Nº 2554 - Novembro de 2014
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Nação, Estado e Instituição Militar (Republicação)
General
Gabriel Augusto do Espírito Santo

I. Uma Reflexão Necessária*

Na História de Portugal, Nação, Estado e Instituição Militar constituem os vértices de um triângulo começado a construir na modernidade da Europa, iniciada pela Paz de Vestefália em 1648, num tempo em que Portugal prosseguia uma Grande Estratégia nessa Europa, visando ter direito a espaço próprio e voz independente do seu vizinho na Península Ibérica, voltando a ser um Reino “com monarca próprio e natural”. Assinado o Tratado de Paz com a Espanha, em 1668, Portugal pode prosseguir o seu caminho na construção ou fortalecimento daqueles vértices, não se afastando muito dos modelos de organização do poder, nas suas componentes cultural, organizativa, do Direito, dos instrumentos militares e do seu interrelacionamento seguidos pela parte ocidental da Europa em que se inseria.

Dando corpo a novos conceitos, como o de soberania, o Estado-Nação começa o seu longo caminho como principal sujeito nas relações internacionais, o Estado como poder organizado procura ser soberano na ordem interna, regulando as tradicionais funções de Justiça, Ordem, Fazenda, Graças e Mercês e Milícia através de ofícios e burocracia crescentes e a força militar organizada, agora com estatuto de instrumento do poder, começa o seu caminho para se institucionalizar, isto é, e seguindo a definição de Max Weber, constituir-se em «agrupamento cujas regras estatutárias são outorgadas comsucesso no interior de uma zona de acção demarcável para todos os que agem de uma forma definível segundo critérios determinados».

A materialização dos lados desse triângulo ao longo de quase quatro séculos decorridos (menos tempo do que o passou entre o reconhecimento de Portugal como Reino independente e a integração na Coroa de Espanha em 1580) constitui o tempo da modernidade nas relações Nação-Estado, Nação-Instituição Militar e Estado-Instituição Militar, que foi de grandes debates, de interrogações e de sobressaltos, mas também de grande produção intelectual e de conceptualização. Em Portugal e na sociedade portuguesa, e até 1974, nesse debate esteve sempre presente uma realidade: o Império e as suas sucessivas transformações e mutações para a realidade da Nação, quer se focalizassem no Oriente, no Brasil ou em África. O Império, em mais de cinco séculos, atravessou a Nação, o Estado e a Instituição Militar. Negar essa evidência será negar a História.

Estamos em tempo de mudança nos conceitos, emoções e relações que constituem o legado da civilização para nós denominada ocidental e do mundo atlântico, com o seu sistema de crenças e valores e fala-se numa nova era, designada por alguns de pós-modernidade. A data para o seu início tem sido sucessivamente alterada conforme acontecimentos e conveniências de perspectiva: a invenção da arma nuclear, a chegada do homem à Lua, a queda do muro de Berlim, a globalização da ecomomia ou da comunicação, os acontecimentos terroristas nos Estados Unidos da América em 11 de Setembro de 2001, o reconhecimento de casamentos de homossexuais ou outros que virão. A fixação simplista nos acontecimentos leva a esquecer, algumas vezes, a floresta em favor da árvore, não dando a importância devida aos arranjos que se estão a processar no campo das emoções.

Como elas influenciam novos arranjos da geopolítica (O mundo ocidental vive a emoção do medo, o mundo árabe e muçulmano vive a emoção da humilhação, grande parte do mundo asiático vive a emoção da  e o mundo africano, com crescentes assimetrias na sua inserção numa sociedade global, vive a emoção da solidão[1]) ou novos arranjos no relacionamento entre grupos da Nação quando aparecem e se alimentam emoções de privilegiados ou rejeitados.

Os vértices do triângulo em análise e as relações que os unem estão em mudanças aceleradas. Há quem fale em falhas (gaps)[2] nessas relações, e algumas sociedades ricas em meios e capacidades de estudo e avaliação desde há alguns tempos que se debruçam sobre o assunto, inserindo-o no contexto mais amplo das relações civis-miltares que têm constituído um catecismo das sociedades democráticas e relação de influência mútua na formulação das Grandes Estratégias Nacionais, na paz e na guerra, mas que tem primado pela ênfase no controlo civil dos militares. Essas falhas com crescente importância no início de um novo milénio, são sistematizadas em quatro grupos:

      • Uma falha cultural que prejudica significativamente a comunicação e o entendimento entre os dirigentes políticos e os comandos militares;

      • Uma falha na percepção do papel de cada um que origina uma falsa distinção entre as responsabilidades civis e militares baseada numa visão distorcida das relações civis-militares;

      • Uma falha conceptual que enfatiza a perspectiva militar e o seu conjunto de critérios restritivos mas que subverte a afirmação de Clausewitz de que os fins da política originam os seus meios;

      • Uma falha nos valores que hoje cria tensões entre o ideal do profissional militar e a perspectiva de muitos quadros militares sobre as suas obrigações e deveres.

Temos de reconhecer que este debate, com raras excepções que deviam ser mais ouvidas[3], não tem preocupado o pensamento político em Portugal nem merecido o interesse das opiniões públicas, como já foi publicamente expresso[4]. Quebrado o ciclo do Império, tem-se dada demasiada importância à Transformação das Forças Armadas, conceito entendido mais como o seu redimensionamento de acordo com a Missão, o seu reequipamento mais adequado aos requisitos operacionais do seu emprego muito influenciados pelas capacidades militares exigidas por sistemas colectivos de segurança e defesa em espaços alargados do que por capacidades militares próprias. O conceito alargado das relações civis-militares nas sociedades democráticas neste período de pós-modernidade não tem sido devidamente estudado, continuando a limitar-se o seu entendimento ao controlo político dos militares, materializado, talvez em demasia, como a progressiva inserção dos militares na administração central do Estado. Esse caminho, conduzindo a uma tendência para ver de novo as Forças Armadas como um instrumento, esquecendo-as como Instituição, reduz a condição militar ao estatuto de mais um ofício da burocracia, confunde as funções distintas, na formulação das estratégias, de aprontar meios com o comando desses meios e tem degradado aspectos estruturantes institucionais como organização, comando e hierarquia, disciplina, profissionalismo militar e espírito de corpo.

Têm surgido recentemente no mundo académico português alguns estudos sectoriais sobre o relacionamento dos militares com a sociedade, focalizados na vida política, na modernização, na vida comunitária e outros. Concordando com alguns autores[5] na constatação de que “as grandes mudanças em Portugal começam pelo aparelho político e transmitem-se aos restantes a partir dele em vagas sucessivas» e que «o papel interno dos militares na sociedade portuguesa recente está directamente relacionado com a forma de entrada do país no contemporâneo», pretendemos seguir um caminho diferente na análise do tema a que nos propusemos. Com sinais evidentes e crescentes de que a cultura da Instituição Militar segue melhores caminhos na adaptação às revoluções que se processam na sociedade actual (de novos conflitos, da globalização, da informação, da crise nas identidades nacionais e da crise do Estado)[6], do que as culturas do Estado e da Nação, tentaremos evidenciar a necessidade de uma reflexão sobre as relações civis-militares, com particular incidência na sociedade portuguesa, partindo de uma análise da evolução da Instituição Militar e da sua árvore genética de elementos estruturantes, que nos permitam corrigir rumos nos caminhos que se configuram de perigosos e multiplicadores dos riscos que se evidenciam.

 

II. Elementos Estruturantes da Instituição Militar

Os instrumentos armados aparecem para fazer a guerra e combater e é a organização que lhes confere o primeiro elemento estruturante para a sua passagem para instrumentos militares. Essa organização é inicialmente ditada pelas funções a desempenhar no combate e é essa funcionalidade, condicionada pelo tipo de combate a desenvolver e a natureza da guerra a enfrentar (Para quê? Onde? Quando?) que mais tem influenciado, a par dos desenvolvimentos tecnológicos, o binómio homem-armamento e o seu peso no elemento organizativo dos instrumentos militares. Factor a que através da História outros se juntaram, com pesos relativos e algumas vezes conjunturais, tais como os de atacar, defender, dissuadir, prevenir ou resolver; defender o solo pátrio ou contribuir par a paz global; defender fronteiras ou espaços alargados; combater ou desempenhar missões para além da guerra; combater só ou com amigos e aliados; enfrentar ameaças externas e internas ou só ameaças externas e outros, a que não são estranhas as querelas entre as pretensas hegemonias dos potenciais terrestre, naval ou aéreo que a diferente adaptação dos meios militares ao seu ambiente preferencial de emprego foi naturalmente desenvolvendo.

É esta organização funcional, a que vem juntar-se um elemento organizativo territorial, que faz da hoste medieval a milícia e depois o exército, e que vai servir de modelo organizativo na modernidade para o Estado e para outras actividades da sociedade.

A finalidade da guerra e a organização dos meios para a enfrentar conduziram a uma diferenciada, progressiva e extensa codificação do seu conhecimento e sistematização das regras que as poderiam tornar em arte ou em ciência, esquecendo por algum tempo a questão filosófica da sua justificação. A invenção da imprensa e a sua rápida e progressiva divulgação permitiram o conhecimento alargado de textos antigos, com ênfase, entre outros, aos de Cornélio Tácito (autor dos Annales e Historias) e Flavius Vegetius Renatus, “o consagrado Vegésio, o qual, vindo dos finais do século IV da nossa era, se manteve no domínio da teoria da guerra, ao fim de quase mil anos, como o auctor, a auctoritas por excelência”[7] e a um crescente interesse pelas relações entre o poder e a guerra, sendo considerado o “Libro della arte della guerra”, (1521) de Niccolò Machiavelli, como a primeira obra composta para impressão sobre estratégia e táctica militares, a que se seguirá a publicação de abundante literatura de didáctica militar, primeiro em Itália, mas também em Espanha, França., Alemanha, Países Baixos e Inglaterra[8].

Dessa obra, relacionando o poder com a força armada, é importante guardar a seguinte transcrição:

“Todas as artes que se estabelecem numa Cidade para o bem comum dos homens, todas as instituições que aí são fundadas para fazer reinar as leis e o temor de Deus, não servirão de nada se não se criarem também armas para as defender, as quais, se forem bem dirigidas, podem salvaguardar essas instituições, mesmo aquelas que se encontrarem pior orientadas. E sem o apoio dessas armas, a melhor ordem arruína-se bem rapidamente, tal como aconteceria às divisões de um soberbo palácio real, todas revestidas de ouro e de pedras preciosas, mas não cobertas por algo que as protegesse da chuva”[9].

É a organização, associada a conceitos de autoridade e responsabilidade, que vai orientar a evolução de outros elementos estruturantes para o caminho institucional da força militar, como o comando e os seus princípios e correspondente autoridade concedida e reconhecida numa hierarquia, a disciplina com os seus elementos objectivos de sanções e recompensas e o seu elemento subjectivo de competência disciplinar, o profissionalismo militar envolvendo competências, código de conduta e culto valores e mesmo o espírito de corpo, aquele sentimento de pertença a um grupo e que desenvolve entre os seus membros sentimentos particulares de comunicação tais como o de camaradagem de armas.

Naquela evolução, registada pela História Militar, não atingimos o ponto de chegada. Estamos num alto da marcha e teremos de ajustar azimutes para prosseguir caminho, atentando a alguns sinais de conjuntura.

A organizações verticais e rígidas, diferenciadas pela especificidade própria de cada uma das componentes da força militar e seu ambiente próprio de actuação em terra, no mar ou no ar, sucedem-se organizações variáveis e flexíveis, mais orientadas pela missão que têm de desempenhar do pela ameaça que têm de enfrentar. As organizações “modulares”, temporárias e em rede sobrepuseram-se às organizações funcionais e de espaço. Organizar a força militar para “missões expedicionárias”, com as consequentes capacidades de aligeiradas, de projecção à distância e duração temporária veio colocar em plano secundário organizações orientadas para defesa dos espaços nacionais e as suas organizações territoriais. Encontramo-nos em tempo de reflexão, dado que novas ameaças e riscos voltam a favorecer o conceito de segurança e defesa dos solos pátrios como o demonstram novas doutrinas estratégicas militares com ênfase na homeland security. A distribuição de áreas e pontos sensíveis a novas ameaças deve continuar a merecer a atenção da presença militar na organização dos espaços nacionais, agora sem muralhas de castelos materializando individualidade própria mas mais interpenetradas por e com outras organizações.

O comando e as suas competências materializadas no conceito de comando completo e consequente responsabilidade total pelos seus subordinados e por tudo o que bom ou de mau fazem, assumem hoje formas variadas relacionadas com o grau de controlo (span of control) que o comandante pode conseguir no combate, com crescentes efectivos, diversidade de funções, capacidades de comunicação e respeito pelo princípio da iniciativa. Hoje existem diversas formas de comando e de controlo, passando pelos comandos operacionais e comandos administrativos logísticos, assim como diversas formas de controlo, desde o operacional ao táctico. Mais efémeros no tempo, pelo que o comando completo deve continua a caracterizar-se pelo monopólio na atribuição da missão e no exercício da disciplina.

A disciplina nascida muito ligada ao conceito de justiça é tão antiga como a organização dos instrumentos militares e a sua necessidade e os seus conceitos orientadores aparecem nos textos mais antigos que tratam da guerra. A sua evolução segue de perto a evolução da Justiça e do Direito, merecendo especial atenção a área do comportamento do militar no seu relacionamento com os seus comandantes, com os seus camaradas (o grupo que vivia na mesma camerata de alojamento) e com a população com quem convivia e a área da situação na paz ou na guerra. Progressivamente vai-se diferenciando da Justiça, por diferente entendimento do que constitui infracção ou crime e correspondente diferenciação entre sanção disciplinar e pena criminal, no campo da punição, e louvor ou mercê, no campo da recompensa. Ligada na sua observância ao conceito de hierarquia de comando e correspondente competência disciplinar, recentes desenvolvimentos na área dos direitos humanos e ideia inerente de liberdade obrigam a uma reflexão de conceitos, sem abdicar de que comando e disciplina são elementos estruturantes da Instituição Militar.

A necessidade de sistematização de conhecimentos para poder empregar exércitos cada vez com maiores efectivos e diferentes capacidades militares conduz ao aparecimento de Escolas Militares a partir do século XVIII e de um ensino militar diferenciado e mais generalista, já anteriormente iniciado para algumas especializações como a artilharia e a fortificação, destinado a formar profissionais militares, com qualificações requeridas para combater e para comandar. O profissionalismo militar e o conceito de obediência irão influenciar a teorização das relações civis-militares na modernidade, com especial ênfase no século XX e nos regimes democráticos[10]. O profissionalismo militar, desenvolvido por um ensino específico e complementado pelo exemplo, onde se desenvolvem competências técnicas, tácticas de comando e de código de conduta, tem sido estudado como um dos factores que mais influencia o comportamento dos militares perante o poder e as suas atracções.

O espírito de corpo entendido como o forte sentimento de pertença a um grupo e tudo o que isso significa na moderna ciência de Dinâmica de Grupos, nasce com medidas materiais simples e distintivas, tais como o guardar a mesma bandeira, usar o mesmo uniforme, ou o habitar no mesmo quartel permanente. Considerado como influenciador no desenvolvimento e manutenção do moral constitui também elemento importante na dinâmica de coesão e estímulo a utilizar na dinâmica da sua motivação. A Instituição Militar tem desenvolvido estas motivações através da sua simbologia e dos ritos que constituem um cerimonial próprio na Apresentação do Estandarte da Unidade, no Juramento de Bandeira ou nas Honras Fúnebres. A continuada repartição de simbologia ou de ritos com outras Corporações, a progressiva mas necessária extinção de Unidades e a descaracterização territorial da Instituição Militar têm afectado esse espírito de corpo, pelo que é importante a atenção aos sinais do seu funcionamento para manter o ponteiro na posição de normalidade.

 

III. Evolução em Portugal

O Coronel Nuno Valdez dos Santos, na sua obra “As raízes das Instituições Militares Portuguesas” [11] afirma que em Portugal a Idade Média terminou, praticamente, com o reinado de D. Afonso V. Foi este monarca que entreabriu a porta para a Idade Moderna que D. João II viria a abrir completamente. O recontro de Alfarrobeira foi «uma revolução social na vida do Reino… o triunfo da corrente senhorial sobre o princípio da centralização régia, à primazia do interesse privado sobre uma linha política que já anuncia a Idade Moderna»[12]. As «Tapeçarias de Pastrana», evocando os feitos de Arzila e Tânger, que D. Afonso V teria mandado executar na Flandres, ao que parece segundo desenhos de Nuno Gonçalves, estudadas pelo Professor Reynaldo dos Santos e outros, foram acrescentadas pela descoberta recente de mais dois panos relacionados com a expedição a Alcácer Ceguer, em 1457, e estudados pelo Coronel Nuno Varela Rubim[13]. Este registo visual não só exalta a acção guerreira de D. Afonso V – o último rei cavaleiro de Portugal – como parece retratar, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, o desabrochar da Instituição Militar em Portugal: a força armada ao serviço do poder para cumprir objectivos considerados do interesse nacional e já com elementos estruturantes de um Exército do Reino, onde sobressaem a organização por funções no combate, agora acrescidas da arma de fogo individual, por divisões territoriais de responsabilidade resultantes de uma melhor organização do espaço e a estrutura de comando adaptada a essa organização.

D. Afonso V, o 12º Rei de Portugal, foi o primeiro monarca português a incluir nas suas Ordenações (1444 a 1446) o Regimento da Guerra e a regulamentar na Hoste Real, onde recentemente tinha sido introduzida a arma de fogo[14], funções e hierarquia de comando, algumas que já vinham da nacionalidade, como as de condestável, marechal ou mestre de campo. Criou os postos de capitão de ginetes, adaíl ou capitão de campo (que governava os almoçadens e almogaváres e toda a outra gente com que se faziam as correrias no campo do adversário), alcaide-mór, fronteiro-mór e, por causa da introdução da pólvora e artilharia, o cargo de vedor-mór da artilharia[15]. Foi também este monarca que determinou, em 1478, “que se impuzesse a pena de morte ao que desertasse em qualquer expedição militar”.

É também D. Afonso V que, na defesa dos direitos sucessórios de sua sobrinha e esposa, D. Joana, a Beltraneja, decide invadir o território vizinho de Castela e trava a batalha de Toro (1476), onde é derrotado. Até 1580 e ao combate na ribeira de Alcântara para enfrentar as forças do duque de Alba na sua invasão de Portugal, aquele foi o último combate dos portugueses com forças europeias num intervalo de tempo que durou mais de um século.

Durante esse século a atenção voltou-se para as conquistas e Império, embarcando a força em meios navais repartidos entre a coroa e privados, pelo que a organização da armada é difícil de avaliar. Está documentado que no tempo de D. Manuel I Portugal atingiu o número de 971 navios de vela, de diversa natureza e crescentes tonelagens, e o apogeu nos tempos de D. João III, com galeões deslocando as 1 000 toneladas (o famoso galeão S. João, apelidado de bota-fogo). Em 1522, o Rei D. João III com seu cunhado o Imperador Carlos V, ajustaram, para defesa de Espanha, de Portugal continental e dos Açores, face à ameaça berbere, uma convenção pela qual o monarca português se obrigou a armar vinte navios latinos (fustas e caravelas) de 25 e 30 toneladas para guarda permanente da costa, ao largo de Caminha, Atouguia da Baleia, Cascais, Sesimbra ou Sines, Lagos e Vila Nova de Portimão. A armada de guarda aos Açores deveria sair do Tejo todos os anos a 10 de Abril, com 3 naus e 3 caravelas.

É também um século em que se inicia uma Revolução nos Assuntos Militares (1560-1660)[16], talvez com afloramentos precoces em Portugal, com a expedição de D. Jaime, 4º duque de Bragança para conquistar Azamor (1513), o Primeiro Exército português em termos modernos mas pouco estudado[17], que continua a merecer alguma reflexão pelos historiadores quando se debruçam sobre as reais capacidades que permitiram a um Reino pouco povoado e com escassos recursos económicos construir um Império marítimo tão vasto. Parece existir consenso de que essas capacidades se repartiram entre alguma superioridade tecnológica na utilização da força militar, proporcionada pelo poder de fogo de uma artilharia mais desenvolvida e uma habilidade diplomática e capacidade negocial com populações e poderes locais demonstrada por Vasco da Gama, Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque ou Francisco de Almeida[18]. Como se diria actualmente, o uso equilibrado de hard power e soft power.

É ainda um século em que Portugal, aproveitando a oportunidade estratégica de o seu vizinho estar mais interessado no processo de unificação interna dos seus reinos, concebe uma estratégia de détente com a sua ameaça próxima e imediata materializada por uma hábil política externa assente em casamentos e repartição de esferas de influência (Tratado de Tordesilhas), interrompida por um conceito estratégico de expansão e conquista sobre o outro vizinho que era o Norte de África e concebido por D. Sebastião, coroado Rei aos 14 anos (1568). A sua tentativa de militarizar o Reino, através de novas leis de Ordenanças decretadas em 1570 para servir o seu conceito estratégico de conquistar o Norte de África reflecte, segundo Belisário Pimenta[19], «o caso curioso de ser o rei que mais abstractamente tratou dos assuntos da guerra, aquele que procurou dar organização mais consentânea, na época, com as necessidades do País». Isto porque as Ordenações visaram mais do que uma organização, já que tiveram o intuito, sem muita aceitação na população, de interessar todo o País na sua própria defesa.

O conselho do tio D. Filipe II, apoiado pela experiência militar do duque de Alba e o seu conhecimento dos recentes desenvolvimentos militares na Europa, no encontro de Guadalupe (1576) ou no envio de uma embaixada do Rei Católico a Lisboa, não conseguem demover o jovem monarca do seu intento. Nem D. Jerónimo Osório, bispo de Silves, que na sua obra De Regis Institucione et Disciplina, publicada em 1572 e dedicada ao Rei, aconselha que “guerras só as inevitáveis”·. Para a expedição ao Norte de África planeada com quatro Terços de Infantaria de 3 000 homens cada (um conceito de organização recentemente introduzido em Espanha por Gonzalo de Córdoba, o Grande Capitán), além de alguma cavalaria e artilharia, só são conseguidos três, recorrendo a importante número de estrangeiros. Os navios para o transporte, armados na maioria pela nobreza do Reino, reflectem a decadência que se tinha atingido. A derrota de Alcácer Quibir (1578), se na Europa não constituiu surpresa, no Reino causou dor e luto, pelo desaparecimento do Rei.

O tempo da dualidade das Coroas de Espanha e Portugal (1580-1640) traduz-se numa degradação das estruturas de defesa de Portugal (As Leis das Ordenanças são abolidas nas Cortes de Tomar, a pedido do Povo e Filipe II regulamenta a criação de cavalos no Reino. Ambas as medidas serviam os seus desígnios de incorporação de Portugal. Só em 1623 é que Filipe III reintroduz as Ordenanças, medida materializando a preparação do Reino para a defesa militar). Uma progressiva ameaça aos domínios e conquistas portuguesas além-mar, movida por franceses, ingleses e, especialmente, holandeses obrigam a uma defesa local com as poucas forças e populações nas fortalezas e a alianças com os naturais, desenvolvendo um tipo de guerra lenta de resistência. Projectar força militar à distância era difícil, quer por falta de gente armada quer pela falta de navios. O Atlântico, como área de operações anfíbias iniciadas com a resistência do Prior do Crato nos Açores (1582) e as tentativas de expulsão dos holandeses no Brasil (1625, 1639) retira a importância secular do Mediterrâneo. A empresa da Invencível Armada, na tentativa de Espanha invadir a Inglaterra (1588) tinha afectado a frota de mar de Portugal que, progressivamente e até 1622, considerado o ano de maior carência de meios neste período, ficou reduzida a 12 navios (representando 3 413 toneladas, com 565 tripulantes, 925 soldados e 168 canhões)[20]. As dificuldades crescentes da coroa em Madrid para sustentar guerras prolongadas com a França, os Países Baixos e na Itália, enquanto decorria a Guerra dos Trinta Anos na Europa, leva a tentar organizar unidades militares em Portugal, as coronelias, que são mais uma das causas para o golpe militar do 1º de Dezembro de 1640 reiniciando o direito dos portugueses a terem Rei próprio e natural.

Para a Grande Estratégia concebida e começada a executar pelo novo Rei, D. João IV, com o objectivo de manter Portugal independente, as falhas estruturais e operacionais para conduzir uma acção militar defensiva face a Castela e ofensiva além-mar para expulsar ocupantes, eram grandes. Portugal não possuía nem experiência militar nem meios para conduzir uma campanha que se adivinhava prolongada no tempo (durou vinte e oito anos). Retirando alguma experiência militar nas poucas praças do Norte de África, que continuavam a ser o seminário da arte militar para alguma nobreza, quem desejava seguir a carreira das armas procurava juntar-se às forças de Espanha e aos seus combates na Flandres e Itália.

A Revolução nos Assuntos Militares prosseguia, com a Guerra dos Trinta Anos a influenciar o aparecimento de diversas escolas de pensamento militar, com Maurício de Nassau nos Países Baixos, com Gustavo Adolfo na Suécia ou Turenne em França. A batalha, desenvolvida à sombra ou proximidades das praças-fortes, tendia para o campo aberto; as formações pesadas de infantaria e dos Tercios, armadas principalmente de piques, ia dando lugar a formações mais ligeiras e com crescente número de armas de fogo individuais; a cavalaria a diferenciar-se de acordo com o armamento utilizado e as missões primárias a desempenhar; a artilharia de sítio começava a dar lugar a uma artilharia de acompanhamento e a engenharia a diferenciar-se como arma no combate ou no seu apoio. Os exércitos crescem em efectivos, a saída em campanha exige funções logísticas mais aperfeiçoadas e os custos crescentes destes instrumentos só podem ser encontrados com impostos lançados sobre os povos. Obras sobre temas militares, escritas na Antiguidade mas guardadas nos manuscritos dos conventos, começam a ser difundidas pala imprensa recentemente inventada Em Portugal, o Padre Fernando Oliveira publica a Arte da Guerra no Mar (1555)[21] Luís Mendes de Vasconcelos manda imprimir em Alenquer (1612) a sua Arte Militar e João de Brito de Lemos, fidalgo da casa real e que foi militar, publica (1631) e oferece ao Príncipe D. Teodósio, o Abecedário Militar do que o soldado deve fazer.

É com a Restauração que se inicia em Portugal a modernidade da Instituição Militar, que seguindo a par da consolidação e fortalecimento do Estado, se vai reflectir nos seus elementos estruturantes de organização, de comando e hierarquia, de disciplina, de profissionalismo militar e de espírito de corpo. Os autores que se têm debruçado sobre essa evolução até à actualidade descrevem-na, principalmente, recorrendo a períodos temporais. São as visões de António Joaquim de Gouvea Pinto[22], Carlos Selvagem[23], General Ferreira Martins[24], e, mais recentemente e para a contemporaneidade, Ramires de Oliveira[25] ou Pires Nunes[26]. Outros autores procuram relacionar a cronologia de acontecimentos com outros aspectos da História, tais como a influência dos militares na modernização da sociedade portuguesa[27], o papel dos militares nas grandes mudanças em Portugal[28], os militares e o poder[29],[30], ou a relação político-militar no e após a mudança do regime político e consequente abandono do Império em 1974[31],[32].

Analisando cronologias e perspectivas somos inclinados a concluir que os elementos estruturantes da Instituição Militar, durante os quase quatro séculos decorridos entre 1668 – ano em que foi ratificado o Tratado de Paz com a Espanha, após os vinte e oito anos da Campanha da Restauração, que reconfirmou a independência e fortaleceu a identidade nacional – e a actualidade, foram condicionados e influenciados pelas mudanças, muitas vezes lentas e outras verdadeiramente revolucionárias, de que se destacam:

• O desenvolvimento do pensamento militar na Europa moderna, acompanhado pela evolução tecnológica dos armamentos e sua influência nas componentes genética, organizacional e operacional da estratégia militar;

• A organização do poder e do Estado e o seu controlo sobre os instrumentos militares, acompanhado pelo desenvolvimento dos conceitos de obediência e de disciplina;

• A percepção e materialização das ameaças à soberania no conceito alargado do Império e consequente conceito estratégico de resposta materializado nas Grandes Estratégias de Guerra e Paz;

• Os meios humanos e financeiros disponíveis e atribuídos para a segurança e defesa e seu enquadramento nas Grandes estratégias concebidas;

• O progressivo desenvolvimento do profissionalismo militar e o seu acompanhamento pelo ensino militar.

Portugal entrou na modernidade com a materialização de uma direcção estratégica militar e um órgão superior para regular a justiça e disciplina militares (Conselho de Guerra, 1641), uma organização militar da força terrestre diferenciada entre o Exército de Linha, Ordenanças e Tropas Auxiliares e as Cortes (1641 e posteriores) a deliberarem, sucessivamente, sobre os efectivos permanentes a manter em soldados pagos e a verba a despender anualmente com essa manutenção (inicialmente 20 000 infantes e 4 000 cavaleiros, calculando a verba de 1 800 000 cruzados – 720 contos de reis – para a sua manutenção anual). O Reino foi dividido em Províncias militares, num conceito de organização territorial de defesa onde se incluíram as fortalezas e suas guarnições permanentes, bem como Ordenanças e Tropas Auxiliares. O Terço de Infantaria passou a ser a unidade táctica fundamental, com 20 aquartelamentos fixos distribuídos por todo o espaço nacional. O Terço da Armada Real do Mar Oceano (1641) representava a força a embarcar nos poucos navios da Armada para a defesa da costa e protecção da navegação.

A defesa do Império era assegurada pelas fortalezas e suas guarnições diminutas materializadas em Capitanias-móres, no Brasil, nas praças do Norte de África, em S. Tomé e Príncipe, em S. Paulo de Luanda. O Vice-rei da Índia tinha a responsabilidade pelas fortalezas do Índico, Golfo, costas do Malabar e Indostão, Ceilão, Malaca (que seria perdida em 1641) e Extremo Oriente, incluindo Macau. Uma pequena esquadra de 4 navios de guerra e outras embarcações locais era considerada a «esquadra de socorro».

A Linha de Comando começava no Rei, aconselhado pelo Conselho de Guerra e depois pelo Conselho Ultramarino e os comandos subordinados estavam entregues à nobreza de sangue e, progressivamente, a uma nobreza de toga (D. João da Costa, Matias de Albuquerque, Pedro Jaques de Magalhães, Joane Mendes de Vasconcelos, Sancho Manuel de Vilhena, André de Albuquerque Ribafria e outros) que se iam distinguindo na Campanha da Restauração[33]. Novos postos, tais como os de General, Tenente-General, Marechal de Campo, Comissário ou Sargento-mor da batalha, no comando ou em funções de apoio, tais como vedor-mor, vedores e pagadores, iam completando uma estrutura onde a ascensão ou descida de postos eram reguladas pela autoridade real. Tropas e quadros estrangeiros (holandeses, franceses, escoceses, alemães) vagueavam pelos exércitos da Europa, com as principais nações envolvidas na Guerra dos Trinta Anos, e também foi um recurso a que a nova monarquia portuguesa lançou mão. A vinda do conde Friedrich Schomberg para Portugal, em 1660, militar experimentado e a conselho do marechal Turenne de França, influenciou procedimentos e a doutrina de emprego de meios, evidenciados nas batalhas do Ameixial (1663) e Montes Claros (1665).

O progressivo uso da artilharia e as necessárias medidas defensivas na arquitectura das fortificações começam a ser objecto de conhecimentos especializados e o seu ensino é ministrado pelos jesuítas. Em 1641 é criada em Lisboa uma Academia de Artilharia a que se segue, em 1647, a Academia de Fortificação e de Arquitectura.

Estavam lançados os alicerces de uma Instituição em que o espírito de corpo, com o uso progressivo do uniforme, se materializava também com a camaradagem de armas entre soldados velhos e novos, e a pertença a um comando, como são descritas no Manuscrito de Matheus Roiz[34].

Este modelo organizacional do Exército vai manter-se, na sua essência até aos tempos actuais, com a diferenciação entre um exército de campanha e um exército territorial representando a Nação em Armas, seja pelo sistema de Ordenanças, abolidas em 1834, seja pelo de Reserva introduzido em 1839 e progressivamente abandonado desde 1974. O exército de linha ou de campanha, com escalões diferenciados de comando, começado pelo sistema Regimental em 1707, esteve orientado sucessivamente, para a defesa da base territorial do Continente face a invasões com concentração em volta de Lisboa (Guerra da Sucessão de Espanha, Guerra dos Sete Anos, Guerra das Laranjas, Invasões Francesas, 2ª Guerra Mundial, período da denominada Guerra-Fria), para a defesa dessa base territorial e para poder ser projectado para o exterior para combater com aliados e amigos (Campanha do Roussilhão, Guerra Peninsular, 1ª Guerra Mundial, OTAN, Nações Unidas e União Europeia) ou para defender interesses nacionais no Império (Brasil, 1822; África, 1894,1917; Estado da Índia, 1953-1961; África 1961-1975). As necessidades de projecção de forças do Exército para o exterior, quer durante a Monarquia quer depois de implantação da República, e até mudança do regime em 1974, eram satisfeitas pelo recurso a forças mobilizáveis.

Nas cerca de dezoito reorganizações do Exército ocorridas até à implantação da República, em 1910, a par da influência da evolução das doutrinas militares que se iam verificando na Europa (Latino Coelho[35] dizia que o Portugal nunca foi muito lesto em madrugar para as proveitosas invenções e descobrimentos da ciência militar) e do armamento disponível que condicionavam, naturalmente, a organização para a campanha, os efectivos e as verbas orçamentais disponíveis eram os factores que mais condicionavam a implantação territorial. Por exemplo, os efectivos do Exército em 1762, com a reorganização introduzida pelo conde de Lippe[36], atingiam 48 040; em 1812, com a reorganização influenciada por William Carr Beresford esses efectivos atingiam os 52 006 – o máximo em mais de um século – e a despesa calculada era de 6 042 340 mil reis e em 1849 (final da segunda Guerra Civil), os efectivos eram 24 000, incluindo 6 000 reservistas, e a despesa atingia os 2 730 488,77 mil reis.

Até ao final da Monarquia, o peso relativo que a Marinha e o Exército vão tomando na constituição da força militar da Nação oscila, condicionado pelo que o Professor António José Telo designa por «vagas de modernização»[37], as ameaças ao Império e as disponibilidades financeiras. Na primeira vaga e até às revoluções liberais, a Marinha que se tinha transferido quase na totalidade com a Corte para o Brasil e tinha aderido à causa de D. Pedro em 1822, chega a 1824 com a sua frota reduzida a um terço do que era em 1807. Se a vitória liberal tinha partido do mar para terra graças a uma marinha organizada com meios estrangeiros, a Marinha nacional permanecia fiel a D. Miguel e a uma mentalidade tradicional. Estabilizada a vida interna nacional e definida como prioridade a viragem para África, a Marinha absorve o que a segunda revolução tinha trazido para a guerra naval com a máquina a vapor, apoiada pelo programa político da Regeneração. Em 1854 a Marinha cria o corpo de maquinistas navais e entre 1858 e 1873 chega ao país a primeira geração de canhoneiras, com a Barão de Lazarim, lançada à água no Arsenal de Lisboa em 1858. Em sete anos (1858-1865) a Armada passa de 24 navios com menos de 16 000 toneladas para um número não muito superior (26), mas agora com 24 000 toneladas[38].

A guerra Franco-Prussiana e a vitória da Prússia em 1870, o Congresso de Viena e a formação do Império Alemão em África levam Andrade Corvo (Ministro dos Estrangeiros em 1871-1887 e em 1878-1879, quando acumula com a pasta da Marinha), a escrever o seu livro Perigos (1870). Conclui que era vantajoso aprofundar a aliança com a Inglaterra, fazer uma aproximação aos EUA e desenvolver um poder naval próprio.

O ano de 1875 marca o início da «corrida para África», com programas de organização e de armamentos e equipamentos que a incipiente industrialização do País tem dificuldade em acompanhar e a «ocupação efectiva dos territórios», incitada pelo Ultimatum de 1890, dá início a um conjunto de campanhas expedicionárias e de pacificação, desenvolvidas por um nova geração de oficiais que ficaram a ser designados por «africanistas». Os militares ocupam-se na defesa do Império, mal guarnecido militarmente (entre 1894 e 1914 cerca de um terço dos oficiais do Exército passa pelo menos uma das muitas campanhas, que podem durar entre três meses e um ano)[39], enquanto que em Lisboa sociedades secretas como a Maçonaria e a Carbonária vão conspirando para o derrube da Monarquia ou o controlo da organização militar.

A implantação da República em 1910, logo seguida de grandes reorganizações militares que voltaram ao conceito de Nação em Armas, teve de enfrentar convulsões internas à sua estabilidade e ameaças externas aos interesses da Nação, a que a Organização Militar respondeu com a mobilização para a 1ª Guerra Mundial, quer no Teatro de Operações Europeu quer às ameaças ao Império.

O «Longo Século XX da Instituição Militar em Portugal», que se inicia com os acontecimentos do 31 de Janeiro de 1891 no Porto e termina com a abolição efectiva do Serviço Militar Obrigatório, em 2005, representa para a Organização Militar um século de sucessivas e pouco duradouras modificações estruturais. Destacam-se como as mais importantes as de 1911, 1926, 1937 (a mais duradoura), a de 1958, a de 1974 e a de 1993. Essas modificações estruturais permitiram responder a desafios como mudanças na concepção e organização política da Nação (Monarquia, 1ª, 2ª e 3ª Repúblicas), no Quadro Constitucional e Missões das Forças Armadas (do combater para defender a missões de prevenção de conflitos e de utilidade pública), no Enquadramento Estratégico Mundial (1ª e 2ª Guerras Mundiais, Guerra Civil em Espanha, adesão à OTAN, Guerra-Fria, descolonização, União Europeia, novas concepções de Paz e Guerra) e consequente Conceito Estratégico de Resposta (ameaças internas ou externas, em espaços nacionais e próprios ou alargados).

Permitiram ainda resposta adequada à inclusão na Instituição Militar, com identidade própria e diferenciada da Força Aérea (1953), a novas concepções dos meios postos à sua disposição (meios humanos voluntários com pessoal feminino, orçamentos de sobrevivência e quase total dependência do exterior para armamentos e equipamentos) e a novas concepções de operações militares conjuntas entre Ramos e Combinadas com Aliados ou amigos.

A Instituição Militar, e a sua organização, enfrentaram os maiores desafios na era contemporânea com a adesão de Portugal à OTAN e o seu conceito de defesa colectiva, em 1949, com o seu empenhamento na defesa do Império de 1961 a 1975 (ano em que a sua estrutura chegou a englobar 200 000 efectivos, espalhados num espaço alargado e descontínuo, representando uma despesa de cerca de 7% do PIB e 11% do Orçamento Geral do Estado) e com a sua adaptação contínua e progressiva desde 1975 a novos parâmetros de missões e meios (os efectivos rondam os 40 000 e a despesa situa-se em cerca de 1,2% do PIB e 3% do OGE).

Essa adaptação tende para organizações menos verticais e distintas entre Ramos das Forças Armadas e a diminuírem a sua componente territorial para dar lugar a estruturas mais horizontais e federadas entre os Ramos, desde o tempo de paz, integradas ao nível de comandos, estados-maiores e funções de ensino, instrução e treino e logísticas, permitindo assim uma mais fácil transição para as situações de combate. Experiências recentes aconselham a tendência para organizações militares para o combate temporárias, com ligação e comunicação permanente com outras organizações dedicadas a outras funções mais especializadas na resolução de conflitos, permitindo ao combatente dedicar-se à sua missão primária de combater.

Esta evolução e tendência do elemento organização da Instituição Militar para não perder o seu carácter estruturante, tem de ser encarado com dois cuidados. Por quem define missões e meios, não caindo na tentação da gestão empresarial de custo-eficácia pensando que reduções se traduzem em efi-cácia, esquecendo a componente institucional da Missão que, perdida, não se readquire com facilidade. Por quem vive na Instituição, esquecendo que a organização distintiva e diferente de cada Ramo das Forças Armadas lhes confere um carácter estruturante com forte influência noutros elementos: o profissionalismo militar e o espírito de corpo.

A organização vai influenciar outros elementos estruturantes de Instituição Militar, onde critérios de modernidade se iniciam, também, no período mais longo de guerra (28 anos) que Portugal tem de enfrentar no seu caminho de Estado-Nação: a Restauração.

O comando e a hierarquia, assentes numa nobreza de sangue e baseado num critério de escolha, com ênfase em factores subjectivos de lealdade, obediência absoluta ao poder real e factores objectivos de coragem, valentia e valor demonstrado no combate mas também de hereditariedade[40], vai dando lugar, progressivamente, a um critério de nomeação baseado em competências e observância de virtudes que, por inerentes à Instituição, começam a distinguir-se como virtudes militares. Nesse percurso progressivo são factores de influência as reorganizações levadas a cabo nos séculos XVIII e XIX (para fazer face a ameaças directas ao Território Nacional), a presença e comando de militares estrangeiros (Schomberg, Lippe e Beresford)[41], o crescente profissionalismo militar pelo desenvolvimento do ensino militar, as campanhas militares que envolvem a Nação e a tendência, com intensidades variáveis, da não interferência de critérios políticos na promoção aos postos superiores da hierarquia. A evolução do Exército e da Marinha, na segunda metade do século XVIII, aponta para uma maior profissionalização dos seus corpos de oficiais e para uma cada vez maior integração de indivíduos não nobres na carreira das armas chegando a haver rivalidade entre oficiais de armas combatentes, cavalaria e infantaria, cujos quadros provinham mais da fidalguia e os das armas de apoio, artilharia e engenharia, cujos oficiais tinham menos propensão para serem parentes dos Meneses[42]. Investigações e estudos mais recentes, desenvolvidos pela Professora Dr.ª Maria Carrilho vieram evidenciar essa tendência[43].

Por dificuldades e tempo para proceder a uma investigação alargada à Marinha e, depois, à Força Aérea, passarei a referir o que investiguei relativamente ao Exército durante a contemporaneidade[44] que, espero, seja desenvolvida pelos outros Ramos das Forças Armadas.

A reorganização do Exército introduzida pela República e publicada em 26 de Maio de 1911, manteve o Conselho de Promoções, criado pela carta de lei de 1901, mas agora com nova composição com maior participação da hierarquia superior do Exército. A selecção dos Oficiais para promoção a General passou a fazer-se num sistema misto de antiguidade e escolha, entre os Coronéis, devendo a promoção ser sancionada pelo Ministro da Guerra. Os factores de avaliação, introduzidos na lei, que passavam por dotes de carácter, coração, educação e instrução, foram sucessivamente alargados e aperfeiçoados durante o século, reflectindo-se, actualmente, em Folhas Individuais de Avaliação, de carácter normal e temporal ou de carácter excepcional sempre que termina o desempenho de uma função. Universal para todos os Quadros do Exército, em Oficiais e Sargentos, com força estatutária, cobre áreas diferenciadas de avaliação tais como a condição física, o carácter, o espírito de missão, o sentido de disciplina, a sociabilidade, o interesse pelos subordinados, a inteligência, a capacidade de comunicação oral e escrita.

Depois de 1974 foram institucionalizados os Conselhos das Armas e dos Serviços, constituídos por oficiais e sargentos eleitos e nomeados, para avaliarem as virtudes militares e o desempenho de funções dos seus camaradas de armas. Elaboram listas anuais de oficiais a promover, a manter nos postos ou abandonar o serviço activo que submetem ao Chefe do Estado-Maior do Exército que sobre elas ouve o Conselho Superior do Exército. Até à promoção a Oficial General a competência para promoção é do General Chefe do Estado-Maior do Exército.

Após a promulgação da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (1982), o Conselho Superior do Exército tem sido o Órgão onde se faz a avaliação dos méritos absoluto e relativos de Coronéis para a frequência do Curso Superior de Comando e Direcção e, depois da sua conclusão com sucesso, para apresentação de uma lista ordenada ao Chefe do Estado-Maior do Exército para a sua promoção de acordo com o número de vagas no Quadro. Ainda que o Conselho de Chefes de Estado-Maior tenha funções decisórias na sua confirmação, e o Conselho Superior da Defesa Nacional te-nha responsabilidades administrativas na sua confirmação, pode concluir-se que o poder político perdeu, progressivamente ao longo do século, a sua influência na escolha dos generais. Aspecto que procurou compensar, depois da revisão da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas, em 1993, com a escolha das chefias militares.

De 1857 (a data de entrada dos primeiros cadetes na Escola do Exército) a 1910 (53 anos) ascenderam a Oficial 4 333 indivíduos, tendo atingido o posto de General 183 (menos de 5%); de 1910 a 1945 (35 anos) ascenderam 3 717, com um número substancial de oficiais milicianos que participaram na 1ª Guerra Mundial ou foram mobilizados no segundo conflito e atingiram o generalato 280 oficiais (cerca de 7%); de 1945 a 2000 (55 anos) num universo de 5 482 ex-cadetes da Escola do Exército/Academia Militar que ascenderam a Oficial, 204 (4%) foram promovidos a General.

A Disciplina Militar, concebida inicialmente como «a habilidade de aguentar firme diante do inimigo sem conceder mecanismos para impulsos naturais de mêdo ou pânico»[45], na sua evolução conceptual e de codificação seguiu de muito perto o conceito e codificação da justiça. Os instrumentos militares eram activados para fazer face a um inimigo, as faltas eram consideradas crimes porque cometidas na frente do inimigo e julgadas e punidas pelo direito como crimes. Todos estes conceitos evoluíram com a força militar a tornar-se permanente e a viver em conjunto em guarnições e a disciplina militar passou a constituir mais um código de conduta e de comportamento, com a diferenciação entre infracção disciplinar e crime.

Na sequência de conceitos fixados na legislação de 1643, com a Nação em guerra, e em que os magistrados locais deviam arbitrar e julgar as questões de carácter militar, enquanto auditores, sob a supervisão de um Auditor-Geral que funcionava como instância de apelo, a exemplo do Conselho de Guerra, as Ordenanças de 1708 procuram estabelecer diferença entre a Justiça Militar (em que se definem as regras que deviam presidir à constituição de conselhos de guerra, a sua composição, o papel dos auditores aos diferentes níveis, as vias de recurso e as condições para a execução de penas, entre outros aspectos) e a Disciplina Militar, onde um capítulo das Ordenanças, articulado em setenta e sete artigos, procura iniciar a sistematização de um código de disciplina.

Na fase de modernização do exército com o marquês de Pombal e a acção do conde de Lippe, um alvará de 21 de Outubro de 1763 marca algumas inovações. No campo da Justiça, um auditor passa a estar adstrito a cada Regimento, cabendo-lhe desempenhar o papel de juiz relator nos conselhos de guerra. São definidas competências e punições no sentido de serem bem demarcadas as esferas respectivas das jurisdições civil e militar, de modo a que «nem a mesma Jurisdição Militar dos referidos auditores, e Conselhos de Guerra, implique com a Jurisdição Civil dos Magistrados dos lugares, onde ambos concorrem; nem pelo contrário a segunda das ditas Jurisdições implique com a primeira delas…». Na área da disciplina, Lippe procura remodelar os denominados artigos de guerra, tentando regular código de conduta dos militares. Entre a tentação da magistratura entrar na área da disciplina e a tentação dos militares em manter uma justiça própria começou um longo caminho que nem a legislação saída da Revolução liberal, nem a publicação do Código Penal em 1853 e a abolição das penas corporais, nem a República resolveram convenientemente.

Com a Constituição de 1976, e suas alterações subsequentes, foram abolidos os Tribunais Militares e alterado o Código de Justiça Militar, mas a Assembleia da República ainda não legislou sobre as Bases da Disciplina Militar, necessárias para uma Condição Militar já definida, ainda que não regulamentada, e para novas condições para o Serviço Militar.

No que entendemos por profissionalismo militar – um misto de formação, conduta e comportamento nas relações com o poder e com a Nação – a sua evolução tem sido condicionada pelo ensino militar e a sua especificidade, o comportamento dos militares e as relações da Instituição Militar com o Estado e a Nação.

Debruçando-nos sobre a evolução do ensino militar teremos de reconhecer que várias tentativas iniciadas mesmo antes da Restauração, em Vila Viçosa e na Baía, no Brasil, visando o ensino dos procedimentos especializados no uso da arma de fogo e de explosivos, para a acção da artilharia e da engenharia, a que se seguiram reformas sob a orientação do marquês de Pombal, uma política de ensino para a formação de Oficiais só foi iniciada em 1837 e a formação específica de Sargentos teve de esperar até 1978.

Em 1641, numa das salas do Paço da Rainha, foi instituída a Lição de Artilharia e Esquadria que foi substituída, em 1647, pela Aula de Fortificação e Arquitectura Militar, tendo sido nomeado seu lente o cosmógrafo do Reino, Luís Serrão Pimentel.

O desenvolvimento do pensamento militar no século XVIII e os principais conflitos que o atravessaram obrigaram à evolução do ensino e preparação de Quadros. Em 1752 a Aula de Fortificação foi transferida para o Terreiro do Paço, com a designação de Academia Real da Corte, em 1761 foi criado o Real Colégio dos Nobres para a formação de oficiais de infantaria e cavalaria e, em 1762, junto dos Regimentos de Artilharia foram organizadas Escolas de Preparação de Artilheiros. A preparação de Oficiais para a Marinha, de guerra e mercante, levou à criação da Real Academia dos Guardas-Marinhas (1757) e da Academia Real de Marinha (1779). Nos Açores, em 1797, foi criada uma Aula de Matemática para os oficiais do batalhão aquartelado no forte de S. João Baptista, na Ilha Terceira[46].

Em 1790 é criada a Academia Real de Fortificação, Artilharia e Desenho e que pode ser considerado como o primeiro estabelecimento de ensino superior dos oficiais do Exército, que iria durar até à sua transformação em Escola do Exército, em 1837. Durante a sua vigência de 43 anos, dos 2 715 alunos inscritos só 462 terminaram a sua escolaridade, o que representa uma percentagem pequena (17) e também uma média anual baixa de conclusão dos cursos (10), mesmo considerando o período de não funcionamento durante a Guerra Peninsular[47].

Em 1837, o marquês Sá da Bandeira cria a Escola do Exército no dia seguinte à criação da Escola Politécnica de Lisboa. Considerada como herdeira da Academia Real, a sua finalidade é expressa nas palavras de Sá da Bandeira. “…A verdadeira reforma desta academia era impossível, enquanto não se criasse uma escola de ciências físicas e matemáticas, na qual os alunos adquirissem todos os princípios necessários para poderem entrar com o indispensável desenvolvimento no estudo da difícil ciência da guerra e suas vastíssimas aplicações».

Em 1845, o Ministro Joaquim José Falcão cria a Escola Naval, que representou também um compromisso entre as duas tendências que mantinham uma acesa polémica na Marinha: a perspectiva politécnica e a marítima.

Sucessivas reformas de conceitos e de estrutura vão atravessar estes estabelecimentos de ensino militar e, mais recentemente, a Academia da Força Aérea. Representam o conceito abrangente da formação inicial do Oficial na Instituição Militar e o compromisso estatutário de formação contínua ao longo da carreira. A uma formação inicial de aptidão física e preparação moral, a que se juntavam as necessidades de cultura geral e competências técnica e táctica, vieram juntar-se necessidades de formação em áreas tão diversificadas como a humanística (psicologia, sociologia, economia, ciência política, direito, relações internacionais) e de gestão (de recursos humanos, materiais e financeiros). A formação contínua materializou-se em cursos de especialização ou promoção, preparando Oficiais e Sargentos para funções novas de Comando resultantes da hierarquia que vai sendo atingida e assiste-se a uma tendência para cursos de especialização ou de promoção comuns para os diferentes Ramos das Forças Armadas, resultantes do emprego conjunto da força militar. Novas tendências no Ensino Superior, lançadas no âmbito da União Europeia, levam à tentação de levar o Ensino Militar a seguir essas tendências, o que pode constituir um erro irreparável no conceito abrangente de profissionalismo militar.

O espírito de corpo é o sentimento que ao longo dos tempos se desenvolveu entre camaradas de armas de pertença a um grupo. Desenvolvido por sinais simples que se foram sucedendo, como a partilha da mesma camarada[48], o uso do mesmo uniforme, o alojamento e a pertença ao mesmo Regimento ou à mesma unidade, o seu fortalecimento deveu-se à partilha de perigos comuns e ao compromisso de não deixar para trás nenhum dos nossos. Constituindo-se como um factor que muito influencia o moral, a acção de comando procura permanentemente manter e desenvolver esse espírito de corpo com simbologias, ritos e cultos, dos heróis e dos mortos, que se constituíram na simbologia e cerimónias militares e que constituem um legado cultural de gerações. A partilha de uma condição, a condição militar, foi-se estendendo à família e a família militar passou a ser incluída nesse espírito de corpo, que algumas correntes de pensamento tentam criticar apelidando-o de corporativismo militar, esquecendo a importância que tem para a Instituição Militar. Foi o espírito de corpo e o sentido de entreajuda que levou a instituir, em 1790, o Monte Pio, constituído com fundos iniciais resultantes da contribuição voluntária de um dia de soldo de cada oficial e destinado a pagar pensões e filhos órfãos, à criação do Asilo de Runa para ex-militares e as Companhias de Veteranos para manter na dignidade os que se tinham sacrificado na defesa da Nação[49].

Em tempos de grandes modificações da sociedade, a Instituição Militar adquire o estatuto de instituição de sobrevivência em que o espírito de corpo que a distingue tem funcionado como sentinela de alerta para os sinais que podem afectar as raízes históricas da unidade nacional e dos seus valores. Não é por acaso que as tentativas de conquista começam por avaliar e destruir o espírito de corpo que caracteriza as instituições militares do sistema a conquistar.

 

IV. O Estado e a Instituição Militar

O desenvolvimento do estado-nação levou a seu lado o desenvolvimento dos instrumentos militares que serviam os seus interesses. As guerras, progressivamente, deixaram de ocorrer devido a interesses pessoais para se desenvolverem no sentido de atingirem fins visando o interesse do estado-nação. Nesse acompanhamento, os instrumentos militares evoluíram para se tornarem mais permanentes e cada vez mais caros e o Estado começou a encará-los na sua finalidade primária de combater na guerra e também, com algumas variações resultantes de concepções que iriam conduzir ao aparecimento de corpos para manterem a segurança e protecção dos cidadãos, designados por polícias, para a manutenção da lei e ordem nas sociedades de que os estados emanavam. No Estado, a par das burocracias crescentes que se encarregavam da justiça, da fazenda e da representação internacional, começam a aparecer burocracias encarregadas de manterem os instrumentos militares e tratarem dos seus assuntos como funções do Estado. Em Portugal, e reinava D. João V, um alvará de 28 de Julho de 1736 cria a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra (assumida por Marco António de Azevedo Coutinho), ao mesmo tempo que as outras Secretarias de Estado passam a ser designadas por Negócios Interiores do Reino e Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos. Os Conselhos de Estado e Ultramarino perdem competências e funções. Esta evolução – que reflecte o peso crescente dos assuntos militares no quadro do Estado moderno e a complexidade burocrática inerente à centralização dos poderes – será acompanhada por legislação que se vai sucedendo, no que diz respeito à organização dos diversos serviços e à sua racionalização. A Secretaria de Estado dividir-se-á em várias direcções e secções, onde trabalhava um grande número de funcionários civis que podiam ascender até ao lugar de director[50], e esta organização vai manter-se até 1821. Durante o absolutismo pombalino, em 1760, é criada a Intendência-Geral da Polícia da Corte e do Reino e a Guarda Real da Polícia, o que vem afastar o Exército, temporariamente, de interferência nos problemas da lei e da ordem.

A evolução do conceito do Estado moderno, depois da queda do Antigo Regime com a Revolução Francesa e até à contemporaneidade, relaciona-se com as funções que entende desempenhar perante a sociedade e que ciclicamente tem alargado ou diminuído, não só por questões ideológicas mas também pelos vários períodos de relações económicas e sociais que têm atravessado a humanidade e que hoje merecem debate alargado. A tremenda burocratização do Estado e a despesa progressiva que tem representado face a economias em crescimento moderado levam a que hoje se discutam as suas funções essenciais. A um diagnóstico da sua evolução e à sua fundamentação política e necessária numa sociedade organizada[51], algumas vozes clamam pela sua maior eficiência[52] e outras vêem com apreensão o seu desmantelamento como perigo para o sistema democrático[53].

A construção do Estado contemporâneo em Portugal está muito ligada à Instituição Militar e aos militares que, conforme é demonstrado por muitos historiadores[54], tiveram influência decisiva nas transformações bruscas de «quebra com o passado», desde o movimento liberal de 1820 até 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975. Essas grandes mudanças, seguidas da reorganização do Estado e consequente definição do sistema constitucional, contrariamente a outras Constituições que só se preocuparam com a defesa, tiveram sempre a intenção de definir as relações da força militar com o Estado. A Constituição de 1822, de curta duração, no seu capítulo VIII ocupava-se da «Força Militar», definindo nos seus artigos «que haveria uma força permanente, nacional, cabendo às Cortes determinar o número de tropas e vasos», que a principal função atribuída era a de «manter a segurança externa e interna do Reino, com sujeição ao Governo, a quem compete empregá-la como lhe parecer conveniente» e que essa força devia ser «essencialmente obediente». Esses princípios vão estar em debate nos anos conturbados que se seguem, com especial ênfase sobre a quem compete empregar a força e a quem obedece a força (Rei ou Governo) levando à criação da força governamental representada pela Guarda Nacional (1838), ainda que incluída na força, que viria a ser extinta com a República. Em 1842, com a reposição da Carta Constitucional, os princípios reguladores manter-se-íam até à República, em 1910. O regime republicano, mantendo o conceito de força militar permanente como instrumento do Estado, nos vários sistemas constitucionais vividos tem mantido o debate ainda não terminado sobre o emprego da força face a ameaças externas e internas, sobre o monopólio da força militar nas Forças Armadas ou repartida com outros Corpos Militares e sobre o conceito de obediência, com o Presidente da República a desempenhar o cargo de Comandante Supremo das Forças Armadas mas com a Assembleia da República e o Governo a repartirem competências no emprego da força[55].

A evolução do conceito de guerra e a sua natureza, as ameaças percebidas à soberania nacional e os falhanços do Estado no desempenho das suas funções e a forma como foi entendida pelos militares, têm sido, no nosso ponto de vista, os factores que mais têm influenciado as relações Estado-Instituição Militar na sociedade portuguesa após o movimento liberal de 1820.

O conceito de guerra, desde a percepção e teorização de Clausewitz como a continuação da política por outros meios, sofreu tremendas e contínuas evoluções quer nas suas finalidades quer na procura dos meios mais eficientes para a conduzir, com a sua influência no desenvolvimento das tecnologias. Marcos nesse desenvolvimento foram, entre outros, as I e II Guerras Mundiais, o aparecimento da arma nuclear, as Guerras de Libertação e sua teorização na China de Mao Tse Tung e seus seguidores, a Guerra-fria conduzida na era dos Pactos, novos conceitos de prevenção e resolução de conflitos e o papel da comunidade internacional nessas tarefas e, mais recentemente, um conceito de guerra pré-emptiva e todas as dúvidas que suscita. Das guerras de necessidade, na defesa de espaços ou interesses nacionais, evolui-se para guerras de opção, com os estados a envolverem-se nesses conflitos menos pela necessidade de defesa e mais pela opção de segurança.

A Instituição Militar em Portugal seguiu essa evolução e as necessárias adaptações no seu elemento organizativo, nem sempre de uma maneira pacífica e sem convulsões. Terminadas as Invasões Francesas, e a subordinação a comandos estrangeiros, a Instituição Militar e a sua materialização objectiva que são as Forças Armadas, na sua organização, adaptaram-se para participarem na I Grande Guerra, contribuíram para que Portugal mantivesse uma neutralidade na II Grande Guerra, defenderam os interesses nacionais no Império, integraram-se em estruturas militares de defesa colectiva, participam em missões de estabilização de conflitos. Cumprindo interesses e directivas do Estado e dos seus princípios constitucionais, que nem sempre estiveram em consonância com a Nação, o seu elemento estruturante entendido como o profissionalismo militar foi-se enraizando progressivamente na Instituição depois de consolidado o regime democrático saído do movimento militar do 25 de Novembro de 1975.

A percepção do Estado sobre as ameaças que podem afectar a soberania, e a sua tipificação em ameaças externas ou internas é um outro factor que tem, ciclicamente, afectado as relações do Estado com a Instituição Militar, ciclos que de algum modo corresponderam às mudanças do regíme político na Nação e ao papel que à Instituição Militar é atribuído na manutenção da ordem interna, materializado nos textos constitucionais. Soluções de compromisso têm sido algumas vezes procuradas em forças militarizadas, dispondo de funções policiais e de força armada, tais como a Guarda Nacional saída do Liberalismo ou a Guarda Nacional Republicana criada com a República, mas que na sua evolução e nas tentações de se constituírem como força armada do Governo, conduziram a experiências mal sucedidas. A práticas abandonadas pelos estados democráticos de respeitar o profissionalismo militar, mantendo a força militar como exclusividade do Estado e não envolver a Instituição Militar naquilo que para muitos é qualificado como a dirty job, o Estado, em Portugal, tem mostrado algumas vezes desrespeito por aqueles princípios.

Finalmente, e como factor que mais tem destabilizado as relações Estado-Instituição Militar, teremos de abordar a questão do falhanço do Estado no desempenho das suas funções e a forma como foi entendida pelos militares e que conduz a um assunto mais complexo mas bastante estudado sobre as intervenções dos militares nos assuntos do Estado[56],[57].

As percepções dos militares sobre as funções do Estado e os seus falhanços e consequente intervenção em assuntos da política nos dois últimos séculos em Portugal foram ligados ao insucesso da governação civil, que não poucas vezes se traduziu “em crise económica, incapacidade de manutenção da ordem pública, desaire da política externa”[58]. A justificação da intervenção militar é sempre definida pela tentativa de prover “salvação nacional e deriva sempre de uma valoração negativa do aparelho e pessoal político no poder. Acha-se que este não quer, não é capaz, ou não tem meios de cumprir os objectivos essenciais da comunidade que dirige”[59].

Nas cerca de sessenta intervenções militares no poder, entre 1817 e 1871 (com a consequente participação de militares no Estado), dos 170 indivíduos que sobraçaram pastas ministeriais 61 foram militares. Na Assembleia Constituinte de 1911, que se seguiu à implantação da República, dos 228 deputados, 50 foram militares, com preponderância para o Exército (31%). Até 1982, a participação de militares nos assuntos de Estado, quer em cargos do Governo Central, quer nos Governos de Distrito, quer nos Governos Ultramarinos foi intenso, demonstrado por dados estatísticos, de que salientamos um: entre 1911 e 1925, o Exército esteve sob a autoridade política de 50 Ministros da Guerra, dos quais 27 foram militares (e vieram a atingir o posto de General…).

O profissionalismo militar desenvolvido na Instituição, depois de adesão de Portugal à OTAN e consolidado nas Campanhas de África, retirou aos militares a apetência pelo poder, que ficou demonstrado pela intervenção de 25 de Abril de 1974. Nenhum militar foi eleito para a Assembleia Constituinte e poucos militares tiveram participação nos Governos provisórios. A institucionalização do Movimento das Forças Armadas dentro da própria Instituição Militar foi um exemplo de inteligência política e de profissionalismo militar que alguns ainda pretendem ocultar e outros não têm sabido estudar. A vigência do Conselho da Revolução e o exercício cumulativo dos cargos de Presidente da República e de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas permitiu a ligação Estado-Forças Armadas e a supervisão da acção governativa só quebrada quando um militar assumiu a chefia do Governo, com consequências que se mostraram desastrosas, evidenciando que as tentativas de construção de um Estado absoluto ou totalitário não estão de acordo com a idiossincrasia da Nação portuguesa.

Na outra via da estrada que representam as relações Estado-Instituição Militar, isto é, no sentido Estado-Instituição, o trânsito não tem sido sem engarrafamentos, representando um fluir aos solavancos, grandemente influenciado pela alternância no poder próprio do regime democrático mas com programas de Governo que nem sempre observam o carácter institucional da força militar. Uma burocratização crescente, que acrescenta a despesa e torna mais lento o processo de decisão, tem adulterado o princípio indiscutível do controlo civil sobre a força militar, tentando criar estruturas de eficiência duvidosa, interferindo em áreas do Comando da exclusividade da função comando, e implementando disposições legislativas que, disfarçadamente apelidadas de Reestruturação ou Modernização das Forças Armadas, têm vindo a afectar os elementos estruturantes da Instituição Militar, privilegiando factores de conjuntura face a princípios de estrutura.

Se representarmos o Estado por um círculo e a instituição Militar por outro círculo, a sua ligação em tempo de paz, materializada pela intersecção dos dois círculos, deve ser a menor possível. O Estado tem o direito indiscutível de fixar Missões, estabelecer Orçamentos e produzir legislação, mas deve permitir espaço e procedimentos próprios que garantam a autonomia do Comando e a independência ao conselho militar na decisão. Decidir o armamento ou equipamento que os requisitos operacionais do Comando aconselham face a um critério de contrapartidas financeiras é mau; decidir um dispositivo da força militar no território, baseado em critérios economicistas completa o mau caminho que se trilha.

 

V. A Nação e a Instituição Militar

A missão primária da Instituição Militar materializada nas Forças Armadas é a defesa da Nação, dos seus cidadãos e da herança cultural comum que constitui a Pátria. Essa missão não é discutida em tempos de conflitos e de ameaças que exigem aquela defesa, mas a existência de instrumentos militares permanentes, começou a merecer contestação das populações, especialmente pelos recursos que consomem, considerados não reprodutivos. O recurso ao serviço militar obrigatório para alimentar permanentemente as Forças Armadas, recorrer à mobilização para fazer face a situações de emergência, utilizar parcelas crescentes dos orçamentos para manter, equipar e treinar forças militares, têm merecido contestações cíclicas das opiniões públicas e de correntes de pensamento que reclamam paz.

As respostas das administrações dos estados a estas contestações, com especial ênfase no mundo euro-atlântico, têm variado, passando pelo empenho das Forças Armadas, em tempo de paz, em missões de apoio ao desenvolvimento e obras públicas em condições ou áreas difíceis ou atribuindo-lhes «outras missões de interesse público». A alteração das formas de serviço militar em tempo de paz, recorrendo a formas de voluntariado, tem sido outra resposta.

A natureza das ameaças e o tipo previsível de conflitos levou as Nações a procurarem em alianças colectivas de defesa as respostas mais adequadas para essa função da soberania, e mais recentemente para a sua segurança, como sejam a NATO ou a União Europeia, mas que obrigam a contribuições nacionais exigentes em recursos e prontidão e, mais recentemente, em critérios de convergência de despesas públicas com a defesa e segurança, tentando fixar padrões para quanto cada um deve gastar. A utilização das Forças Armadas em acções de apoio à paz por parte das Nações Unidas, a coope ração civil-militar em acções humanitárias ou de reconstrução em áreas afectadas por conflitos ou acções de cooperação técnico-militar, têm vindo a atenuar as contestações à necessidade de força militar contrapondo-lhe argumentos de utilidade.

Tentar avaliar a relação da Nação com a sua Instituição Militar, identificando fenómenos de aceitação ou de repulsa, tem merecido a atenção de analistas, recorrendo a critérios subjectivos ou, mais recentemente, a métodos mais objectivos com o recurso a sondagens de opinião pública.

Os critérios subjectivos para avaliar sentimentos de aceitação basearam-se mais em fenómenos de comportamento dos militares, quer por sinais exteriores de aparência, quer por sinais de relacionamento com as populações das comunidades onde se inseria o seu quartel e do papel desempenhado pelos quadros na vida dessas comunidades, quer pelo seu passado em campanhas, quer ainda pelos sinais que os que serviam na Instituição levavam para casa da vida no quartel. Os sistemas e métodos de recrutamento, com as levas e sortes, criaram da condição militar a imagem popular de «antes morte que tal sorte». A permanência de militares em áreas de conflito, aboletando-se em casas e vivendo de recursos escassos, levou muitas vezes o sentimento de repúdio a sobrepor-se ao sentimento de segurança entre as populações. Correntes mais recentes de pensamento, advogando a paz universal e o fim da violência armada, com raízes filosóficas ou religiosas, motivadas pelos efeitos do nuclear, pelos custos dos complexos militares-industriais ou pelos efeitos colaterais dos conflitos sobre as populações, têm relacionado o fenómeno guerra com a existência de instrumentos militares permanentes ainda que o pensamento não seja isento quando se discute a violência armada conduzida por instrumentos militares for a dos estados.

Os mais recentes critérios objectivos, recorrendo a sondagens de opinião para avaliação da aceitação das instituições militares e da exclusividade da força militar pelo Estado, têm-se debruçado mais sobre o tipo de missões a atribuir à força militar do Estado, à sua eficiência, aos seus custos face a outras despesas do estado, à necessidade de uma defesa militar própria ou em cooperação com aliados.

Na História de Portugal, a defesa e segurança da Nação foram sempre mais encaradas como um sacrifício (tributo do sangue) do que como um dever de cidadania, sendo esse sacrifício, no subconsciente colectivo, muito ligado à existência do Império. Na Restauração, muito do esforço de defesa foi feito com soldados pagos, estrangeiros. Na última invasão do solo pátrio pela França de Napoleão, há cerca de dois séculos, a defesa foi feita sob a direcção inglesa. O Império obrigou a expedições depois do Congresso de Viena, em 1870, e os africanistas foram recebidos em triunfo, celebrados como heróis, recordados com monumentos e toponímias de arruamentos por todo o espaço nacional. A República tomou a defesa do Império como um desígnio nacional, mobilizando a força militar para a Flandres, onde defendia interesses e para África, onde defendeu espaços. As populações portuguesas não sofreram os horrores sentidos por outros europeus durante a 2ª Grande Guerra. A defesa do Império dividiu os portugueses na segunda metade do século XX. A estes dados objectivos para avaliar o sentimento da Nação face à Instituição Militar como seu instrumento de defesa e segurança, teremos de acrescentar alguma subjectividade, resultante dos sistemas e métodos de recrutamento militar que foram adoptados pela Nação em tempos de necessidade de defesa[60], da implantação do dispositivo militar no território e da sua contribuição directa e indirecta para sentimentos de segurança e acções de desenvolvimento e da forma como os Quadros da Instituição, foram encarados por outras elites da Nação.

Tem falhado na educação portuguesa a educação para a defesa, levando a sentimentos cíclicos e mistos de repulsa ou de aceitação da Instituição Militar por parte da Nação, que se tem traduzido negativamente na Instituição Militar por sentimentos cíclicos de corporativismo resistente a mudanças ou intervencionismos na vida pública, resultando de um e outros dificuldades na ligação.

Retomando a analogia dos dois círculos, um representando a Nação e o outro a Instituição Militar, a sua sobreposição é desejável não só para tempos de defesa mas também para os denominados tempos de paz (se é que hoje se pode fazer a distinção…).

Essa sobreposição deve materializar-se pelas formas do serviço militar, motivo por que algumas Nações não terminam o serviço militar obrigatório, argumentando a quebra da ligação da Instituição Militar com a Nação. Outra materialização é o dispositivo da Instituição Militar no território, com alguns argumentos a condenarem os campos militares como redutos de isolamento e causa de repúdio e outros a lamentar o final dos Juramentos de Bandeira ou Dias da Unidade por todo o território como simbologia importante para materialização daquela ligação. A actual proliferação de encontros de ex-combatentes na defesa dos interesses de Portugal, durante as últimas campanhas, organizados por uma sociedade civil que se mostra activa, são também sinais subjectivos que nos obrigam a meditar sobre essa ligação.

Alguns estudos publicados sobre os sentimentos da população portuguesa perante a sua Instituição Militar não têm sido objectivas na distinção entre Instituição e a sua materialização, as Forças Armadas. Os resultados mostram resultados positivos e lisonjeiros para as Forças Armadas. Mas as questões que se colocam na pós-modernidade é se a Nação deseja uma Instituição Militar, como garantia da sua soberania, e, se sim, que acções deseja tomar para a manter e dignificar.

 

VI. Algumas Conclusões

Vivemos tempos de pós-modernidade e ainda não nos chegaram ideias inovadoras que apontem para um caminho de novíssimo regime capaz de dar respostas a diferentes questões da nossa vivência em sociedade, originadas em novos conceitos que passam pelas causas e modelos de novos conflitos, de uma pretendida ordem internacional, de modelos para gerar e distribuir bem-estar a todos, de encontrar um paradigma de convivência em que se eliminem diferentes emoções. Parece que a necessidade de um espaço próprio continua a condicionar, como no passado e através da História, o conceito de Nação e a identidade nacional. Parece também que a organização da Nação continua a requerer a figurado Estado, reconhecido interna e internacionalmente como a sede do poder e a materialização da soberania, ainda que a proliferação de organizações supranacionais ponham em causa a sua sobrevivência na ordem externa e a progressiva tendência para a exiguidade das suas funções na regulação das sociedades continue a reclamar o seu desmantelamento progressivo evocando a boa governação. A exclusividade da detenção e uso da força militar, por parte do Estado e regulada por um conceito institucional dessa força, encontram-se também em período de mudanças. Transferir a utilização da força da defesa do solo pátrio para a segurança global, concebê-la para outras missões que não o combater e morrer se necessário, organizá-la com recursos humanos que não se fundamentem no conceito de cidadania, afectam os factores estruturantes da Instituição Militar e o conceito de cidadão-soldado.

As respostas a estas questões, num período de transição e ainda sem respostas fundamentadas, obrigam a reflexão e cuidado, não precipitando decisões condicionadas por factores de conjuntura. Respostas que devem merecer especial cuidado a Nações com raízes históricas muito consolidadas, em espaços regionais frágeis e muito dependentes numa globalização crescente.

Defendemos a tese de que neste período de transição é no triângulo Nação, Estado e Instituição Militar que deveremos encontrar as respostas de espera para a transição que decorre. Concebendo uma Grande Estratégia de Portugal para essa transição que passará pelo fortalecimento de cada um dos vértices daquele triângulo bem como a materialização das suas ligações atendendo às falhas que actualmente as caracterizam.

O conceito de Nação e correspondente identidade nacional encontram-se em mudança por influências externas relacionadas com a concepção de espaços supranacionais, com novos conceitos de mobilidade de pessoas, bens e ideias provocados pela globalização, com a aspiração de nações ainda sem o seu espaço consolidado tentarem organizar esses espaços, mesmo com o recurso à força militar. Mas também por influências internas, provocadas pela crescente urbanização, pelos desejos de arranjos regionais que eliminem as emoções de rejeitados e privilegiados e pelo crescente desejo de serem os povos a decidirem pelos seus destinos. O conjunto de causas de potenciais conflitos que se vão acumulando irá conduzir à violência urbana e problemas consequentes que devem merecer atenção cuidada para prevenir esses conflitos.

A prevenção terá que passar, necessariamente, pela educação, com as componentes de cidadania, de partilha, de tolerância e da inclusão que não têm sido inseridas, com pragmatismo e sem paixões ideológicas, nos programas educativos da Nação. Encontrar, para esses programas, ideias novas e sem tendências de nacionalismos exacerbados, será um desafio para a geração actual.

Reforçar a identidade nacional nas suas duas vias tradicionais constituídas pela percepção daquilo que nos distingue e no reforço daquilo que tradicionalmente constitui a tendência do povo português para a aculturação com outras culturas seria um programa nacional de investigação e de consolidação a propor pela Nação europeia, talvez com o maior forte sentimento de unidade numa Europa que procura identidade, que se chama Portugal. Creio que a Nação portuguesa aceitaria o projecto com gosto e como desafio, desde que não seja dividido pela paixão ideológica de elites que cada vez mais se afastam dos sentimentos comuns da nossa antropologia cultural.

Acreditamos que na Grande Estratégia a definir por Portugal, nesta fase de transição e espera, a questão da identidade nacional e do seu reforço, em termos de pós-modernidade, seria uma questão a considerar.

A figura jurídica do Estado, na ordem interna e na ordem internacional, encontra-se sujeita a dúvidas e pressões, a que tenta resistir com o estatuto de estado-herói. Internamente acusa-se o Estado de obstáculo às iniciativas da sociedade civil, de dirigismo flutuante nas actividades económicas, de fragmentação face aos interesses dos partidos políticos, de burocracia asfixiante nos tempos e processos, de campo privilegiado para a corrupção, de consumidor de recursos exagerados das nações, de alimentador de situações entre privilegiados e descontentes. Funções tradicionais da sua competência, como Justiça, Fazenda, Graças e Mercês transferiram-se para outras sedes de poder. Na ordem internacional o Estado resiste às tentativas de ser afastado da condição de principal sujeito no direito internacional, perdendo a individualidade perante o colectivismo de organizações supranacionais, perante a  tendência de hierarquização de Estados de acordo com o seu potencial de influência e perante a proliferação de outros movimentos que acedem ao estatuto de sujeitos do direito internacional, apresentando como argumentos a posse de força militar.

Uma larga corrente de pensamento continua a lutar pela existência da figura do Estado. A sua sobrevivência passará pela redefinição das suas funções, pela redução da sua burocracia, pelo emagrecimento dos recursos que consome. Naturalmente que tudo isso passará por arranjos constitucionais de um novíssimo regime e da redefinição de novos contratos sociais entre Estado e sociedade. As contabilidades nacionais, no caso português velhas de quase um século, têm de ser repensadas, com imaginação e trabalho, dando lugar a novas concepções de receitas e despesas do Estado. Na ordem internacional ao pensamento idealista do diálogo e da cooperação terá de ser contraposto um pensamento realista de quem aceita e de quem rejeita, retomando a figura do Estado como o principal sujeito de uma ordem que se procura. Não valerá a pena dialogar com quem não tem estatuto de dialogante credível.

Naturalmente que em tempos de mudança a Instituição Militar tem de adaptar-se aos novos condicionamentos que regulam a força militar permanente ao serviço do estado e da segurança internacional, na sua concepção, na sua utilização e nos seus elementos estruturantes. Encontrar o ponto de equilíbrio entre os factores estruturantes que distinguem essa força como Instituição dos factores conjunturais para onde a querem acantonar como instrumento, reside a credibilidade das políticas e do seu sentido de Estado face aos internacionalismos emergentes de espaços supranacionais.

A Instituição Militar, no seu seio, pois só ela o conhece, terá de encontrar a vontade e dinâmica de adaptação para os seus elementos estruturantes nos novos ambientes estratégicos e da sociedade. Independentemente das políticas de defesa, que definem modos e tempos de actuação da força militar, obtenção e disponibilidade de recursos para a defesa, fronteiras entre a segurança e a defesa. O Comando não deve abdicar da sua função de conselho independente no que se refere à Instituição, à adaptação dos seus elementos estruturantes às políticas e à definição do seu espaço próprio de actuação. No seu diálogo com a direcção política, o Comando tem de definir e defender fronteiras entre aquilo que é seu e aquilo que é direcção política. Só neste diálogo e pedagogia se conceberão estratégias de sobrevivência para uma Instituição que serve a Nação e o Estado. Com direito a espaço próprio e não repartido que deve ser permanentemente recordado às políticas.

 


* Revista Militar, Volume 159, nº 12, dezembro de 2007, pp 1339-1373.

1 MOISI, Dominique, THE CLASH OF EMOTIONS, Foreign Affairs, Jan /Feb 2007, (www.foreignaffairs.org).

2  SNIDER, Don, AMERICA’S POSTMODERN MILITARY, World Policy Journal, Spring 2000 (www.worldpolicy.org/ journal).

[3] BELCHIOR VIEIRA, Ten-General Guilherme de S., QUE MODELO DE MILITAR PARA A NOVA ARTE DE GUERRA E PAZ?, Nação e Defesa, Nº 98, Verão de 2001.

 Discurso do General CEMGFA, no Dia do Exército e das Forças Armadas, proferido na cidade de Lamego em 25 de Julho de 2000 “… Sobre a Instituição Militar o debate não tem sido tão intenso e inovador. Na sociedade portuguesa, em profunda mudança, parece que o debate também tem sido mais centrado na quantidade e qualidade da força militar organizada de que se pode dispor, do que sobre a Instituição Militar que a Nação deve merecer. As vozes de alerta oportunas, para evitar esta tendência, têm de ser mais ouvidas, pelo que o debate político, nas sedes próprias, sobre estas questões deve debruçar-se sobre o essencial e deixar aos utilizadores a responsabilidade da definição dos requisitos operacionais dos armamentos e equipamentos que irão utilizar”.

 TELO, António José, O PAPEL DOS MILITARES NAS GRANDES MUDANÇAS EM PORTUGAL – UMA PERSPECTIVA DE CONJUNTO, Nação e Defesa, Nº 112, Outono/Inverno 2005.

[6] Os exemplos materializam-se na facilidade de integração de Forças Armadas nacionais em estruturas militares de Alianças ou “coligações de vontades”.

[7] BEBIANO, Rui, A PENA DE MARTE, Minerva, Coimbra, 2000.

[8] BRITO, António Pedro M. de, INTRODUÇÃO E NOTAS, à POLÍTICA MILITAR EN AVISOS DE GENERALES, de D. Francico Manuel de Melo, Granito Editores e Livreiros Lda., Águeda, 2000.

[9]In Ob. Cit. 7. Existe tradução em português da obra, A ARTE DA GUERRA, Tradução e Notas de David Martelo, Edições Sílabo, Lisboa, 2006.

[10] HUNTINGTON, Samuel, THE SOLDIER AND THE STATE.

[11] Separara da REVISTA MILITAR, 1986.

[12] SERRÃO, Joaquim Veríssimo, HISTÓRIA DE PORTUGAL, II Vol.

[13] RUBIM, Nuno J. Varela, NOVO CONJUNTO DE TAPEÇARIAS DE D. AFONSO V NA IGREJA DE PASTRANA EM ESPANHA, Ed. Autor, Lisboa 2005.

[14] BRITO, Pedro de, A ARTE DA GUERRA NO PORTUGAL DO HUMANISMO RENASCIMENTAL, Publicação do Círculo Dr. José de Figueiredo, Porto 2006. Na documentação da Chancelaria de D. Afonso V aparece pela primeira vez a referência a uma nova arma, a espingarda, e os seus utilizadores os espingardeiros (Carta de brasão de 12.11.1471, concedida a António Leme, filho do mercador flamengo Martim Leme. O brasão é-lhe concedido porque “… veo de framdres servir em a tomada da nossa uilla darzila e cidade de tamger com certos espingardeiros…2.

[15] Regimento de 13 de Abril de 1449 e Carta de 20 de Abril de 1450 (Torre do Tombo).

[16]  THE MILITARY REVOLUTION DEBATE, Edited by Clifford J. Rodgers, Westview, Oxford, 1995.

[17]  Ob. Cit. 14., que cita Jean Aubin e o seu artigo “Le capitaine Leitão – un sujet insatisfait de D. João III”, in Revista da Universidade de Coimbra, 1984, Vol. 30, 1ª Parte, p. 92.

[18]  JOHN F. GUILMARTIN Jr, Ob. Cit. 15.

[19] PIMENTA, Belisário, ESBOÇO DA EVOLUÇÃO DAS IDEIAS MILITARES EM PORTUGAL, Comunicação apresentada ao Congresso de História da Actividade Científica portuguesa realizado em Coimbra (Nov. 1940).

[20] MAURO, Frédéric, LE PORTUGAL, LE BRÈSIL ET L’ATLANTIQUE AU XVII SIÈCLE, Fondation Calouste Gulbenkian, Paris.

[21] FONSECA, Quirino da, A ARTE DA GUERRA NO MAR, Memórias da Academia de Ciências de Lisboa-Classe de Letras, Tomo II, Lisboa, 1937.

[22] GOUVEA PINTO, António Joaquim de, MEMÓRIA, Estatístco-Histórico-cultural, Revista Militar, 1862.

[23] SELVAGEM, Carlos, PORTUGAL MILITAR.

[24] MARTINS, General Ferreira, HISTÓRIA DO EXÉRCITO PORTUGUÊS.

[25] OLIVEIRA, General Nuno A. Ramires de (Coord), HISTÓRIA DO EXÉRCITO PORTUGUÊS, 1910-1945.

[26] NUNES, Ten-Coronel, António, QUADROS DA VIDA MILITAR – DAS ORDENAÇÕES SEBÁSTICAS ÀS INVASÕES FRANCESAS, in NOVA HISTÓRIA MILITAR DE PORTUGAL, Vol 5, Círculo de Leitores. Lisboa.

[27] MARQUES, Fernando Pereira, EXÉRCITO MUDANÇA E MODERNIZAÇÃO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX, Edições Cosmos, Lisboa, 1999.

[28]Ob. Cit. 5.

[29] CAEIRO, Joaquim Manuel Croca, OS MILITARES NO PODER, Hugin, Lisboa, 1997.

[30] VALENTE, Vasco Pulido, OS MILITARES E A POLÍTICA (1820-1856), INCM, Lisboa, 1997.

[31] MARTINS, Fernando (ed.), DIPLOMACIA & GUERRA, Edições Colibri, Lisboa, 1991.

[32] POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA DE DEFESA DO PORTUGAL DEMOCRÁTICO, II Curso Livre de História Contemporânea, Edições Colibri, 2001.

[33] ESPÍRITO SANTO, Gabriel, A CAMPANHA DA RESTAURAÇÃO, Academia Portuguesa da História, Ed. Quidnovi, Matosinhos, 2006.

[34] MORAIS, Coronel A. Faria de, O MANUSCRITO DE MATHEUS ROIZ (1617-1691), Lisboa, Separata do Boletim Nº 22 do Arquivo Histórico-Militar, 1952.

[35] LATINO COELHO, J.M., HISTÓRIA MILITAR E POLÍTICA DE PORTUGAL DESDE OS FINS DO SÉCULO XVIII ATÉ 1814, Imprensa Nacional, Lisboa, 1874-1891.

[36] Wilhelm von-Schaumburg-Lippe.

[37] TELO, António José, in NOVA HISTÓRIA MILITAR DE PORTUGAL, Volume 3, Círculo de Leitores, Lisboa.

[38] Ob. Cit. 35 – A SEGUNDA VAGA DE INOVAÇÃO EM PORTUGAL.

[39] Ob. Cit. 35 – A TERCEIRA VAGA DE INOVAÇÃO EM PORTUGAL.

[40] SOUSA PINTO, Ten-General Alexandre, CARGOS MILITARES HEREDITÁRIOS – ESCOLAS MILITARES DE ESPECIALIZAÇÃO, XV Colóquio de História Militar, Lisboa, 2005.

[41] Ob. Cit. 26.

[42] ROCHA PINTO, João da, DO SOLDADO DO BARROCO AO SOLDADO ILUMINISTA: MARCHA DE APROXIMAÇÃO AO DISPOSITIVO DO EXÉRCITO PORTUGUÊS DURANTE O SÉCULO XVIII, XV Colóquio de História Militar, Lisboa, 2005.

[43] CARRILHO, Maria, A ORIGEM SOCIAL DO CORPO DE OFICIAIS DO EXÉRCITO.

[44] ESPÍRITO SANTO, General Gabriel do, O EXÉRCITO E OS SEUS GENERAIS NO LONGO SÉCULO XX PORTUGUÊS – O DIFÍCIL CAMINHO DO PROFISSIONALISMO, no Prelo.

[45] PARKER, Geoffrey, THE WESTERN WAY OF WAR, in THE CAMBRIDGE HISTORY OF WARFARE, Cambridge University Press, 2005.

[46] LEITÃO, Cor Eng., António M. Rosas, O ENSINO SUPERIOR MILITAR E OS SEUS PLANOS DE ESTUDOS, Actas VIII Colóquio de História Militar, Lisboa 1997.

[47] Ob. Cit. 27.

[48] Ob. Cit.14. Na Infantaria espanhola do século XVI, a Companhia era subdividida em dez esquadras, cada uma do comando de um cabo de esquadra. Para efeitos logísticos, as esquadras ainda se subdividiam em camaradas de cinco ou seis soldados que compartilhavam tendas e utensílios de cozinha, bem como os locais de aboletamento – os membros de uma camarada designavam-se entre si por camaradas.

[49] Ob. Cit. 28.

[50] Ibidem.

[51] CREVELD, Martin van, THE RISE AND DECLINE OF THE STATE, Cambridge University Press, 6ª Ed, 2006.

[52] FUKUYAMA, Francis, STATE BUILDING, Cornell University Press,2004.

[53] SULEIMAN, Ezra, LE DÉMANTÈLEMENT DE L’ÉTAT DÉMOCRATIQUE, Ed. Seuil, 2005.

[54] Ob. Cit.28.

[55] RIBEIRO, António Silva, ORGANIZAÇÃO SUPERIOR DA DEFESA NACIONAL, Ed. Prefácio, Lisboa, 2004.

[56] FINER, S.E., THE MAN ON HORSEBACK, Peregrine Books, 1976.

[57] CAEIRO, Joaquim Manuel Croca, Ob. Cit. 30.

[58] Ibidem.

[59] CARRILHO, Maria, FORÇAS ARMADAS E MUDANÇA POLÍTICA.

[60] COSTA, Fernando Dores, CONDICIONANTES SOCIAIS DAS PRÁTICAS DE RECRUTAMENTO MILITAR (1640-1820), in Actas do VII Colóquio de História Militar, Comissão Portuguesa de História Militar, Lisboa, 1996.

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General

Gabriel Augusto do Espírito Santo

Nasceu em Bragança em 8 de Outubro de 1935.

É General do Exército, na situação de Reforma desde o ano 2000, depois de ter servido nas Forças Armadas Portuguesas durante 49 anos.

Além de Tirocínios e Estágios na sua Arma de origem possui os Cursos da Escola do Exército (Artilharia), Curso Complementar de Estado-Maior e Curso Superior de Comando e Direcção (Instituto de Altos Estudos Militares), Curso de Comando e Estado-Maior (Brasil) e o Curso do Colégio de Defesa Nato (Roma).

Falecido em 17 de outubro de 2014.

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by COM Armando Dias Correia