Nº 2473/2474- Fevereiro/Março de 2008
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
BICENTENÁRIO DAS INVASÕES FRANCESAS. A Cirurgia nas Guerras Peninsulares
Sargento-ajudante
José Luís Assis
Ser capaz de dar tranquilidade e conforto a um soldado heróico e vitorioso, permite o mais sublime prazer que a mente humana pode sentir”­.
Robert Jackson (Physician)­
 
Introdução
 
Gostaria de referir que este estudo fica a dever-se a apoios diversos, entre os quais me apraz registar o do Senhor General Inglês Médico e Cirurgião Sir Michael Crumplin pela simpatia, amabilidade e disponibilidade que, desde logo, demonstrou em aconselhar-me bibliografia e, nomeadamente, enviar-me textos e gravuras (inéditas) que me permitiram realizar e apresentar este trabalho à Direcção da Revista Militar para posterior publicação.
 
Decidimos realizar este estudo sobre a Cirurgia nas Guerras Peninsulares por ser uma temática inédita, a todos os títulos inovadora e da maior importância para a História da Ciência e, particularmente, da História da Medicina Militar. Este tema, num primeiro momento, criou-nos algumas dificuldades pela escassez de informação, mas num segundo folgo, e à medida que a investigação ia sendo aprofundada, revelou-nos uma verdadeira caixa de surpresas que uma investigação histórica sempre comporta.
 
As notas de leitura que constituem este trabalho procuram evidenciar a importância desta temática na medida em que nos permite alargar o estado da arte sobre a História da Medicina Militar e, em particular, da História da Medicina Militar Portuguesa e da difusão da ciência médica e cirúrgica durante as Guerras Peninsulares.
 
Nesta investigação foi possível percepcionar um conjunto de práticas médicas e cirúrgicas e de destreza técnica que estes médicos e cirurgiões souberam colocar ao serviço do exército Anglo-Luso, obedecendo aos princípios morais da prática e deontologia médica, procurando preservar a vida dos soldados independentemente do posto e do exército a que pertenciam.
 
Este estudo abre diversas perspectivas de investigação, todas elas inéditas no campo da Medicina, da Cirurgia, da história das doenças, da terapêutica, das relações do médico e do cirurgião com o doente, da mentalidade médica, da importância da Medicina na mentalidade dos grandes «Cabos de Guerra» nas reformas dos exércitos, da administração médica hospitalar, da logística médica, da relação entre Físicos-Mores e Cirurgiões-Mores, dos contactos académicos entre cirurgiões de exércitos inimigos em momentos de guerra e de pausa das campanhas, das próprias relações e cooperação do ponto de vista médico e cirúrgico em plena campanha, da sua importância, decisiva no desfecho da vitória do Exército Anglo-Luso sobre as águias napoleónicas.
 
Perante a riqueza de áreas de investigação abertas com este estudo, lamentamos com muita pena nossa por falta de tempo e espaço não poder tratar de todas elas. Assim, com este artigo pretendemos apresentar um estudo de caso, na certeza de que ele contribua para a abertura de novas perspectivas de trabalho.
 
São algumas dessas práticas médicas que, nas páginas seguintes, pretendemos dar a conhecer através de um percurso ao passado, quer pela incursão à «memória» da «instituição militar» Exército Anglo-Luso quer pelo papel e acção que tiveram ao serviço da Nação no período conturbado das Guerras Peninsulares.
 
 
Práticas Médicas e Cirúrgicas nas Guerras Peninsulares
 
No século XVIII, a cirurgia conseguiu adquirir um desenvolvimento técnico considerável, sobretudo ao nível da Anatomia. Foi graças aos estudos do excelente anatomista, fisiologista e cirurgião inglês John Hunter (1728-1793) que, no século XIX, os cirurgiões começaram a entender que a prática cirúrgica deveria basear-se na Anatomia e nos resultados da Medicina Experimental e não nos dados empíricos como era hábito até então. Esta mudança de mentalidade levou a que o cirurgião passasse a ser considerado como um técnico de prestígio, embora a Cirurgia ainda se encontrasse limitada pela cirurgia tradicional (Fresquet 2).
 
Como é do nosso conhecimento, nas Guerras Napoleónicas, como nas que ocorreram antes e depois, o sucesso das campanhas militares dependia do bom estado de saúde em que se encontrassem os exércitos. Podemos mesmo afirmar que a sua excelente saúde era mais importante que muitos dos outros requisitos para o sucesso das campanhas militares.
 
Os cirurgiões novos, quando contactavam pela primeira vez com os feridos de guerra, tinham imenso que aprender e em muito pouco tempo. As suas maiores dificuldades colocavam-se ao nível da falta de preparação para enfrentar o grande número de feridos e de lesões resultantes das batalhas. Foi no sentido de colmatar essa falta de preparação que James McGrigor1, Inspector Geral dos Hospitais, depois de assumir funções em Janeiro de 1812 ordenou que os novos cirurgiões e ajudantes de cirurgião recentemente chegados ao Exército vindos das escolas de cirurgia ou mesmo de outros locais da sociedade civil, fossem, em primeiro lugar, colocados na Medicina Militar em Lisboa antes de serem incorporados nos regimentos (Winstanley 206). Durante as Campanhas Peninsulares, primeiro com Beresford e depois com Wellington, o Staff Médico (Medical Staff) recebia relatórios regulares e, de acordo com esses relatórios, procurava dar o apoio necessário a qualquer cirurgião que no desempenho da sua missão precisasse dele.
 
A promoção de assistente de cirurgião de regimento a cirurgião assistente oficial, ou mesmo deste para cirurgião do regimento, era feita a partir da reputação adquirida no tratamento de feridos em campanha ou pela reali­zação de exames em Lisboa. Em combate, o cirurgião e os seus dois ajudantes de cirurgião posicionavam-se imediatamente atrás da unidade, enquanto os outros ajudantes de cirurgião eram deslocados para as frentes com medicamentos e instrumentos médicos como os garrotes.
 
Nas Campanhas Peninsulares, as cirurgias mais importantes eram consideradas as amputações, as trepanações e a exploração de feridas. Nas linhas da frente, o trabalho dos ajudantes de cirurgião consistia nos primeiros socorros de acordo com a necessidade das situações e transporte dos feridos para os hospitais de regimento que se encontravam na retaguarda. Nestes procediam às desinfecções e possivelmente aplicação de compressas, extracção de balas, colocação de talas e encerramento de feridas.
 
Nos hospitais de campo, realizavam-se as cirurgias mais complicadas como as amputações e a exploração de feridas e eram os cirurgiões mais velhos e experientes que, dentro dos seus conhecimentos cirúrgicos, tomavam a decisão mais adequada a ser aplicada.
 
Um dos grandes desafios para os serviços médicos nas Campanhas Peninsulares foi a quantidade de feridos provocados pelas batalhas. Muitos deles acabavam por morrer pela tardia ou inadequada evacuação (Crumplin 2005 7) e, frequentemente, pelas dificuldades em conseguir chegar a um hospital de campo (Idid. Ibidem). As baixas deslocavam-se a pé, muitas vezes, ajudadas pelos camaradas de armas, em mulas ou carroças ou ficavam a morrer lentamente no campo à mercê do roubo, do assassínio e da morte pelo fogo ou pela desidra­tação (Idid. Ibidem).
 
 
 
Fig. 1 - Soldado do 1St Royal Dragoons ferido no crânio por múltiplos golpes de sabre. The Paintings and Sketches of Sir Charles Bell (1809-1815), Edinburgh, Royal College of Surgeons.
 
 
O número de soldados feridos com grandes cortes no couro cabeludo, escalpe fatiado, era bastante significativo, (fig. 1). Este género de ferimento era provocado pelo manuseamento dos sabres das unidades de Cavalaria quando desferiam os golpes montados nos cavalos e de cima para baixo com uma força bastante considerável aquando das cargas sobre a Infantaria. Estes eram comuns, mutilantes e por vezes mortais. Os múltiplos golpes podiam ser pequenos e superficiais, mas também grandes e profundos, fracturando o crânio chegando a atingir o cérebro.
 

 

 
Fig. 2 - Soldado Wanstell, pertencia ao 17th Regimento of Foot. Foi ferido na cabeça por uma bala de espingarda. Era paciente de Mr. Collier. Ao 5º dia após o ferimento foi-lhe realizada uma trepanação. The Paintings and Sketches of Sir Charles Bell (1809-1815), Edinburgh, Royal College of Surgeons.
 
 
Outras armas, de grande poder perfurante, eram a lança e o espontão, utilizadas pela Cavalaria pesada francesa. Os soldados, mesmo equipados com capacete, não tinham a garantia de protecção. Alguns dos homens, depois de feridos por aquelas armas permaneciam vivos por alguns dias, podendo a infecção generalizar-se, levando à sepsis e acabando por morrer sem qualquer tratamento2. Além deste tipo de ferimentos bastante comuns, havia outros provocados pelos mecanismos das armas de fogo e pelas queimaduras. As balas de baixa velocidade e com pouca força, alojadas na cabeça, constituíam uma situação cirúrgica considerada simples. Por vezes, o cirurgião fazia uma pequena incisão no couro cabeludo e removia o projéctil. Eram muitos os sobreviventes deste tipo de ferimento. Os casos mais complexos eram os provocados pelo impacto da bala na cabeça atingindo o cérebro, o que era fatal e provocava infecção, causando edema e, por vezes, protusão. Os sintomas de compressão cerebral eram facilmente identificáveis e, embora o coágulo sanguíneo e o pus fosse tardiamente drenado com sucesso, os danos causados eram irreparáveis.
 
Um exemplo desta situação pode ser encontrado nas litografias de Sir James Charles Bell3 relativamente a um soldado que lutou na batalha de Waterloo e que morreu de fungus cerebri seis dias depois de ter sido visto por aquele cirurgião (fig. 2). Nestas situações, a cirurgia então recomendada e praticada pelos cirurgiões consistia na extracção dos fragmentos ósseos que permitia um melhor acesso na limpeza da parte lesada.
 
Os ferimentos nos membros superiores constituíam uma grande preocupação para os cirur­giões. Quando tal acontecia, o cirurgião colocava o seu dedo no ferimento como se fosse uma «sonda». No caso de o úmero se encontrar fracturado, procedia apenas ao seu tratamento, mas se o seu dedo o atravessasse, então recorria à amputação, (fig. 3).
 
 
Fig. 3 - The Paintings and Sketches of Sir Charles Bell (1809-1815), Edinburgh, Royal College of Surgeons.
 
 Outra grande preocupação para o cirurgião Os traumatismos torácicos podiam ser fechados e a prática cirúrgica consistia, muitas vezes, em esvaziar a cavidade pleural do ar, fluidos ou sangue, talvez causas de asfixia por vezes letal (fig. 4).
 

Fig. 4 - Doente com feridas provocadas pela entrada e saída de uma bala de espingarda. O projéctil entrou ao nível da sétima costela direita sem atingir os órgãos vitais. The Paintings and Sketches of Sir Charles Bell (1809-1815), Edinburgh, Royal College of Surgeons.
 
 
Nas Campanhas Peninsulares, Guthrie foi o primeiro cirurgião a praticar o encerramento das feridas penetrantes (Idid. 2006 4) e que depois se alargou a todos os outros cirurgiões. Esta prática cirúrgica permitia salvar alguns feridos uma vez que evitava o pneumotorax e muitas vezes a hemorragia (Idid. Ibidem).
 
Os soldados vestiam uma couraça feita de pele de búfalo que os protegia dos tiros de lado ou do ricochete dos golpes de sabre. Muitos tiros no peito e no abdómen, apesar de não provocarem ferimentos na pele, podiam ser igualmente devastadores uma vez que a força do projéctil causava um forte impacto nas estruturas internas do corpo.
 
A cirurgia abdominal era caracterizada por uma prática superficial uma vez que não havia disponibilidade para os cirurgiões poderem executar incisões adequadas no abdómen, com músculos relaxados, num paciente quieto e sem dor. As Anastomoses não eram praticadas, embora já existissem trabalhos experimentais executados com bastante sucesso em cães (Idid. 2002 25). A cirurgia intra-abdominal em campanha só se estabeleceria, definitivamente, já no nosso século, com a Primeira Grande Guerra Mundial. Quando o projéctil penetrava no abdómen e feria os intestinos ou os órgãos sólidos, como o fígado, a recuperação do paciente dependia, em grande parte, da capacidade que tinha para fazer face à hemorragia. Numa situação destas, a sobrevivência do paciente dependia da sua resistência ao tentar-se impedir a sepsis e sobrevivendo à lesão inicial (Idid. Ibidem). Por vezes acontecia que o ferido conseguia recuperar (Idid. Ibidem). Se houvesse protusão intestinal com intestino intacto, o cirurgião colocava o ferido numa posição que permitisse o relaxamento dos músculos abdominais e, depois procurava ajudar o intestino a ser reintegrado na cavidade abdominal, (fig. 5).
 

 
Fig. 5 - Soldado Peltier do 3rd French Lancers ferido por um golpe de sabre no abdómen. The Paintings and Sketches of Sir Charles Bell (1809-1815), Edinburgh, Royal College of Surgeons.
 
Quando o intestino estava lesado, alguns cirurgiões procuravam exteriorizar a ferida intestinal fixando-a à pele. Por outro lado, se o intestino estivesse muito lesado, ou com gangrena, o cirurgião retirava os tecidos mortos e acabava por construir um ânus artificial, cosendo o intestino à pele para prevenir a contaminação da cavidade peritoneal (colostomia). O princípio seria o mesmo. As lesões abdominais eram tratadas pelos cirurgiões com muito pouca esperança de recuperação do doente dadas as dificuldades que existiam no tratamento deste tipo de ferimentos.
 
Os ferimentos na coxa, geralmente compli­cados por uma fractura femoral ou lesão neurovascular, situados não muito afastados do períneo (zona do corpo que constitui a base do púbis, onde se encontram situados os órgãos genitais e o ânus), constituía um grande temor para todos os cirurgiões, mesmo para os mais experientes, pois era muito difícil de tratar, (fig. 6). Projécteis redondos de 6, 8, 9 e 12 lb, balas de metralha ou de mosquete de baixa velocidade, carabina ou pistola, eram as grandes responsáveis por muitos dos ferimentos de guerra. Havia, na verdade, ferimentos em massa, complexos e contaminados com os quais os cirurgiões tinham de lidar.
 
 
 
 
Fig. 6 - Soldado Rifleman Chambers do Regimento 95th com ferimento no fémur direito provocado por um tiro de espingarda. The Paintings and Sketches of Sir Charles Bell (1809-1815), Edinburgh, Royal College of Surgeons.
 
A amputação era considerada o procedimento cirúrgico mais importante, por retirar a parte dolorosa e lesionada dos tecidos colocando o doente ao abrigo de hemorragia limitando o risco da sepsis. Este era, de facto, o procedimento cirúrgico mais sério praticado nos serviços de saúde pelos cirurgiões militares. No caso de haver a necessidade dos cirurgiões procederem à amputação de um dos membros os pacientes seriam posicionados de acordo com as circunstâncias, o local da prática cirúrgica, os apoios, a natureza das lesões e a sua localização anatómica, sempre jogando com o factor tempo, (fig. 7).
 
 
Fig. 7 - Cirurgia de amputação da coxa direita num hospital de campo.
 
Na maior parte das intervenções cirúrgicas de amputação dos membros, os pacientes acabavam por desmaiar e, quando isso acontecia, tanto melhor, porque o cirurgião trabalhava mais livremente e o lesionado não sentia a dor provocada pelos cortes dos tecidos. Os pacientes eram conhecedores de que, quando tinham de ser submetidos às cirurgias de amputação de um membro, teriam alguns minutos de grande sofrimento (fundamentalmente quando o cirurgião procedia à excisão dos tecidos vizinhos), seguido de várias semanas de desconforto, infelizmente na maior parte das vezes, complicadas pela sepsis, levando à morte ou, no caso de êxito, a uma longa e difícil convalescença. Os feridos sabiam que sujeitarem-se ao risco da cirurgia podia trazer-lhes vantagens: a salvação da vida.
 
As indicações médicas quanto à ablação de um membro eram muito claras, deveriam ocorrer quando o cirurgião estivesse na presença da gangrena, da ruptura da articulação ou de fractura complicada. Quanto à ablação, não havia muitas divergências sobre a sua execução, havia sim, alguma problemática sobre o momento exacto em que deveriam proceder. Os cirurgiões franceses entendiam que a cirurgia deveria ter lugar logo após o ferimento e, dessa forma, assim procediam quando no seu diagnóstico as hipóteses de salvar o membro se revelassem reduzidas. No entanto, sobre a preservação dos membros, eram mais conservadores que os cirurgiões do exército Anglo-Luso no qual as amputações, principalmente as realizadas aos membros superiores terão sido feitas de forma indiscriminada4.
 
As complicações pós-amputação eram pouco tidas em consideração, pois os recursos também não eram muitos. Existia, de facto, pouco conhecimento, logo pouco cuidado com as complicações pós-operatórias, particularmente com a sepsis, a falta de alinhamento ósseo ou mesmo as dores provocadas pela amputação.
 
Naquele tempo havia uma grande controvérsia sobre a técnica de incisão nos tecidos frágeis dos membros para dar início à amputação. Os cirurgiões mais velhos e experimentados em campanhas militares defendiam que o método mais indicado era o circular ou da guilhotina, uma vez que era rápido, fácil e tinha a vantagem de deixar a ferida aberta. Procediam ao fraccionar da pele e aplicavam uma incisão circular com movimentos rápidos, seguidos pelo corte dos músculos. Os tecidos moles eram retraídos com um retractor de tecidos de couro ou por compressas e o osso era serrado com um serrote. As artérias eram clampadas. As veias eram cuidadosamente separadas do músculo e depois laqueadas com linha. O garrote que entretanto tinha sido previamente aplicado para minimizar a perda de sangue durante a cirurgia, era aliviado ao mesmo tempo que o cirurgião procedia a uma avaliação do estado da superfície do coto para coibir os pontos sangrantes. Os bordos das feridas eram aproximados com suturas de linho e seda.
 
É face a esse ambiente de ansiedade, sofrimento e dor que os cirurgiões tinham como grandes preocupações procurar reduzir a hemorragia ao mínimo, o tempo de exposição do doente à dor e, finalmente, conseguir responder à pressão do seu trabalho. A cirurgia praticada numa situação dessas impunha que os cirurgiões tivessem uma atitude serena e fria mas eficaz. A maior parte das amputações duravam cerca de vinte a trinta minutos, contudo o Barão Larrey levava três a quatro minutos para amputar um membro (Crumplin s.d. 5). Descrições de vítimas de cirurgia das Guerras Napoleónicas dizem-nos que o momento mais doloroso, numa cirurgia de amputação, era o corte da pele e a secção de nervos e das artérias. Quando o acto cirúrgico não corria como o previsto, o desconforto era total. Os cuidados de enfermagem seriam mínimos e geralmente realizados pelos companheiros, pelas mulheres e pelos religiosos que acompanhavam as campanhas.
 
Durante as Campanhas não havia uma política de administração de analgésicos ou anestesias (Idid. s.d. 1) nas instruções para os cirurgiões militares5. O álcool era mais utilizado como ansiolítico para controlar a ansiedade do doente do que como analgésico. Os cirurgiões ao serviço da armada utilizavam o Rum, enquanto os do exército administravam também o Rum, o vinho do Porto, o Brandy ou mesmo o Gin, dependendo da região onde se desenrolassem as campanhas militares. Após as cirurgias apenas era minis­trada uma bebida cordial, (mistura de uma bebida espirituosa com água ou outro líquido), quando o cirurgião entendia que era necessário reanimar o paciente. Era muito difícil seguir o hábito de prescrição e administração regular de analgésicos porque, por um lado, não era dada importância ao assunto e, por outro, não havia quaisquer registos de prescrições em que os cirurgiões pudessem basear-se.
 
Em 1813, o cirurgião John Hennen em Bilbau administrava cerca de três a quatro grãos de ópio. O regulamento existente para os hospitais regimentais previa que, para um efectivo de 250 homens, deveria haver oito onças de tintura de ópio e três de ópio puro. A droga era administrada oralmente e, muito raramente, era colocada nas ligaduras para o tratamento das úlceras e queimaduras dolorosas. Sem qualquer prescrição médica, destinada a diminuir o sofrimento e a dor dos pacientes, a maior contribuição que os cirurgiões poderiam dar para aliviar a dor e o sofrimento seria a velocidade e o tempo adequado na cirurgia. Os cirurgiões empreendiam a cirurgia o mais rápido possível, antes que o membro edemaciasse ou que a sepsis se instalasse6.
 
A mortalidade das amputações dependia da capacidade e experiência do cirurgião, do momento em que o paciente chegava junto daquele e do lugar e gravidade da ferida, (fig. 8). Com todos estes condicionalismos a que estava sujeito, as taxas de morbilidade e mortalidade em campanha eram altas. Situavam-se entre os 10% e os 30% no caso de amputações primárias, quando executadas por um cirurgião experiente num soldado saudável (Idem. 2002 20).
 

 
Fig. 8 - Lord Uxbridge, Marquês de Anglesey. Na Batalha de Waterloo contraiu um ferimento ligeiramente acima do joelho e teve que ser submetido a uma cirurgia de amputação da perna esquerda.
 
Contudo, as amputações secundárias, aquelas já com sepsis, praticadas por um cirurgião também experiente num soldado robusto eram de 60% a 70% (Idid. Ibidem), percentagens que se manteriam até à Guerra Bóer (Idid. Ibidem).
 
Desbridar as feridas era um procedimento cirúrgico frequente e, muitas vezes, difícil se o projéctil se encontrasse muito profundo e se os bordos da ferida estivessem contaminados. No interior do corpo a sua recuperação era feita através da palpação com os dedos (raio X da época). Se o cirurgião não sentisse o projéctil através da palpação, o mesmo seria cuidadosamente retirado por fórceps. No caso de lesão óssea com fragmentos, os mesmos deveriam ser retiradas com os instrumentos. Nestas situações acontecia que, por vezes, fragmentos infectados ou outros corpos estranhos não eram detectados, quer pelo dedo do cirurgião quer mesmo pela utilização de fórceps o que constituía um grave risco de infecção para o paciente.
 
A maior parte dos ferimentos superficiais eram limpos e desinfectados, mas por vezes acontecia que os cirurgiões depois não conseguiam encerrar essas feridas por edema dos tecidos, (fig. 9). No tratamento das feridas os cirurgiões, depois das suturas, aplicavam ataduras e ligaduras. O tratamento das fracturas era rudimentar, os ossos fracturados eram imobilizados através da utilização de faixas de linho e o paciente teria que ficar imobilizado durante muitas semanas em posição de máxima relaxação muscular.
 

 
Fig. 9 - Albrecht Heifer do King’s German Legion. Foi ferido no peito por uma bala de canhão. Não fracturou as costelas mas feriu os pulmões. The Paintings and Sketches of Sir Charles Bell (1809-1815), Edinburgh, Royal College of Surgeons.
 
No tratamento destas fracturas os cirurgiões utilizavam ligaduras, fitas e agulhas e as linhas de sutura eram de linho ou de seda. Com mais ou menos sofrimento no tratamento, a cura normalmente acontecia, mas a consequência era, inevitavelmente o não-alinhamento dos topos, por vezes com encurtamento do membro. A osteomíelite constituía uma verdadeira complicação, pois provocava frequentemente fístulas de expulsão fragmentos, crises de febre e quebra do estado geral. Não obstante as técnicas da cirurgia serem rudes, limitadas mas rapidamente realizadas, muitas vidas foram salvas pela resistência dos pacientes e, algumas vezes, pela sua sorte.
 
Não podemos esquecer a inovação introduzida por James Guthrie em 1813 que consistiu na utilização de talas «The long splints» para aplicar nas fracturas do fémur, cuja principal finalidade era prevenir as deformações resultantes das fracturas que obviamente provocavam alteração na marcha.
 
Os procedimentos anti-inflamatórios, como a sangria, a purga e o vómito eram ineficazes e muitas vezes sendo graves para o doente. A sangria como era praticada pelos cirurgiões, ao serviço das forças aliadas, era considerada a terapia mais difícil de compreender. Fazer o paciente sangrar até à síncope (desmaio) era dar algumas esperanças ao cirurgião e diminuir a situação de desconforto e sofrimento do paciente. A sangria podia ser realizada no local do ferimento ou da doença ou, geralmente, no cotovelo, região do sangrador, ou na perna. Este procedimento tinha como finalidade reduzir a circulação sanguínea ao doente com ferimentos ou já com sepsis. Um doente com uma sintomatologia caracterizada por taquicardia, febre, congestionado e com sepsis era correctamente diagnosticado pelos cirurgiões como tendo um problema grave de saúde. Como ainda não era conhecido o domínio da bacteriologia, as reacções fisiopatológicas à sepsis eram entendidas como factores causais da doença o que implicava que esta tinha de ser controlada para que o doente sobrevivesse. Assim, era muitas vezes sangrado com 20/30 onças de sangue de uma só vez. As técnicas variavam: o lancetamento, as sanguessugas e escarificação. As lesões vasculares eram iminentes, desde a infecção a perda excessiva de sangue e a resultante anemia. Eram utilizadas diferentes lâminas e lancetas. Uma taça de estanho ou de latão calibrado, ou uma taça de sangria era encostada ao cotovelo e recolhido o sangue. Além deste procedimento, as sanguessugas também eram usadas pelos médicos (físicos) e cirurgiões que as transportavam em taças de estanho ou caixas para sangrar. Para descongestionar os pacientes ou parte do seu corpo, vinte ou trinta eram aplicadas nas zonas adequadas.
 
Com este pequeno estudo sobre a Cirurgia nas Guerras Peninsulares procurámos fazer uma avaliação do que foi a sua prática ao serviço do Exército Anglo-Luso, bem como do seu contributo para o progresso e desenvolvimento da Cirurgia.
 
 
Conclusão
 
A Cirurgia nas Guerras Peninsulares constitui um estudo sobre as práticas cirúrgicas levadas a efeito durante o período conturbado da «tempestade» napoleónica ainda hoje pouco conhecida pelo grande público e pela comunidade científica. Pretendemos, em primeiro lugar, relevar o grau de inovação enquanto área de investigação e reflexão histórica no campo da História da Medicina e em segundo lugar o papel primordial que desempenhou no tratamento de feridos.
 
Os cirurgiões aplicando muitas das suas práticas cirúrgicas inovadoras, conseguiu solucionar ou, pelo menos, simplificar situações clínicas como foi o caso de interrupção da artéria femoral através da digitação e o estancamento dos ferimentos do peito que passaram a ser tratados pela primeira vez nas Guerras Napoleónicas.
 
A prática cirúrgica demonstrou acentuadas limitações, nomeadamente ao nível dos ferimentos graves no crânio, no peito, na coxa e no abdómen em que os feridos, na maior parte das vezes, eram deixados à sua sorte. Mesmo com todas aquelas limitações e sem a descoberta da anestesia e da anti-sepsis a cirurgia conseguiu ir muito longe.
 
Podemos dizer que, atendendo aos conhecimentos destes homens e às suas precárias condições de trabalho, prestaram um serviço notável no que refere à sua prática cirúrgica especialmente ao estancar hemorragias, drenar o pus das feridas, retirar tecidos mortos e, mesmo, dar apoio aos que se encontravam à beira da morte. Esse serviço torna-se ainda mais notável na medida em que não havia uma política de administração de analgésicos e anestésicos. Não era dada atenção ao assunto nem havia quaisquer registos de prescrições nos quais os cirurgiões militares pudessem basear-se. Nos hospitais de campo, os principais problemas que os feridos podiam encontrar relacionavam-se com situações de muito barulho, de multidão desesperada, de falta de água, de falta de alívio para a dor e de um lugar confortável onde pudessem convalescer.
 
Encontrámos uma grande capacidade de resistência dos soldados aos ferimentos que lhes eram infligidos nos campos de batalha que só têm justificação na robustez física e nos árduos trabalhos manuais a que estavam habituados nos meios rurais de onde eram provenientes; não esperavam alívio da dor e aceitavam resignadamente a morte, caso não superassem as múltiplas complicações surgidas após os ferimentos.
 
 
Bibliografia Geral
 
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*      Sargento-Ajudante Pára-quedista. Licenciado em História (ensino de), professor do Ensino Secundário e mestre em Estudos Históricos Europeus pela Universidade de Évora. Desempenha funções na Comissão Portuguesa de História Militar.
 
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 1 Para um estudo mais aprofundado consule-se: Sir James McGrigor: The Scalpel and the Sword the Autobiography of the Father of Army Medicine, Scottish, Scottish Cultural Press, 2001.
 2 No Royal College of Surgeons of Edinburgh podemos encontrar um crânio com onze golpes desferidos por uma espada. Esses golpes eram feitos intencionalmente e, na sua grande maioria desferidos de cima dos cavalos e de cima para baixo com uma forma considerável. As múltiplas feridas provocadas nesta situação podiam ser superficiais, mas também podiam provocar.
 3 Nasceu em Fountainbridge, Edinburgh em Novembro de 1774 e faleceu em Abril de 1842 em Hallow Park Worchester. Estudou Medicina em Edinburgh onde obteve o grau de physician (Médico) em 1799, sendo nesse mesmo ano, admitido no Royal College of Surgeons of Edinburgh. Foi Professor de Anatomia e Cirurgia no Royal College of Surgeons of London, tornando-se regente de Fisiologia e Cirurgia na University of London em (1824). Da sua vasta bibliografia relevamos: “A System of Dissections Explaining the Anatomy of the Human Body (…)”, 2 vols., Edinburgh, 1798; “The Anatomy of the Human Body”, 3º vol., Edinburgh, 1804; “Anatomy of Expression”, London, s.d.; “New Idea of The Anatomy of the Brain”, London, 1811; “The Nervous System of the Human Body”, London, 1830.
 4 A Batalha de Talavera ocorrida no dia 28 de Julho de 1809, considerada a mais violenta da Guerra Peninsular o número de baixas do lado do Exército Aliado foi de 5 363. Quando todos os feridos já estavam recolhidos no convento de Deleitosa próximo de Troxillo, Guthrie ficou bastante impressionado com as amputações indiscriminadas que se praticavam aos membros superiores e fez uma queixa formal para os seus superiores a dar-lhes conta da situação, por essas queixas viria a ganhar muitos inimigos. Guthrie era muito renitente em proceder às amputações e só as praticava em casos extremos, não raras as vezes as proibiu aos seus inferiores. Na Batalha de Albuera ocorrida no dia 17 de Maio de 1811, o dr Stamford requereu autorização de Guthrie para amputar a coxa de um soldado que tinha sido ferido por uma bala. Guthrie recusou o pedido de autorização e aplicou um garrote na coxa do soldado e ordenou que o dr Samford regressasse ao seu regimento. Cfr., Idem., Ibidem., p. 4 e John Winstanley, Wellington’s Field Surgeons, London, Churchil Clinic, UK, p. 203.
 5 Mais tarde, nas Guerras da Crimeia ocorridas entre 1854 e 1855 e depois da Guerra Civil Americana, um grande número de cirurgiões quando tinha de administrar o éter e o clorofórmio ficavam muito nervosos e inseguros. Embora na Guerra da Crimeia tivesse ocorrido sob o advento da Anastesia Geral contudo, não houve grande diferença na mortalidade provocada pelas amputações praticadas nas Guerras Napoleónicas e as Guerras da Crimeia. Cfr., Idem., Ibidem, p. 1.
 6 A primeira utilização da anestesia viria a realizar em 1846 no teatro de operações no Massachusetts General Hospital e foi ministrada pelo professor John Warren e pelo dr. William Norton ao paciente Mr. Gilbert Abbort para lhe extraírem um pequeno tumor.
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2008-06-22
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Sargento-ajudante

José Luís Assis

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