Passam este ano quarenta anos sobre a data de 25 de abril de 1974. As Forças Armadas, naquela data, derrubaram o regime político que regulava a Nação – o Estado Novo – e que durava desde 1926. O regime derrubado, não só na perspectiva dos seus opositores, mas também refletido na organização dos executivos de Governo, tinha, mais nominalmente do que substantivamente, como forte base de apoio as Forças Armadas. Os executivos mantinham Ministros e Secretários de Estado para os Ramos das Forças Armadas, com assento no Conselho de Ministros, que detinham competências disciplinares, poder discricionário sobre promoções propostas pelos Conselhos Superiores dos Ramos das Forças Armadas e decisão sobre a nomeação de Comandos. As Forças Armadas estavam subordinadas ao executivo, ainda que o Juramento de Fidelidade dos seus Corpos de Oficiais traduzisse, na sua fórmula, mais uma ligação à Nação do que aos regimes políticos que a governavam.
“Juro servir a minha Pátria e lutar pela sua independência e pela integridade dos seus territórios; respeitar a Constituição e as leis do meu País; observar rigorosamente a disciplina militar; obedecer aos meus chefes; ser fiel aos princípios de honra do Exército Português e cumprir dedicadamente as missões que me forem confiadas, mesmo com sacrifício da vida”, era, e é, a fórmula do Juramento que, perante o seu Comandante e seus camaradas de armas, todos os Oficiais do Exército (com as correspondentes adaptações para outros Ramos das Forças Armadas) assumiram e assinaram em ato solene e consta do frontispício da sua Carta Patente de Oficial.
O derrube do regime, como o demonstraram várias tentativas malogradas, só poderia ser feito com o seu repúdio e consequente apoio das Forças Armadas. E foi assim. Para uma parte dos Oficiais das Forças Armadas, nos postos intermédios da hierarquia, o destino da Pátria sobrepôs-se ao dever de obediência.
O motor desse repúdio foi o denominado “Movimento de Capitães” e o seu sucesso resultou da definição rápida, clara e aceite de uma hierarquia, o que evitou cisões, pelo menos significativas, contrariando exemplos do passado nas Forças Armadas. No Programa do Movimento, onde sobressaíam as ideias força de Democracia, Desenvolvimento e Descolonização, estava também subjacente uma maior ligação das Forças Armadas à Nação, libertando-as da imagem de apoio de regimes, tornando-as mais independentes dos executivos e restituindo-lhes o seu papel histórico de Instituição.
Depois de um período de transição, em que as Forças Armadas desempenharam papel de relevo na consolidação da democracia, com soluções simultaneamente inovadoras e controversas para equilibrar o poder entre os militares e as nascentes instituições democráticas (a institucionalização do Movimento das Forças Armadas (MFA), o Pacto MFA-Partidos Políticos, o Conselho da Revolução, a intervenção militar do 25 de novembro para corrigir desvios, a aprovação de uma Constituição da República, a eleição, por sufrágio direto e universal, de um Presidente da República, militar, que era simultaneamente Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas e Presidente do Conselho da Revolução), a revisão constitucional de 1982 não consolidou o carácter institucional das Forças Armadas na Nação. Carácter institucional que, com o tempo, se foi degradando progressivamente e que se materializa, na atualidade, por uma deficiente ligação da Nação às suas Forças Armadas, por relações civis-militares no Estado que devem caraterizar as sociedades democráticas mal definidas (com excessivo desequilíbrio entre o poder executivo e o poder legislativo nessas relações), pela confusão de conceitos entre a “necessidade de Forças Armadas no estado democrático para a sua estabilidade e defesa” e a “utilidade das Forças Armadas para missões de interesse público ou de apoio à política externa do estado”.
Pertencem à História as diferentes conceções políticas e o seu choque para a definição de um texto constitucional do novo regime, bem como as manifestas repercussões que tiveram no Conselho da Revolução. Desconhecemos o diálogo havido entre os Partidos Políticos e o Conselho de Revolução sobre o que a nova Constituição poderia ou deveria expressar sobre a Instituição Militar e as Forças Armadas. Sabemos, por factos observados e vividos na época, que houve grande tentação para adotar, quanto à defesa nacional, um modelo semelhante ao da Roménia. País, à época, integrado no Pacto de Varsóvia e perante o qual adotava um posicionamento próprio de “independência nacional”. Havia ideias para que Portugal, inserido na OTAN, adotasse também um posicionamento que o tornasse “um caso especial” nesta Aliança. Um nacionalismo estrangeiro, parecia querer dominar os modelos a adotar.
Passados anos de sucessivas e por vezes desnecessárias reorganizações, pode afirmar-se, sem dúvidas, que a Instituição Militar e o seu instrumento de ação que são as Forças Armadas foram a área do Estado que mais se transformou nos últimos quarenta anos. Intensamente em efetivos, no recrutamento, nos seus códigos de justiça e disciplina, nos estatutos do pessoal que as integra, em organização, no dispositivo de fixação no território, no ensino e instrução. Moderadamente na postura internacional, nos armamentos e equipamentos que operam e na parte que lhes cabe do Orçamento Geral do Estado.
E, passados quarenta anos, é pertinente, representa cidadania responsável e é do interesse nacional perguntar: temos Forças Armadas melhores (mais motivadas, mais prontas para as suas missões, melhor armadas e equipadas) do que há quarenta anos? Há maior ligação da Nação às suas Forças Armadas do que no passado? O que é que a Nação pode esperar das suas Forças Armadas numa grave crise de emergência nacional? As Forças Armadas são mais reguladas pela Assembleia da República, que representa a Nação, ou pelos executivos que em cada momento representam a gestão do Estado?
Durante os quarenta anos passados, o conceito de defesa nacional e a missão das Forças Armadas nessa defesa, como a sua inserção na sociedade portuguesa, a sua estrutura e as suas capacidades militares foram-se alterando. Alterações ditadas pela evolução interna, especialmente materializadas pelo Conselho da Revolução, pela Constituição de 1976 e as suas sucessivas alterações (com especial relevo a de 1982), pela evolução económica e social da Nação, pela interpretação do papel e funções do Estado e da organização da sociedade civil. Mas também enquadradas pela evolução do ambiente estratégico global e dos conceitos de emprego da força nas relações internacionais, materializados, especialmente, na Organização das Nações Unidas (ONU), na Organização da Aliança do Atlântico Norte (OTAN), na Organização para a Segurança e Cooperação Europeia (OSCE) ou na União Europeia (UE).
Quando se aborda o fator tempo há sempre a tentação de definir marcos temporais, que materializem as mudanças. E ao abordarmos as mudanças de conceitos e de factos que se verificaram na defesa nacional e nas Forças Armadas nos últimos quarenta anos também há marcos temporais. Por metodologia de sistematização, somos tentados a estabelecer quatro tempos. De 1974 a 1982, de 1982 a 1991, de 1991 a 2001 e de 2001 até à atualidade. Cada um desses tempos ronda a década, parecendo confirmar aquilo que já Napoleão afirmava dizendo “que os conceitos de aplicação da força militar e da sua estrutura, com a modernidade, vão mudar de dez em dez anos”. Na modernidade, uma década para a Instituição Militar representa o ciclo médio de vida dos seus armamentos principais.
Alguém já afirmou que o ano de 1974 não foi bem escolhido para iniciar uma revolução na Europa. O ambiente estratégico global mostrava uma depressão económica provocada pelo denominado “primeiro choque petrolífero” de 1973 que iria agravar-se em 1979, as relações Leste-Oeste iniciavam nova fase com os primeiros sinais de uma distensão (détente) e o arranjo de áreas de influência entre as superpotências, o conflito israelo-árabe agudizava-se como resultado da denominada guerra do Yom Kippur, em 1973, com reflexos no preço do petróleo e os EUA ainda viviam o pesadelo da guerra do Vietname com uma crise interna que iria levar à demissão do presidente Nixon. Iniciava-se, timidamente, uma nova globalização e a idade da informação estava a substituir a era pós-industrial. Num mundo bipolar, na visão das relações internacionais, outros centros de influência geoestratégica procuravam emergir, como a China, o Japão, a Europa Ocidental, os Países Não-Alinhados ou a União dos Países Árabes. O diálogo Norte-Sul, orientado por motivações ideológicas, mas pouco seguido por ações concretas, procurava chamar a atenção para a grande parte da humanidade que ainda vivia com menos de meio dólar americano por dia. Fome, doença e guerra ainda eram cavaleiros descontrolados do Apocalipse.
Os quarenta anos que se seguiram vieram trazer mudanças contínuas, por vezes inesperadas, no ambiente estratégico internacional. Mudanças devidas a uma interação de fatores de natureza económica, da evolução da ciência e da tecnologia, de maior participação dos povos nos seus destinos e da sua emancipação de regras do passado e até de crenças religiosas.
Mudanças que se iniciaram, em meados dos anos setenta do século passado, por aquilo que ficou designado “pela segunda fase da guerra fria”, com a distensão das relações EUA-URSS e a aproximação dos EUA à China, a progressiva superioridade militar dos EUA a partir da sua Iniciativa Estratégica de Defesa (1983) e que iriam culminar, em 1991, no desmantelamento do império soviético, na dissolução do Pacto de Varsóvia e na reunificação da Alemanha pondo um primeiro final à Guerra Fria.
O ano de 1991 iria dar início a um novo ciclo nas relações internacionais, com o unipolarismo dos EUA como única superpotência e a Europa a retomar a sua ideia de unidade estratégica, começando pela união económica, procurando retirar os seus dividendos da nova paz em perspetiva, diminuindo orçamentos da defesa e os seus efetivos e prontidão militares. Com a ONU a retomar a sua missão de regular a ordem internacional, legalizando intervenções armadas sob sua autorização e que, no início da década dos anos noventa, tiveram lugar no Golfo contra o Iraque e na ex-Jugoslávia, onde um conflito entre as suas repúblicas teve um forte suporte em diferendos étnicos. A força militar concebida e utilizada sob a liderança dos EUA no Golfo veio demonstrar a importância do conjunto e das novas tecnologias na conceção e utilização da força militar, assim como o conflito na ex-Jugoslávia veio demonstrar a dificuldade de aplicar a força militar em conflitos que se desenvolviam no seio da população. A ONU, a OTAN, a UE e estados, preocupados com a segurança e defesa, repensaram os seus conceitos estratégicos.
A primeira década do século XXI assistiu, em setembro de 2001, a um ataque inesperado e impensável a instalações dos EUA no seu território. Era o início de um hiperterrorismo internacional, concebido e apoiado por motivações ideológicas com base num fundamentalismo islâmico, que marcou de novo todo o ambiente estratégico internacional e os conceitos ligados à força militar e que ainda persiste. Ambiente estratégico internacional que continuou a ser marcado por questões mal resolvidas do passado, como o conflito israelo-árabe e a instabilidade permanente nalgumas áreas consideradas charneiras na geopolítica global (Médio Oriente, Península da Coreia, mar da China, Norte de África e outras regiões desse continente ou da América Central). Ou pela incapacidade de resolver questões como a fome, o subdesenvolvimento, os direitos humanos ou os conflitos e genocídios em partes importantes do continente africano ou do Médio Oriente. O modelo das democracias liberais norte atlânticas fez moda para ser exportada para outras partes do globo como requisito para a estabilidade.
Ambiente estratégico internacional que se encontra de novo em mudança, com novas ameaças à segurança global, com o espaço e o ciberespaço a adquirirem crescente importância como áreas de confronto, com o acesso ou a negação do acesso a áreas e a recursos a retomarem relevância na geopolítica, com as agressões ambientais, os fluxos migratórios não controlados, a instabilidade nas grandes urbes, a pirataria nas orlas costeiras, o terrorismo internacional e outras instabilidades a ultrapassarem as capacidades das forças policiais para manterem a ordem interna, o que tem conduzido à sua crescente militarização e dúvidas e incertezas sobre essa tendência. A que se junta uma crescente desmilitarização de sociedades do mundo euro-atlântico a par de uma crescente militarização de potências até agora preocupadas com as suas ordens internas (China, Índia, Japão, Turquia, Irão) para se afirmarem nos espaços estratégicos do seu interesse, algumas vezes classificados de vitais. A geopolítica global (interesse por áreas geográficas) está a mudar, voltando a importância dos rimlands de Mackinder e dos oceanos, com relevo para o Atlântico e os recursos nas suas margens ou o Ártico e que parece ir alterar o interesse que vinha crescendo pelo Pacífico. A que se juntam, também, novos atores nas relações internacionais, como movimentos armados dentro de estados ou transnacionais, levando algumas escolas de pensamento a afirmarem que terminou o mundo do estado-nação como tinha aparecido com a paz de Vestefália, no século XVII.
Todas estas alterações e tendências têm condicionado as organizações globais e regionais, preocupadas com a segurança e a paz nas sus políticas, assim como os estados e o papel da força militar organizada na ordem externa e na ordem interna desses estados.
A ONU, na sua tarefa de zelar pela paz e segurança global, durante estes quarenta anos viu o número dos seus estados membros crescer de 138 para 193, além de admitir como observadores permanentes outras organizações sem o estatuto de estado-nação. Após 1991, o seu Conselho de Segurança passou a ter maior autonomia na aprovação das suas Resoluções em apoio da paz, adotou nova Agenda para a Paz e as missões de iniciativa própria ou por intermédio de organizações regionais têm aumentado.
Nos últimos quarenta anos, a OTAN viu alargado o número dos seus estados membros de 12 para 28, alterou por três vezes o seu Conceito Estratégico, modificou outras tantas a sua estrutura de comandos e de forças, estabeleceu parcerias de cooperação com a Rússia, Ucrânia e alguns estados da bacia do Mediterrâneo e viu-se envolvida em operações fora da sua tradicional área de responsabilidade.
A OSCE, englobando 57 estados membros, é a única organização regional onde participam estados americanos (EUA e Canada), Rússia, todos os estados europeus e alguns estados centro asiáticos. O seu papel, de que afasta medidas coercivas, tem sido mais de observação e regulação de conflitos e de algumas das suas causas (direitos humanos e de minorias, processos de democratização, desigualdades económicas ou questões ambientais).
A UE viu também consolidado o seu estatuto na cena internacional, com uma adesão progressiva de estados (28 atualmente), com uma forte componente de organização económica em espaço alargado, uma moeda única para grande parte dos seus estados e com ambições, lentamente concretizadas, de uma Política Comum de Segurança e Defesa. Cooperando com a ONU e com a OTAN, tem também assumido protagonismo nas iniciativas para a resolução de conflitos e para preservação e manutenção da paz em áreas do interesse da Europa.
Outras organizações regionais de segurança e cooperação na resolução de conflitos, em África, na Ásia ou Oceânia têm também cooperado com a ONU nas suas iniciativas para manter e promover a paz ou em missões humanitárias.
Condicionados pelo novo enquadramento estratégico e as suas contínuas alterações, os estados tiveram de proceder a frequentes revisões estratégicas para adaptarem as suas políticas externas e o papel das suas forças militares aos novos ambientes. Perante as pressões das suas populações para um melhor nível de vida e menor perceção de ameaças, os orçamentos nacionais refletiram a crescente tendência para mais manteiga e menos canhões. Os efetivos e os orçamentos militares decresceram, os equipamentos e armamentos envelheceram e, com especial relevância para a velha Europa, o mundo euro-atlântico descansou na proteção que os EUA com o seu aparelho militar poderiam garantir. Uma das fidelidades dos cidadãos perante o estado, o serviço militar obrigatório, foi-se apagando progressivamente e a paridade, porque politicamente correta, viu aumentar significativamente a presença feminina nas forças armadas. As guerras de necessidade deram lugar às guerras de escolha e alianças – como a OTAN e a UE – apostaram em forças com carácter mais expedicionário – para as projetar para áreas em conflito e a necessitar de estabilização, conforme preconizado pela ONU – mais do que para a defesa de espaços nacionais.
No período de guerra em África, de 1961 a 1974, os efetivos orçamentais dos ramos das Forças Armadas tinham sofrido algumas alterações. No Exército, os Quadros Permanentes não tinham aumentado substancialmente. Tinha havido um ligeiro aumento no número de oficiais (2.852 para 3.249, com a criação do Quadro Especial de Oficiais, do Serviço de Assistência Religiosa, do Serviço Postal Militar e maior acesso de sargentos à categoria de oficiais pelo alargamento dos cursos na Escola Central de Sargentos) e de sargentos (de 3.829 para 3.933). Os efetivos autorizados de praças tiveram um aumento substancial (de 27.174 para 42.438) com o tempo de serviço efetivo alargado para dois anos. Algumas reorganizações, no dispositivo territorial, especialmente nas Regiões Militares (4 na Metrópole, em 1962, 5, em 1970, com a criação do Comando Territorial do Algarve, Região Militar de Angola, Região Militar de Moçambique e Comando Territorial Independente de S.Tomé e Príncipe), iriam fixar em 135 as Unidades, Órgãos e Estabelecimentos do Exército no Continente e Arquipélagos dos Açores e Madeira, no ano de 1961.
A 31 de dezembro de 1973, os efetivos do Exército nos três Teatros de Operações (Angola, Guiné, Moçambique) atingiam o número mais elevado de sempre, com 149.090 homens, dos quais 87.274 (59%) eram efetivos metropolitanos de reforço e 61.816 (41%) de recrutamento local. Por cálculos desenvolvidos em 1965, tinha-se concluído que, naquele ano, a verba necessária por dia e por homem (oficiais, sargentos e praças) em campanha era de 115$00 (incluindo vencimento e subsídio de campanha 35$00)[1]. O “esforço de guerra” da nação era financeiramente suportado pelo Orçamento das Forças Militares Extraordinárias no Ultramar (OFMEU).
Como sempre tinha acontecido na sua História Militar, Portugal mobilizou a sua população masculina para conduzir a sua campanha de proteção do Império. Em 1961, foram recenseados (aos 20 anos) 73.366 indivíduos, tendo sido apurados para o serviço militar 64,8% e faltando 11,6% às suas obrigações (faltosos). Os indivíduos apurados, de acordo com as suas habilitações literárias, foram cumprir o serviço militar no contingente geral (88,5%), frequentar o Curso de Sargentos Milicianos (9,5%) ou de Oficiais Milicianos (2,0%). Em 1971, o recenseamento foi efetuado pela primeira vez aos cidadãos masculinos que completavam 18 anos. Os recenseados atingiram os 91.363 indivíduos, tendo sido apurados 72% e registando-se 20,3% (15.664) faltosos. Os apurados foram distribuídos pelo contingente geral (84,5%), Curso de Sargentos Milicianos (10,1%) e Curso de Oficiais Milicianos (4,7%).
Em 1974, a Despesa Ordinária do Estado com a Defesa Nacional (Forças Armadas) era de 6.401,7 milhares de contos, representando 17,6% da Despesa Ordinária Total do Estado. O Exército (2.861,4 milhares de contos) representava 8,0% dessa Despesa. Nesse mesmo ano, o OFMEU atingiu os 11.848,2 milhares de contos, com um total de 8.477,9 milhar de contos (71%) para o Exército. Situação que se iria inverter, já em 1975, com a despesa Ordinária do Estado com a Defesa Nacional a subir para 9.245,1 milhares de contos (8,1% para o Exército) e a OFMEU a descerem para 6.823,1 milhares de contos.
O novo regime político a implantar, consequência do golpe militar de 25 de abril de 1974, iria ter como elemento inspirador o Programa do Movimento das Forças Armadas e teve de enfrentar, de imediato, três profundas alterações internas, num enquadramento internacional de instabilidade. A descolonização, o aumento da sua população residente em cerca de dez por cento, no curto espaço de dois anos, com o regresso de populações dos territórios descolonizados (fenómeno único no panorama da Europa contemporânea) e um intenso debate político, acompanhado por convulsão social, derivado do choque ideológico entre o conceito de revolução e o conceito de transformação no novo regime político a implementar e a sociedade a criar para seu suporte.
Consequência da Lei Constitucional nº 3/74, de 14 de maio, que estabelece uma Assembleia Constituinte, define órgãos de soberania e o governo provisório, é promulgado o Decreto-Lei nº 400/74, de 29 de agosto, estabelecendo que “o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), na dependência única do Presidente da República, é o responsável pela direcção efetiva do emprego das Forças Armadas, tanto em tempo de paz como em tempo de guerra” e que “a competência para os assuntos de natureza militar, atribuída pela legislação em vigor ao Presidente do Conselho de Ministros, passa a pertencer ao CEMGFA”.
No curto prazo de um ano e meio, até 25 de novembro de 1975, a vida política, económica e social da Nação irá viver intensa convulsão que se vai materializar na substituição do Presidente da República, em seis governos provisórios, nas eleições para a Assembleia Constituinte, na descolonização e consequente independência dos territórios em África, na nacionalização de largos setores da economia, e na implementação de medidas sociais de relevo, como a fixação do salário mínimo nacional e a criação do serviço nacional de saúde.
É também um período de anormalidade nas Forças Armadas e de intensa convulsão interna, traduzida em divergências no seio do Movimento das Forças Armadas, saneamentos de Quadros, extinção do Corpo do Estado-Maior no Exército, dificuldades na manutenção da disciplina nas unidades no território metropolitano e nas estacionadas nos territórios a descolonizar. Tentativa de politização das Forças Armadas por parte de forças políticas e a ação do Comando Operacional do Continente (COPCON), criado pelo Decreto-Lei nº 310/74, de 8 de julho, para “manutenção e restabelecimento da ordem”, refletiram, também, a divergência de conceitos entre revolução e transformação.
É o primeiro período de transformações na componente militar da defesa da Nação e do seu carácter institucional, com especial incidência no Exército, com os militares a ditarem as suas leis, procurando libertar-se da tutela política que regulava efetivos e administração de pessoal, dispositivo e orçamento. Quadros Aprovados por lei e promoções e contas aprovadas pelo Tribunal de Contas, com as suas secções junto dos Ministérios e Secretarias de Estado próprias, deixaram de ser observados. Os Regulamentos de Disciplina e de Serviço Interno foram adaptados a novos conceitos de vivência. As Unidades iam mudando de nome de acordo com a localização (RALIS, RAB, RIQ…) esquecendo toda a tradição. É um período que vai deixar profundas marcas na instituição castrense e na sua tradicional ligação à Nação, materializada especialmente pelo Exército com o seu dispositivo territorial e o serviço militar. Marinha e Força Aérea, pelas suas características próprias de organização, recrutamento e tecnicismo não iriam sentir tão profundamente essas alterações.
Em 25 de novembro de 1975, retomada a normalidade da transição democrática prometida pelo Movimento das Forças Armadas, inicia-se novo período de transformação da vida política, social e económica da Nação acompanhada por transformações nas Forças Armadas que, vivendo ainda um clima de exceção sob a tutela do Conselho da Revolução, se empenham no reforço da disciplina, retoma das hierarquias e normalização das relações com a OTAN que tinham atingido níveis muito baixos de confiança mútua (Portugal, durante algum tempo, em 1974 e 1975, deixou de receber documentação classificada da Aliança).
Reposta a hierarquia e a disciplina, as Forças Armadas iniciam reestruturações internas, na sua organização, administração de pessoal, dispositivo territorial, ensino, instrução e treino, gestão financeira e inserção na Aliança Atlântica, lançando alguns programas de reequipamento.
Os Comandos das Forças Armadas (CEMGFA e CEM dos ramos), que detinham competências ministeriais, entenderam que a estabilização interna de Quadros deveria passar por uma maior internacionalização e a retoma de contatos com outras Forças Armadas da Aliança Atlântica que se tinha perdido com a longa duração da campanha no Ultramar.
Pouco depois de ter assumido o cargo de Chefe de Estado-Maior do Exército (novembro de 1975), Ramalho Eanes anunciou, em janeiro de 1976, a diminuição de efetivos do Ramo para cerca de 26.000. Esta iniciativa, a primeira de uma série visando a restruturação do Exército, embora se saldasse pelo fracasso, teve o mérito inegável de avançar um número de princípios orientadores. Primeiro, reforçava a ideia de que a hierarquia do Exército estava empenhada em erguer uma instituição profissionalizada e não uma força golpista. Segundo, a reorganização de Eanes pressupunha a estabilidade das alianças internacionais, especialmente a continuação de Portugal na comunidade de segurança da OTAN e o cumprimento das obrigações inerentes à participação nessa organização. Terceiro, pretendia-se incutir uma “disciplina consciente” (distinta da disciplina “tradicional”, “imposta” ou “revolucionária”), a fim de assegurar a abertura de canais entre os escalões hierárquicos, ao mesmo tempo que se garantia a unidade e coesão de comando. Ao conceptualizar as Forças Armadas deste modo, privilegiavam-se os seus atributos institucionais, reduzindo assim a probabilidade da instituição vir a degenerar numa força pretoriana disponível para intervir politicamente em períodos de crise[2].
No âmbito da OTAN, também em janeiro de 1976, por decisão do seu Comité de Planeamento da Defesa tinha sido constituído um grupo “ad-hoc”, com o objetivo de coordenar a ação da Aliança em relação aos objetivos de forças de Portugal e Turquia para os quais são exigidos meios externos. Surgia aqui uma forte oportunidade para Portugal, tirando proveito das facilidades que concedia aos EUA, nos Açores, à França, na ilha das Flores nos Açores, e à República Federal da Alemanha (RFA), na Base de Beja, para tentar o reequipamento e modernização das suas forças. Alguns países da Aliança (Bélgica, Canadá, Itália, Holanda, Noruega, Reino Unido) contribuíram modestamente com algum equipamento[3].
As maiores contribuições vieram dos EUA e da RFA.
Entre os anos fiscais de 1977 e 1980, os EUA concederam como “grants” (dádiva), a Portugal, 111 milhões de dólares que foram aproveitados pelo Exército (50,1 milhões), Marinha (7,6 milhões) e Força Aérea (53,3 milhões). O Exército utilizou a verba na aquisição de material para 1ª Brigada Mista Independente (1BMI), que tinha começado a levantar, em fevereiro de 1976, no Campo Militar de Santa Margarida, a Marinha adquiriu material de comunicações e eletrónica e a Força Aérea adquiriu 3 aviões C-130 (Hercules), 6 aviões T38 A (avião de treino) e iniciou a aquisição da 1ª Esquadra de aviões de combate A7-P (usados)[4].
A partir de 1978, a RFA passou a prestar auxílio militar baseado em acordos, cada um com a duração de 18 meses, designados por tranches. A primeira tranche (junho de 1978 a dezembro de 1979), no valor de 34 milhões de marcos, foi utilizada totalmente pelo Exército na aquisição de 18 Carros de Combate M48A5 e de viaturas para a 1BMI. A segunda (janeiro de 1980 a junho de 1981), no valor de 45 milhões de marcos, foi gasta pelo Exército (38 milhões, com uma Bateria AA bi-tubo de 20mm, uma ponte de apoios flutuantes, um obus 155c M114A1 e viaturas) e pela Força Aérea (7 milhões). A terceira (julho de 1981 a dezembro de 1982), no valor de 45 milhões de marcos, foi utilizada pelo Exército (15 milhões), Marinha (20 milhões) e Força Aérea (9,5 milhões). Este auxílio iria prolongar-se até dezembro de 1985, por mais duas tranches, cada uma no valor de 45 milhões de marcos.
A Constituição da República é aprovada e decretada a 2 de abril de 1976, e, a 14 de julho, toma posse como Presidente da República o General (graduado) Ramalho Eanes, eleito por sufrágio direto e universal, que, por acumulação de funções, é também General CEMGFA e Presidente do Conselho da Revolução. A nova Constituição define como órgão de soberania, a par do Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo, os Tribunais e o Conselho da Revolução, responsável por legislar sobre as Forças Armadas. Forças Armadas, cuja missão é definida no art.º 273º da Constituição e diz “As Forças Armadas Portuguesas têm a missão histórica de garantir as condições que permitam a transição pacífica e pluralista da sociedade portuguesa para a democracia e o socialismo”.
Os ramos procedem a reorganizações internas na sua estrutura superior e na sua implantação territorial, adaptando-se à nova responsabilidade conferida aos Chefes de Estado-Maior dos ramos na administração e comando dos seus ramos, sendo no Exército que essa transformação é mais profunda, com o Decreto-Lei nº 949/76, de 31 de dezembro, a definir a organização superior em Departamentos (do Pessoal às Finanças), a estabelecer o Conselho Superior das Armas e Serviços, a par do Conselho Superior do Exército e a Comissão de Verificação de Contas e Apuramento de Responsabilidades. Definem-se as responsabilidades das Regiões Militares e Zonas Militares, são extintas algumas unidades (de Caçadores, de defesa contra aeronaves, companhia disciplinar) e órgãos (casas de reclusão, distritos de recrutamento e mobilização) e alienam-se cerca de cem prédios militares sem qualquer contrapartida.
Retomam-se progressivamente os Cursos e Estágios de formação e promoção (capitão, oficial superior, oficial general, sargento ajudante) e a carreira de sargento, com a criação de uma escola própria de formação, é acrescentada com os postos de sargento-chefe e sargento-mor. Implanta-se um tremendo esforço na requalificação dos Quadros, que tinha sido abandonada pelo esforço da guerra e sucessivas comissões de serviço.
Entre 1975 e 1976, foram sensíveis as preocupações sobre a indefinição da política de defesa nacional. Desenvolveram-se, na ocasião, três correntes de pensamento. Uma preconizava que se devia aguardar a definição constitucional; outra considerava que esse assunto era uma responsabilidade da Assembleia da República; e ainda outra que afirmava ser um assunto da competência do Conselho da Revolução[5]. Em 1977, o então Ministro da Defesa Nacional, Tenente-coronel Firmino Miguel, apresentou um projeto de Lei da Defesa Nacional elaborado durante o I Governo Constitucional. Adotava uma conceção ampla de defesa nacional contra todas as formas de ameaça (externa e interna), recorrendo a medidas em todos os setores das atividades do Estado.
Em maio de 1977, o então Ministro da Defesa do IV Governo Constitucional, Tenente-coronel Loureiro dos Santos, apresentou a sua Proposta de Lei de Defesa Nacional que foi enviada à Assembleia da República. Adotava também uma conceção ampla de defesa nacional, muito semelhante ao projeto de Firmino Miguel, mas clarificando alguns aspetos. Confere ao Presidente da República a direção superior da política de defesa nacional; garante a separação entre aspetos não militares da defesa a cargo do governo e aspetos militares à responsabilidade das Forças Armadas; persiste na equivalência entre detentores de cargos políticos e militares.
Entretanto, o Instituto da Defesa Nacional, que temporariamente tinha desempenhado as funções de Centro de Sociologia Militar, retoma as suas funções de ministrar Cursos de Defesa Nacional, em 1978. É o tempo de debater conceitos de Segurança Nacional e de Defesa Nacional, entendendo-se que a Segurança Nacional deveria ser uma atitude mais ampla e permanente do Estado na procura de criar e manter liberdade de ação nas suas decisões (conceção anglo saxónica de National Security) e que a Defesa Nacional deveria ser uma ação ampla do Estado e dos seus setores que mais contribuíssem para se opor a ameaças externas (conceção francesa de Defense Nationale) que afetassem a sua independência e soberania.
Nas várias discussões havidas sobre a Defesa Nacional subsistiam algumas certezas e muitas dúvidas. Entre as certezas prevalecia a certeza de Portugal ter de dispor de uma força permanente (sistema de forças) para garantir a presença e impedir o acesso a um Espaço Estratégico do Interesse Nacional (constituído por um território repartido e o espaço interterritorial) e para assegurar os seus compromissos na defesa coletiva da OTAN, contrariando conceitos ultrapassados quando Portugal era detentor de um Império.
As eleições intercalares de 1979 abriram o caminho para uma Revisão Constitucional e a uma nova fase das relações civis-militares no Estado. No novo governo é nomeado um civil (Adelino Amaro da Costa) para Ministro da Defesa Nacional e, após a sua morte prematura, é o novo Ministro, Diogo Freitas do Amaral, que apresenta à Assembleia da República a Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei nº 29/82, de 11 de dezembro), que o Presidente da República veta e devolve à Assembleia da República, em novembro de 1982, alegando que ela concedia excessivos poderes ao Ministro da Defesa, aumentando assim a possibilidade da “instrumentalização” das Forças Armadas. A Lei é aprovada e promulgada em dezembro de 1982.
Até à revisão constitucional de 1982 e a promulgação da Lei nº 29/82, de 11 de dezembro, as Forças Armadas regulam-se a si próprias, com o Conselho de Chefes de Estado-Maior e depois o Conselho da Revolução a legislar sobre a sua organização, com as promoções a serem aconselhadas por conselhos das armas e serviços ou de especialidades, entretanto criados, e com um Ministro da Defesa nos governos provisórios, que era mais um elemento de ligação entre o governo e as Forças Armadas, mas com mínima interferência nos seus assuntos. Feita a descolonização, não há grandes alterações no dispositivo militar no Continente e Regiões Autónomas (é criado o Regimento de Comandos, na Amadora). O Estado-Maior General das Forças Armadas vai-se organizando nas suas Divisões e órgãos de apoio, é criado o Serviço de Polícia Judiciária Militar para resolver assuntos específicos e as Forças Armadas preparam-se, lentamente e com interferências várias, para se adaptarem a um novo conceito estratégico do seu emprego, durante séculos regulado pela defesa do território e proteção do Império.
Entre 1974 e 1982, os efetivos das Forças Armadas passaram de 175.000 para cerca de 70.000. Foi mantido o Serviço Militar Obrigatório para o pessoal masculino, com o seu tempo diminuído para quinze meses, em julho de 1975, no Exército, e para dois anos, em outubro, para as praças da Armada. A despesa com as Forças Armadas diminui mais acentuadamente do que os efetivos. Representando cerca de 13% da despesa pública, no final de 1974, este valor representava 7% no final de 1982.
As Forças Armadas, envolvidas no controlo do processo de mudança com arranjos de exceção, percorreram o que, algumas vezes, se classificou um período transitório que termina em 1982, com a aprovação das Leis da Defesa Nacional e das Forças Armadas e do Tribunal Constitucional[6].
A análise desse período transitório tem merecido diversas opiniões, centradas especialmente sobre a sua duração. Para uns, demasiado curto e, para outros, demasiado longo. Quase todos esquecem a tarefa fundamental que representou a estabilização das Forças Armadas como objetivo essencial para consolidar o novo regime constitucional. O período foi o necessário e também o suficiente.
Com a revisão da Lei Fundamental, em 1982, define-se pela primeira vez no ordenamento constitucional português o conceito de defesa nacional, visando, fundamentalmente, demarcar a área normal de intervenção das Forças Armadas e das Forças de Segurança e delimitar esferas de atribuições de ministérios diferentes para aquela função do Estado. Define-se, também, a missão das Forças Armadas – Às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República (nº 1, art.º 275º da Constituição) – e lançam-se as bases do princípio universalmente aceite nas sociedades democráticas do controlo civil sobre as Forças Armadas, expressando o nº 3 do mesmo art.º 275º que As Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei.
A nova Lei, de acordo com o seu proponente à Assembleia da Republica (Prof. Doutor Freitas do Amaral), tinha sido elaborada seguindo alguns princípios orientadores (doze), uns, explicitamente assumidos pela Assembleia, em termos de revisão constitucional ou dela decorrente de forma explícita ou implícita, e outros, representando opções feitas pelo Governo. Convém recordar esses princípios:
1º – Redução do conceito de defesa e da missão primária das Forças Armadas à garantia da independência nacional perante qualquer ameaça externa;
2º – Subordinação das Forças Armadas ao poder político;
3º – Corresponsabilização dos órgãos de soberania em relação à direção das Forças Armadas;
4º – Concertação institucional através do Conselho Superior da Defesa Nacional;
5º – Inserção das Forças Armadas no Ministério da Defesa;
6º – Nova delimitação de competências dentro do Governo em relação à defesa nacional;
7º – Manutenção da atual delimitação de competências dentro do Comando das Forças Armadas;
8º – Reconhecimento de ampla autonomia interna às Forças Armadas;
9º – Garantias de estabilidade da instituição militar;
10º – Isenção e apartidarismo político das Forças Armadas;
11º – Especificidade da organização da defesa em tempo de guerra;
12º – Nova regulamentação do estado de sítio e do estado de emergência[7].
Com a promulgação da Lei inicia-se um segundo período de reestruturação das Forças Armadas que, de acordo com o quadro temporal estabelecido, vai durar de 1982 até à promulgação da Lei nº 111/91, de 9 de agosto (Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas-LOBOFA). Durante o período, são formados cinco governos constitucionais (do VIII ao XII), assumem a pasta da Defesa sete ministros e três generais (dois do Exército e um da Força Aérea) exercem o cargo de Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas.
O período foi influenciado, externamente, por um ambiente estratégico internacional ainda dominado pelo confronto Leste-Oeste, por um lado, atenuado com medidas de distensão como a limitação de armamentos nucleares e convencionais, mas, por outro lado, agudizado com o lançamento da Iniciativa Estratégica de Defesa por parte dos EUA (1983) e a intervenção da URSS no Afeganistão (1988). A que se juntaram outras condicionantes para o interesse nacional, como a situação de guerra civil que se vivia em Angola e a presença no território de tropas cubanas e sul-africanas, a evolução da situação em Espanha e o seu interesse para integrar a Aliança Atlântica ou o esforço de adesão de Portugal às Comunidades Europeias (1986).
Internamente, havia fatores que influenciavam favoravelmente a reorganização da força militar da nação, onde sobressaíam um relativa estabilidade política com a consolidação da democracia, e que se refletia na estabilidade nas Forças Armadas, uma progressiva recuperação económica, após o choque petrolífero de 1979 e ao recurso ao Fundo Monetário Internacional para estabilizar as finanças públicas, e um esforço ainda moderado no estabelecimento do estado social, com as despesas de soberania (7% do PIB) a superarem as das funções sociais (4%)[8].
Foi um período em que os efetivos das Forças Armadas estabilizaram em cerca de 65.000 (Marinha, 16.000; Exército, 42.000; Força Aérea, 7.000) e o Orçamento da Defesa, a preços constantes de 1982, cresceu de 140 milhões de contos, 2% do PIB, em 1982, para 170 milhões de contos, 1,7% do PIB, em 1990, com um aumento significativo, em 1986, com a aprovação da Lei da Programação Militar[9]. A reorganização da defesa e das Forças Armadas passou pelas seguintes áreas:
– Adoção de um conceito abrangente de defesa nacional, materializado pelo Conceito Estratégico da Defesa Nacional (a definição dos aspetos fundamentais da estratégia global do Estado adotada para a consecução dos objetivos da política da defesa nacional);
– Materialização, progressiva, do controlo civil sobre as Forças Armadas;
– Manutenção de uma certa autonomia das Forças Armadas quanto à sua organização, com o CEMGFA e o Conselho de Chefes de Estado-Maior a assumirem maior intervenção na definição de um conceito estratégico militar, de um Sistema de Forças Nacional permanente e nomeação dos seus comandos;
– Maior internacionalização das Forças Armadas, na frequência de Cursos no estrangeiro e na presença em Quartéis-generais internacionais;
– Uma lenta, e nem sempre contínua, modernização das Forças Armadas nos seus equipamentos e armamentos.
O primeiro Conceito Estratégico de Defesa Nacional foi aprovado em fevereiro de 1985, mostrando-se, desde então, com as suas revisões, um documento controverso, mais pendendo para a segurança do que para a defesa, de utilidade duvidosa face à ausência de um Conceito Estratégico Nacional, sujeito ao primado da política de defesa nacional do governo, aprovada pela Assembleia da República, e pouco seguido por departamentos do estado a quem o conceito comete responsabilidades na defesa. Basta pensar nas vias de comunicação e infraestruturas construídas, desde então, sem qualquer atenção às implicações para a estratégia da defesa. Ou aos programas do ministério da educação e a ausência de qualquer componente de “educação para a defesa”. A sua elaboração e aprovação, da responsabilidade do governo, com as suas grandes opções só sujeitas a debate na Assembleia da República, pressupondo a interferência por audição do Conselho de Chefes de Estado-Maior e do Conselho Superior da Defesa Nacional (CSDN), dão-lhe pouco carácter vinculativo pela Nação e uma vigência temporal (duração do governo) que não é compatível com uma “visão estratégica”. No final, nem sempre constituiu uma orientação fundamentada para um Conceito Estratégico Militar.
A materialização do controlo civil sobre as Forças Armadas vai processar-se em três áreas (a utilização da força, a organização e administração da força e a nomeação das chefias militares e de alguns cargos), pressupondo uma repartição de responsabilidades entre o Presidente da República (que é Comandante Supremo das Forças Armadas e preside ao Conselho Superior da Defesa Nacional), a Assembleia da República e o Governo, com o seu Ministro da Defesa Nacional.
Segundo a Lei (que recebeu críticas por englobar conceitos de defesa e funcionamento das Forças Armadas), a atuação das Forças Armadas “desenvolve-se no respeito pela Constituição e pelas leis em vigor, em execução da política de defesa nacional definida e do conceito estratégico de defesa nacional aprovado, e por forma a corresponder às normas e orientações estabelecidas nos níveis seguintes: a) Conceito estratégico militar; b) Missões das Forças Armadas; c) Sistema de forças; d) Dispositivo. Em todos estes níveis intervém o Conselho de Chefes de Estado-Maior com propostas (conselho militar), o Ministro da Defesa Nacional (direção política) que confirma as propostas ou aprova (no caso do dispositivo) e o CSDN (Presidente da República, governo central, governos regionais, representação militar e representação da Assembleia da República) que confirma propostas do Ministro da Defesa Nacional.
A organização e administração da força foram sendo assumidas, lentamente e com resistências militares, pelo Ministério da Defesa Nacional, “o departamento governativo da administração central ao qual incumbe preparar e organizar a política de defesa nacional”. As Forças Armadas inseriram-se na administração direta do Estado, através do Ministério da Defesa Nacional, que passa a ter na sua dependência o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, os Chefes dos Estados-Maiores dos ramos e outras entidades. A Lei, ao não incluir os ramos das Forças Armadas no Ministério, estabelece uma distinção importante entre a direção política (e o conselho militar a essa direção, incluindo os chefes militares) e a linha de comando da exclusividade das chefias militares (ao Ministro da Defesa Nacional não foi atribuída competência disciplinar).
A Lei, querendo também definir restrições às atividades dos militares, estabeleceu normas relativas aos seus direitos (artº 31º) e ao estatuto da condição militar (artº 27º), abrindo o caminho para um debate de aproveitamento por forças políticas, para o associativismo militar e para interpretações da condição militar, com dificuldades na sua regulamentação. Começou a instalar-se uma certa ideia de “funcionalismo militar” desvirtuando o seu estatuto institucional.
A administração das Forças Armadas e os aspetos significativos dessa atividade (orçamento, armamento e equipamento e outras) que mereciam harmonização entre a direção política e o comando foi remetida para um órgão próprio, o Conselho Superior Militar, que juntava a direção política e os comandos militares. O Ministério passou a integrar alguns órgãos, como a Direção Nacional de Armamento e a Autoridade Nacional de Segurança e o EMGFA, consolidando a sua estrutura em Divisões, passou, temporariamente, a centralizar as Informações na Divisão de Informações até à aprovação de legislação sobre o Serviço de Informações e Segurança. Entre Ministério da Defesa, Estado-Maior General das Forças Armadas e Estados-Maiores dos ramos começou a surgir uma sobreposição de funções, com fronteiras mal definidas, na administração de pessoal e de infraestruturas.
A nomeação das chefias militares passa a ser da competência do Presidente da República, sob proposta do governo, assim como a nomeação do Presidente do Supremo Tribunal Militar, de comandantes-chefes e dos comandantes ou representantes militares junto da organização de qualquer aliança de que Portugal seja membro, bem como comandante de brigada ou divisão destinada ao cumprimento de missões naquele quadro, passando pela aprovação de propostas pelo CSDN por iniciativa do CEMGFA. Como se depreende, há pouca interferência da Assembleia da República nas nomeações das chefias militares, ao contrário do que acontece noutros regimes democráticos (ainda que haja representação parlamentar no Conselho Superior da Defesa Nacional por onde passam aquelas nomeações).
No controlo civil sobre os militares, os Chefes de Estado-Maior dos ramos, agora como verdadeiros comandantes dos seus ramos, ainda que mantendo a designação tradicional de Chefes de Estado-Maior, mantêm uma certa autonomia na sua administração, regulando as promoções até coronel ou capitão de mar-e-guerra e propondo a Conselho de Chefes de Estado-Maior, depois de ouvidos os seus conselhos superiores, as promoções a oficial general. Tentando preservar-se esta autonomia do comando, a possibilidade de recurso para o “tribunal competente” dos atos definitivos e executórios que decidam da não promoção de um militar a qualquer posto veio restringir esta autonomia. Legislação promulgada em 1983 permitiu readmitir e reconstituir carreiras a militares dos Quadros Permanentes que tinham sido afastados do serviço ativo pelo Conselho de Revolução. Medida com especial incidência no Exército, quando assumiu as funções de Chefe do Estado-Maior o General Salazar Braga, traduziu-se numa certa pacificação e motivação no ramo.
Aspeto importante deste grau de autonomia passava pela nomeação das chefias militares. Ainda que a proposta de nomeação para o Presidente da República fosse do governo, o Conselho de Chefes de Estado-Maior fazia a sua proposta ao governo em listas de três nomes aprovada pelo conselho superior do ramo. Grau e autonomia que o tempo vai alterar.
O Chefe de Estado-Maior General e Chefes dos ramos possuíam também competências próprias quanto ao recrutamento de efetivos, planos de armamento e equipamento e de autorização de despesas, que podiam subdelegar na sua cadeia de comando.
A nova legislação, na sequência do conceito estratégico de defesa nacional aprovado, pressupunha a definição de um conceito estratégico militar, das missões específicas das Forças Armadas, de um sistema de forças e de um dispositivo. Na sua definição materializava-se a autonomia das chefias militares, traduzida em propostas (conselho militar independente). A definição de um sistema de forças, materializando o conceito de uma força militar permanente para a Nação, tornava-se importante para a elaboração de uma lei da programação militar, que iria materializar um investimento na modernização da força militar.
Havia diferentes conceções dos ramos sobre esse sistema de forças (com a Marinha e a Força Aérea a apostarem num conceito de defesa avançada do território nacional, materializada pela defesa coletiva da Aliança Atlântica e ênfase no espaço interterritorial, e o Exército a enfatizar a defesa territorial do espaço continental e dos arquipélagos, contribuindo para a defesa avançada com uma grande unidade). Estas diferenças traduziram-se em missões específicas para as Forças Armadas e um sistema de forças muito influenciados por visões corporativas dos ramos. Marinha e Força Aérea apostaram no espaço interterritorial, na contribuição de forças para a defesa coletiva e em missões de interesse público, atribuindo todas as suas forças à estrutura militar integrada da OTAN, e o Exército fixou-se na defesa territorial, tentando levantar um Corpo de Exército com três brigadas de defesa territorial (com base nas Regiões Militares, e a completar por mobilização), dois agrupamentos de defesa territorial nos arquipélagos dos Açores e Madeira (nenhuma destas forças estava cometida à estrutura militar integrada da OTAN) e com a Brigada Mista Independente a contribuir para a defesa avançada na Europa, no âmbito do Comando Regional do Sul (AFSOUTH). No final da década, o Exército empenha-se no levantamento de uma nova Brigada: a Brigada de Forças Especiais, com base em tropas “comando” e de forças especiais do Centro de Lamego, que materializava o conceito de “intervenção rápida”. O Comando Administrativo Logístico (CAL) materializava o apoio à força, com efetivos que atingiam 1,6 dos efetivos da força (uma proporção que noutros exércitos chegava a tingir os 2,5). Em setembro de 1986, o CSDN aprovou as Missões das Forças Armadas, as suas missões específicas, incluindo as de interesse público previstas na Lei da Defesa Nacional.
Nas diferentes conceções que estiveram em discussão começaram a ser evidentes as diferenças entre manejar armamentos e equipamentos e armar e equipar homens, que se traduzia nos diferentes efetivos entre os ramos, como sempre se tinha evidenciado na evolução do pensamento militar, nem sempre assim sentida pela Marinha e Força Aérea que reclamavam a “hegemonia do Exército”. Uma nova Lei do Serviço Militar, aprovada em julho de 1987, vai abrir o caminho para o debate sobre o serviço militar obrigatório, o serviço militar feminino, o conceito de convocação e mobilização e a materialização do conceito de defesa territorial e resistência.
Terminados os compromissos de Portugal com a defesa do seu Ultramar, as Forças Armadas voltam-se para a Aliança Atlântica. A Marinha, já que se localizava em Portugal o IBERLANT, um comando de área com responsabilidades aeronavais na cadeia de comando do SACLANT, tinha mantido sempre os seus contatos com a Aliança, em matéria de procedimentos, comunicações e alguns exercícios, o que não acontecia com o Exército e com a Força Aérea, muito envolvidos em pessoal e meios nas campanhas de África.
Há pois um esforço grande das Forças Armadas no retomar desta ligação com a Aliança Atlântica, na doutrina, procedimentos, ensino e treino. Aumentou-se a presença militar nos Quartéis-generais da Aliança, no Colégio de Defesa e nas escolas de especialidade e melhorou-se a participação em exercícios e forças. Todo esse esforço traduziu-se num maior profissionalismo dos Quadros, na melhoria da sua qualificação linguística no inglês e no espírito democrático dos militares. Com experiência recente de campanhas, a presença de Quadros portugueses na Aliança foi reconhecida por aliados e amigos como valiosa e prestigiante.
A modernização das Forças Armadas, em equipamentos e armamentos, continua com a promulgação da Lei nº 1/85 (Lei-Quadro das Leis de Programação Militar), de 23 de janeiro. Com suportes financeiros dos EUA, Alemanha e do Orçamento do Estado Português, os primeiros programas incidem sobre programas de defesa antiaérea (Exército), Fragatas Meko e comunicações (Marinha) e aviões P-3 Orion e completamento da esquadra A-7 P (Força Aérea). Começa aqui uma história de esperanças e frustrações, que as dificuldades económicas e financeiras da Nação, a que se juntam sucessivas indefinições da política e visões corporativas dos ramos das Forças Armadas, conduziram ao estado atual de obsolescência de alguns armamentos e equipamentos e faltas de munições que não permitirão, em caso de emprego, poder combater dez minutos no ar, uma hora no mar ou um dia em terra. A história completa pode ser encontrada em inúmeros alertas e trabalhos de valor que têm sido publicados[10].
A Revisão Constitucional de 1989 apenas produziu duas alterações substantivas em matéria de defesa nacional: uma, resultante da introdução do conceito de lei orgânica associada às matérias de organização da defesa nacional e das bases gerais da organização, do funcionamento e da disciplina nas Forças Armadas; outra, da exclusão do referendo das matérias relativas, entre outros aspetos, à organização da defesa nacional e das Forças Armadas e nos regimes de estado de sítio e estado de emergência[11].
No final deste período, o governo (com Cavaco Silva como Primeiro-ministro) pressionava as Forças Armadas para se modernizarem. Deveriam alcançar a reestruturação, a racionalização e o redimensionamento. Eram os famosos “três erres”, que se traduziam em “reduzir”, a que o Chefe do Estado-Maior do Exército (general Firmino Miguel) respondia com outro “erre”: resistir.
A década dos anos noventa do século passado começa com um ambiente estratégico no mundo euro-atlântico influenciado pelo primeiro final da guerra fria (tendo como consequências imediatas a fragmentação da URSS em vária repúblicas independentes e o desmantelamento do Pacto de Varsóvia), a intervenção de uma coligação de forças, sob o comando dos EUA e a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, na libertação do território do Kuwait ocupado por forças do Iraque do regime de Saddam Hussein e o conflito na Europa entre repúblicas que resultaram da fragmentação da ex-Jugoslávia. Estes acontecimentos vão ter grande influência sobre o pensamento militar dominante à época. O emprego da força convencional, desaparecida a ameaça imediata à integridade da Europa, é alterada pelas relações internacionais agora centradas no unipolarismo dos EUA e pelo novo protagonismo das Nações Unidas na sua missão de regular a paz global, abrindo o caminho para outras missões da força para além da guerra. A organização da força, depois da experiência no Iraque, passa a ser orientada pelos conceitos de “expedicionária”, “conjunta” e “tecnológica”.
Alianças e nações revêm os seus conceitos estratégicos e iniciam um processo de reformulação dos seus sistemas de forças, dando mais ênfase às “capacidades militares da força” e à força conjunta do que aos efetivos. Ao mesmo tempo que se reduzem efetivos, se diminuem orçamentos e os investimentos na defesa, na Europa, onde algumas nações decidem prosseguir o conceito iniciado com as Comunidades Europeias para uma União, paradoxalmente, renasce a União Europeia Ocidental (UEO), procurando dotar a Europa com capacidades militares que o recente conflito na ex-Jugoslávia tinha evidenciado como inadequadas e insuficientes.
Em Portugal, a década vai ser de um aprofundamento da democracia, de uma economia mais dinâmica agora influenciada pela adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE) e uma política fiscal e orçamental a preparar o País para a adesão à União Monetária.
Em julho de 1991, o CSDN aprovou o sistema de forças nacional, designado de médio prazo, que não visava satisfazer em unidades e meios as necessidades das Forças Armadas para o cumprimento das missões definidas, mas quantitativos e meios a alcançar durante a vigência da 2ª Lei da Programação Militar que acabou por ser fixada para o período de 1993 a 1997.
Em agosto, é promulgada a Lei nº111/91 (Lei Orgânica das Bases da Organização das Forças Armadas – LOBOFA) que vai introduzir alterações à Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas, com reflexos num reforço de competências do Ministro da Defesa Nacional, regulamentação de componentes não militares da defesa, perda de autonomia das chefias dos ramos (quanto ao recrutamento, às infraestruturas e elaboração de planos de armamento e equipamento) e clarificação das competências do CEMGFA. Estabeleceu que o sistema de forças nacional seria constituído por uma componente operacional e uma componente fixa ou territorial.
No quadro dos objetivos fixados pelo XII governo constitucional e na LOBOFA, no ano de 1993 (fevereiro), foi promulgada legislação que estabeleceu a organização do MDN, do EMGFA e dos ramos (Leis Orgânicas) que reforça as atribuições e competências do Ministro da Defesa Nacional na elaboração e execução da componente militar da defesa nacional e estabelece uma estrutura superior idêntica para os três ramos das Forças Armadas, esquecendo que cada um tem especifidades históricas próprias. Em março foi promulgada, pelo Ministro da Defesa Nacional, a Diretiva Ministerial de Planeamento Militar (DMPM) que institui, pela primeira vez, em Portugal, um ciclo bienal de planeamento de forças, tentando adaptar-se ao ciclo de planeamento de forças da OTAN e que iria conduzir à definição de objetivos de forças, num método de planeamento e de intervenção político-militar no ciclo da decisão semelhante ao adotado na Aliança Atlântica. Esta Diretiva procurava também responder ao preceituado na LDNFA, que, no seu artº 44º, define como “competência do Ministro da Defesa Nacional a responsabilidade política pela elaboração e execução da componente militar da política de defesa nacional e pela administração das Forças Armadas e preparação dos meios militares e resultados do seu emprego” e que, no seu artº 26º, determina “que a previsão das despesas militares a efetuar pelo Estado no reequipamento das Forças Armadas e nas infraestruturas de defesa deve ser objeto de planeamento a médio prazo, nos termos definidos na Lei nº1/85 (Lei-Quadro da Lei da Programação Militar)”.
Em 1993, a par de alguns milhares de pessoal civil em crescente declínio, os efetivos de militares nas Forças Armadas, com a nova Lei do Serviço Militar a estabelecer, além dos Quadros Permanentes (QP), o Serviço Efetivo Normal (SEN, contingente anual) e o serviço nos regimes de voluntariado (RV) ou de contrato (RC), totalizavam 50.087 (Marinha: 13.092, com 9.769 no QP, 2508 RV/RC e 815 SEN; Exército: 24.204, com 6.957 no QP, 6.750 RV/RC e 10.697 SEN; Força Aérea: 12.791, com 4.832 no QP, 4.550 RV/RC, 3.409 SEN). Situação que se iria alterar no início de 1994, entre Exército e Força Aérea, quando o Regimento de Para-quedistas, fazendo parte deste Ramo, passa para o Exército ficando a constituir o Corpo de Tropas Aerotransportadas que vai contribuir para o sistema de forças com a Brigada Aerotransportada Independente.
O Orçamento da Defesa passa a integrar verbas atribuídas à Lei de Programação Militar e verbas do Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central (PIDDAC), destinados a alguns programas de infraestruturas e investigação e desenvolvimento. Em 1993, o Orçamento da Defesa, a preços correntes, era de 229,4 milhões de contos (a preços constantes de 1987 tinha descido de 120,7 milhões de contos para 115,9 milhões) e representava 1,9% do PIB e 4,6% da despesa pública (em 1987, os valores respetivos eram de 2,3% e 6,9%). A análise do Orçamento de 1993 na sua estrutura das despesas mostra que 206,7 milhões de contos (90,8%) se destinavam a despesas com pessoal e operação e manutenção e 22,6 milhões de contos (9,2%) a despesas de investimento[12].
Um conjunto de incentivos (Lei dos Coronéis) leva algumas centenas de Quadros das Forças Armadas a abandonarem o serviço ativo. O sistema de forças vai-se consolidado ao mesmo tempo que o dispositivo se vai racionalizando. O Exército, sob a chefia do General Cerqueira Rocha, vai modificar a sua estrutura operacional e territorial. Como muito importante elimina-se “a cintura explosiva em volta de Lisboa”, substituindo o Depósito Geral de Material de Guerra, em Beirolas, que se transfere para Alcochete-Benavente em instalações modernas, e alienando as suas dependências de depósitos de munições. Ao mesmo tempo que um conjunto de unidades dispersas no Continente e Arquipélagos são encerradas, Santa Margarida e Tancos afirmam-se como as localizações, com peso na racionalidade estratégica, para a Brigada Mecanizada Independente, que sucedia à Brigada Mista, e para a Brigada Aerotransportada. A Marinha aliena as suas instalações do 2º Grupo de Escolas em Vila Franca de Xira que transfere para o Alfeite. A Força Aérea ativa a Base de Beja, abandonada pela Força Aérea Alemã e reforça a operação em Cortegaça.
A 2ª Lei de Programação Militar, para vigorar entre 1993 e 1997, previa um investimento no período de 158.318 milhares de contos (45.008 para a Marinha, 58.061 para o Exército e 47.523 para a Força Aérea) e contemplava, além de um programa para uma arma ligeira individual para todos os ramos, programas como a aquisição de cinco helicópteros para a Marinha, o início do levantamento do Grupo de Aviação Ligeira para o Exército e a aquisição de aviões F-16 (20) para a Força Aérea. Programação que foi interrompida, com prejuízo para os programas do Exército (em cerca de 28 milhões de contos), por necessidades financeiras da nação para se preparar para a adesão à moeda única europeia.
Aspetos importantes sobre a Defesa Nacional e Forças Armadas decorridos na década relacionam-se com a definição de um Conceito Estratégico de Defesa Nacional e documentação consequente, desenvolvimentos nas relações civis-militares no Estado, adaptação a novos desenvolvimentos na OTAN e UE, internacionalização das Forças Armadas, intensificação da cooperação técnico-militar com antigas colónias e movimentações para terminar com o serviço militar como dever e adotar o serviço militar por contrato (com abertura a pessoal feminino).
Face às alterações no ambiente estratégico internacional, refletido no conceito estratégico da Aliança Atlântica, de 1991, nas suas estruturas de comando e de forças, e nos novos desenvolvimentos de uma componente militar da UE, em fevereiro de 1994, o governo aprovou novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional. Era um documento aberto (público), não contemplava a definição e tipificação de ameaças e era também vago quanto às ações do estado que contribuíam para defesa, prazos e ritmo, contrastando com o pormenor e orientações no plano militar.
Na sequência deste documento, o EMGFA elaborou uma proposta de Conceito Estratégico Militar (CEM), em julho de 1994, que, embora aprovada pelo Ministro da Defesa Nacional, passado um ano (1995), não foi confirmado pelo Conselho Superior de Defesa Nacional. Nesse mesmo ano, a Lei nº 18/95, de 13 julho, alterou a LDNFA e a LOBOFA. O governo reforçou as suas competências em relação às nomeações para as chefias militares e altos cargos (Supremo Tribunal Militar e Comandantes-Chefes). Com esta lei os militares deixaram de participar ativamente na escolha das suas próprias chefias. A indigitação de identidades para a futura escolha pelo governo foi substituída pela seleção, por este, de entre os que reuniam condições para o desempenho do cargo, de um candidato, submetido a parecer do Conselho de Chefes de Estado-Maior, antes da apresentação formal ao Presidente da República.
Em abril de 1997, é difundida a Diretiva Ministerial de Defesa Militar (DMDM, que já não é de guia para o planeamento mas de execução, retirando autonomia ao Conselho de Chefes de Estado-Maior). Reconhecendo que a revisão do CEDN deveria ocorrer, preferencialmente, no início de 1998, face às condicionantes externas (Conferência Intergovernamental, alargamento da OTAN, reestruturação dos seus comandos e reavaliação do papel da UEO) e ao normal curso da reforma interna (revisão constitucional e apresentação das “grandes opções” pelo governo à Assembleia da República), determina a reavaliação do CEM de 1995 não confirmado pelo CSDN, ponderando a eventual necessidade de modificar conceitos de emprego e constituição das forças à luz das grandes enquadrantes externas e internas.
Dos trabalhos da revisão constitucional de 1997 resultaram alterações para a defesa nacional. A AR passou a dispor de competência para acompanhar o envolvimento de contingentes militares no estrangeiro e adquiriu competência legislativa sobre as bases gerais de reequipamento das Forças Armadas. O CSDN passou a prever a inclusão de membros eleitos da AR. Às Forças Armadas foram cometidas explicitamente duas novas missões: a participação em operações de paz e humanitárias, bem como a cooperação técnico-militar, que materializam o apoio concreto à política externa do Estado.
Em janeiro de 1998, o CSDN confirmou o CEM, com estrutura idêntica ao de 1995, enfatizando o emprego conjunto da força e mantendo o conceito de mobilização. Na mesma sessão foram aprovadas as Missões Específicas das Forças Armadas e o Sistema de Forças Nacional e o dispositivo aprovado, pouco tempo depois, pelo MDN. Toda esta legislação foi considerada transitória e intercalar, devido à revisão do CEDN, que será dominada pela desconstitucionalização da natureza obrigatória do serviço militar, o que vem a acontecer com a Lei Orgânica nº 3/99, de 18 de setembro, e com a Lei nº 174/99, de 21 de setembro (Lei do Serviço Militar em tempo de paz).
A Lei nº 46/98, de 7 de agosto, altera a Lei-quadro da Programação Militar e a Lei nº 50/98, de 17 de agosto, aprovou os programas de investimento público no âmbito das Forças Armadas, relativos ao período de 1998-2003, que totalizariam 215, 5 milhões de contos (Serviços Centrais do MDN: 11,45 milhões; EMGFA: 9,01 milhões; Marinha: 68,628 milhões; Exército: 56,824 milhões; Força Aérea: 69,518 milhões), com 198 milhões (94%) destinado à melhoria do Sistema de Forças. Previa ainda um investimento de 263,731 milhões de contos em anos futuros (até 2010).
A década, com as suas grandes alterações geoestratégicas, vai traduzir-se em adaptações das organizações internacionais a novos conceitos de prevenção e resolução de conflitos, com relevo para a ONU, e com maior participação de organizações regionais de segurança e de defesa com aquela organização. No mundo euro-atlântico, a OTAN e a UE, a partir de 1993, vão assumir novo protagonismo nessa participação, o que vai influenciar as políticas de defesa nacional dos estados membros e as suas forças armadas.
A ONU, por iniciativa do seu Secretário-geral, publica, em 1992, A Agenda para a Paz-Diplomacia Preventiva, Construir a Paz e Manter a Paz, documento que passa a ser um guia de orientação para as operações de apoio à paz ou humanitárias a cargo da Organização e que vai dar importância acrescida ao seu Departamento responsável pelo planeamento e monotorização daquelas operações.
A OTAN, na sua Cimeira de Roma, em novembro de 1991, aprova um novo Conceito Estratégico para a Aliança, que vigora até à Cimeira de Washington (em abril de 1999), onde novo Conceito é aprovado. Estes novos conceitos, sem alterar os fundamentos da Aliança, vão adotar conceitos alargados de segurança e de maior número de estados membros, dar relevo a formas de diálogo e cooperação e a materializar-se em estruturas de comando e de forças mais adaptados ao novo ambiente estratégico regional. A Aliança vai envolver-se em operações fora da sua área de responsabilidade sem abandonar a sua missão fundamental de defesa coletiva.
A UE, formalmente constituída pelo Tratado de Maastricht, em 1993, decidiu fixar, na reunião do Conselho Europeu, em Helsínquia, em dezembro de 1999, um objetivo para a sua capacidade militar em 2003 (Força de Reação Rápida Europeia), ao mesmo tempo que vinha estabelecendo estruturas militares para planeamento e coordenação das suas atividades militares com a implementação progressiva do seu Comité Militar, desde o ano de constituição da União.
Sem estatuto para aplicar medidas coercivas, a Organização de Cooperação e Segurança Europeia (OSCE) incrementou as suas ações no âmbito da monitorização da segurança, em áreas como a estabilidade, direitos humanos e das minorias, controlo de armamentos, implementação da democracia, ambiente e economia.
As Forças Armadas Portuguesas, com uma sólida experiência nacional em operações de contrainsurreição, não possuíam experiência internacional em operações de apoio à paz. Tinham participado em missões de observação das Nações Unidas, no Líbano (UNOGIL, 1958) e depois do final da guerra fria em missões do mesmo tipo na Namíbia (UNTAG, 1989-90), em Moçambique (COMIVE, 1990-92), em Angola (1991), na ex-Jugoslávia (ECMM, 1991-2000), Mar Adriático (1992-95), Bósnia-Herzegovina (1992-95).
O primeiro desafio para participar numa força em operações de apoio à paz surgiu em abril de 1993, quando o Batalhão de Transmissões nº4 (281 efetivos do Exército) integrou a missão da ONUMOZ, em Moçambique. A essa, seguiram-se outras missões integrando os três ramos das Forças Armadas, com efetivos e meios diversificados, no âmbito da ONU, OTAN, EU, ou só nacionais, na Bósnia-Herzegovina, Croácia, Macedónia, Sara Ocidental, Angola, Kosovo, República Democrática do Congo, Guiné Bissau e Timor Leste. A par destas missões, unilateralmente, ou no âmbito da ONU, e das suas agências, foram executadas diversas missões humanitárias.
Constituindo desafio e incentivo para as Forças Armadas e a sua operacionalidade, o Sistema de Forças Nacional respondeu às várias solicitações, sempre negociadas na base do interesse nacional e na visibilidade, segurança e prestígio das Forças Armadas perante os seus pares e a opinião pública nacional.
Esse Sistema de Forças tinha decrescido em efetivos, desde 1995 (57.325) até 1998 (47.000), materializando uma redução de 17,5% em 3 anos. Compreendia uma componente fixa ou territorial que funcionava com 50% do total dos efetivos em serviço e uma componente operacional que compreendia, genericamente, os seguintes meios. Na Marinha, 45 navios de superfície, 3 submarinos, 5 helicópteros, 1 Batalhão de Fuzileiros e 1 Destacamento de Ações Especiais. No Exército, 3 Brigadas (Mecanizada, Aerotransportada e de Intervenção), 2 Agrupamentos de Defesa Territorial (Madeira e Açores), 1 Grupo de Reconhecimento (Força de cobertura), 2 Companhias de Operações Especiais e Unidades de Apoio de Combate e de Apoio de Serviços. Na Força Aérea, 145 aeronaves (defesa aérea, ataque ao solo, transporte, vigilância marítima, busca e salvamento, treino). Nalguns casos, a obsolescência ou não adequação de alguns equipamentos para as missões foi superada “com engenho e arte”.
A execução das Leis de Programação Militar, sujeita a incumprimentos, atrasos e reajustamentos orçamentais, não foi exemplar, na década. Dos 388,9 milhões de contos dotados para os vários programas, foram executados 158,2 milhões de contos (cerca de 40%)[13]. Isso tem-se traduzido em taxas de regeneração de alguns materiais inadequadas à sua operacionalidade, obsolescência de outros e falta de preparação de “reservas de guerra” que materializem a capacidade da força para o combate sustentado.
No final da década, em 1999, o General CEMGFA apresentou ao MDN uma proposta para modernização das Forças Armadas[14], com os seguintes Programas a desenvolver até 2010:
– Dotar as Forças Armadas com um edifício legislativo coerente e integrador;
– Rever o Sistema de Forças Nacional de modo a dotar a Nação com uma força militar permanente; efetivos a atingir: 18.500 QP, 23.500 RC;
– Continuar o esforço de internacionalização das Forças Armadas;
– Reforçar a cooperação técnico-militar no seio da CPLP;
– Empenhar cada vez mais as Forças Armadas em missões de interesse público, sem prejuízo do treino e capacidades próprias;
– Corrigir o Orçamento da Defesa Nacional, atingindo-se em 2003 1,8% do PIB (iniciar desde já estudos para definir o ODN a partir da base 0);
– Dignificar e prestigiar as Forças Armadas (regulamentar o Estatuto do Pessoal Civil, rever os Princípios da Disciplina, rever o Ensino Militar, melhorar infraestruturas, melhorar o apoio social a militares e famílias, continuar a rever o sistema remuneratório dos militares).
Até outubro do ano de 2000, ano em que o CEMGFA abandonou funções, não houve resposta da decisão política àquelas propostas.
No mesmo ano de 1999, uma sondagem à opinião pública conduzida pelos Professores Luís Salgado de Matos e Mário Bacalhau, contém dados relevantes e de interesse para avaliar como os portugueses sentiam a defesa, as Forças Armadas e as suas missões, e o Serviço Militar nas vésperas do século XXI[15]. Focando-nos em dois dados da sondagem – as missões das Forças Armadas e o serviço militar obrigatório –, vale a pena recordar os dados recolhidos. Quanto às missões das Forças Armadas, na sua importância (escala 1 a 10) para a opinião pública, a proteção civil mereceu o maior grau (8,23), seguida da melhoria das condições de vida (8,11), missões internacionais de paz (6,99) e combate ao inimigo externo (6,76). A obrigatoriedade do serviço militar só começou a ser contestada em Portugal a partir dos anos 1980 e sobretudo por organizações de juventude, em particular as partidárias. Nos anos 1980, mantinha-se uma maioria favorável à obrigatoriedade; depois, o regime de voluntariado ganhou alguma vantagem, de início pequena. Até, pelo menos 1994, os portugueses estavam divididos, quase meio por meio, entre a manutenção do serviço militar e o voluntariado como base de recrutamento para as Forças Armadas. Terá começado em 1994 uma mudança mais profunda da opinião que, em 1999, é largamente favorável ao voluntariado: passam a defendê-lo quase dois terços dos inquiridos. Um pouco mais de um quarto continua, porém, a querer a manutenção do serviço militar obrigatório.
No final da década, as Forças Armadas de Portugal mantinham um Sistema de Forças adequado às suas missões constitucionais e permaneciam ligadas à Nação através de um dispositivo e de um conceito de recrutamento adaptado aos seus recursos, mas que a Lei Orgânica nº 3/99, de 18 de setembro, iria alterar ao basear o serviço militar, em tempo de paz, no serviço militar voluntário. O controlo civil sobre as Forças Armadas seguia o modelo das democracias liberais, mantendo alguma autonomia ao comando nas suas atribuições de disciplina, justiça e administração de pessoal e de outros recursos. A condição militar, definida em lei da Assembleia da República, ainda não tinha sido regulamentada. Os vencimentos dos militares tinham sido revistos, especialmente no subsídio que traduzia aquela condição militar. A internacionalização das Forças Armadas materializava-se por maior presença junto das estruturas das organizações internacionais (ONU, OTAN, UE), por uma rede mais alargada de Adidos de Defesa junto de embaixadas de Portugal, por um intenso envolvimento na cooperação técnico-militar com Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e S.Tomé e Príncipe, onde equipas de militares portugueses auxiliavam na formação de militares e na implementação dos seus sistemas de ensino militar. Portugal organizou as primeiras reuniões dos Chefes de Estado-Maior dos Países da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP, 1999) e dos Chefes de Estado-Maior dos Países Membros da União Europeia (EU, 2000). Contingentes Militares Portugueses participavam em Missões de Apoio à Paz na Bósnia, Kosovo e Timor Leste, envolvendo cerca de 1.500 efetivos.
Durante a década, os efetivos das Forças Armadas tinham-se mantido numa média de 50.000 homens e mulheres (Marinha 11.000; Exército 32.500; Força Aérea 6.500).
O Orçamento da Defesa, em 1990, e a preços correntes, atingia 188,2 milhões de contos (Ministério da Saúde: 228,1 milhões; Ministério da Educação: 284,6 milhões) o que correspondia a 2,2% do PIB e a 4,6% da Despesa Geral do Estado. No ano 2000, esse orçamento atingia 360 milhões de contos (englobando despesas com investimento de cerca de 28 milhões suportados pela LPM e PIDAAC) correspondendo a 4,32% da despesa do Setor Administrativo e a 1,47% do PIB. Na década, a despesa com a defesa tinha evoluído a um ritmo moderado (3,5%) quando comparado com o crescimento do PIB (5,6%) ou da despesa do Setor Administrativo (12,5%)[16].
O início do milénio marca um novo período de grandes alterações na legislação que enquadra a defesa no regime constitucional português, com consequências nos conceitos que regulam o emprego da força militar e nas normas estatutárias e estruturas das Forças Armadas. Alterações muito influenciadas pelas constantes e imprevisíveis mudanças no ambiente estratégico internacional, mas também pelas condições internas do estado e da sociedade portuguesa.
As grandes e constantes mudanças no ambiente estratégico internacional, que desde então têm ocorrido, podem ter como ponto de partida os ataques terroristas desencadeados por extremistas islâmicos em Nova Iorque e Washington, em 11 de setembro de 2001, a que se seguiram outros em países europeus e outras regiões do globo. O Presidente dos EUA lançou o seu apelo a “uma guerra contra o terror” que serviu de motor e inspiração para as intervenções militares no Afeganistão (2001 até ao presente), no Iraque (2003-2011) e na Líbia (2011). Mas que serviu também para uma quase imediata revisão sobre os conceitos de segurança e de defesa na ordem internacional, da força militar no seu emprego, organização e prontidão, da responsabilidade sobre os atos de guerra (2002, Tribunal Criminal Internacional) e da responsabilidade da comunidade internacional para proteger estados ameaçados.
Revisão em que as organizações internacionais e nações se empenharam desde o início e que continua há mais de uma década, havendo novos dados, trazidos pelos recentes comportamentos da Rússia sobre estados vizinhos ou a formação do Estado Islâmico nas fronteiras da Síria, Iraque e Turquia e que levantam interrogações sobre o estado e a soberania e a norma internacional sobre a Responsabilidade para Proteger.
Em 2004, a ONU, por iniciativa do seu Secretário-Geral, criou um Painel de Alto Nível que apresentou um relatório[17], do qual destacaremos dois pontos: os seis conjuntos de ameaças à segurança internacional no início do século e nas próximas décadas, e os cinco princípios que devem orientar o uso da força militar. Os seis conjuntos de ameaças foram assim descritos: ameaças económicas e sociais, incluindo a pobreza, as doenças infeciosas e a degradação ambiental; conflito entre estados; conflitos internos, incluindo guerras civis, genocídio e outras atrocidades em grande escala; armas nucleares, radiológicas, químicas e biológicas; terrorismo; e o crime organizado transnacional. Os princípios que devem orientar a decisão sobre a utilização da força militar, foram assim enunciados: consistência da ameaça; finalidade pretendida; último recurso; proporcionalidade de meios; avaliação das consequências.
Quanto à Responsabilidade para Proteger, o Secretário-Geral da ONU, em 2009, emitiu o primeiro documento sobre o assunto que foi discutido em Assembleia Geral. Até agora, mais três outros se lhe seguiram e Resoluções do Conselho de Segurança, de acordo com os princípios estabelecidos, permitiram até hoje a utilização da força militar nos seguintes estados: Darfur, Líbia, Costa do Marfim, Iémen, Mali, Sudão e Sudão do Sul, República Centro Africana.
A OTAN, quando celebrou o 50º aniversário, em 1999, na sua cimeira de Washington, definiu um conceito estratégico com cinco tarefas fundamentais para a Aliança continuar a desempenhar a sua missão: segurança; consulta; dissuasão e defesa; gestão de crises; e parcerias. Na sequência do que tinha sido acordado no conceito estratégico de 1991, relativamente ao tradicional entendimento sobre agressão a um estado membro, debruçou-se sobre os riscos “mais alargados”, à segurança coletiva englobando nesses riscos o terrorismo, definindo-o como “uma séria ameaça a paz, segurança e estabilidade que pode afetar a integridade territorial dos estados”. Os ataques terroristas de 11 de setembro, no território dos EUA, levaram os aliados a evocarem, pela primeira vez na história da Aliança, o artº 5º do Tratado do Atlântico Norte.
O envolvimento progressivo da Aliança em missões fora da sua tradicional área de responsabilidade (Europa e depois área Euro-Atlântica), com os consequentes debates sobre se o out of area levava a Aliança a um out of business para que tinha sido criada, culminou com novo conceito estratégico, em 2010 (cimeira de Lisboa), onde ficou acordado que “a finalidade fundamental e duradoura da OTAN é garantir a liberdade e segurança de todos os seus membros por meios políticos e militares. Hoje, a Aliança mantêm-se como uma fonte essencial de estabilidade num mundo imprevisível”. Foram definidas três tarefas fundamentais que contribuiriam para aquela garantia: defesa coletiva; gestão de crises; e segurança cooperativa. Tarefas que foram reafirmadas na Cimeira de Chicago, em 2012.
Desde o final da Guerra Fria que as tarefas mais visíveis da OTAN têm sido a gestão de crises e a segurança cooperativa. A materialização de uma visão sobre a segurança cooperativa começou com o Conselho de Cooperação Norte-Atlântico, em 1991, e a gestão de crises não relacionadas com o artº 5, no ano seguinte, quando a Aliança se empenhou no transporte de assistência humanitária à Rússia e a outras ex-repúblicas soviéticas, monitorizou as rotas aéreas para a Líbia e participou no embargo marítimo e policiamento da zona aérea no conflito na ex-federação da Jugoslávia. Desde então, a OTAN tem empenhado forças para a prevenção e resolução de conflitos nos Balcãs e no Mediterrâneo, no Afeganistão, em África e no Índico. Algumas críticas, por parte de alguns membros, às atividades da Aliança são de que elas não têm sido suficientemente equilibradas, esquecendo a defesa coletiva.
A UE, desde a sua implementação, em 1993, com o Tratado de Maastricht, tem procurado afirmar-se no panorama estratégico global, a par de outras realizações importantes, como o mercado e a moeda única e a livre circulação de pessoas e bens no seu espaço, com uma política externa e de segurança. Um ano depois de, na cimeira de Helsínquia (1999), ter sido acordado que a Europa iria constituir uma força militar de 60.000 efetivos, na cimeira de Colónia, no ano 2000, foi lançada a Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) e, em 2003, foi publicado o primeiro documento sobre a estratégia de segurança da União (documento Solana). Desde então, diferentes perceções sobre segurança e defesa têm-se sobreposto aos acordos. Em fevereiro de 2010, o Conselho Europeu adotou a Estratégia de Segurança Interna, identificando cinco áreas prioritárias de ameaças: redes internacionais de crime organizado; terrorismo; cibersegurança; segurança de fronteiras; e desastres. Na organização e estrutura dos estados membros, alguns ministérios (defesa, administração interna, justiça, ambiente) repartiram entre si as responsabilidades das respostas. Continuou a separar-se aspetos internos e externos da segurança, dificultando a ação, e embora o Conselho da Europa, no final de 2013, ao ser o primeiro Conselho que se debruçou sobre os assuntos de segurança e defesa da Europa ter dado algumas esperanças para futuro, a UE continua a arrastar os pés nesta área importante. Crise económica e financeira, falta de visão estratégica dos dirigentes, opiniões públicas não preparadas para defesa, a continuação da ideia, entre muitos estados membros, de que segurança e defesa é com a OTAN, má cooperação OTAN-EU, auguram que a UE não conseguirá levantar e aprontar os seus battlegroups (que ainda não realizaram um exercício) e que pouco fará para diminuir as suas insuficiências nas capacidades militares de que dispõe e que se vão degradando.
Na procura de soluções políticas para uma maior cooperação entre os estados na área da defesa e segurança, adotaram-se conceitos de smart defense, por parte da OTAN, ou de pool and sharing, por parte da EU, tentando superar deficiências nas capacidades militares próprias.
Todos estes desenvolvimentos têm conduzido a uma crescente e preocupante degradação das forças armadas no mundo euro-atlântico, onde 28 estados se juntam na OTAN e outros tantos na UE, com 22 pertencendo, simultaneamente, às duas organizações. As causas para essa degradação são várias.
Começam pela visão política de dirigentes sobre a situação global atual e a sua perceção sobre o estado e as suas funções, esquecendo os fundamentos do estado-nação e da soberania e privilegiando, para satisfazer opiniões públicas e votos, o estado providência. Como consequência, as despesas com a prontidão das forças armadas têm diminuído dos dois lados do Atlântico. Os EUA gastaram com a defesa, em 2011, 503 mil milhões de euros (4,66% do PIB), enquanto a UE despendeu 193 mil milhões de euros (1,66% do PIB). Dadas as condições que a UE vive económica e financeiramente, estima-se que, até 2017, diminua 12% nos gastos com a defesa. Nos EUA estima-se que essa diminuição, nos próximos dez anos, atinja os 450 biliões de dólares[18]. O reconhecimento deste facto levou a OTAN, na sua Cimeira no País de Gales (Reino Unido), em 4 e 5 de setembro de 2014, a emitir uma Declaração final tentando inverter a situação, criando no seio da NATO Response Force uma Força de Reação Imediata e a aconselhar os estados membros para inverterem a tendência de diminuição da despesa com a defesa procurando que atinja os 2% dos seus PIB.
Importa também considerar como as opiniões públicas percebem as ameaças que podem afetar a sua segurança. Na UE, uma sondagem, conduzida em 2008, mostrou que as três ameaças que os europeus mais temem não são ameaças de natureza militar, mas sim o crime organizado (77%), um acidente numa instalação nuclear (75%) e o terrorismo (74%). Sobre os instrumentos militares e as suas funções, a defesa do país recebe a maioria das opiniões (94%), logo seguida pela opinião de 91%, que pensam que devem ter também missões de auxílio no caso de desastres naturais, ambientais ou nucleares. Com menor peso foram também mencionadas como missões dos militares as operações de apoio à paz (80%) e a defesa de valores tais como a liberdade e a democracia (70%)[19].
O abandono progressivo do serviço militar como dever de cidadania por parte de alguns países europeus, dando voz a crescentes contestações de opiniões públicas e servindo decisões políticas para diminuir despesas públicas consideradas desnecessárias, veio trazer dificuldades na obtenção de recursos humanos, a um maior afastamento dos cidadãos das suas forças armadas e a uma crescente interferência dos executivos nas políticas de efesa com menor responsabilização dos parlamentos.
Os tipos de missões que têm sido cometidas às forças armadas – de apoio à paz, de interesse púbico e humanitárias – têm degradado a prontidão para o desempenho da sua missão principal que é combater. Por outro lado, essas missões, mais de carácter expedicionário e de escolha, têm evidenciado a necessidade de forças conjuntas, agregando capacidades militares específicas dos diferentes ramos das forças armadas, o que tem conduzido a que o “conjunto” seja procurado, desde o tempo de paz, para poupar recursos. Com resultados negativos no espírito de corpo, coesão, motivação e eficiência das forças armadas.
Estas realidades e tendências do ambiente internacional que afetam as políticas de segurança e defesa, desde o início do século, têm influenciado a evolução das mesmas políticas em Portugal, a que se juntam algumas realidades próprias. Realidades próprias que tentaremos sintetizarem em quatro áreas: a defesa nacional e as forças armadas na cultura política; a perceção pública de segurança, defesa e forças armadas; estado, despesa pública e forças armadas; e as progressivas medidas para inserir as Forças Armadas na administração do estado, alterando o equilíbrio de poderes no seu controlo, que passa pelo comando supremo, o parlamento e o executivo.
A cultura política nacional é teorizada e desenvolvida nos partidos políticos e depois materializada pela representação parlamentar. Desde 1976 que o sistema de partidos se carateriza por ser “multipartidário”, polarizado em torno de quatro partidos políticos eleitoralmente relevantes (PS, PPD/PSD, PCP e CDS/PP), a que, em 2005, se vai juntar um quinto, o BE, com destaque para a bipolarização entre o PS (centro-esquerda) e o PSD (centro-direita), os partidos alternativos de poder[20]. Sem divergências programáticas sobre a segurança e a defesa, e acordo quanto à participação de Portugal na OTAN e na UE, a ampla maioria que materializam na Assembleia da República, a que em muitas matérias se junta o CDS/PP em coligações governamentais ou em acordos parlamentares, tem permitido alterações à Constituição e à legislação sobre defesa nacional.
Ainda que os três partidos não divirjam sobre o princípio democrático do “controlo civil” sobre as Forças Armadas, já a sua visão sobre o papel dos militares na sociedade, a condição militar e as suas condicionantes em direitos e deveres, mostra-se por vezes discordante, com o PS mais permissivo aos direitos de associativismo militar e PSD e CDS/PP mais rigorosos no “profissionalismo militar” de não interferência na vida política (história passada e recente dessa interferência, guerra colonial, Conselho da Revolução, são motivos a influenciar essa opinião).
De 1999 até à atualidade (quinze anos), tomaram posse seis Governos Constitucionais (XIV a XIX), com o PS a governar de 1999 a 2002 (XIV), de 2005 a 2009 (XVII) e de 2009 a 2011 (XVIII), e o PSD, em coligação com o CDS/PP, a governar de 2002 a 2004 (XV), em 2004 e 2005 (XVI) e a partir de 2011 (XIX).
Sem um Conceito Estratégico Nacional definido (que materialize um acordo dos Partidos Políticos sobre o destino da Nação, o Estado, a sua organização e as suas funções, como conseguir o desenvolvimento económico que permita uma sociedade mais justa, como vencer os graves problemas quantitativos e qualitativos de uma população em crise) já se alterou por duas vezes um Conceito Estratégico de Defesa Nacional (2003 e 2013), a Lei da Defesa Nacional (2009 e 2013), a Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (2009 e 2013) e outra legislação importante. Que tem conduzido a uma progressiva confusão de conceitos simples (o que é que a Nação deve defender, de quem, quando, como e para quê), das relações civis-militares no estado democrático (confusão entre direção política e comando, a especificidade da condição militar e alguma autonomia dos Chefes de Estado-Maior dos ramos na administração de pessoal e recursos), a diluição de responsabilidades quer da decisão política quer do comando na conceção e direção do emprego da força militar e da sua organização.
Sobre a perceção pública de segurança, defesa e Forças Armadas na sociedade portuguesa teremos de considerar estudos de opinião conduzidos por entidades externas às Forças Armadas.
No estudo de opinião conduzido em 1999 e já referido[21], os portugueses consideravam que era então muito baixo o nível de ameaças externas à sua segurança, prevendo que a situação, em 2009, aumentaria esse nível. Podemos deduzir que a necessidade de Forças Armadas para enfrentar essas ameaças era reduzida, pelo que o Serviço Militar Obrigatório (SMO) deveria ser abolido e substituído por serviço militar voluntário. Nesse ano, a Lei nº174/99, de 21 de setembro, altera a lei do serviço militar vigente, estabelecendo que esse serviço militar compreendia o serviço efetivo, a reserva de recrutamento e a reserva de disponibilidade e que o serviço efetivo compreendia o serviço efetivo nos quadros permanentes, o serviço efetivo em regime de contrato, o serviço efetivo em regime de voluntariado e o serviço efetivo decorrente de convocação ou mobilização. Cerca de 25% dos portugueses consideravam o SMO necessário quando os efetivos de voluntários e contratados não satisfizessem as necessidades da força militar da Nação. Estabelecia um regime de transição e em 2004 terminou o SMO.
No início do século, as ameaças que mais preocupavam os portugueses quanto à sua segurança passaram a contemplar o terrorismo (preocupação reforçada com os acontecimentos de 11 de setembro de 2001), os desastres naturais, as epidemias e o crime organizado. Foram consideradas (com opiniões diversas) ameaças que não caíam no conceito de ameaça externa, cuja responsabilidade primária para as enfrentar, dada as suas caraterísticas “policiais”, recaía noutros ministérios que não o Ministério da Defesa (Administração Interna, Justiça, Saúde, Economia). Cresceram os serviços de segurança (de fronteiras, de atividades económicas, prisionais), cresceram efetivos armados das Forças de Segurança e outros, e a direção e coordenação que poderiam ser feitas através de uma lei de Segurança Nacional e de um Conselho Nacional de Segurança foram esquecidas. Foi antes aprovada uma nova Lei de Segurança Interna (Lei nº 53/2008, de 29 e agosto), continuando a insistir-se na divisão entre ameaças internas e externas (por complexos políticos do passado), levando a opinião pública a esquecer que a defesa é o último patamar para conseguir segurança.
O resultado desta confusão de conceitos, materializada em legislação não coerente e desigual atribuição de recursos para a segurança ou para a defesa, traduz-se numa crescente falta de educação e de espírito para a defesa na população portuguesa.
Para que servem as Forças Armadas e que Forças Armadas deve ter a Nação é uma questão que muitos portugueses formulam, mas a que a direção política não tem dado resposta qualificada, que resulte de um debate consistente na Assembleia da República. Em tempos de mudanças de ameaças seria bom que a resposta política não fosse justificar as Forças Armadas da Nação pelas missões externas ou de interesse público. Bastaria afirmar e ensinar, que “as Forças Armadas servem para um combate entre meios aéreos que dura quatro segundos, entre meios navais que não passa de vinte minutos e entre Divisões que não vão para além das setenta e duas horas. Fique claro: as Forças Armadas servem para os quatro segundos, os vinte minutos e as setenta e duas horas. É para estes ciclos de tempo que têm que ter, a cada momento, Prontidão”[22].
Concluindo com alguns dados quantitativos de um estudo de opinião conduzido pelo Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em 2009, constata-se que[23]: 83,2 % dos portugueses entendem que as Forças Armadas são necessárias e 82,6% entendem que elas são importantes para a defesa nacional; de entre 13 instituições nacionais, as Forças Armadas são aquela em que mais portugueses (6,98 em 10) têm mais confiança; quanto às missões das Forças Armadas, a defesa do território nacional em caso de agressão ou ameaça externa é a que recebe o maior apoio dos portugueses (8,47 em 10).
Estado, despesa pública e Forças Armadas é outro fator que muito tem influenciado as transformações na força militar da Nação. A um debate que hoje atravessa as sociedades sobre o Estado e as suas funções, onde visões mais conservadoras ou mais liberais traduzem algum confronto entre diferentes ideologias políticas, junta-se a questão sobre o que o estado deve e pode gastar e onde gastar da riqueza produzida nessas sociedades. Há quem fale de uma quarta revolução, na sequência das principais ocorridas até agora na sociedade global, que visa definir o estado do futuro[24].
De acordo com dados do Banco Central Europeu, a despesa pública, agregada por cinco funções do estado – Redistribuição (proteção social), Bens públicos puros (defesa, segurança e ordem publica), Saúde e Educação, Serviços Públicos gerais (serviços gerais da administração pública) e Atividades primárias (assuntos económicos, proteção do ambiente, habitação e equipamentos coletivos, recreação, cultura e religião) –, em 2009, representava cerca de 50% do PIB quer na UE quer na zona do euro[25]. As maiores percentagens dessa despesa pertenciam à Proteção Social (18,9), Saúde (6,9) e Educação (4,8) e a menor à Defesa, Segurança e Ordem Pública (2,9). Portugal, no mesmo ano atribuía 46,1% do PIB à despesa pública, com 17,5% destinado à Proteção Social, 6,4% à Saúde, 6,0% à Educação e 3,4% para Defesa, Segurança e Ordem Pública. Desta despesa, 1,5% destinava-se à Defesa e 1,9% a Segurança e Ordem Pública[26]. De acordo com dados do Tribunal de Contas[27], as despesas com a Defesa registaram, entre 2006 e 2011, um crescimento anual médio de 0,6%, inferior ao registado para o PIB – Produto Interno Bruto (1,8%) e para a Despesa Efetiva do Estado (2,5%). Naquele período, em média, as despesas com a Defesa representaram 4,5% da Despesa Efetiva do Estado e 1,2% do PIB.
A preços correntes, em 2011, o Orçamento da Defesa totalizava 2.063,081 milhões de euros e, para 2014, foram inscritos no orçamento 2.138,7 milhões de euros, representando as despesas com o pessoal 56,8% do total.
Outros dados estatísticos para o ano de 2013 mostram que o custo anual de um militar em Portugal (3.970 euros/ano) ou o que cada português paga para a sua defesa (193,9 euros/ano), são inferiores aos de outros países europeus da sua dimensão. Não impedindo que na opinião pública portuguesa se tenha instalado a ideia (não esclarecida) de que os gastos com a defesa são exagerados ou até desnecessários.
A crise económica e financeira que, desde 2008, afeta a sociedade portuguesa tem obrigado a reduzir e a conter a despesa do Estado, traduzindo-se em programas de reajustamento e racionalização de estruturas da administração (PRACE, PREMAC) implementados pelos XVII e XVIII governos constitucionais. As Forças Armadas, incluídas na administração do Estado, têm sido sujeitas a reduções de efetivos, a alterações estatutárias da competência do comando, a concentração de serviços, encerramento de unidades e cortes orçamentais nas verbas da Lei de Programação Militar por decisões dos executivos sem prévio debate pela Nação no seu Parlamento. Questões constitucionais que levantam dúvidas.
De 1996 a 2013, os Quadros Permanentes das Forças Armadas reduziram 6,8% (18.538, onde contam 4.018 Praças da Marinha) e os militares em RV e RC, de 2010 para 2011, reduziram de 20,6% (17.710)[28]. Reduções que têm trazido dificuldades para o cumprimento da missão e funcionamento.
Sobre as despesas de investimento nas Forças Armadas (modernização, atualização, substituição de armamentos, equipamentos e infraestruturas) transcrevem-se algumas conclusões do Relatório do Tribunal de Contas[29] sobre a execução da Lei da Programação Militar:
– A LPM previa um investimento total, entre 2006 e 2011, de 2.409 milhões de euros, dos quais 2.119 milhões a financiar por receitas do OE e 290 milhões por receitas de alienação de equipamentos, transitando os saldos, no final de cada ano económico, para o orçamento do ano seguinte. As sucessivas leis do OE determinaram a cativação ou dedução de parcelas significativas das verbas afetas à LPM, além de possibilitarem a transferência, até um limite de 10% da dotação disponível, para a cobertura de encargos com POTF – Preparação, Operação e Treino de Forças;
– A LPM incluiu hipotéticas receitas de alienações de equipamento, só marginalmente concretizadas (fragatas “João Belo” no montante de 13 milhões de euros – menos de metade do valor previsto);
– Os pagamentos efetuados, entre 2006 e 2011, no âmbito da LPM, totalizaram 1.615 milhões de euros. O grau de execução financeira, em 2011 (86%), foi superior à média daquele período, mas inferior ao apurado nos dois últimos anos;
– Pela relevância dos projetos em execução no período de 2006-2011 e/ou pelos compromissos contratualmente assumidos para os anos seguintes, destacam-se as seguintes fornecimentos:
• 12 helicópteros EH-101 – pagamentos = 237 milhões de euros; compromissos = 373 milhões de euros;
• 10 helicópteros NH90 (ainda não fornecidos), em renegociação – pagamentos = 60 milhões de euros; compromissos = 1,6 milhões de euros;
• 2 submarinos – pagamentos [pelo MFAP] = 1.001 milhões de euros; compromissos = 134 milhões de euros;
• 2 fragatas – pagamentos = 134 milhões de euros; compromissos: 126 milhões de euros;
• 240 viaturas blindadas Pandur II (entregues 166), em renegociação – pagamentos = 195 milhões de euros; compromissos [2012] = 10,6 milhões de euros;
• 37 carros de combate Leopard 2 A6 – pagamentos = 71 milhões de euros; compromissos [2012] = 13 milhões de euros;
• 40 aeronaves F-16 (entregues 34) – pagamentos = 482 milhões de euros; compromissos = 30 milhões de euros;
• 5 aeronaves P-3C Orion – pagamentos = 184 milhões de euros; compromissos 26 milhões de euros;
• 12 aeronaves C-295M – pagamentos = 73 milhões de euros; compromissos = 458 milhões de euros.
– As dotações da LPM foram, ao longo dos anos, utilizadas para fins diferentes dos previstos, dificultando um acompanhamento transparente e rigoroso da execução dos projetos/subprojectos.
As extensas e permanentes alterações na sociedade portuguesa que decorrem com a sua modernização política, social e económica, têm-se refletido nas Forças Armadas e no seu caráter institucional na Nação. As relações civis-militares e o conceito do controlo civil sobre as Forças Armadas que se tinha procurado com a primeira Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei nº 29/82) – e que tinha merecido reservas na sua promulgação pelo Presidente da República por não observar um justo equilíbrio nesse controlo entre o PR, AR e Governo – têm assistido a uma crescente deterioração, nas sucessivas alterações e Leis da Defesa Nacional, com agravamento da “governamentalização” desse controlo e perda de autonomia do comando. A eliminação do SMO e o crescente vazio da presença militar no território tem afastado a Nação do conhecimento e convivência com o seu instrumento de defesa. O tipo de ameaças que mais afetam a segurança dos cidadãos tem assistido a uma crescente militarização de forças de segurança e, paradoxalmente, a uma crescente utilização das Forças Armadas em missões policiais no exterior. As crescentes necessidades para o Estado satisfazer missões sociais obrigam a diminuir recursos para a defesa e para o seu instrumento que são as Forças Armadas, levando a que a defesa seja mais um serviço do que missão e os que a servem mais funcionários do que militares. São estas realidades e tendências que vão deteriorando o caráter institucional das Forças Armadas.
A avaliação das transformações nas Forças Armadas de Portugal nos últimos quarenta anos, que nos propusemos analisar, tem de resultar numa folha de balanço final, evidenciando o que nos parece serem (numa visão subjetiva) aspetos positivos a continuar e aspetos negativos a corrigir.
Como aspetos positivos queremos evidenciar:
– A elaboração de uma legislação relativa à defesa nacional e às Forças Armadas, começando na Constituição da República;
– Portugal passar a dispor de um Sistema de Forças em permanência, com capacidades militares diversificadas, capaz de cooperar com aliados e amigos na vigilância, prevenção e resolução de conflitos que afetem a segurança internacional ou regional. Com capacidades, também, para a realização de missões de interesse público;
– Uma maior integração dos ramos das Forças Armadas nesse Sistema de Forças e nas suas capacidades militares, materializando o conceito de força conjunta e abandonando as missões próprias e independentes;
– A entrada em serviço de alguns armamentos e equipamentos que melhoraram as capacidades militares, nomeadamente em áreas como o comando, controlo, comunicações e computadores, a vigilância, a busca e salvamento, o transporte à distância, o potencial de fogo, a ciberdefesa, a capacidade submarina e a mobilidade tática terrestre;
– A consolidação de um “profissionalismo militar” que se materializa nas relações democráticas militar-estado e tem afastado os militares de interferência na vida política;
– Uma progressiva excelência de Quadros Permanentes, decorrente da qualidade do ensino militar nas escolas de formação de oficiais e de sargentos e da sua educação e avaliação contínuas e exigentes;
– A racionalização dos compromissos de Portugal em organizações internacionais e alianças (ONU, OTAN, UE, CPLP);
– Uma maior visibilidade internacional das Forças Armadas, pela sua participação em missões no exterior do território nacional, pela presença em Quarteis-Generais e forças internacionais e pela crescente cooperação técnico militar com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e Timor;
– Racionalização de estruturas e maior rigor na administração de recursos;
– A modernização e substituição de alguns armamentos e equipamentos na força militar, dada a implementação da Lei da Programação Militar e as dotações financeiras que lhe vão sendo atribuídas.
Como aspetos negativos, que devem merecer uma reflexão, desejamos salientar:
– A necessidade de clarificação, face aos desenvolvimentos externos e internos ocorridos, desde os anos oitenta do século passado, dos conceitos de segurança e defesa.
O conceito de segurança ao nível global, regional e nacional mudou, mercê da globalização, da diversidade e internacionalização das ameaças ou das transferências de responsabilidades para organizações supranacionais entretanto implementadas.
Mantendo o estado-nação como o principal ator da ordem internacional, segurança para os estados compreende segurança nacional, proteção e defesa. Segurança nacional, com as suas componentes externa e interna, como a capacidade do estado-nação assegurar a sua sobrevivência e liberdade de ação nas suas decisões num ambiente internacional hostil e competitivo e em ambientes internos cada vez mais exigentes na sua organização, difíceis consensos na obtenção de recursos e sua distribuição e crescente organização das sociedades civis para a sua avaliação e escrutínio. Proteção de cidadãos, recursos e infraestruturas crescentemente ameaçados por ameaças diversificadas, que cobrem espetros alargados como o crime organizado transnacional, as migrações não reguladas, o terrorismo, os desastres ambientais, as epidemias, as catástrofes naturais ou os ataques no ciberespaço. Defesa que se traduz na vontade e ação de se opor, pela força militar, à agressão armada a elementos considerados essenciais da soberania (território, população, recursos).
A Constituição da República Portuguesa define que “a defesa nacional tem por objetivo garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaças externas”. Seria um conceito de Segurança Nacional se não limitasse as ameaças à sua natureza externa. Compreendem-se as preocupações constitucionais, dado o peso negativo que o conceito de segurança interna trazia do anterior regime. Mas ficou alguma ambiguidade sobre a natureza externa das ameaças. Como referiu, ao tempo, uma pessoa esclarecida, importava “caraterizar o tipo de agressões ou ameaças externas que a política de defesa nacional deve enfrentar para, nos termos precisos da lei, assegurar a defesa nacional tal como é definida no conceito”, concluindo que “haverá que associá-la a violência armada, isto é, a agressão ou ameaça externa a que a defesa nacional deve fazer frente é tão só a agressão ou ameaça externa armada”[30].
Dessa clarificação resultará uma definição mais precisa do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, que desde a sua primeira definição, em 1985, e as suas sucessivas revisões (1994, 2003 e 2010), tem mais caraterísticas de um Conceito Estratégico de Segurança Nacional (sem o assumir) do que um conceito para preparação e postura da Nação para uma situação de guerra e a utilização da força militar. Aquelas caraterísticas têm degradado a noção de que a defesa é o último patamar da segurança e, progressivamente, vão dando menos orientações para a defesa militar e o Conceito Estratégico Militar que daquele deve resultar. Seria importante retomar uma clarificação entre um Conceito Estratégico de Segurança Nacional (será ambicioso pensar que ele resulta da definição de um Conceito Estratégico Nacional, mas deverá cobrir as prevenções e respostas às ameaças à segurança, aspetos de segurança cooperativa com aliados e amigos e mecanismos para a gestão de crises) e um Conceito Estratégico de Defesa da Nação, este orientado para o estado de guerra e a preparação e utilização da força militar na vigilância, prevenção, dissuasão e combate às ameaças que façam perigar a independência nacional, a soberania, a integridade do território e a liberdade e segurança das populações.
Dessa clarificação resultarão também outros ajustamentos legislativos, como os respeitantes ao CSDN (que deverá evoluir para um Conselho Superior de Segurança Nacional), Lei de Segurança Nacional, Lei da Defesa ou de Preparação da Nação para Guerra e outros;
– A necessidade de redefinição do Sistema de Forças Nacional, nas suas componentes operacional e fixa “identificando os tipos e quantitativos de forças e meios, tendo em conta a sua adequada complementaridade operacional” (Lei Orgânica nº 6/2014, de 1 setembro, – LOBOFA).
Desde o final do, denominado, período da Guerra Fria, com novos desenvolvimentos a partir de 2001, que alianças e nações têm procurado ajustar o nível da força militar necessária aos recursos disponíveis e à perceção das ameaças pelas opiniões públicas. A OTAN evoluiu de um Sistema de Forças baseado em Forças de Reação Rápida, Forças de Defesa e Forças a Mobilizar para um Sistema de Forças assente em Capacidades Militares, abandonando o tradicional conceito de equilíbrio estratégico baseado em unidades e números, para um equilíbrio procurado numa defesa mais inteligente (smart defense), com as tecnologias a servirem de multiplicadores de força para efetivos progressivamente reduzidos. E a apostar em Forças de Reação (NATO Response Force) como capacidade para a gestão de crises, esquecendo a responsabilidade de defesa coletiva que assenta em forças posicionadas, disponíveis e preparadas para a sua missão principal (evidenciadas na sua última Cimeira, em Newcastle, em setembro de 2014). A EU, quando decidiu melhorar a sua dimensão de defesa, seguiu também a metodologia de desenvolver capacidades militares (partilhadas) e de forças para projetar (battle groups) esquecendo a capacidade de aumentar e melhorar a sua capacidade de defesa, negando ou impedindo o acesso a partes do território em disputa. Era mais fácil construir no vago do que disponibilizar recursos para o estrategicamente racional. E para repartir responsabilidades conceberam-se os conceitos de cooperação reforçada e de juntar e repartir (pooling and sharing) capacidades militares[31].
Portugal seguiu as orientações, esquecendo especificidades próprias históricas e geoestratégicas, e abandonou a sua metodologia de planeamento de forças baseada em subsistemas capazes de cumprirem missões militares (vigiar, prevenir, dissuadir, impedir o acesso ou negar, combatendo) para seguir o planeamento de capacidades militares, difíceis de avaliar e quantificar e, consequentemente, mais difíceis de julgar em caso de insucesso.
A consequência traduz-se em Portugal ter perdido, desde o ano 2000, cerca de 50% da capacidade operacional do seu sistema de forças. Os efetivos que o suportam, com o abandono do SMO, no Exército caíram 50%. Os meios operados caíram em navios de combate (50%), batalhões ou unidades equivalentes – que materializam a capacidade de combate terrestre e a capacidade de negar o acesso ou ocupação de território – (50%) e aviões de combate (50%). Houve um desvio das capacidades de combate da Marinha e da Força Aérea para as missões de interesse público (conceito de duplo uso). A capacidade de projetar força em apoio da política externa do Estado, que no ano 2000 atingiu os 1400 efetivos em simultâneo, está reduzida a cerca de 25% desse número. As capacidades de sustentação em combate diminuíram drasticamente com a redução nas indústrias de defesa (capacidade de manutenção de navios, produção de munições, constituição de reservas de guerra) e com a diminuição progressiva de formações de serviços, complemento essencial ao emprego operacional da força.
Com a consequente, e não menos significativa, contração do dispositivo da força, materializada na menor presença nas parcelas num território repartido em parcelas distantes entre si, diminuindo a capacidade de defesa, a ligação da Nação à Instituição Militar e perda do sentido de defesa entre a população nacional.
A preços constantes, de 2001 e até 2013 (num tempo em que as taxas de inflação cresceram a uma média menor do que 2% ao ano, em que o preço de combustíveis triplicou e em que o preço de equipamentos e armamentos cresceu 10%), as despesas com a defesa oscilaram entre 1448,1 milhões de euros (1,1% do PIB e 3,2% da Despesa Pública) e 2188,4 milhões de euros (1,1% do PIB e 4% da Despesa Geral do Estado). Os Serviços Centrais do Ministério da Defesa passaram a gastar tanto como a Força Aérea e o novo sistema de recrutamento, com o RC, aumentou os custos com o pessoal.
Reintroduzir o SMO, com as variantes que a evolução da sociedade portuguesa pode aconselhar, será um debate que irá surgir num futuro próximo. Como irá acontecer com outras sociedades no mundo euro-atlântico, mercê da evolução do enquadramento estratégico internacional da segurança e da defesa;
– A necessidade de redefinir as relações “civis-militares” no estado democrático. Entendemos por relações civis-militares numa sociedade democrática e aberta “o relacionamento, em tempo de paz, da sociedade como um todo (Estado, Instituições, sociedade civil, cidadãos) com a Instituição Militar (força militar e seu emprego, sua formação, organização e condição militar)”. De acordo com alguns analistas, vive-se, após o final da Guerra Fria, um segundo tempo nas relações civis-militares. O conceito de relações internacionais mudou, as ameaças à segurança multiplicaram-se, a globalização acarretou modificações no conceito da soberania dos estados e a força militar sofreu também modificações na sua conceção, conceito de emprego e organização. Estas modificações apontam para algumas tendências:
• Uma diminuição progressiva da cultura de defesa em algumas sociedades;
• Abandono progressivo do conceito de conscrição para obtenção de recursos humanos para a força militar, substituindo-o pelo serviço voluntário incluindo pessoal feminino;
• A utilização frequente das Forças Armadas para “outras missões para além da guerra” ou “ para missões de interesse público”, onde algumas vezes se incluem funções policiais e outras de competências civis e muitas vezes restringem as operações de combate, levando à degradação e treino da função principal da força militar: combater, se necessário;
• Interferência excessiva da direção política na condução de operações que envolvem a força militar, pondo em causa o comando. Crescentes críticas de militares fora da cadeia de comando à forma como são conduzidas as operações;
• Sinais de degradação na institucionalização da força militar no estado, abandono do conceito de profissionalismo militar e tendência para a sua substituição por uma burocracia armada, havendo já força militar organizada fora do controlo político dos estados;
• Permanente adaptação das forças armadas a desafios novos e em constante mudança: novas ameaças, orçamentos restritivos e novas tecnologias, entre outros, obrigam a organizações e conceitos de emprego diferentes do passado;
• Concluindo, pode dizer-se que se vivem tempos de distensão ou afrouxamento das relações entre o Estado-Nação e a Instituição Militar.
Redefinir as relações civis-militares no Estado e na Nação obriga a centrar as questões da defesa nacional na Assembleia da República (recursos e legislação como define a Constituição da República e representa o controlo civil sobre a força militar) e o grau de autonomia dos militares na sua estrutura do comando (que começa no Comandante Supremo – Presidente da República – e se materializa na hierarquia, administração do pessoal, disciplina e justiça). Tem havido demasiada intervenção dos executivos na administração e funcionamento das Forças Armadas, começada com a Lei da Defesa Nacional e Forças Armadas (Lei nº 29/82, de 11 de dezembro) e continuada e agravada com as Leis Orgânicas da Defesa Nacional (Lei Orgânica nº 1-B/2009, de 7 de julho, e Lei Orgânica nº 5/2014, de 29 de agosto) que tem retirado algumas competências próprias ao comando (administração de pessoal, voltando a condicionar as promoções a oficial general à aprovação do executivo, fixando efetivos, legislando sobre a condição militar que deve ser matéria estatutária). Que força militar quer a Nação, para quê e qual, deve merecer debate orientador e urgente na Assembleia da República.
As recentes alterações à LOBOFA (Lei Orgânica nº 1-A/2009, de 7 de julho, e Lei Orgânica nº 6/2014, de 1 de setembro) vieram dar maiores responsabilidades ao CEMGFA (no comando da força, na saúde militar e no ensino militar) retirando importância ao Conselho de Chefes de Estado-Maior e autonomia dos Chefes dos Estados-Maiores no comando dos seus ramos. A decisão parece ser mais orientada por poupança do que por eficiência, pelo que será avisado seguir com atenção a implementação das medidas para não termos de concordar com o aforismo popular de que “mudou, estragou”.
E esse seguir com atenção merece-nos três observações: não esquecendo o que significa, para o emprego da força militar, o Conselho de Chefes de Estado-Maior, que noutras organizações toma o nome de Junta, identificando um responsável para o conselho à decisão política, mas deixando autonomia para os comandantes dos ramos na sua perceção de emprego das capacidades que comandam. Não se devem colocar os chefes dos ramos dependentes do CEMGFA quando do emprego operacional da força. Mas, antes, guardar a designação de adjuntos.
A segunda, diz respeito à Saúde Militar e à sua dimensão operacional por cada um dos ramos das Forças Armadas, diferenciada por onde se aplica em primeiro lugar (navio, campo de batalha terrestre ou base aérea). Um Hospital para as Forças Armadas, que faz sentido para economia de recursos, não pode significar a perda de qualidade de valências médicas que são necessárias em campanha. A sua diferenciação de uma instalação do Serviço Nacional de Saúde passa por aí. Estará a ser conseguido?
Quanto ao ensino militar, a LOBOFA refere que, “no âmbito do EMGFA inserem-se ainda na dependência direta do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, regulados por legislação própria, o Instituto Universitário Militar…”.
A ideia de criação de uma Universidade das Forças Armadas data de 1999, por iniciativa do então Ministro da Defesa, Prof. Doutor José Veiga Simão. O Decreto-Lei criando a Universidade, definindo a sua natureza, missão e composição e um modelo de governação, apropriado à natureza militar, foi aprovado, no Conselho de Ministros de 15 de abril de 1999, depois de ter transitado pelo Conselho de Secretários de Estado. O decreto-lei criava, ainda, o Instituto de Altos Estudos das Forças Armadas, cuja forma de associação à Universidade seria definida nos respetivos estatutos, a aprovar por decreto regulamentar.
No entanto, dúvidas subsequentes à sua aprovação, notoriamente artificiais e surgidas à última hora, a propósito da constitucionalidade desse decreto-lei, determinaram que o diploma fosse transformado em proposta de lei e enviado à Assembleia da República, tendo sido registado como Proposta de Lei n.º 281/VII e baixado à 3ª e à 6ª Comissões, em 26 de Maio de 1999. Apesar da promessa de urgência para sua discussão, assumida pelo Primeiro-ministro, a verdade é que a proposta se afundou nas gavetas das comissões parlamentares, perante a indiferença do Governo e o triunfo dos que se lhe opunham.
Sabemos que decorrem estudos para a sua regulamentação e implementação. Esperemos que, com o conselho dos Chefes de Estado-Maior dos ramos, aqueles que são responsáveis pela formação e prontidão das suas forças e consequentemente com a definição das qualificações dos seus Quadros, se atinja o objetivo pretendido pelo seu primeiro impulsionador: “a ideia da Universidade Federativa das Forças Armadas emergiu, como essencial à criação de um espaço aglutinador e integrador da inteligência militar, ou seja, como instrumento decisivo para a construção evolutiva de uma visão estratégica para as Forças Armadas, em que o corporativismo natural dos ramos seria complementado por uma cooperação institucionalizada, que substituísse a fragilidade de uma convivência formal, por um Brain Trust crítico e criativo, sem perda de especificidade. Ao mesmo tempo a Universidade seria um fórum de pensamento, pilar estratégico da cidadania e da civilidade, contrário ao civilismo negativo, e antimilitar, que tem prevalecido na Democracia portuguesa”[32]. Objetivo que não deve esquecer que o ensino militar se destina, em primeiro lugar, a qualificar indivíduos, em saber e carácter, para comandar.
A necessidade de clarificar questões estatutárias do pessoal militar que serve nas Forças Armadas, a começar pela condição militar, que tem sido tratada por legislação avulsa nem sempre coerente e consistente, inserida numa Lei de Defesa Nacional onde não deve estar. O Estatuto dos Militares deverá passar pela definição precisa do que é a condição militar, nos seus deveres e direitos, e o que a diferencia da função pública no Estado.
Vivem-se tempos de grandes mudanças históricas e, cada dia que passa, aparecem estudos sobre “megatendências” (cada vez com prazos mais curtos quanto a futuros), sobre demografia, economia, energia, clima, água ou potenciais conflitos. Portugal não estará isolado nessas tendências e quem governar naturalmente que os seguirá.
A História mostra que, desde a formação da nacionalidade, a Instituição Militar representou para Nação um elemento agregador, de afirmação da soberania, de consolidação e preservação da independência, de estabilidade nas mudanças.
Portugal está atravessar as mudanças esquecendo a Instituição Militar, com alguns tentando eliminá-la e muitos tentando reduzir a sua função na Nação. Mudar sim, mas devagar e com cuidado. O contrário pode acarretar riscos.
* Enviado pelo autor, à Direção da Revista Militar, em 8 de outubro de 2014.
[1] Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), Estado-Maior do Exército, Lisboa, 1988, 2ª edição.
[2] RATO, Vasco, As Forças Armadas e a Democracia Portuguesa, 1974-1982, Revista Nação e Defesa, Nº 94, Verão 2000, 2ª Série.
[3] AREIA, Coronel de Infantaria António F. R., A AJUDA EXTERNA E O REEQUIPAMENTO DO EXÉRCITO, Trabalho Individual de Longa Duração, CSCD, IAEM, 1985, pg. 8.
[4] Idem, pg. 21.
[5] RIBEIRO, António Silva, Organização Superior da Defesa Nacional – Uma visão Estratégica 1640-2004, Prefácio, Lisboa, 2004.
[6] VIEGAS, J.M. da Silva, Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Anotada), Instituto de Altos Estudos Militares, Lisboa, 1988.
[7] RIBEIRO, António Silva, Organização Superior da Defesa Nacional- Uma visão Estratégica 1640-2004, Prefácio, Lisboa, 2004.
[8] ROSA, Maria João Valente e CHITAS, Paulo, Portugal: os Números, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2010.
[9] MATOS, Luís Salgado de, A Consolidação, in Nova História Militar de Portugal, Direção de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, Volume 4, Círculo de Leitores, Lisboa, 2004.
[10] Coronel de Engenharia AED Baptista Veloso, Coronel de Artilharia Caetano de Sousa, Capitão-de-mar-e-guerra Oliveira Fuzeta, O Paradigma da Lei da Programação Militar, TIG do CPOG 2011/2012, IESM, Pedrouços.
[11] RIBEIRO, António Silva, Ob. Cit.
[12] Ministério da Defesa Nacional, A Defesa de Portugal, Lisboa, Jun. 1994.
[13] Coronel de Engenharia AED Baptista Veloso, Coronel de Artilharia Caetano de Sousa, Capitão-de-mar-e-guerra Oliveira Fuzeta, O Paradigma da Lei da Programação Militar, TIG do CPOG 2011/2012, IESM, Pedrouços.
[14] ESPIRITO SANTO, General G., Um Testemunho do Presente para o Futuro, EMGFA, Lisboa, 2000.
[15] SALGADO DE MATOS, Luís e BACALHAU, Mário, As Forças Armadas em Tempo de Mudança, Edições Cosmos-IDN, Lisboa, 2001.
[16] Tribunal de Contas, Relatório Nº1/06, 2ª Secção, Acompanhamento da Lei de programação Militar.
[17] United Nations, A more secure world: our shares responsibility, 2004.
[18] Daehnhardt, Patrícia, A Parceria União Europeia-NATO: a Persistência de uma Relação Complexa, Revista Nação e Defesa, Nº 137, IDN, Lisboa,2014.
[19] Manigart, Philippe, Opinião Pública e defesa europeia, Departamento de Ciências Sociais, Real Academia Militar, Bélgica, 2001.
[20] Ramalho, Tiago e Mateus, Jorge, O sistema de partidos em Portugal, CIES e-Working Papers, ISEG, Lisboa, 2008.
[21] Ver Nota 15.
[22] Rodrigues, Professor Doutor Fernando Carvalho, Para que servem as Forças Armadas?
[23] Santos, General J.A. Loureiro dos, Forças Armadas em Portugal, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2012.
[2##_ftn244] Miclethwait, John e Wooldridge, Adrian, The Fourth Revolution, The global race to reinvent the state, Allen Lane, Penguin Books, Reino Unido, 2014.
[25] Amaral, Conceição e Oliveira, Ana, Composição da Despesa Pública e Crescimento Económico, Artigo 4/2010, Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais (GPEARI) do Ministério das Finanças e Administração Pública, Lisboa, 2010.
[26] Liberti , Fabio, Defense Spending in Europe, IRIS, Paris, 2010
[27] Tribunal de Contas, 2º Seção- Relatório nº22/2012- Acompanhamento Permanente da Lei da Programação Militar, Lisboa,2012.
[28] IESM, Boletim Ensino | Investigação nº 13, novembro 2012, COR Barreiros dos Santos; COR Basto Damásio; CMG Albuquerque e Sousa.
[29] Tribunal de Contas, Relatório nº22/2012- 2ª Seção, Acompanhamento Permanente da Execução da Lei da Programação Militar, lisboa, 2012.
[30] Rodrigues, Gen, J.M. Bettencourt, Conceito de Defesa Nacional, Revista Militar nº5, Maio 1983.
[31] Declaração de Intenções Conjunta par o Reforço da Cooperação no Âmbito da Defesa, entre Portugal e Espanha, Madrid, 20 de Novembro de 2012.
[32] Simão, Professor Doutor José Veiga, Qualificação dos Militares- Soberania do Conhecimento, AIP INFORMAÇÃO, Lisboa, 11 Nov.2010.
Nasceu em Bragança em 8 de Outubro de 1935.
É General do Exército, na situação de Reforma desde o ano 2000, depois de ter servido nas Forças Armadas Portuguesas durante 49 anos.
Além de Tirocínios e Estágios na sua Arma de origem possui os Cursos da Escola do Exército (Artilharia), Curso Complementar de Estado-Maior e Curso Superior de Comando e Direcção (Instituto de Altos Estudos Militares), Curso de Comando e Estado-Maior (Brasil) e o Curso do Colégio de Defesa Nato (Roma).
Falecido em 17 de outubro de 2014.