Nº 2671/2672 - Agosto/Setembro 2024
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Uma Acção Militar no Oriente
General
António Eduardo Queiroz Martins Barrento

A – Introdução*

Para um número especial da Revista Militar, a publicar em 1999, no quadro de “A presença de Portugal no Oriente”, solicitaram‑me um pequeno artigo sobre a actividade militar terrestre ali desenvolvida pelos portugueses.

Três problemas surgiram de imediato no meu espírito. Primeiro, não sou um especialista na matéria, mas apenas um curioso da nossa história militar que, também no Oriente, foi riquíssima; segundo, face à multiplicidade das acções terrestres que ocorreram em diferentes cenários, interrogo‑me se seria aconselhável cingir‑me a um caso paradigmático, ou procurar transmitir uma visão global mais enriquecedora; terceiro, sendo a nossa presença multissecular e abrangendo um espaço geográfico muito vasto, de Mombaça e Socotorá ao Cipango e Insulíndia, a que período e região me deveria dedicar.

Ultrapassei o primeiro problema – não ser um especialista – aceitando o repto, por espírito de missão e porque, como dizia Humbolt, “nunca foi bom que os químicos tivessem medo de molhar as mãos”; porque se trata de uma iniciativa importante para comemorar “a grande aventura de Portugal”, o “experiencialismo português”, a maior contribuição dada por um Povo para o conhecimento do mundo; porque a nossa expansão é “o começo do Mundo finito” (Paul Valery), fez “duplicar a obra da Criação” (Humbolt), “inaugurou a biografia moderna do capital” (Karl Marx), e deu a conhecer aos homens “as montras escondidas de Deus” (Fernando Pessoa); e porque a nossa presença no Oriente me fascina – do passado ao presente, das pedras às palavras – e me enternece, como sucedeu há dois anos, em Goa, quando assisti à missa dominical, em português!

Do segundo e terceiro problemas – multiplicidade dos exemplos e extensão do tempo e do espaço – pareceram‑me do menor interesse as descrições mais conhecidas, ou uma tentativa de síntese em que coubesse o principal, para não repetir o que é sobejamente conhecido e porque a diversidade dos propósitos e das acções, ao longo do tempo, não permite tal síntese. Julguei, pois, mais correcto, fazer um esforço para respigar as principais características que influenciaram a utilização da força armada no princípio do século XVI e lembrar o colorido de uma acção que, descrita por fonte menos compulsada, apenas é exemplar por terem sucedido muitas outras que se lhe assemelham, por se passar em Goa, que foi a capital do Império, e por ela ter sido dirigida pelo grande capitão Afonso de Albuquerque.

Assim, vou num primeiro tempo esboçar o quadro da intervenção militar no Oriente, seguido da descrição da reconquista de Goa, para terminar com uns pontos de reflexão.

 

B – Quadro de Intervenção

Para entendermos as intervenções militares portuguesas no Oriente, no primeiro quartel do século XVI, torna‑se necessário esboçar, ainda que em traços largos, o quadro envolvente que as condiciona, define e determina. Dos vários elementos caracterizadores que devem pertencer a esse quadro elegemos apenas os objectivos políticos que se pretendiam alcançar e orientaram a acção estratégica desenvolvida; as potencialidades e limitações que tínhamos na época, operando naquela área geográfica, e que são definidoras do valor e da disponibilidade da Força; a manobra estratégica que ao longo daqueles anos fomos desenvolvendo e aperfeiçoando; e as principais formas de acção militar que foram utilizadas.

Muito se tem escrito e debatido, por vezes com a paixão que as ideologias emprestam aos diferendos, os objectivos políticos que levaram Portugal a agir no Oriente. Porque estamos com Fustel de Coulanges quando nos diz que “o monismo da causa será sempre um estorvo para a explicação histórica” e pondo de lado a prioridade das intenções e a ponderação dos seus pesos relativos, que são o essencial da discórdia, julgo não haver dúvidas que dominavam as causas materiais e espirituais, a obtenção de riqueza e as razões da fé.

A obtenção de riqueza justificava a procura do ouro e o controlo do comércio das especiarias e outros bens raros no Ocidente, o qual desde as primeiras viagens se verificou ser altamente vantajoso, podendo enriquecer o Rei e o Reino e transformar Lisboa no mais importante entreposto comercial europeu. O facto de o ouro, especiarias, sedas e lacas passarem a ser monopólio da Coroa, em 1506, comprova bem o peso e valor dos interesses materiais.

As razões da fé que desde a nossa acção no Maghreb acom­panhavam a acção expansionista e guerreira, em virtude da queda de Constantinopla, em 1453, e da crescente ameaça turca sobre a Europa, justificavam este movimento torneante, a procura de aliados cristãos, o acompanhamento das expedições de uma componente evangélica e a abertura de uma nova frente de hostilidade contra os “mouros”. Aliás, no Oriente, estes dois objectivos até se confundiam porque, estando grande parte do comércio nas mãos dos árabes, ao procurarmos substituí‑los nessa actividade atingia‑se uma grande fonte de riqueza do inimigo, lutávamos contra os seus agentes e procurávamos trazer à fé cristã as populações locais, passando os elevados réditos daquele comércio a enriquecer o Rei e o Reino.

As potencialidades que poderiam ser exploradas fundamen­tavam‑se na capacidade tecnológica de que dispúnhamos, no saber acumulado através de séculos de luta e navegação e de algumas décadas de expe­dições marítimas, e nas motivações, que abrangendo um leque aberto da população portuguesa, do nobre ao plebeu, do comerciante ao religioso e ao artífice, permitiam que a orientação política traçada tomasse a forma de um quase desígnio nacional.

Na capacidade tecnológica deve notar‑se o nosso avanço na construção naval, marinharia e navegação, no poder de fogo da artilharia e na técnica de construção de fortificações.

As frotas portuguesas eram constituídas por diversos navios, construídos e aparelhados em Portugal, com finalidades variadas, destacando‑se a satisfação das necessidades de transporte e de combate. O artilhamento das caravelas e navios ligeiros com bombardas grossas permitia um eficaz tiro rasante, que somado à sua manobrabilidade nos colocava em vantagem no combate naval. Para além disso, a artilharia naval era apta a efectuar bombardeamentos em terra, em demonstrações de força, acções de represália, ou em apoio da acção de pessoal desembarcado ou já ali instalado. No âmbito da tecnologia destaca‑se, ainda, a nossa capacidade para erigir fortalezas, artilhá‑las e dar‑lhes condições logísticas, por forma a garantir, em terra, capacidade de defesa.

Estes avanços tecnológicos, que os inimigos de Portugal levaram alguns anos para recuperar, eram suportados por um saber acumulado, principalmente depois de 1415, ano em que, com a tomada de Ceuta, iniciámos a aventura maghrebina e a exploração da costa africana. Tínhamos gente experimentada na navegação costeira e de alto mar, no combate naval, na realização de desembarques, na obtenção de eficácia com a artilharia de bordo e de sítio, na construção de fortalezas com capacidade de defesa e sobrevivência e no conhecimento das formas de agir do adversário.

Como potencialidade igualmente importante deve mencionar‑se a motivação daqueles que participavam nesta “cruzada da fé e da pimenta”. A chefia era entregue a gente experimentada nas praças do norte de África, ou nas expedições marítimas que efectuámos ao longo de dé­cadas e que, servindo o Rei, esperavam que os seus feitos fossem reconhecidos e recompensados. A maior parte dos marinheiros e soldados eram contratados e pagos pelos cofres da Coroa e, participando na grande aventura, poderia igualmente surgir‑lhes a ocasião do reconhecimento ou da fortuna. Além disso, todos eles tinham a “garantia” que a sua acção contra o infiel contribuia para a salvação da sua alma…

 

É pois no somatório destas potencialidades – capacidade tec­nológica, “saber de experiência feito” e motivações – que a decisão de empenha­mento no Oriente encontrou natural suporte e eficiência.

Havendo, de facto, estes factores exploráveis, não poderemos esquecer, entre outras, duas grandes limitações que nos condicionavam: o grande afastamento daquela área geográfica em relação a Portugal; e o pequeno contingente demográfico do Reino.

O afastamento da Índia do nosso núcleo territorial causava enormes servidões. Era de um modo geral a dificuldade em projectar poder – medido em navios, combatentes e artilharia – em paragens tão longínquas; era o tempo gasto na viagem das armadas; era a “perda em linha” que frequentes vezes sucedia, por razão das longas viagens, das condições meteorológicas adversas, das rotas desconhecidas e perigosas, e da própria acção do inimigo; era o planeamento das expedições baseado em notícias escassas, imperfeitas e sempre desfasadas no tempo.

A dificuldade no comandamento político da acção no “Teatro de Operações” obrigava o Rei a delegar autoridade, nos limites de uma “carta de comando”, que criava um quase rei ou, como era chamado, um vice‑rei. Mas a demasiada autonomia, a incerteza, as notícias retardadas e contraditórias e, quantas vezes, a inveja e a intriga tornavam este comandamento político deslocado das realidades locais, limitador da iniciativa, desajustado ao evoluir da situação e factor de quebra de coesão, particularmente entre os que iam à Índia para servir e os que iam para “se servir”.

O pequeno contingente demográfico de Portugal dificultava a existência simultânea de gente de valor na Índia, no Norte de África e no Reino, e não permitia a exploração simultânea dos recursos do País e o empenhamento e consumo de vidas e bens no Oriente. Era um momento, talvez, em que deveriam ser relidas e meditadas a carta de Bruges do ilustrado e sagaz Infante D. Pedro e o conselho do Infante D. João de não ser avisado trocarmos “o filho de Deus pelo de Zebedeu”…

No encontro destas potencialidades e limitações devemos lembrar, também, a circunstância favorável da falta de unidade política e religiosa que fomos encontrar no Oriente, a qual facilitou muito a nossa acção. Com efeito, a presença, simultânea e quantas vezes inamistosa, de hindus e muçulmanos e a proliferação do poder e de conflitos, davam um enorme espaço de manobra a uma acção diplomática perseverante e inteligentemente prosseguida e, inclusivamente, à utilização parcimoniosa da Força.

 

Tem‑se dissertado muito e debatido pouco sobre as concepções e manobras estratégicas levadas a cabo pelos Portugueses, no Oriente, porque elas têm servido várias finalidades: demonstrar o acerto ou desacerto das mesmas; mostrar a potencialidade de modelos que foram, posteriormente, “copiados” por outros povos; alimentar teses de hemiplegia mentaL sobre o predomínio de poder naval ou de poder terrestre; e, até, apresentar razões da nossa futura decadência, como se ela não estivesse intimamente ligada às nossas limitações e ao apareci­mento, naquela área geográfica, de outros povos europeus com potencia­lidades superiores às nossas.

Todas estas teses são interpretações interessantes, mas na sua fundamentação cruzam‑se, frequentemente, dados de real valor histórico com argumentos e malabarismos de elaborado pendor intelectual que, com elevada probabilidade, não constavam das preocupações dos construtores do nosso Império no Oriente. Sem qualquer desrespeito pelos conceitos que existissem a montante, em nosso entender essas manobras estratégicas resultaram menos de grandes e elaboradas concepções, que das necessidades reais que iam surgindo aos responsáveis pela conduta da política e da acção armada, à medida que se ia consolidando a nossa presença. De facto e de acordo com o ditado popular de que “a necessidade é mestra de engenho”, também nesta área do saber que hoje está regulamentado em vários tratados de geopolítica e de estratégia, parece ter sido o “experiencialismo português” que foi apresentando soluções para os problemas e obstáculos que surgiam e dificultavam o cumprimento dos objectivos políticos fixados.

 

Não devemos estar longe da verdade ao apresentarmos a seguinte relação de raciocínios que devem ter estado na origem do dispositivo estratégico que se foi laboriosamente construindo:

– as razões de evangelização sugeriam o encontro com núcleos da igreja nestoriana, a exploração da acção apostólica de S. Tomé e um contacto duradouro com as populações locais, o que requeria uma presença efectiva em determinados lugares, onde a maior receptividade indicasse que a “semente” frutificara, ou poderia vir a dar frutos;

– ainda as razões da fé indicavam que se deveria combater “os mouros” em terra e no mar, impedir a sua expansão, diminuir o seu poder e destruir o tráfego comercial marítimo que eles praticavam e era tão importante para o seu poderio económico;

– as pretensões comerciais obrigavam ao estabelecimento de feitorias onde se pudesse “fazer o trato”, ao controlo do mar, de forma a negar o tráfego marítimo aos nossos adversários e a efectuarmos, nós próprios, esse comércio;

– a negação do tráfego marítimo aos nossos adversários exigia uma Armada com capacidade efectiva de “policiamento” e o controlo dos estreitos que fossem passagens normais ou obrigatórias dos navios que efectuavam esse tráfego;

– a existência de uma Armada com missões de vigilância, combate e transporte, num espaço marítimo tão afastado de Portugal, determinava a existência de bases terrestres seguras e com capacidade de sustenção;

– a falta de unidade política, que encontrámos na Índia, e a hostilidade entre vários polos de poder aconselhavam a obtenção de súbditos para a Coroa ou de aliados para a nossa acção;

– a necessidade de bases territoriais seguras, o clima de intran­quilidade e os inimigos que a nossa acção suscitava obrigavam a uma presença efectiva em determinados lugares e que se providenciasse a sua segurança;

– a escassez de recursos humanos e o valor limitado da força sugeriam uma selecção muito cuidada das bases terrestres e pequenas guarnições, o que exigia fortificações consistentes, possibilidade de socorro e a utilização polivalente dos combatentes;

– a conquista do comércio marítimo indicava que deveríamos controlar as origens das especiarias e dos bens que era necessário transacionar para as obtermos.

Por estas razões parecia necessário dispormos de uma Armada com capacidade de transporte e intervenção e de bases terrestres seguras para as “transacções” ideológicas e comerciais, ou que permitissem ancoradouro e sustentação às esquadras, bem como a sua intervenção oportuna onde tal se justificasse. Para a obtenção deste dispositivo deveríamos explorar o vector diplomático, a hostilidade existente entre os vários “Reinos“ e utilizar o aparelho da força, quando o mesmo fosse “o último argumento”.

As instruções dadas por D. Manuel a D. Francisco de Almeida, após sete anos de contacto com o Oriente, são já uma tentativa de encontro das nossas potencialidades, limitações e interesses. Dever‑se‑ìa obter a paz e vassalagem dos poderes locais, erigir fortalezas na orla marítima, conduzir uma guerra de corso contra os mouros e rendibilizar o transporte de bens quando do regresso das naus a Portugal.

Cremos, portanto, que foi com raciocínios como os acima definidos, ditados pela consecussão dos objectivos políticos, influenciados pelo ambiente vivido naquela área geográfica e medidos pela relação de forças existente em cada momento, que se foi construindo, passo a passo, o nosso Império no Oriente.

 

Quando analisamos a utilização que foi dada ao “braço armado”, forçosamente de reduzida dimensão e poder para tão vasta área e múltiplos problemas, temos uma visão mais clara do seu apoio às manobras de persuasão e pressão que foram realizadas e, também, do seu emprego em coacção, quando as situações o exigiam. Procurando definir os patamares de utilização da Força, poderemos dizer que eles iam de simples acções de reconhecimento, presença e demonstração da força; a actos de pura conquista territorial, de defesa e socorro e de represálias; e a acções de policiamento marítimo e combate naval.

A persuasão obrigava a operações de presença e demonstrações de força, com a finalidade de se conseguir aliados ou súbditos e tributários da Coroa. Assim sucedeu, logo em 1502, com as alianças conseguidas por Vasco da Gama com os Reis de Cochim e Cananor; em 1503 com Afonso de Albuquerque e o Governador de Coulão; em 1516 com o Tratado de Paz e Comércio firmado por Fernão Peres de Andrade e a Rainha de Ceilão; em 1522 com o Tratado conseguido por Henrique Leme junto do Rei de Sunda.

Entre muitos exemplos de conquista territorial temos a acção de D. Francisco de Almeida em Mombaça, em 1505; as conquistas de Albuque­rque, de Ormuz em 1507, de Calecut e Goa em 1510, de Malaca em 1511.

Das numerosas acções de defesa e socorro lembramos a heróica defesa de Cochim, por Duarte Pacheco Pereira, em 1504; o socorro da fortaleza de Angediva, conduzido pelo filho de Francisco de Almeida, D. Lourenço, em 1506; a defesa e socorro às fortalezas de Coulão e Columbo, com tropas de Goa e Cochim, em 1519; o socorro a Ormuz, vindo de Mascate e Caliate, em 1521; a heróica defesa de Calecut, capitaneada por D. João de Lima e que obrigou o Samorim a assinar a paz, em 1525.

Os ataques feitos contra os portugueses, nas feitorias e fortalezas, foram, frequentemente, razão para represálias por parte das forças portuguesas. São exemplos das mesmas a realizada em Calecut por Pedro Álvares Cabral, em 1500, como resposta ao massacre dos portugueses da feitoria, tendo a cidade sido incendiada e as naus muçulmanas queimadas; a acção de D. Lourenço em Coulão, em 1505; e, as acções de bombardeamento e terror conduzidas por Albuquerque, no Mar Vermelho, em 1513.

Os actos de policiamento marítimo eram frequentes, como o conduzido por António Saldanha, em 1504, para controlar e impedir a passagem das naus para Meca. A partir de 1506, quando D. Francisco de Almeida institui o “cartaz”, o qual constituía a autorização de navegação para os comerciantes, o policiamento passa a ser uma operação permanente e rotineira das nossas forças navais.

Dos combates navais recordamos, apenas, a vitória de D. Lourenço de Almeida sobre a armada de Samorim em Calecut, em 1506; a conhecida vitória de Albuquerque sobre a esquadra moura junto a Ormuz, em 1507; a vitória de D. Francisco de Almeida sobre as armadas de Melik‑Iaz e do Sultão do Egipto, em 1509; e ainda, a obtida sobre o Rei de Linga, na Sumatra, pela armada comandanda por Jorge Botelho, em 1514.

 

C – Reconquista de Goa

Para descrever a reconquista de Goa recolhemos a narração que é feita no capítulo 97 da “Crónica do descobrimento e conquista da Índia pelos Portugueses” (Códice anónimo, museu britânico, Egerton 20,901), publicado em Coimbra, em 1974, pela Junta de Investigação do Ultramar.

Apesar de alguma dificuldade que possa surgir na sua leitura, trata‑se de um texto vivo e colorido que, como informamos, é uma amostra de muitas outras operações militares que os portugueses realizaram no Oriente. Daqui a nossa escolha.

“Cheguados os nosos a Cananor, descamsaram do trabalho passado, mas Afomso d’Albuquerque, semtymdo muto perder hũa tal çidade, desejamdo tornalla a cobrar, rrevollvendo e seu coraçã a maneyra que pera iso terya, chegou Duarte de Lemos cõ quatro naaos em que amdava d’armada no estreyto de Hurmuuz, e llogo a poucos dias chegou Gonçalo de Sequeira1, destes rreynos, com sete naaos e muy boa gemte; polo qual o Governador, vemdo tã bõo aparelho, se fez prestes para tornar sobre Goa e nam leixar tal impressa; e estando nisto acupado moreo o rrey de Cochy, e pareçe que hũu seu sobrynho que, segundo seus custumes, avya d’erdar o rreyno, o qual estava metydo e hũa casa debaixo do chãao, em Vaypy, sabemdo que hera morto, se fazia prestes pera hyr tomar pose do rreyno. Outro primo deste, que era gemtil mançebo e sempre fazia a guerra ha Calecut, secretamemte fez tudo isto sabeer ao Governador, e pedimdo lhe que tal nã consemtyse e oulhase bem quãto trabalho tynha llevado na defemsão e guarda do rreyno, que nã era bem que haquelle que sempre esteve ēçerrado e rrimdo das mortes dos vasallos e destroyçam do rreyno, tam follgado, ouvese de ser rrey, que lhe pedia que ho ajudasse e favoreçesse pera ser rrey, porque elle nam queria hussar de suas amteguydades. O Governador, vemdo sua carta e avemdo conselho cõ allgus secretamete, foi detreminado de o fazer rrey, porque ho conheciã e sabyam sua condiçã, e que era amigo de todollos nossos; em hũu pomtose fez prestes cõ hua guallee e duas caravellas e bij paraos e partyo via de Cochym, e chegou hũu dia a noyte, e sua ida fez lloguo sabeer a Elrrey secretamente, e elle asy lhe veyo fallar. O Governador lhe disse que elle serya rrey e nam outro, e sabendo que ho outro avia de hyr ao outro dia, Afomso d’Albuquerque o espedio e foysse comtra hua ilha aguardallo, o qual vymdo polo rrio abayxo lhe sayo ao emcontro, e as bombardadas e setadas ho fez fogir e lleixar a empressa. Emtã se foy pera Cochy e fez ellevãtar o nosso amigo por rrey com suas çerymonias, segundo seu custume, e leixamdo o pacifico se tornou a fortalleza. Leixamdo ally Duarte de Llemos e Gonçalo de Sequeira pera carregarem, se partyo pera Cananor e a gramde pressa se fez prestes e partyo pera Goa cõ xxiij vellas gramdes 2 e pequenas e com ijbc 3 homees de pelleja e chegarã a barra de Goa. Emtãao ho Capitão moor mãdou diamte Manuel da Çunha e Framcisco Pereyra e outros cõ has gales e batees pera vere os passos da outra bamda da çidade, se estavã mais fortes do que os leixara, avissamdoos do que havyam de fazer, os quaaes, etrãdo polo rrio açima, chegarã ao passo de Manestary e pasarã por elle e foram dar ē hũu llugar de cem vezinhos, per nome Agaçy, o qual sem muyta afromta queymarã. Apos elles emtrou ho Capitão mor com toda a frota e foyse lançar da cidade hũu boo tyro de bombarda, homde esteve haguardamdo por Tymoja, que ficava atras. O qual, por tardar, ho Governador sayo ē terrã co toda a gemte, semdo ja avisado dos passos a que hos outros forã, e elles cõ elle, e mãdou Dioguo Mendez cõ iiijc omēes e Manuel de Laçerda cõ outros iiij c4 desem cõbate ha cidade per hũa parte omde estava hũa porta; os quaaes se forã a suas batalhas ordenadas comtra haquella parte que lhes hera mamdado, omde lhe(s) sayrã ao ecõtro obra de ij mouros, allgus (sic) mamalucos, e outros de Persya, que elles llaa tinham, muyto esforçados e gramdes guerreiros, que andavã a solldo cõ ho Çobaym, e com gramde esforço cometem hus (sic) os outros, e pellejarã asy muy gram pedaço ē que de hũa parte e outra ouve muytos mortos e feridos, porem mais dos imiguos. Emtão os nossos capitães, vemdo quão bem pellejavã hos imiguos, começarã de fallar e bradar cõ hos seus que ouvesem vergonha. Oos quaaes, afromtados e emvergonhados de suas palavras, os cometerã tã rrijo e cõ tamto esforço que a mall de seu grado os fizerã vollver as costas e fogir pera a çidade, domde lhes sayrã e socorro atee iij c mouros que hos começavã d’esforçar, mas tudo hera nada porque elles hyã tã cheos de medo que nã ousaram de tornar, amtes fizerã fogir hos outros. E os nossos, seguymdo (lhes) ho allcanço, matamdo e ferymdo nelles, etrarã cõ elles de vollta polas portas da çerqua, que numqua lhas poderã fechar po nã lleixare os seus e poder dos nossos; e Dioguo Memdez se leixou ficar as portas por as nã çarrarem e fazer ētrar toda outra gemte, porque demtro nã herã senã atee iiij c homees, e Manuell de Llaçerda e Dom Jeronimo de Lyma e outras seguio (seguiram) os inimiguos atee o meo da cerqua, omde sayrã comtra elles pasamte de ij em hua batalha, e pellejamdo muy ardidamente os fezeram rretraer pera tras huu pedaço, omde morreo Dom Jeronimo e outros atee xbj e mais de cemto ferydos. E por çerto ally fezerã todos fim se Dioguo Memdez nã socorrera cõ hobra de ijel homēs, que se cõ elle as portas ajuntaram, mas este que digo, vemdo(o)s tam maltratar lhes socorreo, nã tam somemte rrepayrou os nosos mas cõ sua hajuda, ganhamdo (ganhando) esforços, arrancarã os imiguos daly, e, matamdo e ferymdo nelles, hos fizerã fogir e por outras portas os deytaram fora. E os nosos, fechadas as portas, se apoderarã de tudo e da fortaleza, poemdo suas bamdeyras. Emtam chegou o Capitão moor as portas, as quaaes lhe forã abrir, e emtrou demtro com toda a gemte, ordenamdo llogo a gemte polo muro e lugares neçesarios, e descamsaram todos. Ao outro dia, leixãdo muy boa guarda na fortaleza, (…)

 

D – Pontos de Reflexão

Da acção descrita parece poderem fazer‑se algumas reflexões, desde o nível político ao táctico e, até, de âmbito pedagógico.

 

1. De nível político

“fez tudo isto sabeer ao Governador, e pedimdo lhe que tal nã consemtyse e oulhase bem quãto trabalho tynha llevado na defemsão e guarda do rreyno”

“Emtã o Governador se foy pera Cochy e fez allevãtar o nosso amigo por rrey com suas çerymonias, segundo seu custume, e leixamdo o pacifico se tornou a fortalleza. Leixamdo ally Duarte de Llemos e Gonçalo de Sequeira pera carregarem,”

Estes dois pequenos extractos sublinham a capacidade de julgamento, a liberdade de acção e a consciência da neces­sidade que tínhamos de aliados naquela área geográfica.

Desejoso de reconquistar Goa, o Governador foi em primeiro lugar sobre Cochim, para garantir a sucessão a quem se tinha mostrado amigo de Portugal e poderia manter, com benefício para a nossa presença e manobra, aquela cidade.

Ao partir para Goa deixou Duarte Lemos e Gonçalo de Sequeira a carregarem as naus de regresso ao Reino, na prossecução do importante objectivo económico que justificava, em parte, a nossa presença no Oriente.

 

2. Da avaliação estratégica

“semtymdo muyto perder hua tal çidade, desejamdo tornalla a cobrar, rrevollvendo o seu coraçã a maneyra que pera iso terya,”

Não tendo sido possível manter a posse de Goa com os meios que à altura se dispunha, mantinha‑se o valor desse objectivo estratégico, na esperança de surgir uma ocasião em que a sua reconquista fosse possível.

“vemdo sua carta e avemdo conselho cõ allgus secretamete, foi detreminado de o fazer rrey, porque ho conheciã e sabyam sua condiçã, e que era amigo de todollos nossos”

De notar neste trecho o conselho que o Governador pediu, o secretismo que o rodeou e o peso que teve na decisão o facto de se tratar de um aliado fiel.

No ambiente de hostilidade que havia contra os portugueses, era avisado garantirmos aliados fiáveis que tinham, também, a vantagem de conseguirmos economia de meios nos locais e feitorias onde eles exerciam o poder.

 

3. Da estratégia genética

“e llogo a poucos dias chegou Gonçalo de Sequeira, destes rreynos, com sete naaos e muy boa gemte; polo qual o Gover­nador, vemdo tã bõo aparelho; se fez prestes para tornar sobre Goa e nam leixar tal impressa;”

Não tendo o Governador meios suficientes para reconquistar Goa, a vinda do Reino da armada de Gonçalo de Sequeira, com sete navios e gente de peleja, proporcionava a constituição de uma força com condições de efectuar aquela reconquista. Há neste extracto indícios de uma avaliação estratégica perma­nente e da possibilidade e oportunidade da decisão, em função do reforço que chegara do Reino.

 

4. Da estratégia operacional

“a gramde pressa se fez prestes e partyo pera Goa cõ xxiij vellas gramdes e pequenas com ijbc homees de pelleja e chegarã a barra de Goa.”

Constituída a força que estaria em condições de efectuar a reconquista de Goa, realiza‑se o seu deslocamento para a área de operações, para ali intervir.

 

5. De nível táctico

“mãdou diamte Manuel da Çunha e Framcisco Pereyra e outros cõ has gales e batees pera vere os passos da outra bamda da çidade, se estavã mais fortes do que os leixara, avissamdoos do que havyam de fazer,”

De notar a necessidade e o cuidado postos neste reconhecimento, que habilitaria o Governador a melhores decisões. Havia que verificar se “os passos” estavam mais fortes do que eram anteriormente, levando essa força instruções precisas para o cumprimento da sua missão.

“ho Governador sayo e terrã co toda a gemte, semdo ja avisado dos passos a que hos outros forã, e elles cõ elle, e mãdou Dioguo Mendez cõ iiij c omees e Manuel de Laçerda cõ outros iiij c desem cõbate ha cidade per hua parte omde estava hua porta; os quaaes se forã a suas batalhas ordenadas comtra haquella parte que lhes hera mamdado,”

Neste trecho vemos a organização para o combate da globa­lidade da força, as missões que cabiam a cada uma das suas subunidades e as formações que tomavam. Estamos perante uma ordem de operações, como hoje a concebemos, que já teve em conta o resultado do reconhecimento previamente efectuado.

“começarã de fallar e bradar cõ hos seus que ouvesem vergonha. Oos quaaes, afromtados e emvergonhados de suas palavras, os cometerã tã rrijo e cõ tamto esforço que a mall de seu grado os fizerã vollver as costas e fogir pera a çidade,”

Aqui surge uma descrição do “momento da verdade”, do combate, e da necessidade que os chefes tinham de pela sua influência pessoal motivarem os seus subordinados. E esta intervenção da chefia resultou bem, dado que o inimigo abandonou as posições para se recolher na cidade.

E os nossos, seguymdo (lhes) ho allcanço, matamdo e ferymdo nelles, etrarã cõ elles de vollta polas portas da çerqua,”

Estamos, em termos tácticos, numa operação de exploração do sucesso anteriormente alcançado, de perseguição e de rotura da última linha de resistência.

“E por çerto ally fezerã todos fim se Dioguo Memdez nã socorrera cõ hobra de ijel homes, que se cõ elle as portas ajuntaram, mas este que digo, vemdo(o)s tam maltratar lhes socorreo, nã tam somemte rrepayrou os nosos mas cõ sua hajuda, ganhamdo (ganhando) esforços, arrancarã os imi­guos daly,”

Trata‑se aqui de uma acção de reforço a uma força severamente empenhada, que demonstra não só a existência de uma reserva disponível para acorrer, mas também a oportunidade dessa intervenção, dado que “arrancarão os inimigos dali”, conseguindo o sucesso local.

“E os nosos, fechadas as portas, se apoderarã de tudo e da fortaleza, poemdo suas bamdeyras.”

Refere‑se agora as operações de limpeza na área do objectivo e possível divisão de responsabilidades, como a colocação das bandeiras sugere.

“Ao outro dia, leixãdo muy boa guarda na fortaleza, (…)

Conseguido que foi o objectivo, adoptou‑se uma postura defensiva para fazer face a futuras ameaças. Goa estava reconquistada e agora defendida pelos Portugueses.

 

6. De âmbito pedagógico

Se nos exprimirmos em termos actuais, a nossa presença militar no Oriente é uma intervenção “out‑of‑area” com todos os problemas que este tipo de operações acarreta, aos quais devem ser somados os daquele tempo – a distância do teatro de operações ao solo pátrio, a exiguidade dos meios, a situação desconhecida ou pouco esclarecida, as permanentes mutações.

A dificuldade de conduzir a manobra política e estratégica a partir do Reino origina a escolha ponderada dos responsáveis, no local, pela condução da manobra política e estratégica, e a emissão de cartas de comando que dão uma enorme margem de iniciativa ao Comandante do Teatro. Ele pode, inclusivamente, fazer e desfazer alianças…

Tratando‑se de um Teatro singular de dominante naval, como nunca mais tivemos ou será previsível virmos a ter, nota‑se a essencialidade das bases terrestres para a manobra global, para a consecussão dos objectivos fixados, para a sobrevivência da força. Sem elas a nossa acção seria apenas “passagem”, jamais presença.

Não havendo Mahan que nos valesse, verifica‑se que isso também não constituía qualquer problema, porque os assuntos da Grei estavam muito acima de mesquinhos interesses corporativos de nautas e pelejadores (que nem existiam, como, aliás, deve ser).

Estávamos, então, em pleno JTF (Joint Task Force), sem habilidades de “paróquia” nem raciocínios ínvios e convicções “fortís­simas” de possuir a verdade. Havia interesses individuais que emergiam aqui e ali; havia intrigas e apetite pelo Poder, também; mas, porque dominava o interesse de Portugal, é lógico que o Poder fosse “venturoso”.

E é esta, quanto a nós, a grande lição – o interesse nacional é que deve guiar a constituição e actuação da Força Militar e nunca os interesses particulares dos componentes da Força. A inversão destes valores é uma manobra anti‑patriótica e indigna da condição militar.

Évora, Dezembro de 1997

 

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* Republicação, Revista Militar N.º 1, janeiro de 1999, pp. 455-470.

1Na Ásia e na História diz‑se que em primeiro lugar chegou à India a armada de Diogo Mendes de Vasconcelos, que partira de Lisboa, com 10 naus, em Agosto de 1510, tal como a de Gonçalo de Sequeira (vide Barros, p. 224 e Castanheda p. 83); Correia descreve a segunda Tomada de Goa em II, 142‑54.

2 Barros dá a mesma constituição à armada; Castanheda diz que ela se compunha de perto de 30 velas.

3 A História diz que acompanhavam Afonso de Albuquerque 1200 “homens de peleja”, dos quais mil e cem eram portugueses.

4 Vide Barros, Dec. 2ª, Liv. Cap. IX, pp. 229‑36 e Castanheda, História, Liv. III, Cap. XIII, pp. 100‑6.

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by COM Armando Dias Correia