Nº 2671/2672 - Agosto/Setembro 2024
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Camões e a Instituição Militar
General
António Eduardo Queiroz Martins Barrento

I. Introdução

Como qualquer português que ame a sua Pátria, ou no mínimo a preze, conheço alguma coisa de Camões, do seu notável poema épico e também da sua poesia lírica. Confesso, porém, não conhecer a sua vida e acção como militar e combatente no norte de África e no Oriente.

O meu deslumbramento com o poeta levou-me a nunca ter procurado conhecer a sua vida e acção como militar. Considero, portanto, muito interessante que, celebrando cinco séculos do seu nascimento, a Revista Militar se debruce sobre este tema. Além disso, esta pesquisa enquadra-se inteiramente no actual esforço de uma corrente da historiografia moderna que, apesar da escassez de fontes, procura saber mais sobre os executantes em acções, não se fixando apenas na vida e nos feitos dos dirigentes políticos e chefes militares.

Este meu desconhecimento sobre o Camões-militar foi claramente demonstrado quando numa ida a Macau fui visitar no jardim a chamada Gruta de Camões, esperançado de, à semelhança da Alegoria da Caverna de Platão, poder vislumbrar nas sombras algo da imagem de Luís de Camões como militar e como combatente. Mas tal não aconteceu.

 

Na gruta nada se passa

Seja vulgar ou solene

Nem mesmo a Dinamene

Dá um ar da sua graça.

Mas onde é que está Camões?

Por certo andou por aqui,

Mas por mais que eu o procure

Não o vejo nem o vi.

 

II. Algumas referências

No poema épico que trata da História de Portugal, das agressões e tensões de castelhanos e muçulmanos, dos esforços feitos para a definição do território e para a independência do reino, e no encontro com o desconhecido e o Oriente, aparecem logicamente muitas referências às acções guerreiras realizadas. Evocando os deuses do Olimpo e as Tágides, narra-nos de forma apoteótica a História de Portugal até ao século XVI, mas não nos deixa dados autobiográficos para além da sua enorme cultura clássica e incomparável talento.

Ele foi “da morte libertado pela pena, não pela espada”. Mas apesar deste silêncio sobre a sua vida militar transmite-nos ao longo do poema numerosas referências sobre a Instituição Militar, sobre a descoberta do mundo novo e sobre acções guerreiras.

Há quem diga que acerca de quase tudo podemos encontrar na sua Obra ajustadas citações mas, tratando o nosso tema, vamos apenas citar alguns versos e estrofes que nos dão a conhecer as suas ideias sobre a Instituição Militar e a sua estrutura, as suas características e a sua utilização como braço armado do país no período histórico que vai desde o nascimento da nacionalidade até quase ao final do século XVI.

Quando Camões escreve que “…eu canto o peito ilustre lusitano / a quem Neptuno e Marte obedeceram” 1, transmite-nos a importância da marinha e do exército na nossa História, na guerra, na epopeia. Isto é, tanto no mar como em terra dominámos pelas artes da marinharia e do combate guerreiro, esses dois deuses, para conseguir a nossa independência, poder e expansão.

O valor dos militares portugueses aparece explícito em “dai-me igual canto aos feitos da famosa / gente vossa que a Marte tanto ajuda.” 2. O elevado valor guerreiro do nosso povo, que ele desta forma registou, prolongou-se ao longo da nossa História e ainda hoje é sublinhado por dirigentes estrangeiros quando enaltecem as nossas unidades e os nossos militares nas operações de apoio à paz que temos realizado.

Ao referir que “em perigos e guerras esforçados / mais do que permitia a força humana” 3, diz-nos da vontade da direcção política em conquistar e garantir a nossa independência, promover a expansão, e do elevado moral do nosso povo, dos nossos militares, dos nossos combatentes.

Quando faz a dedicatória a D. Sebastião, ao dizer “dado ao mundo por Deus que todo mande”4, incita o rei a agir militarmente, ultrapassando até com o todo, o Tratado de Tordesilhas e também Francisco I de França, quando este, irónico e crítico, pergunta se o Tratado é o testamento de Adão. Mas faz notar que a finalidade é a procura de um universo cristão – “para do Mundo a Deus dar parte grande.” Da “cruzada” da fé e da pimenta, fala-nos da primeira. Mas, além deste desejo de um mundo português, pergunta também ao jovem rei “…qual é mais excelente / se ser do mundo rei, se de tal gente.” 5.

Ainda na dedicatória, quando diz “Vereis amor da pátria não movido / por prémio vil mas alto e quase eterno”, o Poeta refere que a razão para servir, nomeadamente como militar, a quem pode ser pedido o sacrifício máximo, depende do amor à Pátria e não da recompensa. Com um serviço obrigatório, como eram o dever de acorrer ao “apelido” na reconquista e as obrigações militares expressas nos forais, ou com um serviço voluntário, o que era necessário era haver a consciência do “estado de necessidade” na defesa e constituição de um aparelho militar eficaz. O importante era a convicção da pertença, o espírito de defesa e a vontade de servir a Pátria. Ou, como diz Camões, “esta é a ditosa pátria minha amada.” 6.

“Por prémio vil” é possível conseguir um contingente de mercenários, o que já Maquiavel desaconselhava, dizendo ao Príncipe que eles não vão morrer por ti; mas prémio vil é também a procura dos privilégios e tensas como sucedia no Soldado Prático de Diogo do Couto.

Para além destas breves mas importantes referências, datadas de uma época em que Portugal se batia militarmente no norte de África e no Oriente, levando a efeito acções em que o próprio Luís de Camões participou, considera-se que ele pensou, viveu e manifestou n’Os Lusíadas ideias sobre a estrutura da força, hierarquia e disciplina, o saber militar e a condução das operações.

Camões escreve “não houve forte Capitão / que não fosse também douto e ciente.” 7. No capitão (caput, cabeça) diz-nos da necessidade de uma cadeia hierárquica com dirigentes e executantes e que o capitão para ser forte, palavra que em si já contém uma ideia de poder, de ser obedecido, tem de ser douto e ciente.

Ser douto exige que se tenha elevada cultura e saber sobre a arte da guerra. Estar ciente obriga ao estudo e análise e a ser-se conhecedor das circunstâncias daquilo que, numa linguagem táctica moderna, é avaliar correctamente os dados da situação. Isto é, a conhecer o inimigo e as suas possibilidades; a ter em conta o meio e o terreno onde se vai efectuar a acção; e a ter um perfeito conhecimento dos meios materiais e humanos de que dispõe e do moral dos combatentes que comanda. Se tal acontecer, esse capitão deve ser um chefe de valor, competente para utilizar a força, para a finalidade que se deseja atingir com a acção.

Quase no final do poema Camões, dirigindo-se ao rei, diz “a disciplina militar prestante / não se aprende Senhor, na fantasia, / sonhando, imaginando ou estudando / senão vendo, tratando e pelejando.” 8. Numa primeira análise pode inferir-se que o conteúdo destes versos contraria aqueles do canto V que anteriormente citámos. Porém, como conselho que era dado ao rei, julgamos que complementa “o ser douto e ciente”. Isto porque é desejável que seja tida em conta a experiência e não se sigam fantasias oníricas. E a experiência adquire-se “vendo, tratando e pelejando” ou seja, vendo as experiências que tiveram outros chefes, estudando a História; tratando da força para maximizar o seu poder; e pelejando através do treino e até da experiência que se vai adquirindo ao longo das operações militares. Ser-se “douto e ciente” decorre em grande parte da experiência que outros chefes tiveram no comando de forças em operações, ou da sua própria experiência em casos anteriores.

Deve notar-se que um “saber só de experiências feito” 9 pode ser crítico ou opositor de certas acções e aventuras, particularmente quando estas sejam motivadas pela “…glória de mandar ó vã cobiça / desta vaidade a que chamamos Fama.” 10. Se, de facto, a glória de mandar não foi a prioridade da Expansão Ultramarina, porque dominaram outras ideias e interesses, já parece não estar distante da aventura que levou D. Sebastião à derrota de Alcácer Quibir. Com efeito “a maravilha fatal da nossa idade”,11 como lhe chamou o Poeta, foi de facto fatal para o nosso país. Perdemos grande parte da força, a elite do reino, a esperança e a independência. A glória de mandar sem alicerces no saber e fundamento lógico aliou-se à fantasia e ao sonho.

Curiosamente refiro, para terminar o paralelismo, que encontrei e que por mais de uma vez tenho referido, da definição trinitária de guerra de Clausewitz escrita nas primeiras décadas do século XIX e um verso da poesia lírica do nosso Luís de Camões.

Aquela que é chamada definição trinitária de guerra de Clausewitz que, no nosso entender, mais não é do que a apresentação dos principais elementos que nela predominam, como o próprio autor explicita, é a seguinte:

“a guerra é… uma surpreendente trindade em que se encontra primeiro que tudo, a violência original do seu elemento, o ódio e a animosidade, que é preciso considerar como um certo impulso natural, depois o jogo das probabilidades e do acaso que fazem dela uma livre actividade da alma, e, finalmente a sua natureza subordinada de instrumento da política…”.12

Isto significa a presença de um universo emocional em que cabem a violência, a paixão e o ódio; de um universo aleatório dominado pelas probabilidades e pelo acaso; e de um universo racional decorrente do exercício da política.

Curiosamente ao falar da sua vida Camões escreve:

Erros meus, má fortuna / Amor ardente.

Os erros decorrem de decisões suas, logo do universo racional; a má fortuna, o azar, são frutos do acaso, pertencem ao universo aleatório; o amor ardente manifesta-se nos sentimentos e na paixão e faz parte do universo emocional.

Este paralelismo deve decorrer da vida, da sobrevivência do poeta como ser humano. Mas na definição trinitária de guerra também estão os universos que têm a ver com a vida e sobrevivência da unidade política.

Tendo António Damásio, no Erro de Descartes, demonstrado a “intimidade” entre o universo emocional e o universo racional, retiramos duas breves conclusões:

• Na vida de um ser humano ou no percurso de uma sociedade política, o universo aleatório tem um lugar de destaque.

• O universo aleatório em Camões, a sua “má fortuna”, não impediu que tivéssemos a “fortuna” de receber e admirar a sua obra épica e a sua poesia lírica.

 

________________________________________

1 Canto I, estrofe III.

2 Canto I, estrofe V.

3 Canto I, estrofe I.

4 Canto I, estrofe VI.

5 Canto I, estrofe X.

6 Canto III, estrofe XXI.

7 Canto V, estrofe XCVI.

8 Canto X, estrofe CLIII.

9 Canto IV, estrofe XCIV.

10Canto IV, estrofe XCV.

11Canto I, estrofe VI.

12Clausewitz, Carl von, Da Guerra, Lisboa, 1970, página 89.

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by COM Armando Dias Correia