Nº 2443/2444 - Agosto/Setembro de 2005
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
As Empresas Militares Privadas vieram para ficar?
Coronel
Nuno António Bravo Mira Vaz
Há dois tipos de empresa a prestar serviços na área da segurança: as empresas militares privadas (EMP) e as empresas de segurança privadas (ESP), podendo afirmar-se que as primeiras se ocupam preferencialmente das actividades de apoio de serviços e de apoio de combate - tarefas que do antecedente eram desempenhadas em regime de exclusividade pelos militares - enquanto que as segundas se dedicam sobretudo à segurança de pessoas e bens. A demarcação entre elas não é inteiramente nítida, ocorrendo situações em que as ESP cruzam a linha de separação para as acções de combate. Em determinadas circunstâncias, revela-se igualmente permeável a linha que separa as empresas privadas da actividade mercenária, havendo notícia de indivíduos com um registo activo em acções como mercenários - isto é, que vendem aptidões de carácter militar sem qualquer enquadramento orgânico - que aparecem noutras ocasiões ligados tanto a EMP como a ESP.
 
Os primeiros contratos celebrados pelas “empresas militares privadas” (private military companies) tiveram como cenário a África pós-colonial. E, porque era necessário dar resposta a solicitações típicas dessa época, a privatização das actividades violentas concretizou-se antes da privatização das actividades não violentas. Há quarenta anos, estávamos muito longe do formato empresarial. O que havia era pequenos grupos de ex-militares ligados às antigas potências coloniais, disponíveis para prestar serviços de carácter militar, indistintamente aos elementos rebeldes ou às forças governamentais dos novos países. Para as comunidades de cultura francesa, esses homens eram simplesmente “les affreux” (os nojentos).
 
Nos primeiros anos, a actividade das EMP esteve circunscrita ao continente africano e era não só ilegal como ilegítima, havendo bons motivos para a considerar, em muitos aspectos, próxima do vulgar mercenariato. Mesmo quando contratadas por autoridades estatais ou delas dependentes, não existia cobertura legal para a sua actuação, fosse no Direito internacional, fosse na legislação de cada país. Só quando, muitos anos mais tarde, a privatização foi adoptada pelos países demoliberais, é que as empresas tiveram o cuidado de incorporar muitos dos procedimentos próprios das sociedades comerciais. Esse mínimo de transparência era uma condição sine qua non para que lhes fosse permitido oferecer um amplo leque de serviços que cobre, para além das competências militares - incluindo a participação, de forma mais ou menos aberta, no próprio esforço de guerra - o catering, a manutenção de materiais e de instalações, o transporte de matérias críticas, a jardinagem, a segurança de pessoas e bens e a vigilância de instalações.
 
O problema da legalidade na actuação das EMP foi-se agudizando, à medida que elas alargavam a presença e os domínios de actuação, e atingiu o auge quando, muito recentemente, se começou a encarar a possibilidade de substituirem as Forças Armadas em tarefas de campo de batalha. A sugestão de que se pode entregar aos privados a representação dos Estados nos cenários de guerra motivou um generalizado sentimento de apreensão: por algum motivo os militares são considerados - e não apenas por académicos, estrategos e especialistas de polemologia, mas também por qualquer cidadão razoavelmente informado - os especialistas exclusivos da gestão da violência armada legítima.
 
Pode causar estranheza que se prefira relacionar os militares com a violência armada legítima e não com a violência armada legal, sabendo-se como a primeira mantém uma margem de controvérsia que haveria toda a conveniência em evitar. Há vinte anos, não haveria motivo para semelhante questionamento, uma vez que vigorava, no sistema internacional, um conceito de soberania que considerava ilegal qualquer ingerência nos assuntos internos dos Estados. A violência armada era legal quando decretada pelo Conselho de Segurança; em todos os outros casos era ilegal, não existindo juízo de valor sobre a sua legitimidade. A segurança das unidades políticas assentava num sistema de alianças que se vigiavam reciprocamente e sem descanso em todas as regiões do mundo e a hipótese de a comunidade internacional se decidir por uma intervenção externa era muito remota. Só no final da década de noventa, depois de derrubado o Muro de Berlim e de ter sido desarmadilhada a animosidade ideológica entre os Blocos inimigos, é que foi possível enunciar um novo conceito de segurança - a que se chamou segurança cooperativa porque rejeita a visão hobbesiana duma sociedade de Estados em luta permanente pela sobrevivência individual, ligando a segurança de cada país à segurança de todos - com base no qual se pôde teorizar a legitimidade das intervenções.
 
À medida que se aproximava a transição do milénio, a comunidade internacional apercebeu-se de que era preciso dar resposta oportuna e calibrada a certos cenários de conflitualidade étnica, religiosa ou meramente civil, onde a crueldade e a barbárie convergiam para produzir massacres e genocídios de dimensões apocalípticas. A celeridade era uma peça essencial no sucesso e, portanto, o entendimento de que a intervenção podia ser aprovada a posteriori rapidamente se tornou consensual. Ao aceitar este entendimento, a comunidade de Nações decretou que a violência armada contra aqueles que pusessem em causa a segurança cooperativa, antes de ser legal, podia começar por ser legítima.
 
 
As razões da privatização
 
A privatização das actividades de segurança tem raízes bem diversas, consoante os países que a adoptam. Enquanto que, no Terceiro Mundo, se recorre às EMP por causa das debilidades estruturais de Estados incapazes de dar resposta adequada às necessidades de segurança das comunidades nacionais, no mundo desenvolvido o recurso às EMP é quase sempre consequência de considerações economicistas ou sociais. Pelo lado economicista, pode constituir uma opção tanto dos Estados que têm de gerir orçamentos em retracção, como das próprias EMP, que não se limitam a ver nos conflitos armados realidades de natureza estratégica, mas também, e quiçá sobretudo, oportunidades de negócios1. Pelo lado social, o que está em jogo é uma atitude de “condescendência” para com certas sensibilidades dominantes no Ocidente, tais como a relutância em intervir nos conflitos onde se desenha uma expectativa de baixas em escala elevada. Enquanto assim for, as empresas vão continuar a aumentar e a diversificar as suas capacidades, a robustecer as suas reputações e a criar, quem sabe, uma imagem de respeitabilidade e de rigor técnico.
 
Entre as circunstâncias que encorajaram os países desenvolvidos a recorrer ao outsourcing, a mais evidente, a que terá tido influência mais profunda nessa opção e a que terá por sua vez dado origem a um conjunto de outras causas, foi a reconfiguração do poder mundial no pós-Guerra Fria. Em primeiro lugar, o conceito clássico de soberania, que tinha implícita a proibição integral de ingerência nos assuntos internos dos países, foi reformulado no sentido de permitir ou aconselhar o direito-dever de ingerência por razões humanitárias. Enquanto isso, as características da conflitualidade alteraram-se. As grandes guerras de expressão global foram substituídas por conflitos de baixa intensidade e com reduzida dimensão estratégica, como são as guerras civis por motivos étnicos ou religiosos em lugares onde as fronteiras (físicas, culturais e entre combatentes e não-combatentes) se tornaram fluidas. Uma vez que o desfecho destes conflitos depende com maior frequência do estabelecimento de compromissos político-sociais do que do recurso a acções violentas, por mais legítimas que estas se apresentem, o papel tradicional­mente reservado às Forças Armadas aparece desvalorizado e, em contra-partida, fica mais amplo e diversificado o campo de actuação das EMP.
 
Na esteira destas constatações, encontra-se outra razão: as reduções nos efectivos das Forças Armadas dos países desenvolvidos. Sempre que tal acontece, lançam-se no mercado de trabalho não só muitos soldados considerados excedentários mas também enormes quantidades de armas a preço de saldo. A circunstância de as EMP pagarem a alguns dos seus especialistas salários até dez vezes superiores aos praticados pelas Forças Armadas (certas estimativas avançam importâncias até 20 mil dólares mensais) funciona como um poderoso aliciante ao recrutamento de militares em serviço activo, mormente das forças especiais. Este fenómeno é já visível nos EUA, tendo as autoridades reconhecido que a apetência para prestar serviço nas EMP e nas ESP produziu efeitos negativos nas taxas de retenção dos militares voluntários, em especial daqueles que possuem maiores aptidões nas especialidades mais “requisi­tadas” pela moderna conflitualidade. Estima-se que a Blackwater, uma das mais activas, tenha treinado até hoje cerca de 50 000 “funcionários” em funções de natureza militar ou de segurança.
 
A privatização foi igualmente alimentada pelo desinteresse dos países ocidentais em intervir out-of-area. Embora as opiniões públicas ocidentais sejam sensíveis ao sofrimento das populações que, em determinadas regiões do mundo, são frequentemente afectadas por golpes, pronunciamentos e outras desordens civis, a verdade é que os Governos se mostram relutantes em disponibilizar forças militares para aí intervir. As Organizações Internacionais - sedes legítimas da decisão relativa às intervenções multilaterais - não são mais expeditas. Conhecem-se as dificuldades que sentem quando buscam consensos para organizar, financiar e expedir forças multinacionais para acções de apoio à paz. Assim se abre progressivamente a porta à actuação das empresas militares privadas.
 
Há uma quarta razão ligada com esta: o recurso às EMP facilita a projecção de forças para áreas de conflito armado. Embora os funcionários das EMP devam ser considerados cidadãos em paridade com os soldados das Forças Armadas, e como tal credores dos mesmos níveis de preocupação por parte das comunidades nacionais, a verdade é que existe, inorgânica, nas opiniões públicas, uma tendência para aceitar como mais natural, em zonas de risco acrescido, o envolvimento do profissional civil do que o do “profissionalizado” militar. E os Governos, prisioneiros permanentes da lógica eleitoralista, amoldam-se aos ditames do que entendem ser as maiorias.
 
Uma razão que nenhum responsável confessaria, mas que é incontestável, é que as EMP podem funcionar como agentes, voluntários ou involuntários, dos interesses dos Governos em regiões onde não seja aconselhável o envolvimento de Forças Armadas nacionais. Nalguns países são bem conhecidas as ligações das empresas aos departamentos de defesa. Os números não deixam margem para dúvidas. Nos últimos dez anos, o Pentágono terá estabelecido cerca de três mil contratos com as EMP, num total estimado em 300 mil milhões de dólares. O crescimento do volume dos contratos é bem visível nos cenários de conflito: segundo Sami Makki, na I Guerra do Golfo havia um contratado civil para 100 militares; na II Guerra do Golfo (ou Guerra do Iraque, como alguns preferem chamar-lhe), regista-se um contratado civil para 10 militares, estimando-se que os funcionários das EMP representem no início de 2005 a segunda força de ocupação no Iraque, equivalente a 20% dos efectivos americanos. Scott Custer, co-director de Custer Battles, afirma que estão no país, sob contrato, cerca de 30 000 iraquianos e vários milhares de estrangeiros2.
 
A dimensão crescente dos contratos firmados com as referidas empresas mostra de forma inequívoca que as suas actividades, anunciadas como independentes, servem objectivamente os interesses dos países de origem; e é por força desta coincidência ocasional de interesses que os verdadeiros objectivos dalgumas intervenções permanecem na obscuridade. Quando uma EMP americana ou britânica - países onde é particularmente expressiva a duplicidade dos comportamentos - é contratada para criar e treinar as Forças Armadas de determinado país, o mínimo que se pode esperar é que ela as incentive a adoptar as doutrinas, os manuais e os regulamentos dos países de origem, com todas as vantagens implícitas para estes. Estas expectativas são particularmente interessantes em certas áreas do globo, como o Médio Oriente, onde a existência de grandes quantidades de recursos estratégicos coexiste com uma instabilidade política persistente. São inúmeras as firmas americanas contratadas pelos Governos locais para treinar as suas Forças Armadas, sem que alguma vez se mencione a importância estratégica do petróleo. Para além da Arábia Saudita, com múltiplos contratos, registe-se que, por ocasião da II Guerra do Golfo, em meados de 2003, a Vinnell, associada à MPRI, ganhou um contrato no valor de 23 milhões de dólares para criar e treinar o núcleo dum novo Exército iraquiano, enquanto que a formação e treino das forças de polícia do país era entregue à DynCorp3. No quadro dos programas de cooperação militar, as firmas americanas Vinnell, MPRI, Cubic e Logicon já formaram e treinaram Forças Armadas em mais de quarenta países, só na década de noventa4.
 
Do lado britânico, o panorama é idêntico. As empresas, valendo-se de contactos privilegiados com os Governos das antigas colónias, actuaram já em muitas áreas instáveis de África e do Médio Oriente. O Foreign Office não é completamente alheio a esta movimentação: sempre que se considerar politicamente inconveniente o envolvimento directo de forças militares britânicas, levará sub-repticiamente ao conhecimento dos interessados que há certas ‘empresas capazes de executar a tarefa’. Em 1983, a Keenie Meenie Services (KMS) foi contratada para treinar as forças militares do Sri Lanka em técnicas contra-subversivas; a contratação, feita pelo Governo legítimo do país, mereceu o apoio explícito do Governo britânico. Uma compreensão repetida em 1986, quando o Governo britânico emprestou ao Governo de Moçambique o dinheiro para contratar com a firma britânica Defense Systems Limited o treino de soldados locais encarregados de defender as instalações duma empresa britânica que produzia chá e acuçar5.
 
Por muito que, nos termos do contrato, as empresas sejam responsáveis apenas perante os Governos contratantes, ninguém duvida de que, para todos os efeitos práticos, elas agem na qualidade de mandatárias, movimentando-se no seio de intrincados contextos políticos com custos financeiros e com graus de risco inferiores aos que teriam de ser assumidos se o pessoal militar estivesse directamente envolvido.
 
 
O que é uma “empresa militar privada”
 
É sabido que a actuação das EMP nem sempre se subordina a um quadro de completa transparência. O mais comum é que as empresas emitam sinais mistos, os quais permitem aos Governos manter com elas relações que oscilam entre o apoio encoberto e a desconfiança que não podem deixar de manifestar publicamente perante actividades que suscitam, na opinião pública, legítimas preocupações.
O protagonismo crescente das EMP na cena internacional veio de alguma forma alimentar os receios de que elas possam vir a substituir as Forças Armadas nalguns cenários de conflito. No actual contexto geoestratégico, estas estão a ser encaminhadas cada vez mais para missões que se subtraem ao escopo tradicional, como a vigilância de fronteiras, a luta contra o narcotráfico ou a ajuda humanitária. Este encaminhamento para novas missões decorre em simultâneo com a aproximação aos valores e aos comportamentos da sociedade civil. Lenta mas inexoravelmente, as Forças Armadas vão-se assemelhando, nos direitos e nos deveres, às restantes profissões, de tal forma que acabam por agir, no mercado de trabalho, em condições similares às dos restantes sectores de actividade. Se não se inverter este processo, um dia virá em que, por razões de racionalidade económica, se abrirá concurso público para fornecimento, pelo melhor preço, dum serviço de segurança ao país.
 
Assim sendo, deve-se ou não tentar regulamentar o outsourcing? O interesse geral aponta para a conveniência de um diálogo construtivo, base duma regulamentação desejável e possível, visto que as empresas se declaram preparadas para aceitar um quadro regulador e para ver as suas actividades escrutinadas por monitores internacionais. A regulamentação, que teria de respeitar escrupulosamente o Direito internacional, fixaria com rigor o quadro das actividades autorizadas e daquelas que seriam proibidas, caracterizando sem margem para dúvidas as missões de carácter militar e as de simples segurança e estabelecendo uma distinção clara entre actividades desenvolvidas em território nacional e no estrangeiro. No essencial, trata-se de assegurar que os Governos autorizem uma determinada firma - e não outra - a exercer uma lista precisa de actividades6 – com exclusão de todas as outras - num dado conjunto de países.
 
Algum trabalho de base já está feito. O “Arms Export Control Act, aprovado pelo Congresso americano em 1968, regulamenta a venda de armas e de qualquer tipo de aptidão militar para o estrangeiro. Em 1980 foi objecto de alterações que visavam um controlo mais apertado das empresas de segu­rança. Nos termos dessa revisão, qualquer EMP ou ESP que pretenda prestar serviço de carácter militar ou de segurança no estrangeiro é obrigada a registar-se, após o que pode solicitar ao Departamento de Estado, ao abrigo das International Transfer of Arms Regulations (ITAR), licença para o exercício das actividades, devendo os contratos superiores a 50 milhões de dólares ser aprovados pelo Governo dos EUA. Outro importante instrumento legislativo é o Federal Criminal Statute, que proíbe o alistamento e recrutamento, em território americano, de cidadãos nacionais para qualquer tipo de serviço dirigido contra um país com o qual os EUA estejam em paz”7.
 
Legislação semelhante existe na República da África do Sul, país de origem da primeira EMP, a Executive Outcomes, formada com base em antigos militares do conhecido Batalhão 32 que ficaram desempregados quando terminou o apartheid. Em 1998 foi aprovado o Foreign Military Assistance Act, que proíbe a utilização de cidadãos sul-africanos em actividades mercenárias - definidas como as que implicam o envolvimento directo do indivíduo, como combatente, em conflito armado.
 
Idêntica proibição está contemplada na Grã-Bretanha através do Foreign Enlistment Act (FEA) de 1870, que proíbe o recrutamento ou alistamento de cidadãos britânicos para serviço militar no exterior. Esta lei foi revista em 1976, depois de o Relatório Diplock ter constatado ser muito difícil fazê-la cumprir. Mas só em 1998, na sequência do envolvimento de cidadãos britânicos na guerra civil na Serra Leoa, é que foram dados alguns passos significativos para a resolução do problema. “Em Fevereiro de 2002 foi publicado o Livro Verde Empresas Militares Privadas: Opções para a sua Regulamen­tação, no qual se avançam linhas de orientação para uma futura legislação. Consideram-se seis opções: primeiro, proibir o exercício de actividades de carácter militar no estrangeiro; segundo, proibir o recrutamento de pessoal para as referidas actividades; terceiro, impor um regime de licenciamento para essas actividades; quarto, obrigar ao registo e notificação das empresas; quinto, impor uma licença generalista para as EMP e para as ESP; e por último, a auto-regulação, com adopção dum Código de Conduta”8.
 
A perspectiva de que as EMP possam adquirir um certo grau de legitimidade no seio da comunidade internacional coloca de imediato a questão de saber se elas poderiam tomar parte nas acções de apoio à paz a cargo das Nações Unidas ou de outra instância internacional competente. O Secretário-geral das N.U., Kofi Annam, a propósito do genocídio no Ruanda, onde falhou totalmente a intervenção humanitária, confessou ter pensado em “contratar EMP. Não o fez porque, segundo afirmou, o mundo talvez ainda não esteja preparado para privatizar a paz”9. A legislação em vigor parece dar-lhe razão. Na Grã-Bretanha, por exemplo, o citado Livro Verde, embora se declare disposto a aceitar que as EMP prestem apoio a operações humanitárias ou de manutenção da paz, insiste em que não é adequado permitir que elas substituam as forças militares nacionais empenhadas nessas missões. O documento é peremptório: sempre que não seja possível enviar forças militares, o convite deve ser declinado.
 
Mais recentemente, em Abril de 2003, a Assembleia Nacional francesa aprovou uma lei que pune com um máximo de cinco anos de prisão a actividade mercenária. A lei fixa igualmente uma definição de mercenário: “indivíduo propositadamente recrutado para combater num conflito armado, (que não pertença a um Estado que seja parte nesse conflito nem membro das suas Forças Armadas), e que tome ou tente tomar parte directa nas hostilidades com a finalidade de obter vantagens pessoais” 10.
 
As indefinições legais não impediram as empresas de crescer, por forma a poderem proporcionar uma grande variedade de serviços, desde a simples consultadoria ao empenhamento em operações de combate. Num mercado em grande crescimento, as empresas afirmam que não aceitam contratos que se oponham aos interesses dos seus países. Mas enquanto se mantiverem as indefinições no plano legal, há motivos para recear que elas possam não entender a natureza complexa dos interesses nacionais e aceitem participar num jogo em que a sua posição, sem ser claramente oposta aos interesses do seu país, também não possa considerar-se favorável11.
 
 
A análise possível
 
 
A privatização das actividades de segurança, nas suas múltiplas modali­dades, tem constituído a resposta possível, e com muitos aspectos positivos, para as dificuldades de afirmação dos Estados numa cena internacional em mudança acelerada. Em certo sentido, como faz notar Sami Makki, estamos perante “uma antecipação dos cenários de conflito que tendem a multiplicar-se nas fronteiras da globalização, tudo levando a crer que a privatização da violência armada legítima vai aí desempenhar um papel de relevo. E o que se passa hoje no Iraque pode carrear elementos fundamentais para uma avaliação dos efeitos do outsourcing, a partir da qual se possa sistematizar o fenómeno de forma reflectida”12.
 
A privatização não afecta todos os países da mesma maneira. Em Portugal e noutros pequenos países quase se não fala disso. Nos EUA, pelo contrário, que são uma grande potência com responsabilidades globais, a redução dos efectivos militares tornou inevitável uma reflexão sobre a consistência estratégica da presença americana no mundo. O país está confrontado com dois desafios em simultâneo. Por um lado, tem que travar uma guerra planetária contra o terrorismo transnacional, um conflito que se pode considerar tecnicamente de baixa intensidade mas de longa duração; por outro, tem que assegurar a prontidão do aparelho militar para dar resposta às ameaças militares clássicas. E tudo isto sem afrouxar a capacidade de liderança mundial em zonas onde a presença das suas forças militares constitui um elemento central de afirmação e estabilidade. Para poderem substituir as Forças Armadas em missões que não sejam vitais para a segurança nacional, o recurso aos serviços das EMP tornou-se praticamente inevitável. Receia-se que o processo esteja apenas no início, já que continuam a ser anunciados planos para a saída de efectivos militares americanos de zonas onde se mantêm há dezenas de anos e onde uma retirada, ainda que parcial, terá um impacte psicológico e porventura estratégico importante.
 
Até ao 11 de Setembro de 2001, a segurança de pessoas e bens foi considerada, do ponto de vista doutrinário, uma tarefa bem distinta do apoio mais ou menos directo às acções de combate. Mas o terrorismo transnacional veio impor um campo de batalha com linhas de contacto muito fluidas, como é o do Iraque, onde tanto os agentes das EMP como os das ESP já foram observados a comboiar colunas de reabastecimento, a proteger altas personali­dades, a conduzir interrogatórios de prisioneiros, a instruir elementos das forças militares e de segurança iraquianas, entre outras actividades levadas a cabo de forma mais ou menos transparente. No exercício destas funções, têm-se encontrado com frequência em situações onde se torna imprescindível reagir coordenadamente e com utilização de armamentos pesados, como faria uma unidade militar13.
 
A sobreposição ocasional de tarefas é facilitada pelo quadro de completa ausência de comando e controlo centralizado em que as EMP operam. As falhas, mais ou menos recorrentes, começam logo no recrutamento, nem sempre muito escrupuloso no que respeita às aptidões dos voluntários nos domínios em que as empresas prestam serviços. E porque também não se dá muita importância às suas qualidades humanas, ninguém se espanta de ver três antigos militares a criar e a manter um cárcere privado no Iraque para pressionar prisioneiros supostamente detentores de informações vitais para a sua actividade de “caçadores de prémios”. Pode encontrar-se um pouco de tudo nas EMP: embora quase todos os funcionários tenham feito serviço militar nas forças especiais, a verdade é que alguns eram bons soldados e outros não; alguns são jovens de mais, outros demasiadamente velhos para as exigências da profissão; alguns têm treino adequado e outros nem por isso. Na realidade, as EMP mostram tanto (ou tão pouco) critério na selecção dos candidatos como no seu treino. Por alguma razão um Relatório de 2000, da Universidade de Defesa dos EUA, reconhece que “a privatização pode ser mais barata que uma intervenção militar, mas a qualidade do resultado e o respeito pelos direitos humanos podem ser gravemente afectados”14.
 
Embora ocasionalmente se estabeleça alguma coordenação entre as Forças Armadas e as EMP, não existem mecanismos orgânicos de ligação. Aquelas não facultam informações às EMP (um dos pretextos é que estas contratam autóctones e por isso corre-se o risco de denúncia das operações planeadas) e vice-versa. As relações entre elas não são as melhores e a circunstância de actuarem em separado torna muito difícil a prestação oportuna de apoio em situações complicadas. Repare-se, por exemplo, como tem vindo a crescer o número de funcionários das EMP tomados como reféns ou assassinados, sem que haja possibilidade de socorro por parte das Forças Armadas. O aumento do número de baixas, particularmente visível no Iraque, é o reflexo inevitável do contexto de insegurança crescente que ali se vive, o qual tem forçado os agentes das EMP e das ESP a defender-se de ataques suicidas e de acções ofensivas de variada natureza. Acresce que, embora em tempo de guerra estejam abrangidos, na qualidade de agentes do Governo que os contratou, pelo Artigo 3.º da Convenção de Genebra, os agentes das empresas privadas de segurança, quando capturados, não têm direito a ser considerados prisioneiros de guerra, categoria que os colocaria sob a protecção dum conjunto de convenções que obriga todas as partes intervenientes nos conflitos armados.
 
Estão igualmente a crescer os casos de incumprimento, ou cumprimento deficiente, por parte das EMP e das ESP, dos contratos firmados, alguns no valor de muitos milhões de dólares. Na semana seguinte à morte dos quatro funcionários da Halliburton em Falloujah, a empresa suspendeu parcialmente as suas actividades, criando graves problemas de abastecimento a toda a estrutura de ocupação. E há outras formas porventura ainda mais gravosas. Um primeiro aspecto - violação das regras da livre concorrência - teve como protagonista a Kellog, Brown and Root, uma subsidiária da Halliburton, à qual foi atribuída, sem concurso, a empreitada de reparação de instalações petrolíferas no Iraque por uma importância estimada em vários milhares de milhões de dólares. Alvo de contestação, o Governo americano começou por explicar que a empresa era a única de entre as concorrentes a possuir a dimensão e as credenciais de segurança indispensáveis ao bom cumprimento da missão15. Mas viu-se obrigado a aceitar como justificadas as acusações de violação dos princípios do mercado, tendo acabado por abrir vários concursos parcelares, dos quais a referida firma ganhou um, no valor de 1,2 mil milhões de dólares. A mesma Kellog, Brown and Root foi acusada, em 2004, por uma auditoria da General Accounting Office (GAO) - uma Agência do Governo especiali­zada em investigações deste tipo - de inflacionar os custos do abastecimento de combustíveis às tropas no Iraque em 61 milhões de dólares.
 
Estas ocorrências parecem pôr em causa um dos motivos que estão por trás da privatização: a redução dos custos. O menos que se pode dizer é que, ao contrário do que se concluiu - um pouco precipitadamente, convenhamos - das primeiras prestações das empresas de segurança, os custos finais se estão a revelar superiores ao esperado. Mas a questão dos custos não termina aqui: os altos salários pagos pelas EMP podem representar uma efectiva redução de custos, na medida em que aliviam as Forças Armadas dos gastos com o recrutamento, o treino, o equipamento, o transporte e todas as despesas de funcionamento, tanto em tempo de paz como de guerra. Não houve, até à data, notícia de estudo rigoroso que permita avaliar se, e até que ponto, o outsorcing se transformou num sorvedouro de dinheiros públicos. Por enquanto, não se vilumbram motivos para se ser demasiadamente pessimista, já que os altos níveis salariais respeitam apenas a pequenos segmentos e, por outro lado, toda a medida que incentiva a criação de postos de trabalho apresenta, ipso facto, virtualidades positivas do ponto de vista económico. Mas convém estar atento a indicadores como os montantes financeiros envolvidos nalguns programas e bem assim às suspeitas relativas a casos de sobrefacturação e outras irregularidades. O Tribunal de Contas americano já provou que o custo real dos contratos firmados para o Iraque com a Halliburton ultrapassa em vários milhões de dólares as estimativas, verificando-se uma importante concentração de abusos nos contratos para a reconstrução do país. Estes desvios estão confirmados num relatório do Government Accountability Office, onde se revela que não existe um sistema centralizado capaz de acompanhar os numerosos contratos de privatização firmados pelo Governo dos EUA ou pelas suas Agências.
 
A forma como as EMP se posicionam no mercado, levando a cabo actividades muito próximas das missões de carácter militar, veio lançar a confusão sobre conceitos que do antecedente estavam bem caracterizados, como o de civil versus militar e o de público versus privado, podendo afirmar-se que, ao comportarem-se de modo híbrido, as EMP privilegiam as redes informais que favorecem objectivamente a corrupção e a criminalidade. Semelhante característica deveria alertar o mundo desenvolvido para os perigos emboscados por trás da privatização e estimular a adopção de medidas rigorosas de controlo das actividades das empresas. Infelizmente, no mais poderoso país do mundo, o pensamento estratégico assenta numa presença de dimensão global que, por sua vez, e por razões que se prendem sobretudo com a redução dos efectivos militares dos EUA, estimula a presença desta empresas nos mais diversos campos de batalha, legitimando-as assim de forma explícita. Tanto mais que, como vimos, elas não são operadores independentes em sentido absoluto, tornando-se bastante claro que só actuam com tácito consentimento governamental; para todos os efeitos práticos, elas já agem como extensões dos Estados na defesa dos respectivos interesses.
 
As empresas militares privadas constituem um perigo real por uma razão muito simples: é que elas são capazes de criar um tipo de poder militar armado não residente no Estado. Se o próprio Exército dos EUA já concluiu que, no futuro, poderá ter de contratar pessoal civil para manter em funcionamento os equipamentos militares mais modernos, inclusive na área de combate, e em especial no que concerne aos sistemas de informações, a possibilidade de contratação das private military companies fica indiscutivelmente em aberto.
 
Enquanto o poder destas empresas não ameaçar o poder das grandes potências e enquanto elas tiverem o cuidado de não assumir um protagonismo excessivo na cena internacional, o risco de substituírem as Forças Armadas nalguns cenários de conflito é muito reduzido. Mas não fica com isso diminuída a necessidade de ponderar hoje estas questões, sob risco de elas virem um dia a concretizar-se por absoluta falta de alternativas.
 
 
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*      Sócio Efectivo da Revista Militar.
 1 Os especialistas estimam que em 2004 as receitas das EMP atingiram 100 mil milhões de dólares a nível mundial.
 2 Time, de 12.04.04, p. 28.
 3 MAKKI, Sami, «Sociétés Militaires privées dans le Chaos Irakien», Paris, Le Monde Diplomatique, Novembre 2004, p. 23.
 4 MAKKI, Sami, «Sociétés Militaires privées dans le Chaos Irakien», Paris, Le Monde Diplomatique, Novembre 2004, p. 22.
 5 AVANT, Deborah, «Mercenaries», Washington D.C., Carnegie Endowment, Foreign Policy, July/August 2004, p. 24.
 6 Kevin O’Brien sugere a seguinte classificação por actividades (o. cit. p. 40).
LETAIS            Combate; apoio a operações militares em zonas avançadas
APOIO OPERACIONAL Treino em áreas de retaguarda; profissionalização de forças militares; protecção pessoal; guarda de instalações; aconselhamento em matérias de natureza militar; apoio em Informações; aplicação da lei e policiamento
ACTIVIDADES GERAIS     Aconselhamento em consultas de mercado, serviço de para-médicos, transportes, administração e logística, protecção de comboios de ajuda humanitária, protecção de refugiados
As primeiras, depois de autorizadas, não necessitariam de pré-aviso para serem desenvolvidas, as segundas exigiram pré-aviso e as últimas seriam proibidas, a não ser em circunstâncias excepcionais e sempre sob contrato com o Governo do país.
 7 SIMONS, David, «Occupation for Hire - Private Military Companies and their Role in Iraq», London, RUSI JOURNAL, Vol. 149, N.º 3, June 2004, p. 69.
 8 SIMONS, David, «Occupation for Hire - Private Military Companies and their Role in Iraq», London, RUSI JOURNAL, Vol. 149, N.º 3, June 2004, p. 70.
 9 CONESA, Pierre, «Groupes Armés non Étatiques: Violences Privées, Sécurités Privées», Paris, Institut des Rélations Internationales et Stratégiques, La Revue International et Stratégique, N.º 49, Printemps 2003, pp. 162.
10 VIGNAUX, Barbara, «Le mercenariat est hors la loi, vive le mercenariat!», Paris, Le Monde Diplomatique, Novembre 2004, p. 26.
11 MILTON, Thomas J., «Os Novos Mercenários: Exércitos de Aluguel», Military Review (versão brasileira), 3º Trimestre 1998, p. 78.
12 MAKKI, Sami, «Sociétés Militaires privées dans le Chaos Irakien», Paris, Le Monde Diplomatique, Novembre 2004, p. 23.
13 Segundo Julien Mathonnière¸ estariam actualmente no Iraque 15 000 civis em funções descritas como “segurança privada”. Muitas delas têm porém carácter militar, inclusive de combate, visto que implicam comboiar colunas ou proteger personalidades em zonas de combate, sob ameaças de natureza militar, e isso obriga aptidão com armas de grosso calibre e a posse de competências militares típicas. Estas empresas teriam sofrido até à data entre 30 e 50 mortos. (in «Soldats à Vendre: la Guerre Privatisée?», Paris, Comité d’Études de Défense Nationale, Défense Nationale, Jul. 2004, p. 70).
14 MAKKI, Sami, «Sociétés Militaires privées dans le Chaos Irakien», Paris, Le Monde Diplomatique, Novembre 2004, p. 23.
15 AVANT, Deborah, «Mercenaries», Washington D.C., Carnegie Endowment, Foreign Policy, July/August 2004, p. 22.
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2008-11-26
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by CMG Armando Dias Correia