Nº 2437/2438 - Fevereiro/Março de 2005
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Portugal: os conflitos militares dos últimos trinta anos
Tenente-coronel PilAv
João José Brandão Ferreira
“As Forças Armadas dispõem de três impressionantes vantagens sobre as organizações civis: superioridade de organização; um status altamente emocional e o mono­pólio das armas.Que perante tudo isto o surpreendente é que obedeçam aos seus chefes políticos.”
Samuel Finner (1976)
 
Com o fim das, até então bem sucedidas operações militares em larga escala, de afirmação de soberania e em apoio das autoridades locais, realizadas entre 1961 e 1975 e que terminaram no desastre maior da chamada descolonização, que começou por ser exemplar, para depois passar a possível, pensou-se em Portugal que o envolvimento de militares portugueses em cenário de guerra estaria para sempre arredado.
 
Mais, findo o que as novas maiorias designaram por “império” ou mais causticamente “colónias” cujas terras e gentes eram apenas Portugal mais longe, pôs-se em causa a própria existência das Forças Armadas.
 
E, de facto, a contracção catastrófica e brutal, do dispositivo e sistemas de forças, fez reduzir num curto espaço de tempo o número de efectivos de 200 000 homens espalhados por quatro continentes, para cerca de 70 000 no triângulo europeu que nos resta. As sequelas do PREC e a adaptação à Nato fizeram ainda reduzir mais os efectivos o que não deixou de acontecer até aos dias de hoje sendo já as FA’s largamente ultrapassadas em número pelas Forças de Segurança. A estabilização da estrutura político-militar começou a gerar-se a partir de 1982 com a publicação da LDNFA’s (Lei 29/82). Daí para cá os constrangimentos em termos de financiamento, autonomia adminis­trativa e em pessoal, não deixaram de aumentar, enquanto que o investimento na modernização marcava passo. Curiosamente o empenhamento operacional, o número de missões e as organizações internacionais em que participamos, não pararam de aumentar.
 
Esta desintonia e as consequências que causa deveriam merecer uma análise apropriada dos órgãos do Estado envolvidos, alguma curiosidade dos órgãos de informação e eventuais interrogações da opinião pública (se esta funcionasse). Salvo raras e honrosas excepções nada disto se passa.
 
Em termos de sistematização de ideias diremos que as FA’s portuguesas têm sido empregues, fora do território nacional e para além das sempre existentes (embora algo esquecidas) missões de defesa da soberania, integridade territorial e salvaguarda das populações, no âmbito:
Nacional;
ONU - Organização das Nações Unidas
NATO - Organização do Tratado do Atlântico Norte
UEO - União da Europa Ocidental (enquanto existiu)
OSCE - Organização para a Segurança e Cooperação Europeia
UE - União Europeia
CPLP - Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa.
 
E ainda no âmbito da tão olvidada Aliança Inglesa, que apesar de não se falar nela, não perdeu as suas virtualidades. Penso mesmo que estas aumentaram...
 
As FA’s tiveram que se preparar nas várias modalidades das Operações de Paz e Humanitárias para operar em teatros de operações difíceis e desconhecidos, ao passo que as próprias missões de apoio às populações em território nacional sofriam um incremento.
 
Os diferentes cenários/países/regiões para onde foi decidido enviar militares como observadores, elementos constituintes de Quartéis-Generais/Estados-Maiores ou como unidades constituídas, foram:
- Afeganistão
- África do Sul
- Albânia
- Angola
- Bósnia Herzegovina
- Burundi
- Cabo Verde
- Costa do Marfim
- Croácia
- Ex-Jugoslávia
- Federação Russa
- Golfo Pérsico
- Guiné-Bissau
- Irão
- Iraque
- Itália
- Kosovo
- Libéria
- Macedónia
- Mali
- Marrocos
- Mediterrâneo Ocidental e Oriental
- Moçambique
- Namíbia
- Sara Ocidental
- R. D. Congo
- Ruanda
- São Tomé e Príncipe
- Sérvia
- Timor-Leste
- Turquia
- Zaire
 
A primeira operação que envolveu forças militares ou observadores portugueses fora do território nacional (sem contar obviamente com os numerosos exercícios internacionais efectuados no âmbito da NATO e UEO), realizou-se em Abril de 86 e consistiu numa ponte aérea para S. Tomé e Príncipe em apoio das populações locais.
 
Nos quadros seguintes poderemos observar todas as operações até agora efectuadas e que se subdividem em Operações de Paz e de Ajuda Humanitária.
 
Assim em relação às primeiras temos:
 
 
 
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Num outro quadro podemos observar alguns dados globais desde o início das operações no exterior até 31 de Agosto de 2004 (os números não são exaustivos):
 
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Considerações em jeito de balanço:
 
Sobre o que atrás foi dito é pertinente fazer algumas considerações e a primeira é já esta: a existência de algumas dificuldades em obter dados oficiais sobre toda esta problemática. Em primeiro lugar porque não existe nenhum organismo a nível do MDN/EMGFA/Ramos cuja missão seja a de coligir e tratar, em termos integrados, a informação respeitante a este tema (como aliás, a muitos outros).
A informação está dispersa, é parcelar, visa objectivos e de momento, existindo ainda uma quase impossibilidade de apurar dados referentes a determinadas épocas ou operações, que não foram guardadas ou pura e simplesmente desapareceram. Fica aqui um alerta para quem de direito.
 
Em segundo lugar temos que considerar como muito positiva a actuação das nossas tropas. Tanto no campo da técnica, como da táctica, como da logística como no campo deontológico. Têm demonstrado, como é aliás hábito antigo, uma extraordinária capacidade de adaptação a todas as situações; uma facilidade notável de integração com forças de outros países, tanto a nível de Quartéis-Generais, como a nível do terreno; e um insuperável saber estar no relacionamento com as populações locais. Lamentavelmente nem os poderes públicos nem os órgãos de comunicação social têm sido porta vozes desta realidade.
 
O bom comportamento das tropas é bem evidenciado também pelo cumprimento de todas as missões atribuídas; pela ausência de casos graves de indisciplina; pelo número escasso de baixas e acidentes ocorrido e pelos numerosos louvores que lhes têm sido atribuídos por entidades estrangeiras.
 
E tudo isto se passa quando o Poder Político, no mais das vezes, toma a decisão de enviar forças sem lhes dar o tempo adequado para se prepararem e apetrecharem devidamente; quando fixa missões para as quais os meios existentes são manifestamente inadequados; quando por sistema as missões fixadas não têm cabimento orçamental e os ramos são ressarcidos muito tempo depois, ou nunca mais o são - consta que a ida do navio S. Miguel ao Golfo em 1990 ainda não foi paga à Marinha... -; quando parte dos meios materiais não é renovado porque se gastou nas operações, é ofertado a governos amigos ou não é recuperado após o seu regresso a Portugal; quando a penúria de meios existentes e também o facto da panóplia das acções passíveis de serem realizadas, que são quase todas, obrigar a ir comprar à pressa - logo mais caro e em piores condições - todo o tipo de coisas que fazem falta a um exército do século XXI (ou a ter que pedir emprestado aos amigos); e ainda os efeitos perniciosos daquilo que é conhecido pelo “duplo voluntariado”, que tarda em ser removido, etc. Se tivermos em conta tudo isto, então teremos que chegar à conclusão que o desempenho das tropas não tem sido bom, tem sido excelente.
 
E para tal muito tem concorrido o esforço de instrução permanente que é levado a cabo nos três ramos das FA’s e que de resto não tem paralelo noutra profissão - e a boa aceitação destas missões pelos quadros - pelo que lhes acrescenta em conhecimentos internacionais, bagagem técnica, realização profissional, gosto de realizar coisas objectivas, réditos financeiros, etc.
 
E tudo poderia ainda correr melhor caso houvesse melhor definição político-estratégica dos interesses de Portugal no mundo, o que levaria a que o poder político pudesse usar da iniciativa, em vez de limitar-se a tentar gerir reacções. Por outras palavras, seríamos nós a oferecer forças nos “timings” mais adequados e para os teatros de operações que melhor conviessem aos interesses nacionais, em vez de andarmos a ser empurrados por outros, ou pelas circunstâncias, e acabarmos por afectar forças tarde e a más horas para locais que possam não ser os mais convenientes.
 
Noutro patamar melhor correriam as coisas se houvesse maior confiança na decisão política caso haja problemas, ou seja, não deve haver dúvidas por parte de quem estiver envolvido numa operação destas de que as responsabilidades serão assumidas por quem de direito.
 
E um caso existe cuja delicadeza pretendia realçar e que se trata do empenhamento de forças especiais. Estas forças estão aptas a desempenhar acções “irregulares” e como tal podem levantar questões específicas de Direito Internacional ou das leis da guerra. Os responsáveis devem estar cientes disto e da coragem moral que necessitam ter para dar cobertura a eventuais acções em que estas forças se vejam envolvidas.
 
Um outro aspecto, que é necessário melhorar, é a capacidade do Estado Português se dotar de um serviço de informações estratégicas à altura, e de dotarem as FA’s com a capacidade de terem informações tácticas adequadas.
 
Por outro lado, se mais não fora, a experiência já demonstrou que é inadequado emprestar unidades de escalão inferior a Batalhão, por três razões principais: por não terem visibilidade; por ser quase irrelevante do ponto de vista operacional e porque não tendo direito a ter estado-maior ou a participar em estados-maiores conjuntos fica diluída e desgarrada numa qualquer outra unidade. De tudo resulta não haver ganhos políticos, mantendo-se os riscos inerentes e custos financeiros consideráveis.
 
Finalmente, tudo poderia ser melhor se os inúmeros constrangimentos financeiros, em pessoal e em material, não criassem duas realidades: a daqueles que, passando a estar empenhados numa qualquer missão de Paz ou Humanitária, vão tendo quase tudo; e os outros, que se mantém nas suas missões constitucionais, dentro do território nacional, que não têm quase nada, de tudo resultando problemas graves no Moral.
 
_______________________”_______________________
 
Antes de finalizar, pretendia fazer uma breve abordagem à Cooperação Técnico-Militar (CTM), que tem consubstanciado uma outra fatia importante das missões das FA’s no exterior.
 
Esta cooperação tem-se desenvolvido fundamentalmente com os países africanos de língua oficial portuguesa, mas não se restringe a estes pois já se estendeu a Timor-Leste, do mesmo modo que já se alongara a Marrocos e à Tunísia e se espera venha a estender duma forma integrada à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
 
Desde as independências dos países africanos de expressão portuguesa até à assinatura dos primeiros Acordos de CTM com os PALOP, em 1988/9, a CTM processava-se de uma forma avulsa reduzindo-se, na prática, à oferta de formação militar em Portugal.
 
A partir de 1989, através do Decreto n.º 32/89 de 27 de Outubro, foi criada a Direcção Geral de Política de Defesa Nacional (DGPDN) e atribuído a um dos seus órgãos a competência do estudo, análise, planeamento e coorde­nação, da política de cooperação técnico-militar com os PALOP. Esta política é suposta ser coordenada com os serviços congéneres do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
 
Deste modo, o primeiro programa quadro (PQ) foi aprovado em Outubro de 1990, para a Guiné-Bissau, seguindo-se ainda em, 90 os PQ de CTM luso-cabo-verdiano e luso-moçambicano e no ano seguinte aprovou-se o PQ luso-s. tomense. Nesse ano de 1991 iniciou-se também a CTM com Angola.
 
Definidos os programas, estes são geridos pelos ramos das FA’s sob supervisão da DGPDN para o que dispõe da ajuda dos adidos militares nesses países que fazem a articulação com as autoridades locais.
 
Assim entre o início da CTM até 2004, realizaram-se os seguintes PQ, envolvendo militares destacados:
 
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No mesmo âmbito podemos discriminar verbas atribuídas nos diferentes anos para a CTM e o número de militares dos PALOP formados em Portugal (não estão contabilizados os cursos efectuados nos respectivos países):
 
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Passo a expor alguns comentários sobre a CTM:
Tendo em conta as limitadas capacidades financeiras e em meios, existentes a nível da Defesa, pode-se dizer que o esforço feito na CTM não é despiciendo.
 
A semelhança das Operações de Paz e Humanitárias, a CTM portuguesa, no estrito cumprimento do planeado tem corrido bastante bem, tendo os militares portugueses mantido um nível técnico elevado e a sua acção sido louvada e acarinhada, tanto pelos diferentes governos como pelas popu­lações. Salvo casos pontuais não tem havido problemas disciplinares graves e há apenas a lamentar a morte de um PSAR, na Guiné, por acidente, no âmbito de toda a CTM.
 
Mais uma vez toda a acção meritória já desenvolvida não aparece divulgada pelo grande público nem é tida em conta no seu devido valor pelos poderes instituídos.
 
Estamos em crer, todavia, que a CTM está longe de esgotar as suas possibilidades.
 
Se em Lisboa existisse uma política mais global e articulada para África e desta com os outros cenários onde se fazem sentir os interesses portugueses, ver-se-ia naturalmente aumentar a CTM e talvez até não pairassem sobre os PALOP tantas ameaças de intervenção política dos militares desses países. Uma questão filosófica de base nos parece também errada: o que se passa na prática é que a CTM - a que se pode juntar a cooperação civil -, se realiza do seguinte modo: nós damos e eles recebem! E nem sempre agradecem. Ora um relacionamento saudável entre Estados e populações amigas exige uma relação biunívoca, isto é, cada um dá e recebe equitativamente segundo as suas possibilidades. Ou seja, a CTM deve também ter retorno.
 
Mas estes últimos aspectos ainda estão ligados a pseudo complexos colonialistas por parte de uma “elite” política alargada, mais até em Lisboa do que nas outras capitais, e cuja validade já há muito perdeu o prazo.
 
Enfim, alguma melhoria no relacionamento entre os MDN/MNE/FA’s, ajudaria a performance nacional neste âmbito.
 
Como curiosidade final - o que não deixa de incutir alguma reflexão -, temos conseguido realizar, em África, soluções integradas/conjuntas, com êxito para esses países, que não conseguimos implementar a nível nacional.
 
 
Conclusão
 
Passados que são 30 anos em que se ouvia a frase “nem mais um soldado para as colónias” não deixa de ser sintomático verificar que já mais de 20 000 militares portugueses se espalharam por esse mundo, certamente defendendo interesses portugueses, mas envolvendo-se em teatros de operações que são mais do interesse de outros do que nossos.
 
As realidades geopolíticas e geoestratégicas estão na primeira ordem dos acontecimentos no mundo em que vivemos e mal vão as nações que escolhem para seu governo pessoas que tenham destas matérias uma ignorância ou um alheamento notório ou, por outro, tendo-as, não as sabem entrosar devidamente com o interesse nacional.
 
A esses políticos, a esses militares, diplomatas, empresários etc., faltará em suma, uma Ideia de Portugal.
 
Nestes 30 anos em que não houve ameaças militares directas ao território nacional as Forças Armadas Portuguesas têm sido um pilar fundamental da Política Externa do Estado onde desempenham missões para as quais não existe alternativa credível - isto é, só elas as podem fazer -, e têm-no feito com uma competência que não encontra paralelo em mais nenhum sector da vida nacional.
 
Afinal, por mais que isso desgoste a pacifistas encartados, polticos menores ou intelectuais de vistas curtas, parece que as Forças Armadas e os militares, ainda servem para alguma coisa.
 
 
Bibliografia
 
Viana, Victor Rodrigues - “Segurança Colectiva”, a ONU e as Operações de Apoio à Paz, Edições Cosmo/IDN, Nº 13, Colecção Atena. Lisboa 2002.
Barata, Manuel Themudo e Teixeira, Nuno Severiano - “Nova História Militar de Portugal”, Vol. 4, Círculo de Leitores, Rio de Mouro, Maio 2004.
MDN - “Anuários Estatísticos da Defesa Nacional”.
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2006-01-28
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Tenente-coronel PilAv

João José Brandão Ferreira

Sócio Efetivo da Revista Militar.

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