Nº 2661 - Outubro de 2023
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Os novos desafios da Guarda Nacional Republicana
Coronel
Carlos Manuel Gervásio Branco

Após duzentos e vinte e dois anos sob o comando de oficiais do Exército, a Guarda Nacional Republicana (GNR) passou, a partir de 1 de Setembro de 2023, a ter um comandante-geral oriundo do seu quadro permanente.

Com a promoção ao posto de tenente-general de dois majores-generais do quadro permanente da Guarda, fechou-se um ciclo na vida deste Corpo Especial de Tropas e inicia-se um novo, onde pela primeira vez na sua história não há oficiais do Exército na estrutura superior do comando.

Deve dizer-se que à semelhança do que foi ocorrendo em todas as suas congéneres estrangeiras, Guardia Civil, Gendermerie Nationale ou Arma dei Carabinieri, a transmissão da estrutura superior do comando dos oficias do Exército para oficiais dos seus próprios quadros em todos estes corpos, configurou um processo evolutivo normal, pelo que não deve considerar-se estranho ou extraordinário o que agora se passou na GNR.

Embora de forma muito sintética, importa fazer um pouco de história para melhor se perceber como aqui se chegou.

Recuemos ao dia 10 de Dezembro de 1801, data em que é publicado o decreto de criação da Guarda Real da Polícia, primeira antecessora da actual Guarda.

“Sendo muito conveniente, não só para a segurança, e tranquilidade da Cidade de Lisboa, capital dos Meus vastos Domínios, mas para que na mesma a ordem da Polícia receba huma nova consolidação, que à imitação das outras grandes cidades capitaes se estabeleça um Corpo permanente, o qual vigie na conservação da ordem, e tranquilidade pública, e que obedeça, no que toca à disciplina Militar, ao General das Armas da Província, e no que toca ao exercício das suas funções, ao Intendente Geral da Polícia…”.

“A Guarda Real da Polícia, será formada pelos melhores soldados escolhidos em todo o exército, não só entre os mais robustos, firmes, solteiros e até 30 anos de idade, por serem as funções a que são destinados mais penosas ainda que as da Guerra, mas também de boa morigeração e conduta.”

Em 1834, a Guarda Real é extinta e criada a Guarda Municipal.

A característica de Corpo Militar da Guarda Real da Polícia acentua-se nitidamente em vários aspectos na Guarda Municipal.

O decreto de 6 de Junho de 1851, estabelece que o serviço dos oficiais da Guarda, quer em Lisboa quer no Porto, seja exclusivamente desempenhado por oficiais do Exército, “não só como mais peritos da disciplina e da administração, como também pela maior facilidade de substituição… seguindo as conveniências públicas ou as dos próprios indivíduos”.

Em Abril de 1852, é publicada uma portaria que determina que só poderão ser alistados na Guarda, as praças que tiverem servido no Exército.

Em Dezembro de 1868, é promovida a reunião das Guardas Municipais de Lisboa e do Porto sob um comando único.

Por este diploma “as Guardas Municipais de Lisboa e do Porto fazem parte do Exército em tudo que respeita a disciplina e promoções”, continuando subordinadas ao Ministério do Reino para o serviço de manutenção da segurança pública.

Quanto à nomeação dos oficiais é feita “por acordo entre os Ministros do Reino e da Guerra sob proposta do comando-geral”.

Em 12 de Outubro de 1910, foi extinta a Guarda Municipal e criada a Guarda Republicana.

Na realidade, não houve uma alteração substancial, a nova Guarda assentou no esqueleto da anterior. O pessoal transitou na sua maioria para a Guarda Republicana.

Em 3 de Maio de 1911, “É organizado um corpo especial de tropas para velar pela segurança pública, manutenção da ordem e proteção das propriedades públicas e particulares em todo o país, que se denominará Guarda Nacional Republicana”.

“A Guarda Nacional Republicana, como parte integrante das forças militares da República, tem deveres e direitos idênticos aos que competem aos oficiais e praças de pré do exército activo”.

A Guarda, desde a sua fundação e mesmo com as diferentes denominações que foi conhecendo, manteve como constantes a sua dupla dependência ministerial dos ministros responsáveis pelas pastas da administração interna e da defesa nacional, com as várias designações que estes ministérios foram tendo, e uma forte ligação ao Exército, através de formulações como as que referem que “faz parte do Exército”, “prolongamento do Exército” ou “das forças militares da República” e as que estipulam que “os seus oficiais sejam exclusivamente do Exército” ou que “as praças só poderão ser alistadas se tiverem servido no Exército”.

Contudo, estas últimas asserções sofreram ligeiras alterações, respectivamente, em 1990, quando, em consequência da revisão constitucional de 1982, a GNR através do DL n.º 39/90, de 3 de Fevereiro, passou a ser definida como “uma força de segurança constituída por militares organizados num corpo especial de tropas…”, deixando assim formalmente, de fazer parte do Exército.

No entanto, em 1993, aquele diploma foi clarificado pelo DL nº 231, de 26 de Junho, que veio definir o posicionamento institucional da GNR “no conjunto das forças militares e das forças de segurança”, demonstrando que a nova definição como força de segurança não constituía impedimento à sua pertença ao conjunto das forças militares.

Já a questão da exclusividade dos oficiais do Exército ao serviço da Guarda foi quebrada em 1983.

Confrontado com a falta da alimentação de oficiais, sobretudo subalternos e capitães por parte do Exército, o então comandante-geral, general Alípio Tomé Pinto, não obstante as muitas incompreensões e dificuldades, toma uma medida audaz que se consubstanciou na criação do primeiro Estatuto dos Militares da GNR (EMGNR), donde decorre a consagração de um quadro permanente de oficiais.

A criação de um QP/GNR veio originar o fim da exclusividade do serviço dos oficiais do Exército na Guarda, salvaguardando simultaneamente a forte ligação ao Exército e às Forças Armadas, como bem vem enfatizado no preâmbulo do DL nº 465, de 31 de Dezembro.

“Considerando a necessidade de superar a actual situação de impasse que vem minando a funcionalidade da Guarda, qual seja a da impossibilidade de as Forças Armadas responderem, em tempo útil, às necessidades do dito corpo em oficiais, designadamente subalternos e capitães, o que se fará sem quebra da tradicional ligação às Forças Armadas, cujo vínculo se reforça, criando-se, em percentagem harmónica, o quadro permanente de oficiais da Guarda, em ordem à satisfação das referidas necessidades.

Este quadro far-se-á à custa do pessoal de complemento das Forças Armadas e dos sargentos da Guarda que não optarem pelo quadro do serviço geral do Exército, processando-se a sua formação, em prioridade, nas unidades e estabelecimentos das Forças Armadas ou, no mínimo, com o seu apoio, e mediante estágios e cursos complementares nas unidades e órgãos da Guarda, no que respeita à sua formação específica”.

Em consequência, a partir de 1984, passaram a prestar serviço na Guarda oficiais do seu recém-criado quadro permanente, a par de oficiais do quadro permanente do Exército, prevendo ainda o estatuto que em caso de necessidade se poderia recorrer a oficiais dos outros ramos das Forças Armadas.

Passados menos de dez anos, na senda do que fizera o general Tomé Pinto, um outro comandante-geral, o general Francisco Cabral Couto, toma igualmente uma relevante decisão para o futuro da GNR.

A formação dos oficiais do quadro permanente da Guarda passa a realizar-se na Academia Militar1, nas mesmas condições e com idênticos requisitos que os exigidos aos futuros oficiais do Exército.

No ano lectivo de 1991/92, a Academia Militar recebe os primeiros alunos destinados à GNR.

Fica assim aberta a porta para o acesso ao corpo de oficiais generais por parte dos oficiais da GNR.

Como se pode apreciar, em qualquer destas importantes decisões, nunca se pretendeu cortar a ligação com as Forças Armadas, antes pelo contrário, em ambos os casos aquelas foram salvaguardadas, primeiro, através da simultânea prestação de serviço de oficiais do Exército e da Guarda e da formação destes últimos em unidades e estabelecimentos das Forças Armadas e, posteriormente, pelo recurso à formação dos oficiais da GNR na escola que forma igualmente os oficiais do Exército.

Quanto ao recrutamento de praças para a GNR sem uma prévia passagem pelas fileiras das Forças Armadas, a mesma ficou a dever-se ao fim do serviço militar obrigatório, mantendo, no entanto, uma quota de 30% reservada aos candidatos oriundos das Forças Armadas.

Em 2017, um apressado processo legislativo que levou à aprovação de um novo Estatuto dos Militares da GNR2 que não levou suficientemente em linha de conta que o mesmo era para aplicar a militares, não cuidou de preservar esta especificidade onde a hierarquia é a sua pedra de toque, não inscrevendo qualquer norma relativa ao comandante-geral.

Assim, apenas o artigo 210.º o menciona indiretamente no âmbito da promoção ao posto de tenente-general.

“São promovidos ao posto de tenente-general os majores-generais que forem nomeados para o desempenho do cargo de comandante-geral e demais cargos, de acordo com o previsto na Lei Orgânica da Guarda para o posto de tenente-general”.

“Para efeitos de promoção a este posto é emitido parecer pelo Conselho Superior da Guarda em composição restrita, sobre todos os majores-generais da escala de antiguidade”.

É que, ao contrário do que se passa no Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR)3, que contém dispositivos que expressamente referem os cargos de Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) e Chefe de Estado-Maior dos ramos (CEM), o EMGNR é omisso.

Acresce igualmente que, ao contrário do que sucede com a nomeação dos CEM que são promovidos ao posto de general, a nomeação do comandante-geral da Guarda não implica a sua promoção a um posto superior ao dos demais tenentes-generais, donde, a “escolha” do comandante-geral da GNR terá de recair sempre sobre o tenente-general mais antigo.

A visão civilista do legislador não previu que diversamente do que se passa nas organizações civis, num corpo militar, o comandante não pode ser mais moderno ou menos graduado que os subordinados, nem prestar serviço sob as ordens de um inferior hierárquico.

Assim, se futuramente a “escolha” do comandante-geral da GNR recair sobre um tenente-general que não seja o mais antigo, obrigará a passar à situação de reserva todos os que forem ultrapassados, se para tal tiverem condições.

O legislador bem poderia ter-se socorrido do normativo do EMFAR4 referente ao Vice-Chefe do Estado-Maior dos ramos, que embora mantendo o posto de tenente-general, preconiza que a nomeação para este cargo implica passar a ser “hierarquicamente superior a todos os oficiais do seu posto”.

Uma outra nota a propósito do actual EMGNR. Pela primeira vez, um estatuto dos militares da GNR remete para as “Disposições finais e transitórias” um normativo relativo aos oficiais das Forças Armadas em serviço na Guarda, onde, designadamente se pode ler:

“A permanência de oficiais das Forças Armadas a prestar serviço na Guarda cessa à medida que os respectivos lugares sejam ocupados por oficiais da Guarda”.

Aqui, e ao contrário do que sempre ocorreu, a sistemática utilizada remetendo para as disposições finais e transitórias do diploma e a forma utilizada para a cessação da permanência dos oficiais do Exército na Guarda, afigura-se, no mínimo, deselegante e demonstrativa da maneira como o actual estatuto foi concebido.

E é precisamente neste ponto que se levanta o primeiro desafio.

Como se desenvolverão futuramente as relações GNR/Forças Armadas.

O facto de o comando da Guarda deixar de ser exercido por oficiais do Exército não constitui razão suficiente para que a GNR perca a sua natureza militar.

É bem sabido que, para alguns, este é o primeiro passo para que tal suceda, não obstante os oficiais generais da GNR terem sido formados na Academia Militar e no Instituto Universitário Militar, a par dos camaradas das Forças Armadas.

Ao contrário do que certas vozes foram fazendo crer, o Exército ou as Forças Armadas não são adversários da Guarda, esta crendice é de uma enorme desonestidade intelectual a toda a prova, basta ver de onde emanou a Guarda, ao que acresce que constitucionalmente as missões de umas e de outra, em tempo de paz, são distintas, as FFAA estão constitucionalmente impedidas de exercer funções de segurança interna, além de que os actuais efectivos das FFAA são insuficientes para o cumprimento integral de todas as missões que lhes estão cometidas, o que só por si seria realmente é impeditivo da concorrência com a GNR.

A verdadeira razão que impele estes “estrategas” é outra, a separação da GNR do seio da Instituição Militar.

Uma GNR isolada torna a sua instrumentalização mais fácil.

Se com uma forte presença de oficiais do Exército ao serviço da Guarda, onde se incluía a estrutura do seu comando superior, muitos foram os ataques e tentativas de subversão da sua natureza militar, como irá o novo comando da GNR conseguir lidar com este desafio quando deixou de ter uma rectaguarda protegida.

Decorrente deste primeiro desafio, surge um segundo que consiste precisamente na excessiva aproximação à Polícia através de uma indiferenciação de estatutos e de missões, aqui sim, se a concorrência se substituir à complementaridade estaremos perante uma ameaça.

O posicionamento da GNR como “Força Charneira” do nosso sistema de segurança e defesa, entre as Forças Armadas e as polícias, é um dos elementos definidores da Guarda e do próprio modelo dual de forças de segurança português.

Atingido que seja o primeiro objectivo pelos adversários de uma Guarda de natureza militar, fácil será passar ao segundo e daí à sua irrelevância no sistema ou mesmo ao seu desaparecimento é um passo.

O ADN da Guarda que durante mais de duzentos anos se foi consolidando, consubstancia-se nos seguintes elementos:

– A natureza militar;

– A dupla dependência das tutelas da administração interna e da defesa nacional;

– A dependência operacional do CEMGFA, em certas situações;

– A condição militar daqueles que nela servem;

– A polivalência de missões militares e policiais.

Estas são características essenciais que urge preservar na defesa da identidade e sobrevivência da Guarda e o grande desafio que a partir de agora se coloca aos novos comandantes da GNR.


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1 DL n.º 173/91, de 11 de Maio.

2 DL n.º 30/2017, de 22 de Março.

3 DL n.º 90/2015, de 29 de Maio.

4 N.º 2 do artigo 193.º.

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