Nº 2555 - Dezembro de 2014
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
O sentimento estratégico de D. João I
General
António Eduardo Queiroz Martins Barrento

Ao pretendermos falar do sentimento estratégico de D. João I, devemos previamente chamar a atenção para dois pontos que tornam talvez mais inteligível o título desta comunicação.

O primeiro é o de que não existia, ao tempo, no princípio do séc. XV, com qualquer carácter científico, aquilo que hoje designamos por estratégia. O saber estratégico ia-se adquirindo empiricamente, no conhecimento e na experiência, caldeado por ideias variadas surgidas da inteligência e do senso.

À semelhança com aquilo que se passou com a história, que nasceu quando o homem tomou consciência da sua importância para o seu devir, a estratégia apareceu, certamente há muito tempo, quando o homem começou a sentir a necessidade da segurança e da defesa, da sobrevivência do seu “chão”, da sua tribo, da sua cidade. Mas, em relação à sua prática, pode dizer-se que se passou algo semelhante com aquilo que sucedeu ao Mr. Jourdain do Bourgeois Gentilhomme, do Molière que, quando, face à sua inaptidão para fazer poesia, o Mestre lhe disse que ainda havia a prosa e lhe indicou o que ela era, ele concluiu que toda a vida havia feito prosa sem o saber. No séc. XV era de facto assim: a estratégia como ciência ainda não existia; aqueles que a praticavam não sabiam que era estratégia o que estavam fazendo.

O segundo ponto é o de que não podemos ir para além daquilo que designámos por sentimento estratégico de D. João I. Há alguns anos, escrevemos um pequeno livro sobre o pensamento estratégico de D. Afonso Henriques, no qual produzimos algumas considerações estratégicas e outras, que, certamente por termos lido e meditado sobre as mesmas fontes, vão surgir também, mais tarde, no livro do professor Freitas do Amaral sobre Afonso Henriques (por isso ofereci-lhe um exemplar do meu livro que ele não conhecia). Mas, para esse livro, analisei a acção do nosso primeiro rei, desde Zamora até ao final do seu reinado. Esta acção, ao longo desses longos anos, permitiu-nos apresentar o que deve ter sido o seu pensamento estratégico.

Mas aqui é diferente, porque analisaremos apenas as dúvidas que Zurara nos indica terem sido apresentadas por D. João I, para decidir sobre uma única acção – a tomada de Ceuta. Não podemos pois apresentar o que teria sido o seu pensamento estratégico, mas apenas o que parece ser o sentimento estratégico que as dúvidas apresentadas pelo rei contêm. Além disso, e como o Dr. João Abel da Fonseca aqui nos lembrou, em Junho, Zurara poderia ter apresentado aquele texto para louvar a sabedoria do rei e a dinastia de Avis. É possível, mas, apesar de Zurara usar com frequência o louvor nas suas crónicas, como é bem evidente em relação ao Infante D. Henrique, na Crónica dos Feytos de Guiné, e do gosto de alardear cultura, na descrição dessas dúvidas de D. João I há uma lógica, que indicia terem sido aquelas as dúvidas que surgiram a quem teve de decidir, dando-nos assim traços do seu sentimento estratégico.

 

Lembremos então Zurara:

“… Quando D. João I pretendeu realizar as cerimónias para armar cavaleiros os seus filhos – D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique – estes propuseram-lhe que, em vez disso, se lançassem num feito digno desse nome, a conquista de Ceuta. Apresentada esta ideia ao rei, este duvidando que tal empresa fosse serviço de Deus pediu parecer ao seu Conselho.”

Mas, tendo o Conselho sido favorável à acção militar, o rei voltou com mais cinco perguntas:

“Disse, outro dia, como antes de dar nenhuma resposta com este feito queria saber se era serviço de Deus, porque sobre isto devemos fazer nosso alicece quanto à primeira intenção.

E quanto à segunda devemos de saber se o podemos fazer ou não, cá muitas cousas são boas e desejadas em algumas vontades dos homens e falece-lhe porém o poderio para as poder acabar… Mas é agora de ver, quanto eu sou poderoso para o fazer, sobre a qual consideração eu achei muitas e grandes dúvidas, das quais principalmente direi cinco… primeiramente, considero como para semelhante feito se requerem mui grandes despesas, para as quais hei mister muito dinheiro, o qual eu não tenho… Considero como a cidade de Ceuta é tão alongada de nós… havemos mister artilharias de muitas maneiras e mantimentos em grande abastança porque não sabemos camanho tempo estaremos sobre aquela cidade. Ora, para todas estas cousas serem passadas, além, é necessária uma mui grande frota de muitos navios e grandes, afora os pequenos de que não faço grande conta. Os quais não há em meus reinos, nem posso achar caminho como os de fora possa haver nem por que guisa.

E a terceira cousa acho que é abastança da gente que não tenho… e com as minhas gentes me convém somente fazer todo o meu feito. Mas que será porque eu tenho grande dúvida e pouca segurança no reino de Castela, cá pode ser que sentindo como sou fora de minha terra, poder-se-ão mover contra o meu senhorio …

E a quarta dúvida que tenho é considerando que, posto que me Deus desse a vitória que em Ele confio, o filhamento desta cidade me pode fazer maior dano, do que proveito…

É a quinta cousa me parece que é muito para duvidar por todo sages ou discreto, antes que comece a cousa… não se deve tão somente considerar as cousas presentes, mas as que hão de vir… Ora sendo assim que Deus nos queira fazer tanto bem que cobremos esta cidade a nosso poder, que nome ou que honra nos vem se, ao diante…, a não pudermos manter ou defender, não nos fica nenhuma cousa de que nos razoadamente possamos louvar” [1].

 

As cinco dúvidas que D. João I levantou, em relação à aventura de Ceuta, referem-se à capacidade económica do reino, por se tratar de uma empresa muito dispendiosa; ao poder naval existente, por serem precisos muitos navios; às disponibilidades em potencial humano, sem afectar a segurança do próprio reino; às reais vantagens de levar a cabo tal empreendimento; e, caso tivesse sucesso a tomada de Ceuta, se haveria possibilidade de a manter e defender (“the day after”, dir-se-ia hoje).

Vejamos então cada um destes pontos que Zurara nos apresenta como sendo as dúvidas do primeiro rei da dinastia de Avis, para tentar descobrir o seu sentimento estratégico.

“Disse outro dia que antes de dar nenhuma resposta com este feito queria saber se era serviço de Deus, porque sobre isto devemos fazer nosso alicece quanto à primeira intenção.”

Sendo, ao tempo, a Igreja de Roma, na Europa, uma referência fundamental da ética e daquilo que poderíamos designar como um esboço do “Direito Internacional”, D. João I queria saber se tal empresa era serviço de Deus.

Afastando-se de Tito Lívio ou, avant la lettre, de Maquiavel, ou de Hitler, já no século passado, ou ainda da administração americana, já neste século, aquando da invasão do Iraque, o rei coloca-se na posição correcta, sobre a qual já a escolástica se debruçara, de saber se aquela guerra era justa. Ou seja, não pondo em dúvida que houvesse vontade em a realizar, achava que esse desejo deveria conformar-se com aquilo que deve ser o serviço de Deus, não ferindo assim a moral e a ética.

“E quanto à segunda devemos de saber se o podemos fazer ou não, cá muitas cousas são boas e desejadas em algumas vontades dos homens e falece-lhe porém o poderio para as poder acabar…”

Neste segundo ponto, o rei julga que deve ser feito o confronto entre a vontade de realizar aquela empresa e o poder de que ele dispõe para a concretizar. É claramente o confronto entre o poder e o querer.

Não estando já em dúvida o querer, acha que só a análise do poder, do potencial estratégico, poderá avalizar a realização dessa conquista. Isto é bem a consciência de que só a analise dos elementos do potencial estratégico lhe poderão indicar se a tomada de Ceuta deverá ser feita ou não.

E Zurara prossegue com as dúvidas de D. João I:

“… achei muitas e grandes dúvidas… primeiramente considero como para semelhante feito se requerem muy grandes despesas, para as quais hei mister muito dinheiro, o qual eu não tenho…”

Esta dúvida resulta da noção que D. João I tem de a tomada de Ceuta ser uma empresa muito dispendiosa, para a realização da qual julga não ter meios financeiros suficientes. Caso esta insuficiência não fosse resolvida, julgava dever ser posta de parte a realização da empresa.

Porém, os seus filhos, muito desejosos de adquirir o estatuto de cavaleiros nessa conquista, explicaram-lhe que as cerimónias da investidura, mesmo que feitas no reino, também seriam dispendiosas e que se poderia pedir empréstimos aos mercadores e também racionalizar as despesas. Dois argumentos simples e de peso.

O pedido de empréstimos aos mercadores deve ter subjacente a ideia de que se poderia beneficiar financeiramente com a Conquista, por forma a, depois dela, se poder pagar esses empréstimos. Talvez por isso, o Vedor da Fazenda era muito favorável à realização da tomada de Ceuta, dizendo-se que fora ele quem entusiasmara os infantes a propor a seu pai esta forma de serem armados cavaleiros.

Quanto à racionalização das despesas, o que isso quer dizer é que há despesas que se fazem que não são racionais ou que é irracional a maneira de fazer certas coisas, já que haveria poupança se fossem feitas de outra forma. Esta é uma observação intemporal.

“Considero que a cidade de Ceuta é tão alongada de nós… havemos mister artilharias de muitas maneiras em grande abastança porque não sabemos camanho tempo estaremos sobre aquela cidade…”

Aqui o rei mostra ter a noção daquilo de que precisaria em poder de fogo e das grandes necessidades logísticas resultantes da distância “alongada” a que estava Ceuta e se desconhecer durante quanto tempo elas seriam necessárias. “Não sabemos camanho tempo estaremos sobre aquela cidade…”, obrigava a somar às necessidades logísticas de sustentação da força no deslocamento e na operação de conquista (cujo tempo era também uma incógnita) as necessidades para a sobrevivência da força que, depois da conquista, ficasse a guarnecer a defesa da praça.

“É necessária uma grande frota de muitos navios e grandes, afora os pequenos de que não faço grande conta, os quais não há em meus reinos, nem posso achar caminho como os de fora possa haver nem por que guisa.”

Aqui está presente a ideia de projecção da força que também hoje é tão importante, sempre que os Teatros de Operações são longe dos países geradores das forças.

Sendo necessária uma volumosa operação de transporte marítimo, D. João I confronta-se com o seu reduzido poder naval, pois, se é certo que o transporte marítimo não era uma novidade, já há muito praticado por razões de comércio, e se usava meios navais para combater a pirataria, o reino não dispunha de navios suficientes para uma operação de tal envergadura.

Também aqui os infantes, desejosos de realizar a empresa, argumentaram que seria fácil obter esses navios, na Galiza, na Biscaia, em Inglaterra e na Alemanha. Curiosamente, solução semelhante à por eles proposta tem sido utilizada nos nossos dias, no âmbito das operações de apoio à paz, porque, tendo sido destruídas as nossas companhias de navegação, têm-se fretado navios noutros países para o transporte das forças.

“… e a terceira cousa acho que é abastança da gente que não tenho… e com as minhas gentes me convém somente fazer este meu feito…”

Com esta dúvida o rei coloca dois problemas. O primeiro é “abastança da gente que não tem”, a escassez de potencial humano para realizar aquela operação. Tanto assim era que, anos mais tarde, em 1426, o Infante D. Pedro, na célebre Carta de Bruges, reitera esta preocupação, referindo que Ceuta era um “sorvedoiro de homens”. E, ainda mais tarde, quando do parecer de D. Pedro a D. Duarte, sobre a empresa de Tânger, o Infante referiu que “suponhamos que tomásseis Tânger, Alcácer, Arzila, quereria saber que lhe farias, povoá-lo com o reino tão minguado de gente como o vosso é impossível”[2]. E note-se que, hoje, caminhamos para uma escassez populacional semelhante, dada a baixa taxa de natalidade e o “sorvedoiro” que é a emigração.

O segundo problema que o rei coloca nesta dúvida é o da nacionalidade dos elementos da força. E com isso ele pretende dizer que, diferentemente daquilo que se passara na primeira dinastia, em que nos servimos dos cruzados para a Reconquista, a conquista do Algarve de Além-mar não deveria ser feita por uma força multinacional, mas apenas com portugueses. Isto estava ligado às dificuldades financeiras, mas denuncia também que seria vantajoso a acção ser feita por portugueses, para que constituísse uma afirmação da independência do reino e da nova dinastia face a Castela e também a obtenção de um exclusivo de glória, importante para as relações com o Papado.

“Mas que será porque eu tenho grande dúvida e pouca segurança no reino de Castela, cá pode ser que, sentindo como sou fora da minha terra, poder-se-ão mover contra o meu senhorio.”

O que está expresso neste parágrafo é uma preocupação que pode surgir em resultado do vazio de poder – o rei ausente e a maior parte do poder militar fora do reino poderiam levar Castela a se “mover contra o meu senhorio…”

Trata-se de uma sábia consideração estratégica, que é ainda válida nos nossos dias, pois, quando parte do poder militar de qualquer potência está empenhado fora do território nacional, este passa a ficar mais vulnerável a ameaças que possam ser desencadeadas sobre ele.

Também esta preocupação do rei foi objecto de argumentação por parte dos infantes, que, bem mais jovens e crendo na boa-fé dos homens, acreditavam que a “firmeza das pazes com Castela” indiciava não haver receio quanto à segurança do reino. Ou seja, os infantes achavam que a ameaça de Castela era improvável. O rei, mais cauteloso, tem “grande dúvida e pouca segurança no reino de Castela”, achando por isso que esta ameaça poderia acontecer e era bem mais perigosa.

“A quarta dúvida que tenho é considerando que, posto que me Deus desse a vitória, que em Ele confio, o filhamento desta cidade me pode fazer maior dano do que proveito…”

Esta outra dúvida de D. João I tem a ver com as vantagens e inconvenientes, com o custo/benefício, elementos que devem ser avaliados cuidadosamente, por forma a justificar ou não a realização da acção estratégica.

“E a quinta cousa me parece que… não se deve tão somente considerar as cousas presentes mas as que hão-de vir… ora sendo assim… que cobremos esta cidade a nosso poder, que nome ou que honra nos vem se ao diante a não pudermos manter ou defender…”

Esta última dúvida resume-se naquilo que, em termos actuais, leva a dizer: como vão ser os “day after”? Trata-se de uma manifestação de um apurado sentido estratégico, da procura de uma visão sobre o futuro. “… que honra nos vem se ao diante a não pudermos manter ou defender…”

Estas duas últimas dúvidas do rei, sobre o custo/benefício e o futuro, diz-nos Zurara que “ficaram aquela vez sem determinação” e, por se terem desconsiderado estas duas dúvidas aquando da decisão da conquista de Ceuta, o futuro veio mostrar como elas eram lógicas e as consequências gravosas que tiveram para o reino.

Poder-se-á dizer que o rei pensou bem, mas não decidiu em conformidade com o seu pensamento. Mas também é verdade que só muito raramente se conhece em antecipação tudo o que é importante para a tomada de uma decisão estratégica. Qualquer decisão envolve sempre riscos e aqui foi a avaliação do custo/benefício e os “day after”.

Deve notar-se que a desconsideração ou menos consideração por estas duas dúvidas tem sucedido muitas vezes ao longo da nossa história. Foi a malograda tentativa da conquista de Tânger pelo Infante D. Henrique e que resultou no cativeiro e morte do Infante D. Fernando; a política levada a cabo em relação aos judeus, que os fez sair do reino para outros países que “muito lucraram com isso” em saberes, iniciativa e riqueza; a política de conquistas e ocupação territorial que sucedeu à das feitorias e do comércio; a decisão impensada que levou à derrota de Alcácer Quibir e à perda da independência.

É também de notar que, ao longo da nossa história, após níveis de empenhamento estratégico elevado, por desinteresse, alheamento, incúria ou desconsideração por estas duas dúvidas de D. João I, as forças armadas, como vector estratégico de elevada importância, foram esquecidas, obrigando a começar de novo a sua organização e levantamento quando se tornava mais uma vez evidente a sua necessidade. Basta lembrarmos a Guerra dos Sete Anos, a Campanha do Rossilhão, a Guerra Peninsular e, mais modernamente, o desinteresse e alheamento da direcção política em relação às forças armadas, nos períodos de paz.

Já no nosso tempo também são exemplos de desatenção sobre o custo/benefício e os “day after” a preservação do Império até à década de 70 do século passado, quando se tornou demasiadamente evidente a impossibilidade de o mantermos; o 25 de Abril, que não pesou convenientemente o que seria fazer uma descolonização sem força, os dramas que gerou, as guerras civis com milhares de mortos a que deu origem, e que levou Melo Antunes a dizer, numa entrevista à televisão pouco antes da sua morte, a “descolonização foi uma tragédia”.

E já nos últimos decénios, depois da adesão à Europa, o dinheiro que foi gasto, tendo em menor consideração o custo/benefício e os “day after” e, mais recentemente, apesar de ainda ser cedo para se fazer a história deste período e por poder não ser resultante de um esquecimento, mas de uma intenção, o demasiado exagero com que foi praticada a austeridade com as consequências que são por todos conhecidas. Parece que “não nos fica nenhuma cousa de que nos razoadamente possamos louvar”.

Em conclusão, julgamos poder dizer, sem violência intelectual, que as dúvidas de D. João I, que, conforme Zurara, “ficaram aquela vez sem determinação”, mais parece terem ficado até aos nossos dias sem determinação. Ou seja, tem-se perpetuado a indeterminação.

Será que, nas grandes decisões estratégicas, em Portugal, a desconsideração pelo custo/benefício e pelos “day after” é uma quase constante? Se assim for, esta reflexão sobre a Tomada de Ceuta, além de nos falar sobre o sentimento estratégico de D. João I, também pode, pedagogicamente, dizer-nos que temos de mudar.

 

[1]  ZURARA, Crónica da Tomada de Ceuta, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1992, pp. 68, 69 e 70.

[2]  Oliveira Martins, Os Filhos de D. João I, Lisboa: Guimarães Editora, 1953, pp. 170-171.

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by CMG Armando Dias Correia