No passado mês de fevereiro, a Ministra da Defesa da Alemanha, Ursula von der Leyen, dando expressão às correntes federalistas alemãs da evolução da União Europeia, pronunciou-se a favor da criação de um exército europeu referindo, simultaneamente, que isso não seria um “cenário de curto prazo”, mas estar certa de que “os seus netos conhecerão os Estados Unidos da Europa”.
Já este mês de março, o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Junker, na linha dos governos nacionais, que na ausência de projectos políticos se empenham na “reforma das Forças Armadas”, perante uma crise europeia, nos domínios económico, financeiro e social, com evidente falta de soluções para esse processo, a par de uma incapacidade política de se fazer ouvir e ter acção relevante nas questões que hoje dominam a actualidade internacional, seja a Ucrânia, a Síria, a Líbia, o Irão, o ISIS ou o Golfo da Guiné, resolveu levantar a bandeira do “exército europeu”, considerando-o como parte integrante do seu plano de mandato.
A ideia foi expressa pelo Presidente da Comissão Europeia numa entrevista ao jornal alemão Welt am Sonntag, umas vezes referindo o “exército europeu” como “comum”, outras como “conjunto” ou “integrado”, deixando naturais dúvidas de qual seria, efetivamente, a sua ideia dessa construção. Apontava como objetivos a “dissuasão das ambições expansionistas do Kremlin”, a “defesa dos valores europeus”, ou “ajudar a criar uma política externa e de segurança comum e permitir à Europa assumir a sua responsabilidade no mundo” e, ainda, numa manobra de aliciamento das opiniões públicas e daqueles que têm uma visão economicista das políticas de defesa, “favorecer a integração militar dos 28 países da UE e reduzir as despesas militares”, aspectos que não explicitou ou sustentou.
Ficaram assim definidos, sem margem para quaisquer dúvidas e sem necessidade de qualquer avaliação política e estratégica, para o Presidente da Comissão Europeia, os fundamentos do Exército Europeu, tal como foi referido no debate da Assembleia da República, no passado dia 11 de março.
Uma primeira reflexão de caráter geral relativamente a estas afirmações, decorre de se procurar entender como é que algo que não existe, seria um instrumento estratégico mais dissuasor do que a atual Aliança Atlântica, maioritariamente constituída por países europeus e pertencentes à UE e que não foram capazes, não quiseram do ponto de vista político, ou por outras razões mais sensíveis, reagir de outra forma à crise da Ucrânia. Junker parece ignorar ou escamotear, as divergências, quer entre europeus quer entre estes e os americanos, sobre o apoio militar à Ucrânia, incluindo as sanções à Rússia.
A estrutura militar integrada a nível da OTAN demonstrou, desde a sua fundação até à atualidade, ser uma experiência bem sucedida, cujo limite da sua eficácia e eficiência só depende da vontade política dos seus países membros em cumprirem aquilo que são os fundamentos da confiança e credibilidade da Aliança: a solidariedade política, entre os seus membros, o “burden-sharing” das responsabilidades assumidas, o cumprimento das decisões que a todos vinculam e o cometimento de tropas nas operações militares realizadas sob a sua égide. Na UE, apesar da cláusula de solidariedade expressa no Tratado de Lisboa, não parece que a mesma tenha sido politicamente considerada com a mesma força e cometimento, consignados no Artº 5 do Tratado da Aliança Atlântica.
Num dos pressupostos Junker está certo, a política externa e de segurança comum europeia não existe, primeiro, porque não há ambições comuns, seja por falta de vontade política, por insuficiência de capacidades militares disponíveis, ou mesmo por falta de compreensão ou conhecimento, dos desígnios de cada um dos países membros e da tolerância entre todos eles; em segundo lugar, porque o interesse europeu não é o somatório dos interesses nacionais, a atual crise demonstrou que, entre o norte e sul, alguns são contraditórios e o mesmo se poderia dizer relativamente aos valores europeus, designadamente, quanto à solidariedade ou ao modelo social.
Outro fator a ter em linha de conta prende-se com aquilo que se pode designar por cultura estratégica e que é decisivamente influenciada pela situação geográfica e natural inserção geoestratégica e geopolítica e, também, pela sua história e cultura; ambas definem à entidade política, fronteiras de afirmação e de defesa de interesses nacionais diversificados. No âmbito e matéria de segurança e defesa, e respectivo empenhamento do instrumento militar, estamos no domínio mais sensível da soberania dos estados, matéria que constitui, antes de tudo, uma política nacional. A quem caberia a decisão do emprego de um exército europeu? Por consenso e unanimidade? Por uma decisão maioritária? Por uma entidade supranacional europeia?
Tratando o tema com alguma objetividade, tendo em conta as posições dos três países que poderiam ser motores desta construção, a Alemanha é a favor, mas, curiosamente, no quadro da PSDC, limitou-se sempre à disponibilidade de componentes civis e de capacidades militares não operacionais, a França é favorável a um reforço da componente militar da UE, de que o Eurocorps é exemplo mais visível, mas contrária a construções que fragilizem a OTAN e o Reino Unido, na mesma linha de privilegiar a capacidade militar dentro da Aliança, é contrária a tudo se signifique uma maior integração europeia, centrando a defesa como uma responsabilidade nacional, em que a sua aliança preferencial com os EUA, induz uma perspetiva europeia diferente da francesa.
Não basta afirmar que se é a favor de um reforço do pilar de defesa dentro da EU e de se ser menos dependente dos EUA, é necessária uma atuação consequente nesse sentido, no domínio político e militar, porque são as capacidades militares efetivas de cada país membro, que estão em causa e, também, se esta construção é do interesse nacional ou não, qual é a atitude política perante a mesma, ou se basta o conforto de que o projeto não é para já. A capacidade militar da UE, será sempre o somatório das capacidades militares de todos os países membros; não entender isso e esperar que outros façam aquilo que nos incumbe fazer, é assumir uma atitude de dispensabilidade, de fragilidade e de irrelevância estratégica, política e militar, gravosa para a soberania e liberdade de ação política nacional.
Para um país com a dimensão estratégica de Portugal, capacidades militares que se eliminem ou sejam descontinuadas, dificilmente serão reconstituídas e nunca o serão, em caso de necessidade, com a oportunidade necessária ao seu emprego atempado. Não construir e sustentar umas Forças Armadas, consentâneas com a inserção geoestratégica e geopolítica, no contexto internacional e regional, coerentes com a defesa e prossecução dos objectivos nacionais permanentes e com o nível de ambição nacional nesse ambiente estratégico, lucidamente equilibradas e capazes de participar nos grandes acontecimentos da segurança internacional, de forma continuada, logísticamente sustentadas em pessoal e material, é assumir um estatuto de irrelevância dentro das organizações a que se pertence e uma incapacidade de afirmação politica nas mesmas, designadamente na OTAN, na UE, na ONU e na CPLP.
Já se alertou nas páginas desta Revista Militar para a prudência, relativamente a propostas no domínio da defesa militar e da organização das forças armadas, vindas das potências do centro da Europa, em particular daquelas que se pretendem assumir como motores da construção europeia; não é certamente do interesse estratégico, para as pequenas e médias potências, aceitar uma especialização nacional ou uma integração funcionalmente orientada, pelo caráter redutor que isso representa para a capacidade de defesa nacional, podendo, sim, no contexto das suas capacidades operacionais, procurar essa especialização em nichos de excelência, que se coloca em termos políticos e militares, quando for do interesse nacional, à disposição das grandes formações multinacionais.
Nesta linha de pensamento seria bom, também, não se ignorar as palavras da Embaixadora do EUA, na ONU, na sua deslocação a Bruxelas, afirmando a preocupação americana, relativamente ao facto das políticas europeias de austeridade terem atingido fortemente os gastos militares dos aliados europeus, cujas capacidades militares se situam em níveis “perigosos”, um eufemismo para caracterizar as reais capacidades das forças armadas europeias, à excepção das do Reino Unido. Nesta crítica esteve incluído o facto dos gastos militares não atingirem os 2%, “nível que os líderes europeus se empenharam” e o facto de todo o material militar, para o reforço recente dos Estados Bálticos, ter sido fornecido apenas pelos EUA. Declarações que foram feitas, tendo por pano de fundo a perceção de um conjunto de ameaças reais da conjuntura estratégica internacional atual, muitas das quais estão a migrar para a Europa.
Mais do que se falar num “exército europeu”, seria mais avisado favorecer e estimular a capacidade militar de todos os países da UE e que, no seio da OTAN, se contribuísse para eliminar ou no mínimo diminuir as lacunas e “shortfalls” no domínio operacional, que hoje são uma realidade e são o motivo das nossas preocupações e se ganhassem sinergias para dar corpo e consistência à algo esquecida concepção de “forças militares operacionais separáveis, mas não separadas”. O que continuará a estar sempre em causa, até que a atual situação se altere, será a efetiva capacidade militar de cada um dos países europeus e o que isso representa como um todo, seja no âmbito da OTAN ou no contexto da UE.
Nasceu em Sintra, em 21 de Abril de 1947, e entrou na Academia Militar em 6 de Outubro de 1964.
Em 17 de Dezembro de 2011, terminou o seu mandato de 3+2 anos como Chefe do Estado-Maior do Exército, passando à situação de Reserva.
Em 21 Abril de 2012 passou à situação de reforma.
Atualmente exerce as funções de Presidente da Direção da Revista Militar e de Presidente da Liga da Multissecular de Amizade Portugal-China.