Deu sinal a trombeta Castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso;
Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães, que o som terríbil escutaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram. 1
D. João I é um rei medieval europeu que no seu tempo disputou um dos mais sangrentos e duradouros confrontos militares. Para lá da sua controversa ascensão ao poder, à Coroa, e que já há muito se resolveu na memória nacional, este monarca viveu toda a sua vida em permanente estado de conflito. Foi obrigado a travar duas difíceis guerras no interior do seu reino. Uma, difícil, contra Castela, mas que também era contra a sua sobrinha, D. Beatriz, a esposa de D. Juan; a outra, contra os seus, contra portugueses, de quase todas as terras, vilas e cidades do reino, num conflito que durou muito para lá da sua vitória na famosa batalha real de Aljubarrota. E velho, no ocaso da vida, transportado por naus e galés, comandou as forças portuguesas na conquista da primeira cidade norte-africana onde se levantou o estandarte nacional – em Ceuta, contra os Mouros. E esta foi a sua terceira guerra.
O conflito contra Castela integrou-se nas várias guerras dinásticas que assolaram a Europa nos finais da Idade Média e onde os sistemas monárquicos se entrelaçavam numa densa teia repleta de ligações entre as casas reais de todos os reinos existentes, e onde qualquer reclamação de direitos sucessórios facilmente encontrava contestação. Assim foi em 1328, quando o rei de França morreu sem deixar herdeiro. Logo se levantou a questão de quem tinha mais direito, se o primo ou o sobrinho, que também era o rei de Inglaterra, e mais depressa apareceram em França aqueles que se opunham a essa solução. Começava, assim, uma devastadora guerra que iria durar cem anos e que arrastou Portugal para o centro do seu vórtice. E porquê? Também por cá tinha morrido um rei sem herdeiro varão, mas com uma filha, casada com o rei de Castela, e que reclamava os seus direitos. Também por cá outros contestaram de armas na mão essa solução.
Como qualquer outro senhor do seu tempo, D. João I, um militar treinado nas artes da cavalaria, amava a caça, a montaria, as cavalgadas, a guerra. Recebeu o poder, com o qual ficou, que o iria distinguir por toda a eternidade não de forma natural, direta, simples e legítima. Muito pelo contrário, fez-se rei num duro plebiscito que representava o reino, através de uma eleição que lhe conferia esse direito, o de conduzir o seu povo pelo caminho da justiça, da defesa, da prosperidade. Mas isso não bastou. Grande parte do reino começou por não o querer, e muito menos aceitar2, e a questão só se podia decidir de uma maneira. Teve de disputar duas guerras, uma muito dura, porque era interna, civil, de irmão contra irmão, a outra contra um poderoso inimigo externo que a todo o custo queria tomar a coroa portuguesa.
Foi um rei obrigado a manter um reino sempre em estado de prontidão militar e a viver muitos anos, quase toda a sua vida, a marchar pelo seu país à frente das suas hostes de guerra, ou sobre navios que o iriam levar a abrir um caminho diferente para o futuro. O seu reinado passou-o, constantemente, a justificar o seu direito de ser rei e de governar. Tudo fez para propagandear o poder real, nas armas, no cerimonial, nas embaixadas ao estrangeiro, nos novos símbolos, e na história escrita pelos seus cronistas já no tempo de D. Duarte. Toda a vida política nascida na corte extravasava para os espaços públicos do reino, com as entradas régias nas cidades e nas vilas, celebrações militares, algumas de grande fausto, como a construção de um grande mosteiro destinado a celebrar a grande vitória alcançada em Aljubarrota, onde a sua vida e o seu projeto estiveram por um fio. Mas, também, com muitas cerimónias litúrgicas e receções às embaixadas que queriam conhecer este rei que muitos tinham achado improvável, e que não cessava de espantar a Cristandade, ao acabar de disputar uma longa guerra, uma «guerra justa» ainda ia, com os cabelos a branquear e os ossos a ranger, travar, lá longe, depois do mar, uma «guerra santa». Afinal, um velho rei, quase na madrugada do Renascimento europeu, que continuava o ideal das Cruzadas.
D. João I foi eleito, e aclamado rei, num mundo em que os métodos militares iam evoluindo rapidamente. Por vários séculos, o principal instrumento de guerra tinha sido o cavaleiro pesado, montado sobre um poderoso cavalo de batalha, protegido da cabeça aos pés por uma cota de malha e armado com lança e escudo, machado e espada. No entanto, por mais poderoso que fosse o impacto da sua carga, a cavalaria pesada era geralmente pouco eficaz contra soldados disciplinados que lutavam a pé em posições preparadas3. Além disso, eram vulneráveis ao tiro com arco quando disparado em massa, que causava grandes estragos entre o denso aglomerado de cavalos desprotegidos, desfazendo as suas formações e infligindo pesadas baixas, tal como o exército de D. João I fez em Aljubarrota destruindo a cavalaria de Castela, e dizimando os cavaleiros franceses que formaram para a primeira carga. Talvez tenha sido o ataque suicida da cavalaria inglesa contra os disciplinados quadrados de piqueiros escoceses (schiltrons) na batalha de Bannockburn, em 1344, uma lição impressionante, que foi mais bem aprendida pelos ingleses do que por qualquer outra nação europeia, e que, seguramente, os militares portugueses ao serviço de D. João I bem conheciam. E, para mais, a hoste portuguesa contava com uma forte força militar inglesa de infantaria – arqueiros.
Esses desenvolvimentos influenciaram bastante as gerações de comandantes dos exércitos futuros, até os do Renascimento. A dinâmica coordenada de homens de armas desmontados e arqueiros exigia que os comandantes exercessem um maior controle sobre as suas formações no decorrer da batalha em relação ao que antes era usual fazer-se. Manobrar grandes grupos de homens-de-armas que nunca tinham treinado juntos era um dos problemas constantes dos campos de batalha medievais. Tal operação exigia capacidades de comando acima da média, subcomandantes capazes no campo de batalha, uma cadeia de comando rudimentar e alguns meios de comunicação com os subordinados. Esses requisitos representavam um desafio considerável numa época em que as ordens eram transmitidas aos comandantes de secção por trombeta, ocasionalmente por mensageiro e por gritos. D. João I, os seus comandantes e os seus homens estiveram bem à altura destes novos desafios.
Em 1411, tinha terminado a guerra contra Castela. Uma intensa sucessão de acontecimentos militares dignos de ombrear com o que também acontecia para lá dos Pirenéus. O reino tinha alcançado uma paz duradoura com o seu inimigo «natural», mas tinha esgotado quase todos os recursos. Estava a viver uma profunda recessão económica, com falta de tudo, e o que havia, o que se produzia, ou importava, era adquirido a preços altos. Faltavam alimentos, sobretudo o cereal destinado à panificação, escasseavam muitas outras matérias-primas, como os metais, o que se traduzia numa enorme dificuldade em cunhar moeda de qualidade, faltava terra ao rei, e sem ela não podia recompensar muita da nobreza que servira com valentia e lealmente na guerra. Também os despojos resultantes das vitórias militares não enriqueceram o reino. Não nos esqueçamos que muitas das campanhas comandadas por D. João I e pelo condestável foram sobre localidades portuguesas, o que significava que mesmo saindo vitoriosos dos cercos, o saque resultante sairia do próprio reino. E as incursões sobre território inimigo da mesma forma não produziram espólio significativo. Foi uma guerra muito cara para o reino.
Por vezes são as guerras, as mesmas que levaram os seus «estados» a profundas crises, a solução para interromper ciclos económicos, sociais e políticos regressivos, transformando-os em processos de novas oportunidades e de crescimento. Não se pretende, aqui, fazer a apologia da guerra, mas procurar observar e refletir sobre os factos e outras informações que a história até nós fez chegar, para percebermos as condições que levaram o reino de Portugal a investir numa campanha militar a longa distância, gastadora de recursos económicos e com grande impacto social, quatro anos depois de terminar um longo e desgastante conflito. O reino também procurava aumentar a sua importância no contexto das monarquias ibéricas, e na Europa, através da conquista de Ceuta, que passaria a ser o território mais a sul da «reconquista cristã» e na outra margem do Mediterrâneo. Está bem estabilizada a corrente historiográfica que entende ter sido Ceuta o objetivo unificador e impulsionador do reino, uma verdadeira causa nacional agregadora de todas as razões e justificações. Nas condições em que o reino se encontrava depois das pazes de 1411, um projeto militar de grande envergadura apresentava-se como a solução mais viável para o primeiro rei de uma nova dinastia e para o país.
A Guerra dos Cem Anos, entre muitos aspetos, fez desviar o foco militar dos tradicionais diferendos com a potência muçulmana ainda presente no território peninsular, o reino de Granada, para o importante problema da sucessão ao trono de Castela, e por arrastamento, também, ao trono português. Além de pequenos conflitos esporádicos nas fronteiras com Aragão e com Castela, sobretudo relacionados com roubos de gado, ou a captura de navios mercantes cristãos, ou muçulmanos, no Mediterrâneo Ocidental, por marinhas cristãs ou islâmicas (dos dois lados do estreito de Gibraltar), não houve campanhas militares de grande envergadura contra as cidades muçulmanas que restavam nos séculos XIV e XV na Península Ibérica.
Todas as batalhas têm antecedentes e as suas vitórias, ou derrotas, consequências. Os acontecimentos ocorridos no dia 14 de agosto de 1385, numa colina do Oeste português, não tiveram caminho diferente. Apesar de todos os perigos que o grande exército de Castela representava para a independência portuguesa, as coisas da guerra não iam correndo mal para as cores nacionais. Antes de Aljubarrota já tinham acontecido momentos que indicavam possibilidades no inverter do rumo da guerra contra Castela. As vitórias em Atoleiros, Trancoso e Elvas, e o levantamento do cerco a Lisboa em 3 de setembro de 1384, constituíram marcos importantes na estratégia militar de D. João I. mas deve-se destacar a importância que os líderes militares nacionais, nomeadamente D. João I e D. Nuno Álvares Pereira, davam ao conhecimento, e emprego, das técnicas de combate que se usavam na Europa, que permitiam a uma força de infantaria e cavalaria apeada, em inferioridade numérica, suster uma força de cavalaria pesada em maior número, uma ação aprendida aos ingleses e usada agora em Portugal, setenta anos depois da derrota inglesa em Bannockburn, na Escócia, onde a técnica de pé em terra, ou seja, peões armados com lanças, imóveis à espera da carga da cavalaria inimiga, foi utilizada.
Também outro acontecimento se revelou decisivo na consumação do projeto político de D. João I, as Cortes de Coimbra, ocorridas entre março e o dia 6 de abril de 1385, que tinham na sua ordem de trabalhos o rumo a dar na guerra contra o rei castelhano, mas que elegeram como assunto fundamental, a atribuição da coroa portuguesa, justificando uma necessária e urgente mudança na ordem dos trabalhos4. A João das Regras, doutor pela Universidade de Bolonha em leis, coube o papel de conduzir toda a argumentação a apresentar àquelas Cortes. Pela narrativa do cronista Fernão Lopes, percebemos o seu plano, no sentido de fazer de D. João o melhor candidato para ser eleito.
Com quem foram contino sopeados
Estes, de quem o estais agora vós,
Por Dinis e seu rilho sublimados,
Senão co’os vossos fortes pais e avós?
Pois se, com seus descuidos ou pecados,
Fernando em tal fraqueza assi vos pôs.
Torne-vos vossas forças o Rei novo
Se é certo que co’o rei se muda o povo5.
O Mestre de Avis, era filho de rei, combatia pela defesa do reino, salvara Lisboa, era devoto, caridoso, justo e amado pelo povo, que o via exercer o poder de forma correta. Argumentos que fizeram daquele líder da Ordem Militar de Avis, rei de Portugal6.
Os ventos da guerra levaram a que o projeto de ataque concêntrico ao reino português, ordenado por Juan I, que pretendia atrair as forças nacionais a armadilhas onde pudessem ser fixadas e neutralizadas, para depois, num grande movimento de pinça, atacar Lisboa, ficou completamente estilhaçado com as derrotas das forças castelhanas em Trancoso e em Elvas, bem como pela pouca eficácia que a sua marinha tinha apresentado no bloqueio ao estuário do Tejo. Acabou forçado a modificar os seus planos iniciais, optando por concentrar todas as suas forças num exército único, tendo sido despachadas ordens para que todas as unidades militares convergissem para Ciudad Rodrigo. Por ali se juntou uma grande força cujo destino estratégico principal era o de marchar sem interrupções até Lisboa. Pretendia quebrar de uma só vez a coluna vertebral portuguesa dividindo o país e atraindo as forças afetas a D. João I para uma guerra de atrito que, achava, as iria destruir, deixando a principal cidade do reino desprotegida. Tomada a capital ganharia, provavelmente, o reino.
Assim e, nos dias que antecederam a batalha a colocação do exército português, nomeadamente o seu estado-maior, em Alenquer, permitiu a execução célere de duas manobras que, a seu tempo, se revelariam decisivas no desfecho da batalha. A primeira foi fazer avançar de Abrantes para Tomar a hoste régia na expetativa de barrar o caminho ao oponente, ou por batalha decisiva, ou por escaramuças múltiplas através de ações de envolvimento que atacassem e quebrassem a longa coluna castelhana. Mais tarde ou mais cedo esta “enorme serpente”7 estendida no terreno, seria a maior fragilidade do plano inimigo.
A segunda manobra, que de certa forma se alinhava com a movimentação das duas forças portuguesas, a do condestável e a régia, foi a de que as duas colunas convergissem sobre o litoral, em direção a Porto de Mós, onde chegaram no dia 12 de agosto, e para onde se deslocava, também uma força de combatentes ingleses.
Embora se tenham apercebido da presença de forças portuguesas, que se posicionavam para intercetar a coluna castelhana, os patrulheiros avançados de D. Juan I, correndo o risco de serem presos ou mortos pelos seus congéneres portugueses, não ficaram com uma imagem precisa da dimensão do dispositivo português, e que poderão até ter subestimado. Ao relatarem o que tinham observado, levaram a que o comando castelhano desviasse a sua marcha no sentido de Alcobaça, procurando evitar qualquer flanqueamento inimigo, pelo menos até serem obtidas informações mais completas.
A 13 de agosto, o dia anterior à batalha, o Condestável com um destacamento de cerca de 100 guerreiros, entre eles combatentes ingleses, efetuaram um reconhecimento montado na área situada na linha de aproximação da vanguarda castelhana. A movimentação desta patrulha partia de um pequeno planalto, com algumas das suas encostas com declives acentuados, um terreno que se revelava ideal para a instalação de um dispositivo defensivo com grande potencial. Estava, também, rodeado por duas linhas de água, afluentes da ribeira da Calvaria, e que confluíam para o rio Lena. Foi aqui que as forças de D. João assentaram arraial, nessa área excelente e quase inexpugnável. Era um ponto alto que permitia uma ampla visão de qualquer força que daí se aproximasse, com um declive de cerca de 10% segundo os padrões atuais, virado a noroeste, o que tornava impossível a uma força de cavalaria pesada carregar por aí. E, se o ataque se consumasse de manhã iria encontrar o sol pela frente.
Foi esta perspetiva que a vanguarda castelhana encontrou já próximo do meio-dia ao chegarem ao sopé da colina. Analisada a situação e verificado o seu contexto desfavorável, o estado-maior do monarca castelhano optou por mandar as forças rodearem a colina pela sua direita, no sentido oeste, procurando um acesso mais fácil que lhes permitisse atacar em melhores condições.
Este movimento torneante foi acompanhado pela hoste régia e pelos homens de armas do Condestável. A manobra castelhana, que as forças portuguesas mimetizaram, durou várias horas e terminou no local agora conhecido como Chão de Feira. Parecia aos castelhanos que os portugueses estavam desconfortáveis e confusos, pois tinham sido obrigados a inverter o seu dispositivo, onde o que era a vanguarda passava a ser a retaguarda.
O torneamento castelhano terminou quando foi descoberto um declive muito menos acentuado, com cerca de 2% de inclinação, que apresentava uma espécie de rampa ligeira e com alguma largura, parecendo quase plana, e onde se podia lançar um assalto decisivo com as unidades de cavalaria que estavam na vanguarda. Porém o tempo gasto com esta manobra levou a que o exército castelhano ficasse de novo com o sol pela frente, sol esse, que caminhava para o seu ocaso transformando-se involuntariamente num aliado dos portugueses.
Mas o primeiro objetivo estava conseguido. O exército castelhano, no caso a sua vanguarda, foi travado na sua marcha para Lisboa e agora obrigado a dar batalha num local e numa hora que não lhes era de modo algum favorável. E correndo o risco de ter um exército português na sua retaguarda a atacar de forma constante a sua linha de comunicações, a D. Juan I não restava outra alternativa a não ser a de assaltar a posição portuguesa.
Na sua segunda posição, onde irá decorrer a contenda, o dispositivo português assentava bem protegido nos seus flancos, com uma boa cobertura lateral propiciada pelos dois cursos de água e pelos declives, evitando os flanqueamentos pelo exército inimigo, uma orografia que terminava numa espécie de funil, ou gargalo de garrafa, para onde a hoste castelhana foi atraída. Uma rampa estreita e cansativa, que reduzia em muito a sua vantagem numérica, e além do mais tinham de contar com mais uma linha de água muito próxima de um fosso o que lhes dificultava sobremaneira a manobra. As linhas portuguesas reforçavam as vantagens propiciadas por aqueles obstáculos naturais com um conjunto de impedimentos artificiais, muitos deles sugeridos pelo destacamento inglês que integrava o dispositivo nacional. O terreno por onde se esperava o ataque castelhano foi acrescentado com abatises, fossos, valas e “covas de lobo”, que serviram bem o propósito a que se destinavam e que foram de extrema utilidade.
Começa-se a travar a incerta guerra;
De ambas partes se move a primeira ala;
Uns leva a defensão da própria terra,
Outros as esperanças de ganhá-la;
Logo o grande Pereira, em quem se encerra
Todo o valor, primeiro se assinala:
Derriba, e encontra, e a terra enfim semeia
Dos que a tanto desejam, sendo alheia8.
Já pelo espesso ar os estridentes
Farpões, setas e vários tiros voam;
Debaixo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam;
Espedaçam-se as lanças; e as frequentes
Quedas coas duras armas, tudo atroam;
Recrescem os amigos sobre a pouca
Gente do fero Nuno, que os apouca9.
Aquela estrutura defensiva teve como objetivo a criação de uma espécie de “funil de morte” que se revelou muito eficaz tendo em conta o elevado número de baixas que causou e que para além disso impediu a passagem dos que se lhe seguiam, obrigando mesmo os cavaleiros a desmontar e a quebrar as hastes das suas lanças ao meio para poderem combater apeados e corpo-a-corpo. Outro dos efeitos alcançados naquele estreito gargalo, foram as baixas por esmagamento e sufocação, já que os que vinham atrás não se apercebiam dos camaradas que ficavam retidos pelos e continuavam a empurrar. Também as muitas centenas de virotes e flechas disparados continuamente a curta distância por besteiros portugueses e arqueiros ingleses produziam muitas baixas na força inimiga, aumentando o efeito de pânico e de confusão incontrolável.
Nunca se conseguirá saber a constituição exata de cada um dos exércitos em confronto naquele fim de tarde de agosto. Têm sido, no entanto, apresentados valores razoavelmente aproximados, mesmo sabendo-se que as fontes cronísticas de ambos os lados costumarem tender para a indicação de números bastante inflacionados para as forças inimigas contrárias. Os cronistas de Aljubarrota não fugiram a essa regra. Na leitura de João Gouveia Monteiro, Pero López de Ayala e Jean Froissart, indicam, por exemplo, que: “D. Juan I traria consigo a 14 de agosto de 1385, um número da ordem dos 20 000 combatentes, enquanto do outro lado, o recém-eleito monarca de Portugal, contaria com a presença de um pouco menos de 10 000 homens”10. São números que contrariam uma historiografia mais nacionalista, que costumava apontar para uma desproporção de 3 para 1, a favor de Castela. No entanto, é por demais evidente, a superioridade do exército castelhano que integrava para além disso, muitos nobres portugueses, partidários de D. Beatriz.
Contudo este não é o referencial mais significativo, pois o que é importante reter, é que no dia 14 de agosto de 1385 no campo militar de S. Jorge, Castela não conseguiu empregar todo o seu poderio militar no confronto. Estima-se que apenas 5 000 homens se tenham envolvido de forma direta na batalha, enfrentando o forte sistema defensivo português, que assentava numa frente única, estreita e afunilada, um “corredor de morte”, onde os combatentes foram comprimidos e esmagados contra uma barreira artificial que distorceu e diminuiu a vantagem numérica dos castelhanos.
“Os trons castelhanos anunciaram o início do combate.”11 A batalha que se seguiu foi o corolário lógico de toda a preparação e estratégia antecipadamente delineada e onde a hoste castelhana viu o seu avanço dificultado pelos obstáculos e pelo disparo criterioso dos destacamentos de besteiros e arqueiros. A primeira carga coube à cavalaria francesa, jovens gascões, seguida de uma forte investida da segunda linha castelhana, onde estavam muitos portugueses, mas que se viu obrigada a desmontar e a ter de combater a pé, pelejando com as suas meias-lanças e ficado em desvantagem perante a peonagem portuguesa, equipada com armamento mais adequado ao combate a pé. Embora tenham conseguido empurrar o centro da vanguarda portuguesa, a presença de destacamentos de atiradores nos flancos nacionais, que disparavam de forma concentrada e contínua e o rápido e eficaz avanço da retaguarda (a segunda linha), comandada pelo monarca português, conseguiu travar o ímpeto dos castelhanos e lançar um contra-ataque.
Noutro plano, a carriagem lusa que tinha sido, entretanto, atacada por uma força de ginetes castelhanos que galgaram uma das faces da colina, foi socorrida por homens do Condestável que repeliram a investida. O ataque principal e este ataque secundário foram com grande determinação das forças portuguesas rechaçados e, por esta altura, o pendão real castelhano já tinha tombado causando um sentimento de pânico generalizado entre os castelhanos. “Foi uma batalha breve, apesar de os dois exércitos já se encontrarem à vista uma do outro há mais de 12 horas”12, ferozmente pelejada no final de um dia muito quente, com muito esforço de parte a parte, onde os castelhanos como que foram convidados a investir sobre uma armadilha mortal, criteriosamente preparada e com o sol, que se deitava, a incidir de forma direta no seu campo de visão. O número de baixas foi elevado no exército castelhano, aproximadamente 2 500 homens, no entanto, nem todos ali pereceram, pois na fuga que se seguiu, muitos acabarão por morrer às mãos das populações da região.
Eis ali seus irmãos contra ele vão,
(Caso feio e cruel!) mas não se espanta,
Que menos é querer matar o irmão,
Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta:
Destes arrenegados muitos são
No primeiro esquadrão, que se adianta
Contra irmãos e parentes (caso estranho!)
Quais nas guerras civis de Júlio e Magno13.
Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos,
Que contra vossas pátrias, com profano
Coração, vos fizestes inimigos,
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns tredores houve algumas vezes14.
Aljubarrota, à semelhança de outras batalhas que ocorreram antes e depois, no contexto de uma guerra de maior escala que acontecia na Europa atlântica, a Guerra dos Cem Anos, imprimiu na história o valor inegociável do comando, da estratégia, da tática, da preparação prévia, enquanto fatores determinantes no resultado de uma batalha campal nos finais da Idade Média. Em como poucos podem suplantar muitos e, como o desejo de liberdade e independência são fatores potenciadores de feitos dignos de engrossarem as lendas e mitos. “A vitória em Aljubarrota trouxera a certeza de que o título de rei também tinha sido conquistado pelas armas.”15 O que tinha sido adquirido por João das Regras nas Cortes de Coimbra, através da oratória e da Lei, foi agora consubstanciado por D. João I no plano militar. Um pormenor muito importante, o da vitória no campo de batalha, que rapidamente foi divulgado nas monarquias europeias nos anos subsequentes, através das palavras escritas por Fernão Lopes, que a mando do seu rei, D. Duarte, filho de D. João I, ajudaram a consolidar e a legitimar uma nova dinastia de reis em Portugal. Palavras que Luís de Camões tão bem conheceu, e melhor utilizou.
Luís de Camões combateu. Conheceu de perto o alvoroço da contenda, a incerteza da luta, foi ferido na carne, e sobreviveu. Na enorme gesta poética que escreveu tratou a guerra e os assuntos militares com conhecimento de causa. Entendeu bem, no seu tempo, e nos diferentes espaços por onde andou, a importância do processo militar. Percebeu, profundamente, as dimensões que uma batalha decisiva podia alcançar; no que se podia tornar enquanto expressão de um coletivo nacional; na transposição de um momento único, irrepetível, para uma definição permanente de uma identidade portuguesa.
Mas importa precisar a forma como Luís de Camões introduziu D. João I e a guerra contra Castela na sua obra sobre Portugal e os Portugueses, e que tem de ser interpretada à luz dos seus olhos. Na sua consciência existia a certeza de que esta guerra contra Castela era injusta, mesmo no contexto mais vasto da Guerra dos Cem Anos. Os Lusíadas são produzidos dentro da dimensão política de uma monarquia dual (1580-1640), onde o domínio político e a supremacia militar pertenciam ao império espanhol que se formava, e a referência ao rei D. João I e à famosa batalha real integram-se numa narrativa coerente sobre a formação do reino português e do seu desígnio medieval: a guerra justa, e santa, contra os Mouros. Como bem escreveu sobre Aljubarrota, toda a tragédia se deveu à cobiça. Afinal um processo amoral e mesquinho desfasado dos critérios que, no seu entender, podiam ter tornado a guerra contra Castela numa guerra justa (jus ad bellum).
Ainda pouco se sabe sobre a vida do Grande Poeta, mas a sua vida coincidiu com a fase final do Renascimento europeu, onde foi testemunha e ator de muitas mudanças na cultura e na sociedade, um tempo onde os últimos estertores de um sistema medieval feudal se encontravam com novas maneiras de viver, de estar, de pensar e de agir, tendo como pano de fundo uma constante tentativa de redescobrir e de revalorizar os modelos fundamentais da Antiguidade Clássica. Camões foi educado e cresceu neste período de procura de ideais humanistas e naturalistas, que procuravam reafirmara a dignidade do Homem, colocando-o no centro de todas as coisas, e logo a seguir a Deus. Respirou uma atmosfera de mudança que tentava investigar a natureza, novas terras, diferentes realidades e perturbadoras experiências místicas. Uma atmosfera que procurava seguir o caminho da razão, e que começava a procurar na ciência uma arbitragem da sociedade europeia e um diferente significado da Vida. No seu tempo foram inventados variados instrumentos científicos, descobertas novas leis naturais e entidades físicas desconhecidas para os europeus. Todo o conhecimento que havia se ia modificando com as novas realidades trazidas pelos navios que cruzavam oceanos até paragens longínquas. A especulação intelectual no tempo de Camões rompia a impossibilidade de criticar o dogma e desfazia os lados exotéricos da velha alquimia. A Física, a Matemática, a Astronomia, a Filosofia, a Engenharia e outras importantes disciplinas do conhecimento científico ganharam um ímpeto imparável. Também este foi o tempo do nascimento de novas experiências políticas, onde surgiram fortes sistemas nacionais, uma perspetiva dos futuros modelos estatais centralizados, também muito impulsionados pelas diferentes realidades que a tragédia da Guerra dos Cem Anos tinha provocado.
No século XVI, a época em que Camões viveu, a influência do Renascimento italiano teve grande impacto no resto da Europa, mas muitas das suas características mais brilhantes e inovadoras foram ofuscadas por causa de uma série de disputas políticas e de guerras que modificaram o mapa político europeu, perdendo a Itália a sua importância original, mas foi, sobretudo, a violenta cisão da Cristandade, com o surgimento da Reforma Protestante, o mais importante fator de mudança. A Contra-Reforma, a forte resposta dos católicos, reativou a velha inquisição medieval e a asfixiante censura eclesiástica. Por outro lado, as doutrinas de Maquiavel difundiam-se rapidamente trazendo drásticas mudanças aos sistemas políticos tradicionais, com a dissociação obrigatória entre o sentido ético e a prática do poder.
Desde meados do século XV que Portugal se afirmava como uma grande potência naval e comercial. Os reinados de D. João II e de D. Manuel I, projetaram o reino para uma lógica política e geoestratégica diferente, ambiciosa, expansionista. De tal forma estes objetivos se cumpriam que logo nos primeiros anos do século XVI, o cronista Garcia de Resende se lamentava de que os feitos, façanhas e aventuras épicas portuguesas para lá dos mares eram tantas, que não havia nem tempo, nem gente, que sobre elas escrevessem. Mas aquele cronista teve resposta num romance de cavalaria escrito por João de Barros, A Crónica do Imperador Clarimundo (1520), onde o sentido épico da dinâmica nacional se expressava. Quando Camões surgiu, lavrou também este caminho, compondo uma narrativa heroica assente nesse espírito aventureiro e descobridor que atravessou oceanos sem fim, definindo uma perspetiva de abertura até aos limites do Mundo, mas que tinha começado nas duras guerras travadas pela independência nacional, primeiro contra os Mouros, depois contra os Castelhanos.
Pois foi assim que Luís de Camões nos falou daquela longínqua batalha travada em Aljubarrota num dia de verão dos finais do século XIV, onde, para ele, se decidiu o futuro do seu reino, do nosso país.
EFEMÉRIDES
Cortes de Coimbra, março a 6 de abril de 1385.
Batalha de Aljubarrota, 14 de agosto de 1385.
Conquista de Ceuta, 21 de agosto de 1415.
Batalha de Aljubarrota (14 de agosto de 1385). British Library, Royal 14 E IV f. 204 recto.
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_de_Aljubarrota#/media/Ficheiro:Batalha_de_Aljubarrota_02.jpg
Fontes:
CAMÕES, Luís de, 1989, Os Lusíadas, Leitura, Prefácio e Notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão e Apresentação de Aníbal Pinto de Castro, Lisboa, ICALP.
LOPES, Fernão, 1983, Crónica de D. João I. 2 vol. Barcelos: Livraria Civilização.
Estudos:
COELHO, Maria Helena da Cruz, 2010, D. João I. O de Boa Memória. 1385-1433. Lisboa, Academia Portuguesa da História / Quidnovi.
FRANCE, John, 2009, «A Changing Balance: Cavalry and Infantry, 1000-1300», in Revista de História das Ideias, vol. 30, Coimbra: Instituto de História e teoria das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Almedina, pp. 153-177.
MONTEIRO, João Gouveia, 2001, Aljubarrota Revisitada. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
VARANDAS, José. 2023. D. João I e o Exército. Lisboa: Caleidoscópio.
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1 Os Lusíadas, IV, 28. Nas posteriores citações colocaremos somente o canto e a estrofe.
2 Situação que permaneceu durante muito tempo no reino, mesmo depois da importante vitória obtida no campo de batalha, em Aljubarrota.
3FRANCE, 2009:156.
4 COELHO, 2010:456-458.
5 IV, 17.
6 VARANDAS, 2023:79.
7 VARANDAS, 2023:82.
8 IV, 30.
9 IV, 31.
10MONTEIRO, 2001.
11VARANDAS, 2023:94.
12VARANDAS, 2023:94.
13IV, 32.
14IV, 33.
15VARANDAS, 2023:94.
Subdiretor do Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.