Nº 2446 - Novembro de 2005
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Associativismo Militar
Coronel
Nuno António Bravo Mira Vaz
1. Antecedentes
 
Nas últimas décadas, estimulado por sinais provenientes de diferentes sectores sociais, o poder político convenceu-se de que era necessário aproximar a sensibilidade conservadora das Forças Armadas dos valores liberais dominantes na sociedade - e por isso dinamizou um significativo processo de reformas da legislação aplicável. Como se esperava, houve resistências e sobressaltos, sobretudo no interior do aparelho militar.
 
Não é uma tarefa fácil, esta de adaptar a Instituição Militar a uma forma civil. Por muito que se modernize o conceito de disciplina, esta continua a constituir a trave mestra da organização militar, sendo indissociável dos requisitos do combate.
 
Em todo o caso, é o próprio cenário operacional que impõe mudanças. Uma vez que o soldado pode vir a encontrar-se isolado no campo de batalha, a decisão quanto à melhor forma de actuar é delegada, em situações extremas, nos comandantes das esquadras de atiradores ou nos próprios executantes. E há áreas de conhecimento que exigem a flexibilização do controlo por parte dos comandos. Os chefes militares podem não querer abdicar da estrutura hierárquica centralizadora do poder, mas o ambiente operacional impõe a descentralização da iniciativa.
 
A conscrição, que atravessou dois séculos e uma enorme diversidade de conflitos, deixou de corresponder aos requisitos dumas Forças Armadas modernas. Sobretudo por razões de operacionalidade, mas também por causas económicas e sociais, substituiu-se a conscrição pela profissionalização.
 
Para a Sociologia Militar, o modelo institucional de Forças Armadas foi substituído pelo modelo ocupacional. E o que distingue os dois modelos?
 
As diferenças começam logo nos apelos para o recrutamento: enquanto no modelo institucional se valorizam as qualidades de carácter e a orientação para um estilo de vida, o ocupacional chama a atenção para os salários e para a formação profissional. No modelo institucional, o militar responde a um apelo, a uma vocação, para servir; o militar ocupacional, ainda que não abdique dos valores de referência, exerce uma profissão. O primeiro espera reconheci­mento social como contrapartida do serviço que presta; o segundo considera que o seu prestígio se reflecte no nível da remuneração. O primeiro reporta a um sistema legal baseado na justiça militar, enquanto o segundo se enquadra na jurisprudência civil. A família, e em particular a esposa do militar institucional, faz parte integrante da comunidade militar; no modelo ocupacional, vivem afastadas dela. No primeiro caso, os quadros permanentes exercem uma função integradora dos mancebos na sociedade; no modelo ocupacional, a integração faz-se na rua, na escola e nos locais de trabalho e reunião. As mulheres militares têm emprego limitado e um padrão de carreira restrito no modelo institucional, enquanto que, no ocupacional, têm emprego abrangente e um padrão de carreira aberto. No modelo institucional, a base para a progressão na carreira é uma mistura de antiguidade e escolha, com predomi­nância da primeira; no modelo ocupacional, valorizam-se mais os níveis de qualificação. O militar institucional não discute as ordens, o ocupacional sente que tem o direito de participar nas decisões. O militar institucional devota-se inteiramente à missão principal de defesa da Pátria e sente pouca vontade de cumprir as “outras” missões, ao passo que o ocupacional fala de segurança cooperativa e está consciente da importância das missões de apoio às populações.
 
Com a chamada profissionalização, tornou-se mais nítido o facto essencial de o militar ser um agente do Estado, encarregado de assegurar um serviço público, ainda que este apresente especificidades que o tornam muito dife­rente dos restantes. Os militares são os gestores da violência armada legítima e, para isso, dispõem da força armada em regime de exclusividade, estando implícito que o seu comprometimento com o cumprimento da missão pode ir até ao sacrifício da vida. A sua condição peculiar está vertida num Estatuto próprio, no qual se consagram os deveres, os direitos, o regime de restrições das liberdades cívicas e políticas, bem como as compensações e as garantias devidas pelas referidas restrições.
 
O Estado, em representação da sociedade, é o cliente da profissão militar e o patrão dos militares. A especificidade da carreira das armas reside no facto de ser o próprio “cliente” a promover ou a impor o processo de profissio­nalização, de tal forma que a função desempenhada pela Instituição Militar constitui uma escolha deliberada do próprio Estado.
 
Como se disse no início, há nas sociedades modernas uma tendência para aproximar os comportamentos dos militares dos valores que prevalecem nessas sociedades. A aproximação tem necessariamente limites: as Forças Armadas não podem ser democráticas no mesmo sentido em que as sociedades o são, visto que, sem uma cadeia de comando autoritária, correm o risco de não funcionar em situações extremas. Se se quer aferir a democraticidade das Forças Armadas, avalie-se a natureza do seu relacionamento com o poder político.
 
A opção pelo modelo ocupacional tem custos, tanto financeiros como sociais. Aparentemente, foram ambos subestimados. Os especialistas avisaram, de forma repetida, que a profissionalização iria ficar mais cara do que a conscrição. Também avisaram que quanto mais a profissão militar se aproximasse dos padrões das restantes profissões, mais complexas seriam as suas relações com o poder político. Pouca gente os ouviu, e a consequência está à vista: os militares - e Portugal não é excepção - acabaram por se assumir como mais uma corporação empenhada em defender os seus interesses.
 
Parece claro que o poder político não avaliou em toda a extensão as consequências do aligeiramento das restrições aos direitos cívicos dos militares. O que se passou no Verão de 2005 aí está para o comprovar.
 
 
2. O quadro legal
 
As Associações de oficiais, sargentos e praças têm manifestado nas últimas semanas, com uma dimensão e uma veemência inabituais em profissionais que fazem da disciplina um dos pilares da profissão, o seu inconformismo contra “a degradação progressiva do estatuto social e o incumprimento, pelo Governo, de legislação aprovada por unanimidade na Assembleia da Repú­blica”. O Governo, por seu turno, invertendo uma tendência que se havia consolidado no decurso dos últimos anos, reagiu com dureza, escudado no argumento de que as Associações teriam cometido duas ilegalidades. Primeiro: permitiram que alguns associados se apresentassem fardados numa manifestação junto à residência do Primeiro-Ministro. Segundo: dias mais tarde convocaram uma manifestação de protesto com pendor sindicalizante e que encerrava forte potencial desagregador da coesão interna e da disciplina das Forças Armadas. O Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, por seu turno, depois de parecer inclinado para uma atitude de distanciamento, acabou a questionar a representatividade das Associações nas diferentes classes de militares. Os Chefes dos Ramos, que atravessaram todo o processo numa atitude de expectativa, quebraram o silêncio para assessorar tecnicamente o Governo na avaliação dos perigos que as manifestações de protesto representavam para a coesão e a disciplina das Forças Armadas, o que permitiu justificar junto da opinião pública a proibição de as realizar ou de nelas tomarem parte os militares em serviço activo. Após um almoço de iniciativa presidencial, os quatro Chefes militares ouviram o MDN anunciar que estavam em total concordância com ele. Pode ter havido, nos bastidores, dissonâncias. Mas a imagem que passou para o país foi de concordância. Para terminar, não faltaram analistas políticos a afirmar peremptoriamente que os militares não têm competência para convocar manifestações, mas apenas para nelas participar.
 
As atitudes do Governo, do CEMGFA, dos Chefes dos Ramos, das Associa­ções, dos analistas políticos e de alguns militares, merecem uma reflexão séria. Sobre o quadro legal aplicável, sobre os comportamentos dos diversos agentes envolvidos e também sobre os motivos invocados e os procedimentos utilizados. Para que o assunto fosse exaustivamente tratado, seria preciso articular a reflexão com o pano de fundo sócio-político e com o papel das Forças Armadas na sociedade portuguesa. Seria desejável ainda apreciar sem ambiguidades o quadro completo das legalidades e das legitimidades, dos direitos e dos deveres, das restrições e das compensações, da utilidade social e da qualidade dos desempenhos de todas as classes profissionais - classe política à cabeça. Seria preciso por fim interpelar o sentimento colectivo e projectar as respostas em cada um dos cenários que se desenham para o futuro de Portugal. Concretizar semelhante objectivo exigiria um trabalho de grande fôlego, que não cabe nos objectivos desta reflexão. Vou, portanto, centrar-me nos tópicos essenciais, sem deixar naturalmente de envolver os restantes temas sempre que tal for necessário para uma adequada compreensão.
 
A legislação aplicável, nos seus pressupostos, não comporta dúvidas: dada a peculiar natureza da função que exercem, os militares aceitam um quadro de significativas restrições aos seus direitos civis e políticos. Em contrapartida, a comunidade atribui-lhes um certo número de compensações.
 
Nos países europeus existe um expressivo leque de opções para a representação sócio-profissional dos militares, com uma tendência mais permissiva no Norte e menos no Sul. Também se verifica uma constante: em nenhum deles se pode recorrer à greve. Temos países onde o militar pode sindicalizar-se (Dinamarca, Finlândia, Noruega), noutros a representação faz-se por níveis de comandos (Itália), nuns criaram-se mecanismos para as Associações discutirem os assuntos de âmbito sócio-económico com comissões parla­mentares (Holanda), outros confiam a fixação de remunerações e condições de trabalho a “conselhos de sábios” (Irlanda - Conselho de Conciliação). Noutros ainda (Grécia), existe associativismo militar sem funções sócio-profissionais.
 
As Associações de militares dos diversos países europeus criaram, em Setembro de 1972, a EUROMIL - European Organization of Military Associations. A EUROMIL apoia as liberdades, os direitos básicos e em particular os direitos de associação e reunião no espaço europeu, competindo-lhe “representar perante organizações supra-nacionais e outras autoridades, os interesses das Associações de militares”. Tem estatuto consultivo no Conselho Europeu, sendo “parceiro de discussão” no Parlamento Europeu, na NATO e na OIT.
 
Em Portugal, a Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas - LDNFA - (n.º 29/82), veio estabelecer um regime que podia considerar-se liberal por comparação com o que vigorara durante o Estado Novo; mas a verdade é que subsistiam restrições iníquas, como algumas das previstas no Art 31. A situação só foi sanada em 2001, com a publicação da Lei Orgânica n.º 3/2001 de 29 de Agosto (Lei do direito de associação profissional dos militares) e da Lei Orgânica n.º 4/2001 de 30 de Agosto (sexta alteração à LDNFA).
 
Comecemos pela Lei Orgânica n.º 3/2001. O Art 1.º, n.º1, fixa de forma clara o âmbito das actividades: “a representação institucional dos seus associados, com carácter assistencial, deontológico e sócio-profissional”. No Art 2.º estão enunciados os direitos das Associações, de que se destaca o conteúdo das alíneas b) “ser ouvidas sobre as questões do estatuto profis­sional, remuneratório e social dos seus associados” e d) - “promover actividades e editar publicações sobre matérias associativas, deontológicas e sócio-profissionais”. O Art 3.º ocupa-se das restrições, esclarecendo, no n.º 1, que “o exercício dos direitos consagrados no artigo anterior para as Associações militares constituídas nos termos da presente lei está sujeito às restrições e condicionamentos previstos nos artigos 31.º a 31.º F da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas”.
 
O que diz, então, a LDNFA (revista pela Lei Orgânica n.º 4/2001)? O Art 31.º - B, n.º 1, diz que “os cidadãos referidos no artigo 31.º podem, desde que trajem civilmente e sem ostentação de qualquer símbolo das Forças Armadas, convocar ou participar em qualquer reunião legalmente convocada que não tenha natureza político-partidária ou sindical”. E no Art 31 - C -, estabelece-se que “os cidadãos referidos no artigo 31.º, desde que estejam desarmados e trajem civilmente sem ostentação de qualquer símbolo nacional ou das Forças Armadas, têm o direito de participar em qualquer manifestação legalmente convocada que não tenha natureza político-partidária ou sindical, desde que não sejam postas em risco a coesão e a disciplina das Forças Armadas”.
 
Descrito desta forma muito breve o quadro legal, pode fazer-se um primeiro comentário: o direito de manifestação (incluindo a respectiva convo­cação) está vinculado à renúncia ao uso de uniformes militares e à verificação de que não são postas em risco a coesão e a disciplina das Forças Armadas. Simplesmente, por distracção ou por falta de vontade para se impor, e para desespero da hierarquia militar, o poder político foi transigindo com a utilização de uniformes militares, de tal forma que, a partir de certa altura, a presença de militares fardados nas manifestações convocadas pelas Associações passou a ser a norma e não a excepção. Entretanto, as palavras de ordem, os slogans e as referências à hierarquia civil, que começaram em tom respeitoso, passaram, com o correr do tempo, a sê-lo menos. A meio do Verão de 2005, já podiam ser entendidas, aqui e ali, como inconvenientes, senão mesmo insultuosas, permitindo suspeitar de que não tenha sido integralmente cumprido o dever de respeitar os responsáveis políticos e militares - um dever que radica na essência da função militar. O ambiente de desconfiança recíproca acentuou-se quando, confrontados com a instauração de processos de averiguações pelo Ministério da Defesa Nacional (MDN), os dirigentes associativos decidiram explicar, de uma forma muito pouco convincente, que os militares fardados não estariam a manifestar-se, mas num encontro de camaradas que apenas pretendiam mostrar solidariedade aos dirigentes das Associações presentes no local. Independentemente das consequências que venham a ter os referidos processos de averiguações, não se pode, face aos factos conhecidos, contestar a decisão da tutela.
 
Quando ainda escaldavam as sensibilidades mais exasperadas pela decisão de instaurar processos de averiguações aos militares que se apresentaram fardados na manifestação do início de Setembro, soube-se que o Governo Civil de Lisboa proibira, depois de consultas ao MDN, nova manifestação convocada pelas três Associações representativas de oficiais, sargentos e praças, com a argumentação de que havia nela conotações com a actividade sindical e de que punha em causa a coesão e a disciplina das Forças Armadas. Os dirigentes reagiram acertadamente, remetendo recurso da decisão ao Supremo Tribunal Administrativo (STA). Quase em cima da hora marcada para a manifestação, o STA deu razão ao Governo Civil, na parte relativa à actividade sindical. Surpreendidos, insatisfeitos e inconformados, os dirigentes associativos apelaram à radicalização dos protestos. Foi evidente, nos contactos com a Comunicação Social, a tentação de ultrapassar limites até aí escrupulosamente respeitados. A linguagem subiu de tom, até se tornar, em certas alturas, arrogante e desafiadora.
 
O passo seguinte adivinhava-se nas entrelinhas de certas declarações: as mulheres dos militares convocaram uma manifestação de protesto para o dia 23 de Setembro. Em devido tempo, o Governo Civil considerou legal a convocatória e autorizou-a. Contudo, em conferência conjunta dos Ministros da Administração Interna e da Defesa Nacional realizada no dia 19 de Setembro, o país foi informado de que, tendo recebido dos Chefes dos Ramos a informação de que a manifestação punha em risco a coesão interna e a disciplina das Forças Armadas, o Governo proibia os militares na efectividade de serviço de comparecerem na dita manifestação, sob pena de incorrerem em ilícito disciplinar e penal. As Associações, invocando o dever de disciplina que é apanágio dos militares, convidaram os associados em serviço activo a respeitarem as directivas dos Chefes dos Ramos das Forças Armadas. O que foi feito.
 
Foi posta uma tampa na panela do mal-estar. Mas ninguém se lembrou de tirar a panela do lume.
 
 
3. As razões dos protestos
 
As alterações anunciadas pelo Governo aos regimes de reserva e reforma e de assistência na doença dos militares, têm sido apreendidas, pela generalidade dos cidadãos, como os motivos dos protestos. As Associações de militares, por seu turno, têm procurado fazer passar uma mensagem diferente: embora contestem as referidas alterações, o que as leva a protestar é a constatação de que, de há quinze anos para cá, as condições de vida dos militares têm sofrido uma desvalorização sistemática relativamente aos outros corpos especiais da função pública. O que é verdade, e pode ser constatado pela comparação das escalas remuneratórias de 1990 e de 2005. Nesse intervalo, o poder de compra do coronel desceu para o nível do major, e o seu vencimento, que era igual ao do juiz de círculo, passou para metade.
 
O mal-entendido acerca das motivações compreende-se, porque o protesto dos militares é apenas mais um, entre tantos outros que a generalidade dos sectores profissionais move presentemente contra as decisões do Governo. O que está obviamente em causa para os funcionários públicos e todos os outros agentes a soldo do Estado, é a perda de regalias que consideram “adquiridas” - presume-se que para a eternidade. Quando todos os corpos profissionais clamam contra esta “afronta” a interesses estabelecidos, e quando todas as energias disponíveis no Governo se concentram em fazer passar as reformas, não há condições para isolar, e atender, um protesto diferenciado, como poderia, e deveria ser, o dos militares.
 
Há aspectos de diferente natureza e relevância nos protestos dos militares.
 
Podemos começar pelo da aparência: quem quer marcar diferenças perante a opinião pública, tem de fazer por isso. Esta é aliás uma das questões em que as posições mais se extremam. Para os defensores - cada vez menos numerosos - do modelo institucional, o ideal seria que, num trabalho discreto mas firme, os Chefes militares negociassem, com o poder político, a fórmula final dos diplomas e as respectivas compensações, cabendo aos militares conterem, dignos e silenciosos, a vontade de protestar - porque é essa dignidade que marca a diferença. Os ocupacionais, pelo contrário, entendem que impedir os cidadãos fardados de manifestarem desagrado pelas leis configura uma menoridade cívica incompatível com o regime democrático. Só que, desta forma, não chega à opinião pública a marca da diferença.
 
O segundo aspecto tem a ver com a exígua capacidade reivindicativa, seja a dos Chefes, seja a das Associações. É evidente que, ao contrário do que acontece com outras categorias profissionais, a ausência dos militares do local de trabalho não causa qualquer perturbação na vida dos cidadãos, pelo menos em situação de normalidade civil. E, como se viu no decurso dos quinze anos em que o poder de compra dos militares foi reduzido a metade, a capacidade das Chefias para negociar os salários, seus e dos subordinados, deixa muito a desejar. A posição dos Chefes dos Ramos complicou-se em meados dos anos noventa. Até aí, eram escolhidos de entre uma lista fornecida pela Instituição Militar. Mas a partir do Ministro Nogueira, passaram a ser designados pelo poder político sem interferência dos militares. Desta forma, e sem que estejam em causa a dignidade ou o mérito da pessoa, a verdade é que, aos olhos de alguns subordinados, o Chefe do Ramo passou a ser visto mais como um agente do poder político do que como um representante deles junto dos políticos.
 
Percebe-se agora que a questão da marca diferenciadora em relação às profissões civis não se esgota no mero jogo das aparências, pela simples razão de que nela assenta a margem de sucesso de uma estratégia negocial ganhadora. Se os militares não dispõem de capacidade reivindicativa, de que forma podem impressionar o poder político? E como podem fazer chegar ao cidadão comum uma nota impressiva da “utilidade social” das Forças Armadas? A diferença - dos comportamentos, das atitudes, da devoção ao serviço, do despojamento em relação aos valores materiais - parece constituir a única saída. Prescindir da diferença equivale a deitar fora o trunfo mais precioso do baralho negocial.
 
Depois, como se viu nos meses de Agosto e Setembro, o direito dos militares a dar testemunho público de descontentamento está sujeito a avaliação discricionária, pelos Chefes dos Ramos, dos eventuais riscos para a coesão e a disciplina internas. Não se contesta a competência. Mas é imperioso obter uma resposta clara para a seguinte questão: sempre que um militar discorde duma decisão do poder político e o diga em voz alta, há riscos para a coesão e a disciplina? O preço a pagar pela institucionalização das Associações é o conformismo? Se o legislador reconhece às Associações de militares capa­cidade para “a representação institucional dos seus associados, com carácter assistencial, deontológico e sócio-profissional”, cabendo-lhes “ser ouvidas sobre as questões do estatuto profissional, remuneratório e social dos seus associados” e “promover actividades e editar publicações sobre matérias associativas, deontológicas e sócio-profissionais”, e ao mesmo tempo se determina que alguns desses direitos ficam pendentes dum julgamento caso a caso, subjectivo, sobre a sua oportunidade, algo tem que mudar urgentemente: ou a lei, ou a interpretação a que ultimamente tem sido sujeita.
 
Há, também, um problema de oportunidade. Se estivessem atentas aos inquéritos à opinião pública, as Associações de militares teriam constatado a extrema impopularidade das manifestações de todas as classes profissionais. Quando decidiram juntar-se ao coro geral de protestos contra as reformas que ninguém se atreve a contestar na generalidade, mas que todos rejeitam na parte em que se lhes aplica, fizeram-no em péssima altura. Ainda que tenham toda a razão do mundo para protestar, dificilmente teriam encontrado oportunidade pior para o fazer. E tê-la-ão?
 
É preciso reflectir sobre a justeza dos protestos. E não apenas em função da degradação da situação sócio-económica dos militares no decurso dos últimos quinze anos relativamente aos outros corpos especiais da função pública. Para se poder aquilatar da posição relativa dos militares nesse quadro, era preciso que todas as subvenções, subsídios, sistemas de apoio social, regime de horas extraordinárias e outras regalias mal conhecidas da opinião pública e atribuídas às pessoas que são pagas pelo Estado - incluindo a classe política e os gestores de empresas públicas - fossem comparadas com as que são pagas pela iniciativa privada. Depois, haveria que decidir quem e porquê tem direito a tratamento diferenciado. Só depois seriam fixados os valores respectivos.
 
Isto foi feito pelo Governo de Cavaco Silva. Pode então perguntar-se por que motivo se alterou tão substancialmente até hoje. Não existem resposta fáceis para questão tão complexa, mas pode ter-se como certo que a explicação inclui a ponderação da consideração social das classes profissionais e a percepção da utilidade pública das respectivas actividades, duas coisas que, no que respeita aos militares, desceram consideravelmente aos olhos da opinião pública.
 
 
4. O futuro
 
As relações dos militares com o Governo têm uma complexidade única, dado que este é simultaneamente cliente e patrão. Para muitos profissionais, devia também desempenhar funções do representante sindical a que, por lei, não têm direito. Numa altura em que Portugal procura aproximar-se dos padrões de vida dos países europeus mais desenvolvidos - e para isso se tomaram medidas também no domínio militar - não se pode protelar por mais tempo uma decisão política sobre a forma como se entende o associativismo militar, os seus direitos e deveres, o espaço da sua intervenção e as relações com a tutela civil e militar. O Governo quer manter em vigor a Lei n.º 3/2001, ou quer recuar para os parâmetros da Lei nº 29/82 (LDNFA) de tão triste memória? A manutenção em vigor da Lei nº 3/2001 representa uma opção pelos padrões em uso na esmagadora maioria dos países do nosso espaço geopolítico. O que, por sua vez, implica o estabelecimento de relações de confiança, nos termos da lei, com as Associações de militares. Há muitos anos que os especialistas alertavam para o fôlego reivindicativo do associativismo militar, razão pela qual os Chefes militares nunca mostraram simpatia por ele. O poder político, responsável único por essa institucionalização, tem de assumir sem tergiversações que a aproximação aos parceiros europeus implica ter de ouvir os protestos das Associações de militares.
 
Sugeriu o MDN, em entrevista ao jornal Expresso, que a actividade das Associações de militares deveria ser concertada com as Chefias militares e, de alguma forma, integrada nas políticas gerais dos Ramos. No que respeita aos méritos da concertação, pode contar-se com o aplauso da esmagadora maioria dos agentes interessados. Mas não parece possível, nem conveniente, qualquer esboço de tutela, por mais subtil que pudesse ser o modelo, da hierarquia sobre as Associações. No interesse da própria hierarquia, afigura-se-me mais adequado delimitar territórios e, ao mesmo tempo, reduzir ao mínimo o espaço da discricionariedade. Quando os militares se convencerem de que os responsáveis pela negociação salarial são as Associações e não os Chefes, estes ficam na invejável situação de poderem dedicar-se ao essencial.
 
O essencial inclui, para além de todas as funções associadas ao Comando, a obrigação de criar sinergias e de propor novas formas de articular divergências com as Associações, tornando explícitos os limites da discricionariedade dos Chefes. Uma manifestação cuja realização dependa dum julgamento subjectivo acerca dos perigos que pode acarretar para a coesão e a disciplina, corre o risco de jamais se realizar. Sejamos sérios: sempre que uma parte dos militares se manifestar contra seja o que for, existe o risco real de a outra parte estar a favor. Mas não fica, com isso, em risco a coesão e a disciplina na Instituição Militar.
 
Cabe aqui uma reflexão sobre representatividades. Na tradição institucio­nalista, o Chefe era o representante indiscutível do Ramo, estando-lhe reservada a capacidade para negociar com o poder político. Foi com este figurino que as Forças Armadas fizeram a II GG, a Guerra-Fria e as guerras coloniais. Mas o modelo está ferido de morte. No modelo ocupacional há diversificação de funções e transferências de representatividade. As novas leis cometem de forma inequívoca um papel de relevo às Associações “nas questões de estatuto profissional, remuneratório e social dos associados”. O que implica aceitar que elas representam, pelo menos, o conjunto dos associados, tornando desajustado o questionamento feito a esse respeito pelo CEMGFA. Por outro lado, é a incapacidade dos Chefes militares para travarem a redução para metade do poder de compra dos militares, que permite pôr em causa, nesta matéria, a sua representatividade.
 
As Associações, por sua vez, devem proceder a um balanço da obra feita. É sabido que elas têm vindo a assumir protagonismo crescente em matérias de natureza sócio-profissional, sendo justo atribuir-lhes alguns sucessos no conjunto das acções reivindicativas entretanto levadas a cabo. Para muitos militares e boa parte da opinião pública, certas emendas introduzidas nos projectos legislativos são a prova de que as Associações já possuem capacidade de se fazer ouvir pelo poder político. À semelhança do que acontece na maioria dos países que nos esforçamos por imitar, o cerimonial da barganha entre patrões e empregados, entre Governo e funcionários públicos, leva o cidadão a acreditar que só o protesto barulhento produz resultados. Talvez haja aqui uma sobrevalorização da importância das Associações e uma minimização do papel das chefias militares. Mas foi essa a imagem que ficou.
 
É igualmente indispensável que as Associações se empenhem em delimitar o seu território, não tolerando aos associados actividades e comportamentos que violem o quadro legal. Têm muita coisa a ponderar. Para começar, terão de avaliar com sentido ecuménico a justeza das suas reivindicações e protestos. E cabem aqui muitas dúvidas. Qualquer observador atento já reparou que as manifestações de rua estão entregues aos sargentos e às praças. Os oficiais nunca aí apareceram em grande número, mas nota-se que são cada vez menos. Será que os problemas profissionais dos oficiais são diferentes dos sargentos e das praças? E os problemas dos profissionais podem ser os mesmos dos “profissionalizados”? Será que o oficial pode discutir, com as outras classes, em regime de paridade, todas as questões relacionadas com a justiça, a disciplina e o bem-estar? A Instituição Militar pode beneficiar do facto de oficiais, sargentos e praças, discutirem de forma rotineira as decisões das chefias civis e militares? Estas e outras questões não podem deixar de ser apreciadas com boa-fé, porque só dessa forma se poderá saber se há ou não riscos para a disciplina implícitos na própria prática associativa.
 
Não há associativismo sem discussão livre e aberta dos problemas profis­sionais. E por isso não se pode, nem deve, rever o quadro legal em vigor. Talvez o militar institucional o desejasse. Mas o militar ocupacional não o entenderia. Os países, as sociedades e as Forças Armadas não andam para trás. Temos todos de compreender que, fora do ambiente operacional, o que se espera do militar do século XXI não é que ouça as ordens em sentido e corra a cumpri-las. Pelo contrário, se tiver reservas, deve anunciá-las, de forma clara e respeitosa. E explicá-las, se o superior lho pedir. Se, ouvidas as explicações, a ordem se mantiver, deve então o subordinado cumpri-la com total dedi­cação. Numas Forças Armadas modernas, os modelos de comando tradicionais são confrontados com a existência de numerosos especialistas em áreas não dominadas pelas chefias, cuja opinião não pode deixar de ser considerada como factor de decisão.
 
Toda a organização precisa de se adaptar ao contexto social. Se a socie­dade muda, a organização tem de mudar também, sob pena de se tornar incompatível com ela. É certo que, quando se trata de coesão e disciplina militares, não é fácil manter um formato orientado social e culturalmente para o cumprimento de missões onde a obediência é com frequência imperativa, que seja simultaneamente compatível com os valores e tendências sociais mais amplos. Mas é esse o desafio colocado ao Governo, aos Chefes militares, às Associações e aos militares em geral.
 
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2005-12-14
1203-0
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REVISTA MILITAR @ 2024
by CMG Armando Dias Correia