Alemanha e Rússia são as duas únicas potências do continente europeu com capacidade (real ou potencial) para alterar significativamente as relações de poder na Europa, o que significa que têm possibilidade de alterar o quadro geopolítico envolvente a seu favor.
Mesmo depois de perder as vantagens geopolíticas que a guerra-fria lhe conferia, a Rússia mantém potencial estratégico suficiente para gerar um poder nacional eficaz, uma vez que os acontecimentos por si recentemente protagonizados revelam determinação política para usar os diversos factores desse potencial, mostrando-se disposta a utilizar a força militar para alcançar objectivos políticos.
A Alemanha, como a História confirma, temendo ver-se obrigada a combater em duas frentes, tem procurado resolver rapidamente a situação a Ocidente, transformando-se no pólo de poder com acesso amplo ao Atlântico. Passando assim a apoiar-se em fronteiras mais facilmente defensáveis, pois que as suas fronteiras habituais a Oeste estão situadas na rica planície europeia, portanto sem terem qualquer reforço propiciado por obstáculos de valor estratégico relevante.
Uma vez que as suas fronteiras Sul se apoiam nos Alpes, Berlim pode adoptar duas opções, em função das ameaças que teme e das intenções de desenvolvimento futuro: ou assegura a frente dos Pirenéus ou resolve ocupar a Península Ibérica, apoderando-se do cais de desembarque português e controlando o estreito de Gibraltar.
A Alemanha também não dispõe de fronteiras defensáveis a Oriente, pois poderá ser invadida através do eixo de progressão proveniente do coração russo pela Bielorrússia e Polónia e/ou do eixo Ucrânia-Polónia. Registe-se que estes eixos de progressão também podem ser usados por Berlim para chegar a Moscovo ou, pelo do Sul, alcançar o Mar Negro, cortando o acesso sudoeste da Rússia aos mares quentes.
Nestas condições, a manobra alemã do costume é ganhar condições a Oeste para voltar todo o seu enorme poder para Leste e assim derrubar Moscovo.
Por via desta manobra a dois tempos, viu-se que, na segunda guerra mundial, houve um período de algum tempo em que a guerra tinha terminado no Ocidente, com a vitória alemã. Só posteriormente Hitler, quebrando o Pacto Molotov-Ribentrop, em que dividia a Polónia com a Rússia, avançou para Leste, obrigando os EUA a um enorme esforço de abastecimento das forças russas em parte pela rota do Árctico, o que foi uma verdadeira odisseia.
Muitos analistas têm afirmado que, depois da unificação dos principados alemães por Bismark, utilizando como via para a alcançar a constituição de uma união económica dos principais principados alemães com preponderância da Prússia e a ausência da Áustria, a Alemanha teve sérias dificuldades em acomodar o seu poder no contexto europeu. Ou seja, sentir-se-ia demasiado poderosa para aceitar uma convivência de atores iguais, pois tinha o poder suficiente para liderar a Europa nos seus termos, sem ter que atender a interesses de outros que a obrigassem a ceder nos seus.
A meu ver, esta constitui uma explicação que, embora eventualmente verdadeira, não se baseia em argumentos sólidos, como os de natureza geopolítica que já indiquei. As configurações geográficas que os caracterizam têm recomendado e, eventualmente, poderão recomendar, ou mesmo obrigar, no futuro, que um poder político preveja a necessidade de desencadear certas manobras militares ou, no mínimo, que sejam preparadas em termos de execução quando considerar que elas são necessárias.
As duas guerras mundiais iniciadas na Europa seguiram este guião, pelas razões já referidas. Em qualquer delas, Berlim desenvolveu as movimentações que lhe eram geopoliticamente aconselháveis.
Em ambas, o seu poder alcançou uma tal dimensão que só a intervenção dos EUA foi capaz de inverter a marcha inelutável dos acontecimentos. Deste modo, os Estados Unidos transformaram-se na terceira potência europeia de poder significativo, além da Alemanha e da Rússia, apesar de se situarem geograficamente fora do continente.
Neste contexto, ainda não foi possível a Berlim conseguir, até agora, exercer o domínio da Europa alemã por intermédio da força militar, apesar das tentativas empreendidas.
Desde o início da sua fundação, a estruturação política da Comunidade Europeia assumiu uma configuração binária: por um lado, uma linha de pendor federal, com uma governação centrada na Comissão e, por outro, uma linha de cariz intergovernamental, liderada por um Conselho (constituído pelos chefes de governo da Comunidade) que reflecte as relações de poder entre os Estados.
Esta situação não criou problemas de maior enquanto as votações permaneceram por unanimidade, podendo qualquer Estado apresentar o seu veto num assunto que entendesse ameaçar os seus interesses vitais. Esta situação observou-se principalmente durante a guerra fria, quando as três potências mais poderosas da Comunidade (República Federal Alemã, França e Reino Unido) se equilibravam em poder e, posteriormente, até ao Tratado de Maastrich (aprovado na cimeira da Comunidade em 9-10 de Dezembro de 1991), quando foi decidida a votação por maioria relativa de algumas matérias.
Convém reparar que a reunificação alemã tinha ocorrido em 31 de Agosto de 1990 (Tratado de Unificação), quando as quatro potências ocupantes (desde o fim da segunda guerra mundial) – Estados Unidos, França, Reino Unido e União Soviética –, outorgaram a independência à Alemanha reunificada pelo tratado que ficou conhecido como “Tratado Dois Mais Quatro”.
Chamo a atenção que a prestigiada revista “The Economist”, de 8 de novembro de 2014, subtitula o seu artigo “The Berlim Wall – Twenty-five years on” com a seguinte frase, que cito: “A queda do muro de Berlim fechou a questão do comunismo. Mas reabriu a questão da Alemanha”.
O que, aliás, se notaria logo com o Tratado de Maastrich.
Shroeder, recorrendo a vários procedimentos teatrais, delegou, por vezes, no homólogo francês, François Miterrand, a sua presença nos Conselhos Europeus, e foi prometendo que, nas votações por maioria, apenas reivindicaria uma pontuação igual à francesa. Mas acabou por, de acordo com o principal critério definido para determinar o seu valor, aceitar (?) uma votação superior, o que reflectiria o diferencial demográfico entre os dois países.
Convém ainda registar que a ratificação do Tratado de Maastrich esteve repleta de dificuldades em vários parlamentos nacionais, e que o ano de 1992 assistiu ao desenvolvimento de diversas crises, sendo uma delas a impossibilidade de colocar no terreno uma política externa e de segurança comum pela, agora, União Europeia (UE), durante a crise da Jugoslávia quando a guerra regressou à Europa.
De Maastrich em diante, embora os membros da UE fossem todos iguais, passaram a existir “alguns mais iguais do que os outros”, como costuma dizer-se, e a Alemanha tornou-se no primeiro entre todos.
A criação da Zona Euro, com a moeda única, teria sido, por solicitação ou exigência da França, uma garantia para que a Alemanha não descolasse do seu vizinho de Sudeste em termos económicos.
Todos sabemos o que está a acontecer com os efeitos da crise financeira de 2008: de facto, Berlim descolou dos outros países da União, assumiu uma posição de grande supremacia e, na prática, exerce na União, principalmente na Zona Euro, um poder que, sendo aparentemente relutante, é de facto do tipo imperial.
Sabemos que aquilo a que vulgarmente se chama “poder económico” tem grande relevância no modo como se vão configurando as relações de forças entre Estados.
Regressando novamente ao já citado artigo da “The Economist”, podemos ler o seguinte:
“A unificação, que se deu menos um ano depois da queda do muro, levantou de novo a velha «questão alemã» na História da Europa. Uma Alemanha unida dominará o continente? Na altura, tanto o Reino Unido como a França temiam-no. Hoje, no quinto ano da «crise do euro», muitos europeus da Europa do Sul, sujeitos à austeridade, pensam que já acontece. Muitos, principalmente os norte-americanos, estão convencidos de que não. Os próprios alemães estão divididos acerca deste assunto (…) Mas a elite já apreendeu que a Alemanha deve aceitar maior responsabilidade (…). Como a crise da Ucrânia mostra, a Europa precisa da Alemanha na liderança”.
Ou seja, a Alemanha, mesmo contra a sua vontade, exerceria aquilo a que muitos chamam “uma liderança relutante”.
Mas a colunista alemã do Washington Post, Anne Aplebaum, escreveu, no dia 15 de novembro de 2014, que, de certo modo, a Alemanha já assumiu essa liderança. Como mostra o facto de ser Merkel, “desde a primavera passada, e não a União Europeia nem os EUA, quem tem convocado todas as reuniões importantes onde foram adoptadas sanções contra a Rússia e quem tem conduzido a maior parte da diplomacia para permitir ao Presidente Putin uma porta de saída para a redução da crise”.
É curioso que mesmo a influente “The Economist” não reconhece a liderança alemã já em exercício, como Aplebaum faz. Provavelmente, porque não desejou, ou não tentou analisar as características sui generis do factor económico do potencial estratégico como um dos mais importantes componentes do poder nacional de um Estado.
Não é sem razão que se considera o factor económico como soft power, melhor, como smart power, já que ele, se for inteligentemente aplicado, processa-se de forma contrária à que caracteriza a aplicação do factor militar. Enquanto os efeitos do emprego do factor militar são indesejados por todos, dada a forma “hard” como se desenvolvem, provocando mortes, destruições e verdadeiras tragédias de todo o tipo, a aplicação do factor económico aparece como “inevitável” para resolver um problema social e político que não tem condições para continuar e se deseja ansiosamente que termine.
Por outro lado, se o factor militar é viva e activamente repelido, arriscando-se todos os sacrifícios para o combater, o factor económico tem sido extremamente desejado e solicitado, pois tem sido visto não apenas como inevitável, mas como “medida salvadora do país” que o solicita. Mesmo que comporte sacrifícios idênticos aos que são provocados pelo factor militar e, frequentemente, de dimensão parecida, age de modo suave (soft ou smart), mas com empobrecimento, miséria e “mortes” lentas e agonizantes em vez de mortes bruscas e sangrentas.
Olhando para o factor económico segundo esta perspectiva, ele, em termos do exercício do poder, tem resultados idênticos aos do factor militar, mas com muito menos custos para quem o exerce e, aparentemente, para quem o experimenta. Paradoxalmente e com frequência, é acompanhado dos agradecimentos de quem lhe sofre o impacte.
Interrogo-me sobre o que acontecerá se, em vez de Berlim continuar a agir com tem agido, embora sendo um líder relutante na opinião de muitos analistas, decidir passar a ser um líder definitivamente assumido…
Tudo o que acabei de referir mostra com clareza que já não nos situamos, de facto, nas meras relações económicas, mas sim no âmbito das disputas geopolíticas que podem reverter, ou não, em recontros de natureza estratégica.
Qual é a Europa que se enquadra neste contexto?
Uma Europa unida sob a liderança alemã e agindo em função dos seus objectivos e defendendo os seus interesses, como acontece actualmente com a União Europeia, mas especificamente com a Zona Euro?
Quais serão os objectivos alemães?
(1) Manter a aliança com os Estados Unidos no quadro da OTAN e aprofundá-la com o Tratado Económico Transatlântico, uma espécie de OTAN para a economia?
(2) Arvorar-se em porta-voz de uma aliança europeia, que lhe emprestará a massa crítica que lhe falece para ser uma potência de primeira ordem ao nível mundial (como os EUA, a China, a Rússia, o Brasil e a Índia), disputando com elas o poder global?
(3) Estabelecer relações mais estreitas com a Rússia, como já aconteceu no passado, constituindo um poderoso bloco continental que poderia desafiar a potência marítima, e partilhar com ela grande parte da zona geopolítica do Atlântico Norte, assim se configurando o pesadelo que os norte-americanos mais receiam?
(4) Ou, neste último cenário, fazer o bloco continental aliar-se com a potência marítima para enfrentarem em conjunto uma China em aparente e imparável ascensão?
Sinceramente, penso que, neste momento, será impossível responder sem hesitações às questões que apresentei anteriormente. O que sabemos é que a Alemanha tem todos estes caminhos abertos à sua frente. Presentemente, os indícios apontam para a manutenção das relações transatlânticas, mas também podem não seguir nesta direcção, uma vez que desconhecemos quais os objectivos que, a prazo, Berlim perseguirá.
O nosso país encontra-se actualmente numa situação geopolítica que se pode considerar ideal, pois se insere em três círculos geopolíticos não coincidentes, mas que, de algum modo, se reforçam mutuamente.
O principal, em termos de estruturação da sua segurança, é a OTAN, que desloca para longe, tanto a Norte, como a Leste e a Oeste, as nossas fronteiras de segurança. A Sul, mantemo-nos ainda em contacto directo com possíveis ameaças, embora, tanto a OTAN como a União Europeia nos dêem garantias de alguma protecção.
O círculo da União Europeia beneficia-nos economicamente, mas o seu sub-círculo da Zona Euro está a espartilhar-nos, tendo-nos conduzido para uma situação de ausência de liberdade de acção interna e externa de que me não lembro termos vivido desde o 25 de Abril.
Finalmente, o círculo relativo à CPLP alarga as nossas possibilidades de expansão no domínio económico, mas ainda com expressão limitada e, portanto, sem qualquer capacidade para compensar a perda de liberdade de acção que estamos a sofrer como resultado de pertencermos à Zona Euro.
Não podemos dar por certo que estas condições geopolíticas ideais irão permanecer.
De certeza, não perdurarão se voltar a levantar-se uma fronteira de segurança entre a potência marítima e uma potência continental (à qual pertençamos) que possa disputar o poder à potência marítima.
A História já nos proporcionou situações desta natureza.
Num cenário desse tipo passaríamos a constituir uma “marca” fronteiriça de um império continental, uma sua província num novo “limes romano”.
Voltaríamos a ser, por intermédio do nosso território continental, um teatro de operações onde a potência marítima e a potência continental se digladiariam.
E os nossos arquipélagos dificilmente continuariam sob soberania portuguesa. Muito provavelmente tornar-se-iam protectorados da potência marítima. De facto, deixaríamos de ser um país soberano, tanto quanto hoje significa sê-lo.
* Conferência proferida, em 26 de Novembro de 2014, no Instituto de Estudos Europeus da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no âmbito do Seminário “Relações entre a Europa e a Alemanha”.
Natural de Vilela do Douro, freguesia de Paços, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, assentou praça na Escola do Exército em 1953, e passou à reserva em 1993. Oficial de Artilharia, habilitado com o Curso de Estado-Maior e o Curso de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (doutoramento em Ciências Militares).
Cumpriu duas comissões de serviço em África. Como oficial general, desempenhou várias funções, entre as quais, Diretor do IAEM, Comandante-Chefe das Forças Armadas na Madeira, Vice-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (Tenente-coronel graduado em General de quatro estrelas) e Chefe do Estado-Maior do Exército.
Foi ainda: Encarregado do Governo e Comandante-Chefe de Cabo Verde, Secretário Permanente do Conselho da Revolução, membro do Conselho da Revolução (por inerência, nas funções de Vice-CEMGFA), Ministro da Defesa Nacional (nos IV e V Governos Constituciona