este período, os oficiais eram mais críticos, dando a sua opinião aberta na RM. É o caso do artigo do Major António Florencio de Sousa Pinto que na Revista Militar nº 20 de 30 de outubro de 1863 refere: “

Teve lugar no dia 18 uma parada, com a força estacionada em Lisboa, e no dia 19 o batizado do príncipe recém-nascido a qual festejo assistiu a mesma força, formando alas para passar o real préstito. (…) A força compareceu no melhor arranjo possível: o asseio e a uniformidade é o característico da tropa portuguesa. Notámos porém, o mau efeito que produziu a mistura dos diversos uniformes, formando de dois ou três regimentos um corpo. A quem se pretende iludir? O país? Decerto que não. O estrangeiro?”. Apesar de critico reconhecido, não deixou de ser General de Divisão e Ministro da Guerra…

Na RM de 24 de fevereiro de 1878 podemos ler:

“O fardamento é um dos assuntos que reclama a atenção dos poderes públicos, porque todo os exércitos europeus têm feito mudanças recentes nos seus uniformes, como no equipamento e armamento, em vista das experiências colhidas nas últimas guerras. É porém, necessário atender a que os modelos a adotar, a par de certo bom gosto, devem reunir a qualidade, a duração, simplicidade, utilidade reconhecida, que dê liberdade nos movimentos e que não carregue demasiadamente o soldado.”

Durante o estudo e até à aprovação dos mais recentes regulamentos de fardamento do Exército (mas também da GNR e de outros ramos das FA), não lemos artigos críticos como então. Nos estudos de pormenor também não assistimos à consulta de peritos como o Doutor Pedro Soares Branco, nem à explicação das diferentes alterações. Assistimos, como então, a comparações com outros exércitos, a avaliações/perceções de cariz mais estético de que funcional, a problemas logísticos enormes, decorrentes das imposições legais, mas também a testes operacionais não só em Portugal, mas também nos diferentes teatros de operações das Forças Nacionais Destacadas. E as consequências positivas tiveram o seu apogeu no passado dia do Exército em Santarém, em que, pela primeira vez em muitos anos, os militares estavam uniformizados, equipados e armados do mesmo modo (com as devidas e justificadas exceções), numa cerimónia com muita dignidade, apesar do temporal que se abateu sobre a formatura.

Esta obra, e em especial a coleção em que se insere, marca e marcará indiscutivelmente a História Militar em Portugal.

 

A Revista Militar felicita o autor pela publicação desta obra e agradece a oferta do exemplar que passou a contar no seu acervo bibliográfico.

 

Major-general João Vieira Borges

Vogal da Direção da Revista Militar

Major-general
João Jorge Botelho Vieira Borges
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