Nº 2429/2430 - Junho/Julho de 2004
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Ainda os Submarinos
General
António Eduardo Queiroz Martins Barrento
Temos vindo a assistir, há alguns anos, a um pseudo-debate - só emergem, ciclicamente, isoladas, algumas posições - mas principalmente à tentativa da justificação da imprescindibilidade de dispormos de uma capacidade sub­marina para responder a necessidades da nossa defesa.
 
Esta polémica é natural, por estarmos há muito tempo numa encruzilhada, no que se refere à reformulação das Forças Armadas; por, ao nível da decisão política, não parecer existirem ideias muito claras sobre aquilo que desejam delas; por continuarmos, infelizmente, a assistir a “guerrilha” entre os ramos das FA, como se a sua complementaridade e a convergência de esforços não fossem a sua virtude e a sua obrigação; por os submarinos serem um meio naval muito caro, em valor absoluto e em comparação com outros meios militares; por o país estar a atravessar uma época de crise, em que são evidentes as necessidades financeiras da educação, da saúde, do desenvolvimento e do apoio social; por ser difícil avaliar, no actual momento de incerteza estratégica, a correcção ou a incorrecção das prioridades atribuídas, por, muitas vezes, só o tempo permitir julgar do acerto das decisões tomadas; e também porque, sendo escassos os recursos financeiros atribuídos à defesa e tendo vindo sucessivamente a ser adiada a modernização e o reequipamento das FA, as prioridades deverão ser muito correctamente definidas.
 
Além das razões referidas, esta polémica tem ainda dois ingredientes importantes.
 
Um é a questão de se dever apostar na tecnologia ou no homem, que, por vezes, é levantada. Falsa questão esta, porque o homem e a sua capacidade anímica são essenciais para a manifestação da força e do combate, como estamos a assistir diariamente na Palestina, em que aqueles que quase só têm pedras e explosivos não ajoelham face à mais moderna tecnologia. É que a tecnologia, só por si, não defende nada; e homens com vontade podem aumentar a sua eficácia, utilizando a tecnologia adequada às missões que lhe competem. A questão correcta deverá ser então apostar no homem e procurar obter a tecnologia apropriada às missões que é preciso cumprir. O homem e a tecnologia complementam-se, não se excluem.
 
O outro ingrediente é o ponto de encontro entre aquilo que devemos ter para a defesa e aquilo que, no âmbito das alianças de que somos parte, devemos fazer. Ponto importante, este também, a merecer uma profunda reflexão, pois nunca nos poderemos alhear do apoio que em certas ocasiões deveremos receber, nem temos em relação às alianças obrigação de fazer mais do que aquilo que corresponda aos nossos interesses e seja proporcional aos nossos recursos.
 
Têm sido apresentados, em favor da aquisição de submarinos para a nossa Armada, os argumentos que lembramos seguidamente.
 
O primeiro é o de que temos uma escola (saber, experiência acumulados) que não se pode perder. Dados a experiência e o esforço necessários para a criação de uma escola, entende-se a preocupação, mas este argumento só é válido se continuar a ser necessária a valência que justifica a escola. Porém, a resposta a esta dúvida não consta da argumentação e se, no presente, a escola não fizer falta, não será lógico consumir meios financeiros tão avultados, apenas com este propósito. A admitir-se a hipótese de no futuro voltar a ser necessária, pode-se preservar a escola, mantendo pessoal actualizado em escolas de países aliados ricos, solução que é muito menos onerosa.
 
O segundo argumento, que foi apresentado por alguém que desempenhou os mais elevados cargos na instituição militar, é o de que os submarinos são um meio óptimo para efectuar o desembarque e a recolha de elementos infiltrados e forças especiais. Este argumento é, no mínimo, surpreendente, porque, se no passado se fez operações deste género, tratou-se de casos excepcionais. Os submarinos não existiram para fazer estas operações mas, porque existiam, foram feitas estas operações. Dispondo-se de submarinos, estes podem ocasionalmente (as oportunidades são raras) efectuar missões desse tipo, mas ninguém de bom senso vai adquirir submarinos para as efectuar.
 
Um terceiro argumento, que ouvi a um elevado responsável político, era o de que os submarinos são a arma dos pobres, o que me pareceu bizarro, porque só seria a arma dos pobres se, tendo submarinos, se fizesse face às várias ameaças e respondesse às necessidades de emprego das FA, dispen­sando as outras forças. Mesmo assim, seria preciso não se ser muito pobre; quanto ao argumento, esse sim, é muito pobre.
 
A quarta argumentação respeita às vantagens que se obtém com as contrapartidas, o que é absurdo. Obter contrapartidas quando da aquisição de meios imprescindíveis à defesa é uma forma lógica de tirar algum partido com a aquisição, com vantagem para a produção nacional. Mas isso é muito diferente de tentar justificar a aquisição de meios dispendiosos com as contrapartidas que se obtenha. Dá a sensação de que perdemos qualidade numa área em que historicamente fomos grandes - o comércio.
 
O quinto argumento é o de que, dada a extensão da nossa ZEE (cada vez menos nossa em função do direito comunitário) e o apetite de outros países pelas suas riquezas, o submarino é um meio dissuasor dessas “incursões”. O argumento, além de extravasar a política de defesa, inserindo-se no domínio do serviço público que as nossas FA desempenham, nunca pode justificar que se adquira submarinos para esse efeito. Isto faz-nos lembrar a dissuasão que as armas nucleares dos EUA produzem nos insurrectos sunitas e chiitas no Iraque - que é nenhuma. Com efeito, a acção de fiscalização da ZEE necessita de aviões e navios de superfície que se mostram, detectam e abordam os “intrusos”; não de meios que se ocultam e que não vão, obviamente, utilizar a sua capacidade de ataque em acções de policiamento.
 
Curiosamente, nunca ouvimos o argumento de que necessitamos de submarinos para, em caso de guerra, atacar meios navais de potências inimigas que não tenham uma desenvolvida capacidade de luta anti-submarina, ou para, se houver uma elevada probabilidade de invasão do território nacional, por mar, procurar dissuadir o adversário de tal intento. É que é para isto essencialmente que os submarinos servem. Aliás, a aptidão para combater é a principal razão para que existam FA. Só que há forças e meios que, sendo mais versáteis, conseguem realizar facilmente outras missões, versatilidade essa que os submarinos não possuem.
 
No passado, na Guerra Fria, parecia justificada uma componente submarina na nossa marinha de guerra, função da ameaça do Leste, apesar de na divisão do trabalho estratégico com os aliados poder pensar-se que talvez não tivesse que ser o nosso país a responder por esta valência, devido à escassez de recursos que nos caracteriza. Mas depois da queda do muro, da implosão da URSS, do desaparecimento do Pacto de Varsóvia e da continuação da NATO, o cenário mudou, devendo admitir-se que a necessidade de dispormos de submarinos é hoje inferior. Por estas razões, devemos ponderar serenamente se eles são de facto essenciais para a nossa defesa, no presente e no futuro.
 
Olhando para o passado recente e para o que hoje fazem, quais têm sido as tarefas principais que o poder político tem atribuído às nossas FA?
 
Às forças terrestres, ao Exército, tem sido exigido o envio de unidades para Moçambique, Angola, Bósnia, Kosovo e Timor-Leste. O prolongamento no tempo destas missões obriga à existência de um potencial operacional triplo do desempenhado, para que se possa fazer a preparação específica de cada teatro de operações e para que se rendam as unidades. A Força Aérea tem desempenhado um contínuo e importante apoio do transporte de pessoal e logístico, particularmente em apoio das forças terrestres destacadas; tem respondido há longo tempo e continuadamente a uma missão operacional de vigilância no âmbito da NATO; e foi-lhe pedido um patrulhamento no Adriático, quando da intervenção no Kosovo. À Armada, com navios de superfície, foi determinada uma importante e bem sucedida missão na Guiné; teve um navio em Timor-Leste; e já colaborou com o Exército no envio de forças terrestres. Além disso, os três ramos têm respondido a missões de treino no âmbito das alianças e a Armada e a Força Aérea têm desempenhado, em permanência, importantes missões de serviço público.
 
No futuro, que a incerteza estratégica impede de conhecermos como vai ser, desconhecemos aquilo que o poder político vai querer das nossas FA, mas deve admitir-se que continuem as missões do tipo das que têm vindo a ser desempenhadas, sendo também possível a intervenção em outros cenários.
 
Enquanto desempenhei as funções de Chefe de Estado-Maior do Exército, de Março de 1998 a Março de 2001, por várias vezes alguns jornalistas me perguntaram que opinião tinha sobre a necessidade de adquirirmos submarinos. A esta pergunta sempre lhes respondi que isso dependia dos cenários que o poder político previsse e em que entendesse empregar as forças e meios das FA. Se nesses cenários os submarinos fossem necessários, deveríamos tê-los; se não fizessem falta, não os deveríamos adquirir. Esta resposta nunca foi publicada por lhe faltar o ingrediente polémico que eles procuravam ao colocar a pergunta ao Comandante do Exército e talvez porque não entendiam ou não desejassem explorar o desafio que a resposta continha, que era o de o poder político dever decidir quais eram os cenários e assumir os riscos resultantes dessa decisão.
 
Se hoje me voltassem a fazer a mesma pergunta, continuaria a dar a mesma resposta, porque, se o poder político prevê cenários em que os submarinos sejam prioritários a outros meios igualmente necessários para esses cenários, devemos tê-los; se não se considera esses cenários, porque a probabilidade de ocorrência é baixa, ou se ainda considerando esses cenários a capacidade submarina pode ser garantida por um país aliado, então não há razão para os adquirirmos. É, pois, necessário que o poder político tenha a coragem de optar e correr riscos, já que não é lógico, nem possível, nem necessário que as nossas FA. disponham da qualidade e da quantidade de todos os meios que respondam a todos os cenários imagináveis. O planeamento de forças - é aí que se estuda a necessidade das forças e dos meios que devemos ter para os cenários em que o poder político decide empregar as FA - e a estratégia genética não se fazem por palpite ou simpatia, nem com base em argumentos do tipo “devemos ter porque sim”, ou “são dispensáveis porque são”.
 
Assim, devermos ter ou não submarinos é uma questão, mas não é a questão. A questão é a de saber quais os cenários em que o poder político prevê utilizar as FA, para que se possa com clareza e serenidade estudar os apoios aliados de que poderemos dispor e os meios que deveremos ter. Isto porque o planeamento de forças decorre de opções e objectivos claros, de raciocínios lógicos e não de “bruxedos”.
 
 
Do que anteriormente referi retiro três conclusões principais.
 
A primeira é a de que Portugal (tal como qualquer outro país, por maior que seja o seu poder) não tem capacidade para, por si só, responder a todas as ameaças e acções que se podem prefigurar. E, sendo assim, é necessário que o poder político assuma as suas responsabilidades, como direcção estratégica, tendo a coragem de dizer quais são os cenários em que prevê utilizar o braço armado, a finalidade da intervenção e os níveis empenhamento. Só assim será possível visualizar a utilização dos outros vectores estratégicos e a instituição militar adquirir a dimensão, a organização e os meios impres­cindíveis para agir nos cenários considerados. Escolher cenários, obviamente, comporta riscos, mas assumir riscos é inerente à maioria das decisões.
 
A segunda conclusão é a de que em decisões tão importantes, tão difíceis, dispendiosas e graves, como são as de fazer a guerra, apoiar os EUA na sua intervenção no Iraque ou adquirir meios muito caros, surgem duas ideias irreconciliáveis: uma é a de que os principais intervenientes e os públicos deveriam estar melhor informados; outra a de que nem toda a informação de que dispõe a direcção política e estratégica pode, por diversas razões ser disponibilizada. A única maneira de superar este dilema seria a de os principais intervenientes e os públicos acreditarem na direcção política. Infelizmente tal não sucede e grande parte das nossas dúvidas sobre se as decisões são correctas ou não decorre da falta de confiança que temos em relação aos dirigentes políticos.
 
A terceira conclusão é a de que, sendo incontroverso o comandamento da política sobre a estratégia, estes assuntos terão que ser cuidadosamente estudados por forma a que as decisões tenham uma sustentação lógica. Estes assuntos são demasiadamente sérios para serem decididos pelas opiniões públicas (emocionais, volúveis e muito influenciáveis); por ideias estreitas, visões limitadas, inércia intelectual e argumentos partidários, paroquiais ou corporativos (apaixonados, vazios, egoístas e caprichosos); ou deixados ao arbítrio de um decisor político (muitas vezes mal informado, sem sensibilidade para o assunto, ou ignorante) para quem a estratégia é mais retórica do que um método para se tentar chegar às melhores soluções.
 
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*      Sócio Efectivo da Revista Militar. Presidente da Assembleia Geral.
 
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2009-06-24
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