Nº 2497/2498 - Fevereiro/Março de 2010
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Duas Cartas Geográficas de 1909, de autoria do então Major de Cavalaria Manuel de Oliveira Gomes da Costa
Tenente-coronel
João José de Sousa Cruz
1.  De como apareceram estas cartas
 
Quando de uma das várias passagens do autor pela província ultramarina de Moçambique, colocado na 2ª Repartição do Quartel-General da Região Militar, sito à data em Lourenço Marques, foi contactado pelo oficial encarregado das cargas do material topo-cartográfico do mesmo QG/RMM. Pelo que me lembro, o sujeito era tenente do Serviço Geral e veio-me perguntar se estaria interessado em alguns papéis (mapas, etc.) que ele ia incinerar, por terem sido abatidos à carga, por obsoletos.
 
Claro que o mesmo senhor tenente nem pensou que estava a queimar preciosidades de valor incalculável, pela antiguidade e raridade das mesmas.
 
Penso que me contactou, por descargo de consciência e porque sabia que eu tinha prestado serviço no antigo Serviço Cartográfico do Exército, em Lisboa, onde tinha frequentado o curso de Topografia Militar Aplicada, e era cartógrafo do mesmo Serviço.
 
Entre as muitas antiguidades que consegui salvar e que são a razão deste papel, encontravam-se duas cartas (folhas nº 1 e 2) da África Oriental Portuguesa, datadas de 1909 e assinadas e executadas pelo então Major Gomes da Costa o qual prestava então serviço em Moçambique.
 
Estas foram executadas por ordem do Governador-geral, Major Alfredo Augusto Freire de Andrade, que esteve neste posto desde Outubro de 1906 a Novembro de 1910.
 
Cada folha mede 1,27m x 0,83m, e nelas consta que foram montadas na Repartição de Agrimensura. O seu desenho parece-me que foi todo feito manualmente e com um traço rigoroso, pelo menos da costa. O interior ia sendo acrescentado, segundo suponho, em função dos relatórios das patrulhas que se iam interiorizando quando e quanto possível.
 
 
2.  Quem era o Major de Cavalaria Gomes da Costa?
 
Vamos seguindo a sua vida desde menino quando andou pelo Oriente (Timor e Macau) com seu pai, também militar, e, em 1873, está no Colégio Militar onde tinha o número 66. Já aqui o seu temperamento tinha dificuldade em se adaptar. Quando chumbou no 5º ano o pai obrigou-o a assentar praça dizendo-lhe:
Se o menino não quer estudar, então vai assentar praça.
 
 
Pelo que o vemos em Novembro de 1880, como soldado na Companhia nº 4 da Artilharia de Guarnição, na Torre de S. Julião da Barra. No entanto, como pediu ao pai para continuar a estudar foi para o Batalhão nº 2 dos Caçadores da Rainha, onde lhe permitiram que continuasse a ter aulas para que pudesse repetir e fazer os 5º e 6º anos do Colégio Militar. Entrou para a Escola do Exército e, em 1884, era alferes em Infantaria 11, em Tomar.[1]
 
Em 1891, ofereceu-se para acompanhar o Coronel Azevedo Coutinho numa expedição, mas não conseguiu ir. Mas, em 1893, finalmente embarcou para a Índia a convite do então Governador-geral, Rafael Jácome Lopes de Andrade, que posteriormente seria Governador-geral de Moçambique entre Julho de 1891 e Maio de 1893. Gomes da Costa embarcou como “capitão para o ultramar” ou seja como capitão graduado.
 
 
 
   
 
 Em 1895 deu-se na Índia a revolta dos Ranes, em Goa. A tropa indiana não queria ir para a África Oriental Portuguesa, com alguma razão pois nunca eram rendidos atempadamente. Nessas datas a Zambézia, local normal de destino da tropa indiana, era o território mais difícil de dominar pelas tropas portuguesas. Chegaram a ficar sem rendição 7 e 8 anos.
 
O Capitão Gomes da Costa resolveu a situação, com a ajuda de uma expedição que chegou do continente europeu sob o comando do Infante D. Afonso.
 
 
3.  E das qualidades artísticas de Gomes da Costa?
 
Sendo dotado na realidade de qualidades artísticas para o desenho e a aguarela, ainda na Índia, servindo-se de retratos antigos que existiam na galeria dos Vice-Reis, deu-se ao trabalho de compor novos retratos dessas figuras, a tinta e a guache[3].
 
Consta que o então Capitão Gomes da Costa em serviço no Estado da Índia, foi incumbido de restaurar os retratos dos Vice-Reis da Índia, mas incompreendido, foi acusado de ter desempenhado a tarefa “segundo a sua fantasia e a sua conhecida veia humorística, tendo inclusivamente permitido pôr barbas e bigodes a seu bel-talante” [4]. Também Teixeira de Aragão o acusou de que, como “borrador, só teve em mira nivelar com o pincel o mérito de diversos artistas, e as feições e trajos das diversas personagens” [5].
Considera-se no entanto que nem todas as barbaridades sofridas pelos retratos da Galeria se ficaram a dever ao capitão Gomes da Costa. Enfim, foi muito atacado, mas a sua veia artística foi então aproveitada para benefício de toda a Galeria.
 
 
 
 
  
 
 
 
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Em Setembro de 1896 seguiu para Moçambique a pedido de Mouzinho de Albuquerque e a tempo de tomar parte na campanha dos Namarrais.
 
Mouzinho nomeou-o Capitão Mór do Mossuril e das Terras da Coroa em Moçambique.
 
No seu livro “Memórias”, Gomes da Costa comenta:
“…porque, caso curioso, estando nós em Moçambique há séculos, (porque se) desconhecia o interior?”
 
 
 

  

Em 23 de Março de 1897, Maquiquana revolta-se em Gaza e Gomes da Costa é nomeado governador de distrito, no Chibuto em substituição de Massano de Amorim.
 
Quando Mouzinho pede a exoneração de Comissário Régio, Gomes da Costa regressa a Lisboa. É Capitão em 1898 e, no ano seguinte, oferece-se para Pemba onde se estava a implantar a Companhia do Niassa, toda com dinheiros ingleses. Desentendeu-se com os ingleses e voltou a Lisboa em 1900.
 
Moçambique com a sua pobreza continuava a depender dos ingleses, pois todas as viagens para e de Lisboa se faziam em barcos ingleses e pelo canal do Suez.
 
 
 
 
 
4.  E das Cartas Geográficas por ele desenhadas?
 
Em 1907 Gomes da Costa é Major e em 1909 está, por certo, em Moçambique onde executa as cartas que são a razão deste trabalho. Assume funções de carácter político-administrativas durante o governo de Alfredo Augusto Freire de Andrade (Outubro 1906 a Novembro de 1910) com quem tinha estado na Índia.
 
Nas figuras nº 9 e 10 podem-se ver imagens digitalizadas[9] das folhas nº 1 e 2 da carta da África Oriental Portuguesa, já referidas. Elas estão assinadas pelo Major Gomes da Costa e foram conservadas no Quartel-general de Moçambique, sendo o seu valor de grande importância informativa histórica, pois em 1909 além da linha da costa, pouco mais se conhecia desta Província Ultramarina.
 
Em 2009, este documento histórico perfez 100 anos de existência, e não obstante se encontrar em mau estado, não perde o seu valor. Após a publicação deste artigo, tais folhas serão entregues à biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.
 
No documento que é objecto da figura nº 9, é desenhada a costa da África Oriental Portuguesa desde a Baía de Memba até à Ilha de Quissango, tudo com muito pormenor, como era hábito dos navegadores portugueses.
 
Também contém cinco outros desenhos a escalas diversas, todos em milhas, sendo:
- Pormenor da Baía de Condúcia com sondagens em braças;
- Pormenor da Baía de Mocambo, também com sondagens em braças;
- O porto da Ilha de Moçambique ainda com sondagens em braças. (Fig. nº 18)
- A planta da Praça de S.Sebastião (Fortaleza);
- A Ilha de Moçambique com todo o pormenor planimétrico e a cores. (Fig. nº 19)
 
Ainda indica sob o selo Real, que as duas folhas foram executadas no Quartel-general da Província, por ordem do Governador-geral, Major Freire de Andrade em 1909, com coordenação e desenho do Major Gomes da Costa, na escala 1/500.000.
 
Nesta folha, verifica-se que havia ao tempo, três eixos de penetração:
- De Moma para Alto Ligonha;
- De Sangage para os Montes Ribaué;
- Da Ilha de Moçambique para a área do Monapo, Nacarôa e Imala.
 
 
 
 
 
 
 
 
No canto superior direito desta folha nº 2, informa-se o utilizador que:
 
 
Fig. nº 11 - Aviso que foi transcrito com alguma dificuldade, para:
 
 
O traçado da rede geográfica em projecção cónica-secante, foi executado na Repartição de Agrimensura.
Meridiano Médio ................... 38º 00’ 00”  Este Green
Paralelo Médio .................... 15º 00’ 00”  Sul
Paralelos de intersecção do cone secante:
................................... 16º 25’ 00”  Sul
................................... 13º 35’ 00”  Sul
Convergência para 1º de diferença de longitude         0º 15’ 31,68”
 
No canto inferior direito da mesma carta aparece o seguinte:
Coordenação e desenho do Major Gomes da Costa.
Escala 1/500.000m
(esta indicação de m(etros) é obvio que está enganada, porque a escala é uma relação de duas dimensões e não necessita de indicação da unidade de medida utilizada)
 
 
 
 
 
Além desta assinatura, também os restantes topónimos e outras indicações, nas cartas, me levaram a concluir que elas foram executadas à mão.
 
Ainda nesta folha nº 2, é fundamental a definição das fronteiras com os ingleses, e começando no canto superior esquerdo (Oeste) algures no lago Niassa seguindo em linha recta para os lagos Chiuta e Chiura, não definindo que parte interior dos lagos era inglês ou português, o que veio dar problemas posteriormente.
 
A fronteira segue (a vermelho) do Chirua até Milange ao longo do Rio Ruo e até ao Rio Chire, este até Chionga, seguindo então a fronteira para Oeste assente em pontos bem definidos.
 
 
 
 
 
 
 
 
Como se pode ver, há muito pouca informação geográfica fora da acção das vias fluviais. Há algumas vias de exploração, fora do Cuama (Zambeze), de Quelimane para Lacerdónia, pelo Rio Qua-Qua, e outra para Maganja da Costa.
 
Para Norte há vias para os Picos Namúli, tanto de Milange como de Mocuba, mas todas muito esparsas.
 
Na fig. nº 15 adivinha-se que os únicos transportes eram por via fluvial e daí a grande influência que a Marinha portuguesa tinha no Ultramar. Tal permite explicar porque razão o Ministro do Ultramar também era Ministro da Marinha.
 
O rio Chire segue até ao Zambeze, desaguando este no Oceano Índico por, nada menos que, 8 barras, segundo o documento que analisamos, de sul para norte:
- Uma pelo Rio Luáua;
- Duas no Mucêlo (Inhamissanga e outro não visível na carta);
 
 
 
 
 
- Uma na Barra do Cuama;
- Uma na Barra Catarina;
- Uma na Barra de Chinde;
- Uma na Barra de Linde;
- E finalmente uma na Barra de Quelimane (o Rio dos Bons Sinais).
 
Durante muitos anos houve dúvidas em qual seria a verdadeira foz do Zambeze, mas no entanto pelas cartas anexas, em 1909 já não havia dúvida, e seria onde se indica a Barra do Cuama.
 
Neste mapa de junção das duas folhas 1 e 2, embora aproximado, pode verificar-se que as áreas cartografadas efectivamente pelo Major Gomes da Costa, se bem que diminutas, cobriam grande parte da Zambézia (de hoje) e de Moçambique (hoje Nampula), áreas muito importantes face ao aproveitamento que então era feito pelas companhias majestáticas (comerciais) da Zambézia (Quelimane + Tete) e da área da Terra Fixa frente a Moçambique ou seja dos sultanatos e do tráfego da escravatura.
 
A preocupação governamental da época, início do séc. XX, era registar todos os patrulhamentos e contactos de entidades portuguesas ou afins, com o terreno, então chamado de sertão, face ao avanço das bem organizadas e ricas companhias inglesas e seus missionários, que imediatamente difundiam essas informações, verídicas ou não, pela Europa, (leia-se Inglaterra), com evidentes prejuízos dos interesses portugueses.
 
 
 
Nota-se na figura seguinte nº 17, o recorte da costa a norte da Ilha de Moçambique, mas a escassez de contactos para o interior.
 
Além da importância das cinco baías (de Mocambo, de Moçambique, de Comdúcia, de Fernão Veloso e de Memba) há que ter em atenção que as linhas de penetração, saindo destas baías, seguiam normalmente o trajecto das “levas de escravos” que ainda eram utilizados pelos esclavagistas, mormente os sultões do norte de Moçambique, embora muito contrariados pelas autoridades portuguesas.
 
 
 
 
 
 
 
 
Toda a zona a vermelho representava as construções de alvenaria que na altura existiam. As moradas indígenas estavam na zona sul da ilha (esquerda da carta) e têm expressão na representação a vermelho mais pálido. Desde D. João de Castro que esta ilha foi cartografada e a sua posse muito contestada. Mas foi portuguesa de 1505 a 1975.
 
 
 
 
 
5.  Considerações finais
 
O resto da vida do Marechal do 28 de Maio de 1926 é bem conhecida e, lamentavelmente morre pobre e só, depois de exilado nos Açores. Penso que foi um artista mal compreendido, um militar bem sucedido e um cartógrafo bem intencionado.
 
 
*      Tenente-coronel de Artilharia. Professor Efectivo de Topografia e Geodesia da Academia Militar, Lisboa; Professor e Criador do Curso de Engenharia Topográfica no Instituto Politécnico de Beja, Professor de Topografia e Desenho Topográfico da Escola de Formação e Aperfeiçoamento do Instituto Geográfico e Cadastral em Lisboa, Professor Convidado da Universidade dos Açores para as cadeiras de Topografia e Desenho Topográfico, em Ponta Delgada, e Professor de Topografia da Universidade Lusófona em Lisboa.

 


[1]  Do livro Memórias, de Gomes da Costa.
[2]  Do livro Memórias, de Gomes da Costa.
[3]  Livro dos Vice-Reis da Índia d’El Rei D. Carlos, aguarelas de Gomes da Costa - Edição Chaves Ferreira, Lisboa 1991.
[4]  Segundo o Coronel José Cabral, que governou a Índia entre 1938 e 1945.
[5]  Penso que era um crítico de arte.
[6]  As imagens das figuras 3 a 6 são do livro dos Vice-Reis, obtidas na internet.
[7]  Do livro Memórias de Gomes da Costa.
[8]  Esta planta, também foi recolhida pelo autor em Lourenço Marques, do espólio de material incapaz a incinerar.
[9]  A digitalização foi executada pelo Sargento-Ajudante Sousa, em serviço no Instituto Geográfico Português, em Lisboa. Autorizado este serviço pela Direcção desse Instituto.
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Tenente-coronel

João José de Sousa Cruz

Tenente-coronel de Artilharia. Professor Efectivo de Topografia e Geodesia da Academia Militar, Lisboa; Professor e Criador do Curso de Engenharia Topográfica no Instituto Politécnico de Beja, Professor de Topografia e Desenho Topográfico da Escola de Formação e Aperfeiçoamento do Instituto Geográfico e Cadastral em Lisboa, Professor Convidado da Universidade dos Açores para as cadeiras de Topografia e Desenho Topográfico, em Ponta Delgada, e Professor de Topografia da Universidade Lusófona em Lisboa.

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