Nº 2561/2562 - Junho/Julho de 2015
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Conjuntura política e tipologia dos conflitos em África
Tenente-coronel
Abílio Pires Lousada

Considerações Iniciais*

Os conflitos que ao longo de décadas assolaram o continente africano apresentam uma natureza diversa quanto às causas e motivações, e relevam diferentes tipologias. Na verdade, a conflitualidade acompanha inexoravelmente a dinâmica da conjuntura internacional e as flutuações regionais continentais.

Neste contexto, há fatores comuns a vários cenários de guerra que importa equacionar: (i) a herança da colonização europeia, árabe e turca; (ii) a marginalização internacional, por um lado, e o usufruto de recursos pelas potências, por outro; (iii) o despotismo e nepotismo da classe dirigente africana; (iv) a fragilidade dos Estados e crónico subdesenvolvimento social; (v) a tendência africana de fazer da «lei da bala» a melhor forma de «dialogar» com adversários ou oponentes internos.

África viveu intensamente o período da imposição de soberania das potências europeias, tornou-se teatro de operações das duas Guerras Mundiais, converteu-se em palco de procuração da rivalidade e competição estratégica das superpotências americana e soviética durante a Guerra-fria, desenvolvendo guerras de descolonização e deixando-se arrastar para conflitos intraestatais. Portanto, África conheceu algumas das mais longas e mortíferas guerras do século XX, nomeadamente, guerras de libertação que se transformaram em guerras civis intermináveis, guerras civis que originaram ódios étnicos profundos, ou ódios étnicos que fizeram de África um continente em guerra permanente, com matrizes também inter estatais. O facto é que, durante anos a fio, África e guerra foram quase sinónimos.

Face às considerações avançadas, identificamos quatro tipologias de conflito que caraterizaram África nos últimos 120 anos: (i) guerras de resistência à ocupação; (ii) guerras de descolonização; (iii) guerras entre Estados; (iv) guerras civis (no interior dos Estados). Tipologias de conflitos que vamos agrupar e desenvolver em três momentos principais: (i) imposição de soberania e resistência africana à ocupação, nos séculos XIX e XX; (ii) processo de descolonização e guerras de libertação na segunda metade do século XX; (iii) África dos Estados Soberanos e a conflitualidade inter estados e guerras civis.

 

1. Imposição de Soberania e Resistência Africana à Ocupação

Até à Segunda Guerra Mundial, as potências do chamado «velho continente» exerceram uma supremacia sobre as demais regiões do mundo, principalmente nos aspetos económico, político, diplomático e militar. Durante 500 anos os Estados nacionais e os homens de negócio europeus submeteram povos e civilizações, exportaram mercadorias, capitais e as regras da economia de mercado, e impuseram as suas línguas, religiões, conceções de mundo e valores culturais. Neste âmbito, o continente africano experimentou a subordinação dos seus sistemas tradicionais de organização social às leis da valorização do capital e testemunhou a constituição de ordenamentos políticos internacionais, nos quais desempenhava o simples papel de área de influência e reserva estratégica à disposição dos poderes imperiais.

 

1.1. Imposição de Soberania

Todo o processo de ocupação territorial, exploração económica e o domínio político do continente africano por potências europeias iniciou-se no século XV. Portugal, pioneiro da expansão moderna, foi o primeiro Estado a reconhecer a importância do posicionamento do continente africano. De facto, desde épocas remotas que o estreito de Gibraltar se tinha transformado num ponto estratégico entre a Península Ibérica e o Norte de África, constituindo a conquista de Ceuta (1415) o passo decisivo que permitiu a entrada numa porta de três mundos – o Mediterrânico, o Atlântico e o Africano. O Conceito Estratégico de D. João II (1455-1495) “conter Castela em terra e batê-la no mar” e o Tratado de Tordesilhas (1494) celebrado entre Portugal e Castela vincam uma visão eurocêntrica do mundo, motivando potências como a Holanda, França e Inglaterra a seguir os trilhos da expansão marítima e da conquista territorial extra continente europeu.

No entanto, e praticamente até à segunda metade do século XIX, o interior da África subsariana permaneceu à margem de todo o processo, por ser considerado um espaço de poucos proveitos económicos e inúmeros perigos. Realmente, o clima agreste e as doenças tropicais, associadas à rusticidade guerreira de povos autóctones organizados politicamente, desaconselhavam aventuras expansionistas de rentabilidade duvidosa. África era para os europeus terra de expiação e de morte, resumindo o seu interesse a enclaves costeiros.

No entanto, na década de 1870, iria surgir um novo ideal de império, com um renovado vigor de conquistas que iria atingir África. Era um modelo que visava o benefício dos «ricos da metrópole» e uma resposta ao aumento de população das nações industrializadas. Efetivamente, com o advento da era industrial, a Europa imaginou que a África poderia ser a fonte das necessárias matérias-primas, a custos que o emprego de mão-de-obra escrava garantia serem baixos.

Portanto, a crise económico-financeira europeia da década de 1870, associada à industrialização e crescimento demográfico, reequaciona posturas estratégicas estatais e empreendedorismos dos homens da banca e do comércio, obrigando os diversos países a medidas protecionistas. De tal forma que, a partir de 1880, era já percetível que “a continuidade do crescimento económico de cada país dependia do acesso privilegiado a matérias-primas e das preferências em mercados externos mais ou menos cativos[1]. Foram explorações como as efetuadas por David Livingstone, ao serviço da Grã-Bretanha, por Henry Stanley, pelo reino da Bélgica, Pierre Brazza, pela França, ou as de Serpa Pinto, Roberto Ivens ou Hermenegildo Capelo, ao serviço de Portugal, que colocaram África na rota dos interesses continentais, onde o acompanhamento pelas comunidades científicas e a ampla divulgação em todos esses países provocaram o interesse de agricultores, de comerciantes, de caçadores e de aventureiros, seduzidos por potencialidades e riquezas anunciadas, como ferro, cobre, manganês ou algodão. A Europa olha, então, para África como a solução dos seus problemas, que entende como res nullius (sem dono).

Consequentemente, inicia-se a «corrida»: (i) os ingleses dirigiram-se para a África do Sul, Rodésia, Quénia, Uganda, Nigéria e Egito; (ii) os franceses canalizam esforços para o Chade, Senegal, Costa do Marfim e Mali, unindo grandes partes do território da África Ocidental e da África Equatorial ao Norte do Congo, mais o Djibuti, no mar Vermelho; (iii) os portugueses, por sua vez, procuram sustentar o espaço territorial de Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guiné Bissau; (iv) os alemães reclamam os Camarões, Tanganica e a Namíbia; (v) os belgas orientam-se para o Congo, Ruanda e Burundi. Porém, exigia-se regulamentação e regras de ocupação minimamente coerentes e aceitáveis, sob pena de o «caldo de cultura» acintoso que caracterizava o relacionamento entre as potências europeias confluir em África.

É desta forma que, sob proposta portuguesa e patrocínio alemão, se organiza a Conferência de Berlim, que decorreu entre 14 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885, onde participaram doze Estados europeus, os Estados Unidos e a Turquia. Na Ata Final da Conferência estabeleceram-se dois princípios fundamentais, que daí em diante regulariam a legitimidade da posse de territórios em África:

(i) artigo 34º – “a potência que de futuro tomar posse de um território nas costas do continente africano situado fora das suas possessões actuais, ou que, não as tendo até aqui, vier a adquiri-las, e do mesmo modo, a potência que ali assumir um protectorado, acompanhará o acto respectivo de uma notificação endereçada às outras potências signatárias da presente acta a fim de habilitá-las, se for caso disso, a fazer as suas reclamações”;

(ii) artigo 35º – “as potências signatárias da presente acta reconhecem a obrigação de assegurar nos territórios por elas ocupadas, nas costas do continente africano, a existência de uma autoridade suficiente para fazer respeitar os direitos adquiridos e, em tal circunstância, a liberdade do comércio e do trânsito nas condições em que ela ficou estipulada[2].

Pelo exposto, os direitos históricos deixavam de conferir o reconhecimento internacional: tornava-se necessário fazer prova da ocupação efetiva e da capacidade em desenvolver o comércio. Por sua vez, a posse da costa conferia direito ao interior por ela servido. Estas disposições lesavam claramente as pretensões de usufruto histórico de Portugal e davam garantias adicionais a grandes potências como a Inglaterra e a França de fazerem valer o seu superior potencial estratégico.

 

1.2. Resistência Armada à Ocupação

Das deliberações debatidas na Conferência só o delegado americano levantou a questão do consentimento dos governados, que não foi incluída na ata final. E no respeitante a consentimento dos governados, rapidamente se percebeu a necessidade de impor a vontade através da força das armas, porquanto a submissão dos reinos e tribos africanas não se revelou um dado adquirido. Assim, “o princípio da ocupação efectiva, abriu a porta que impôs a necessidade de recorrer à força para consolidação do domínio[3]. E, dessa forma, a colonização europeia ficou marcada por conflitos sangrentos ocorridos entre colonos e colonizados.

Em África revelou-se a conflitualidade de reinos, tribos e clãs que jogou o poder do número contra a tecnologia das armas de fogos ocidentais, concretamente, os obuses Krupp, as metralhadoras Gatling e Maxim e armas individuais como a Enfield e a Kroptscheck.

Os povos africanos também utilizaram armas de fogo, fruto da dinâmica e interesses do comércio internacional e também da rivalidade entre as potências europeias que lutavam pelos seus interesses individuais em África. E, nesse sentido, alguns povos fizeram combinações tácitas para além do rudimentar aglomerado de guerreiros que corria contra as balas de azagaia na mão: ações de cerco do dispositivo adversário; refúgio em complexos fortificados para resistir ao fogo de canhoeira; procura de atração do adversário para o alcance de lanceiros escondidos; ações de guerrilha e emboscadas[4].

Ao contrário da fragilidade combativa dos «índios» americanos ou da remuneradora organização militar regular de tipo ocidental praticada pelos povos asiáticos, os contingentes guerreiros africanos eram mais difíceis de combater. O seu modelo irregular dificultava a destruição em batalha campal, o preito de emulação guerreira obrigava a redobrados esforços de mobilização e disciplina por parte dos europeus e a ausência de bases fixas impedia cercos ou fixação estratégica de objetivos. Ou seja, se algo dificultava a guerra europeia em África era a ausência ou a dificuldade em identificar um centro de gravidade.

Os contingentes africanos eram destemidos, tenazes e muito móveis, que reiteravam esforços através de investidas sucessivas, obrigando a tropa europeia a trocar formações de combate regulares por dispositivos mais densos (quadrado) dotadas de elevado poder de fogo nos flancos para evitar cercos ou envolvimentos. Eram menos móveis, mas resistiam mais facilmente a ofensivas adversárias, principalmente quando feitas de surpresa. Razão pela qual os deslocamentos eram feitos em coluna. A utilização do cavalo, a par do superior poder de fogo, representava enormes vantagens, descompensadas pela elevada mortandade que doenças como a malária provocavam nos efetivos.

Conforme já referimos, a capacidade tecnológica europeia ao nível dos armamentos, associada ao controlo portuário e navegabilidade dos rios, o desenvolvimento da via-férrea e do telégrafo e, depois, a capacidade de controlo médico das doenças tropicais garantiu o controlo de cerca de 90% do território africano; de tal forma que, nas vésperas da I Guerra Mundial (1914), só dois territórios eram independentes: a Libéria e a Etiópia.

Mas importa acrescentar que, do lado africano, a falta de unidade foi uma realidade, de tal forma que a maioria dos exércitos europeus recrutava tropas em quantidade apreciável entre os africanos[5].

 

2. Descolonização e «Guerras de Libertação»

O fim da I Guerra Mundial incutiu nos povos africanos um sentimento anticolonialismo, principalmente porque potências como a França e a Grã-Bretanha perderam gradativamente influência internacional e se assistiu à proliferação de congressos, conferências e reuniões que, no âmbito da Sociedade das Nações (SdN), e, depois, da própria Organização das Nações Unidas (ONU), favoreceram os povos que, até então, haviam permanecido mudos na defesa do seu direito nacional de independência.

 

2.1. Processo de Descolonização em Curso[6]

O pan-africanismo, que em África se associaria ao anticolonialismo, teve origem na manifestação de solidariedade entre os negros das Antilhas Inglesas e dos Estados Unidos, em virtude da forma como eram discriminados os negros, que depois se estendeu para África. Este movimento, que tinha realizado uma conferência em Londres (1ª Conferência Pan-Africana), em 1900, para contestar a ocupação europeia, nomeadamente, a ocupação de terras na África do Sul pelos ingleses e africânderes e o destino da Costa do Ouro (Gana), deu origem a uma resolução, onde o termo pan-africanismo foi pela primeira vez utilizado[7].

Entretanto, no período entre as duas guerras mundiais, assiste-se à realização de vários congressos pan-africanos: (i) Paris, 1919; (ii) Londres, Bruxelas e Paris, 1921; (iii) Londres, Lisboa, 1923; (iv) Nova Iorque, 1927. A finalidade consistia numa exigência de reconhecimento do direito à igualdade e cooperação de todas as raças e ao fim da miséria, ignorância e sofrimento da raça negra, bem como analisar a situação de todos os territórios coloniais e a forma como as potências coloniais os administram.

Das dissidências que entretanto foram surgindo, movimentos de colonizados propugnaram uma espécie de patriotismo vingador, classificado como nacionalismo. Mas era um nacionalismo mais emocional do que nacional que, quando exagerado, elimina o colonialismo mas, normalmente, entrega-o a uma forma de neocolonialismo de cariz imperialista. De facto, nem sempre a independência política foi acompanhada por uma independência económica.

Entretanto, realizam-se também os primeiros quatro Congressos da Internacional Comunista, entre 1919-1923. Até então, a teoria de Marx e Engels pouco se preocupara com a questão colonial. Já Vladimir Lenine era favorável à chamada “causa dos povos oprimidos” cuja defesa, dizia ele, poderia contribuir para o abalo do capitalismo pela destruição das suas próprias bases – o imperialismo. Assim, no 2º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), realizado em 1920, estabeleceram-se as condições de membro, das quais fazia parte “apoiar todo o movimento de libertação das colónias do próprio país” (8ª Condição).

A classe operária africana, na sua maioria analfabeta, embora dando provas de combatividade, não pôde assumir um papel dirigente no movimento. Em contrapartida, os partidos comunistas puderam estabelecer-se em África, sendo os seus dirigentes intelectuais interessados em substituir o elemento colonial no poder.

Os ideólogos negros iam fazendo o seu caminho, com destaque para o jamaicano Marcus Garvey (1887-1940) e a sua tese pan-africanista que defendia a criação, no continente africano, dos Estados Unidos de África, sob o lema “África para os africanos negros”, e George Padmore, de Trinidad e Tobago (1903-1959), principal teórico do pan-africanismo, que fez aprovar, no V Congresso Pan-Africano de Manchester, o manifesto de “Declaração aos Povos Colonizados”, de onde emanou, pela primeira vez, reivindicações para uma independência imediata, completa e absoluta dos povos de territórios dependentes. Acrescente-se que, para Padmore, o Comunismo não era mais do que uma das formas de crença da superioridade branca, pelo que os africanos não deveriam ver nessa ideologia um exemplo a seguir. Foi sob a sua inspiração que a mensagem do pan-africanismo militante passou à geração dos futuros líderes da África independente: Jomo Kenyatta (Quénia), Peter Abrahams (África do Sul), Hailé Sellasié (Etiópia), Namdi Azikiwe (Nigéria), Julius Nyerere (Tanzânia), Kenneth Kaunda (Zâmbia) e Kwame Nkrumah (Gana).

Mas o rebentar da II Guerra Mundial (1939-1945) adormeceu os movimentos emancipalistas, numa altura que em África não havia um único país verdadeiramente independente: a Libéria, teoricamente independente desde 1847, tinha uma existência política bastante precária e dependente dos Estados Unidos (EUA), situação semelhante relativamente ao Egito, independente desde 1922, e a autonomia da União Sul-Africana (1909), ambos sob controlo da Grã-Bretanha.

A par do pan-africanismo, atuou outra corrente, diferente, mas com o mesmo objetivo – o pan-arabismo: reunião de todos os povos muçulmanos numa só nação, tendo o Islão como forma de ação universal e presente em todos os continentes. Se o emir libanês Chekib Arslam (1869-1946) incentivou a unidade árabe e a fraternidade da raça, foi o egípcio Gamal Abdel Nasser (1918-1970) o principal articulador do chamado pan-arabismo, que propunha a união de todos os países de maioria árabe-muçulmana como forma de fortalecer a cultura e a causa islâmica frente ao mundo ocidental. Em função da identificação do Egito com o Islão, o país estava mais próximo do Médio Oriente, do ponto de vista cultural e político, do que dos países da África negra. De qualquer forma, o pan-arabismo de Nasser foi de grande importância para a causa pan-africanista, já que as suas iniciativas tinham em comum a luta contra os interesses estrangeiros nos seus países.

Por esta razão, os muçulmanos do Médio Oriente e do Norte de África adotaram a causa dos Aliados na II Guerra Mundial, esperando com isto a sua liberalização política. Para tal, em 22 de Março de 1945, antes mesmo da criação da ONU e da própria Organização de Unidade Africana (OUA), representantes de sete países reuniram-se no Cairo para assinar o documento que criava a «Liga dos Estados Árabes». Depois adeririam os países que alcançaram a independência: Líbia (1953), Sudão (1956); Marrocos (1958) e a Tunísia (1958); a Argélia, apesar de ainda não ser independente, integraria a Liga em 1962. Depois seguiram-se outras adesões.

As potências vencedoras da II Guerra Mundial, especialmente os EUA e a União Soviética (URSS), iriam dividir o mundo em áreas de influência num sistema de acordo conflituoso conhecido como Guerra-fria, que marcaria as disputas políticas no mundo até 1991. Mas, ao mesmo tempo que criticavam o colonialismo, os EUA e a URSS inseriam os seus interesses no tabuleiro político dos conflitos coloniais. Manteve-se um equilíbrio conciliatório entre as duas superpotências, evitando assim confrontos diretos mas, por outro lado, os confrontos indiretos ocorreram em várias partes do globo, destacando-se os processos de descolonização africana.

Por essa razão, a Europa, até então o centro da civilização mundial, passou a conviver, a partir de 1945, com uma divisão ideológica bastante definida – a parte ocidental capitalista e a parte oriental comunista. Os europeus, imersos nas tarefas de reconstrução, iriam reduzir a sua presença nas áreas coloniais, preferindo interagir com outros parceiros numa nova lógica de conexão económica que substituía o colonialismo. De qualquer forma, a debilidade do «concerto europeu», a pressão dos EUA e da URSS, o crescimento demográfico nos países africanos e a sua reação organizada levaria a um período intenso de ruturas coloniais a partir de 1945, em várias regiões do planeta, especialmente em África, que reagiu, setenta anos depois, à manta de retalhos fabricada na Conferência de Berlim.

Os territórios ingleses da Índia, Paquistão, Ceilão e Birmânia recebem logo a seguir ao fim da guerra o estatuto da independência; mais tarde, em África, a Líbia, em 1951, o Sudão, a Tunísia e Marrocos, em 1956, o Gana, em 1957 e a Guiné Conacri, em 1958. Em 1960, na sequência das promessas e concessões feitas pela França aos seus territórios de além-mar, só a Argélia não ficou independente.

De permeio, em 1955, a descolonização termina na Ásia e inicia-se em África. É então que decidem organizar em Bandung, na Indonésia, a conferência dos povos afro-asiáticos, uma iniciativa avançada por cinco países: Índia, Paquistão, Ceilão, Birmânia e Indonésia. Estes países convidaram outros vinte e quatro, dos quais apenas seis eram africanos, concretamente, o Egito, a Etiópia, a Costa do Ouro/Gana, a Libéria, a Líbia e o Sudão[8].

Dominada pela Indonésia, Índia, China e Egito, os «quatro grandes», a Conferência de Bandung realiza-se de 18 a 24 de abril de 1955, sob a presidência do chefe de Estado da Indonésia, Sukarno, e tem como tema central a condenação do colonialismo. O papel da Índia de Nehru foi determinante: afirmou o direito dos povos colonizados e dos países recentemente libertados a eximirem-se de todas as formas de tutela. O comunicado final da conferência acentua com ênfase que “o colonialismo sob todas as suas formas é um mal a que se deve rapidamente pôr fim”. É proclamada a igualdade entre todas as nações. Os participantes analisam também os problemas do desenvolvimento económico e cultural da Ásia e da África e pedem que seja organizada uma cooperação económica mundial para lutar contra a pobreza e contra o subdesenvolvimento.

Nesta Reunião foi lançada a Carta de Bandung, um documento de dez pontos que reivindicava a autodeterminação dos povos e criticava o racismo e o colonialismo. Contudo, apesar de solidários contra o colonialismo e o subdesenvolvimento, os países signatários de Bandung encontram-se mais divididos quanto à atitude a adotar face aos dois blocos antagónicos do que os EUA e a URSS controlam no âmbito da Guerra-fria.

Desenham-se três tendências: (i) neutralidade/não alinhamento (Índia e Egito); (ii) condenação do imperialismo soviético e europeu (Paquistão, Turquia e Japão); (iii) proposta de compromisso aceitável por todos (China Popular e Vietname do Norte). Devido a estas divergências, os partidários do não alinhamento não conseguem fazer adotar pelo resto da conferência uma posição nitidamente neutral; mas o movimento dos não-alinhados cresce, gerando uma terceira força entre as dissensões Leste-Oeste, para dar origem à expressão que se tornou recorrente a partir de então – Países de Terceiro Mundo.

O espírito de Bandung representa, assim, a bandeira erguida pelos povos dominados ou, citando Senghor, presidente do Senegal “a morte do complexo de inferioridade” dos povos de cor. As ruturas coloniais aconteceram de duas formas: (i) a partir de lutas populares anticolonialistas (em regiões onde existiam produtos estratégicos); (ii) através de acordos (onde não existiam cobre, ouro, diamantes ou petróleo), que evitavam os traumas da violência e garantiam um vínculo com a ex-metrópole, exemplo muito visto nas colónias britânicas.

De qualquer forma, ao afirmar solenemente a sua solidariedade contra o imperialismo sob todas as suas formas, os países do terceiro mundo impõem-se na cena internacional como uma nova força: em 1945, o mundo dividia-se em dois; depois de Bandung, três mundos são obrigados a coexistir, o Ocidente, o Leste e o Sul.

A formação do chamado «Terceiro Mundo» em Bandung, somado a episódios importantes para a África, como a nacionalização do canal de Suez e a posição de Nasser, também foram marcados pelo signo da Guerra-fria, existindo sectores, chamados de «não-alinhados», que simpatizavam com o socialismo, embora nem sempre com o «perfil soviético». Apesar de não ser signatário de Bandung, a realidade é que se assistiu à forte presença da URSS no mundo afro-asiático, objetivando expandir a doutrina do marxismo-leninismo, captar grupos de influência e, principalmente, dar instruções sobre subversão aos partidos e organizações ideologicamente dependentes de Moscovo e Pequim.

Assim, através de Nasser, um dos «quatro grandes» de Bandung, foi convocada a Primeira Conferência de Solidariedade dos Povos da África e da Ásia. Esta Conferência reuniu no Cairo, entre 26 de dezembro de 1957 e 19 de Janeiro de 1958, com a presença de 500 delegados, criando-se a OSPAA (Organização de Solidariedade dos Povos da África e da Ásia). Entre os resultados dessa conferência destaca-se a constituição de um «Conselho de Solidariedade aos Povos Afro-Asiáticos», com sede no Cairo.

Isto permitiu aos chineses e soviéticos estreitar as suas relações com as lideranças políticas dos países africanos. O neutralismo traduzia uma aproximação ao sovietismo, dado que o Egito era apoiado por Moscovo.

As iniciativas continuam e, entre 15 e 22 de Abril de 1958, sob a iniciativa de Nkrumah, líder Ganês, e de George Padmore, tinha lugar a 1ª Conferência de Estados Africanos Independentes, que reuniu representantes da África do Norte e da África Negra, com um objetivo anticolonialista. Desta-am-se duas moções votadas sobre a política africana: (i) uma primeira, de política geral, reafirmando a fidelidade à carta das Nações Unidas, à Declaração Universal dos Direitos do Homem e à Declaração da Conferência de Bandung; (ii) a segunda, preconizava a marcação de uma data precisa para a independência de cada um dos territórios ainda sob domínio colonial. O slogan era “independência imediata”.

Ainda em 1958, entre 6 e 13 de Dezembro, tinha lugar uma «2ª Conferência dos Povos Africanos», onde foram explicitadas as quatro fases a serem observadas na luta por uma África unida: obter a liberdade e a independência, consolidá-las, criar a unidade e a comunidade dos Estados livres de África, proceder à reconstrução económica e social do continente africano.

A Conferência, encorajadora dos movimentos independentistas em África, apresentou como decisão mais importante a criação de um secretariado permanente com a finalidade de acelerar a libertação de África e desenvolver um sentimento de solidariedade pan-africano. Estava lançada a semente da futura OUA.

1960 foi o ano da independência de África, apoiado jurídica e politicamente na resolução 1514 das Nações Unidas: “declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais”. Estava feita a ligação da autodeterminação ao processo de descolonização e à consequente independência. De tal forma que, no início dos anos setenta, quase todos os territórios de África e da Ásia se haviam tornado independentes. Até 1968, surgiram em África trinta e quatro novos Estados independentes. A grande exceção eram os territórios portugueses, a Rodésia, o Saara Espanhol e o Sudoeste Africano.

Como consequência da acelerada independência das antigas colónias africanas, foi considerado conveniente celebrar a II Conferência de Solidariedade em Conacri, na Guiné. E ali, em Abril de 1960, consolidou-se definitivamente o Movimento de Solidariedade aos Povos Afro-Asiáticos (OSPAA). Nessa Conferência foram criados os órgãos de direção da OSPAA, contando com a presença da URSS e da China no secretariado permanente. Criou-se um fundo, com dinheiros soviéticos, para ajudar os nascentes movimentos de libertação nacional da África.

Seguiram-se mais três conferências da OSPAA: Moshi, no Tanganica (4 a 10 de Fevereiro de 1963); Acra, no Gana (9 a 16 de Março de 1965); Havana, em Cuba (Janeiro de 1966).

Já com a presença de representantes da América Latina, além de afro-asiáticos e de delegações soviéticas, as conferências centraram-se na discussão no aperfeiçoamento dos meios de agitação, propaganda e subversão. A eleição de Havana para sede da V Conferência da OSPAAAL (Conferência de Solidariedade aos Povos da África, Ásia e América Latina), mais conhecida como Conferência Tricontinental, não foi casual. Teve como objetivo identificá-la com os povos que buscam a sua libertação seguindo o exemplo de Cuba, reforçando a posição de Fidel Castro que, desde que assumiu o poder em Havana, em 1959, se tornou o principal instrumento de subversão na América Latina.

A partir daqui, Cuba passou a marcar presença nos assuntos africanos.

A libertação das colónias africanas foi assim liderada por uma ideologia Marxista-Leninista e Maoísta, com um segundo objetivo de estabelecer um cerco à Europa Ocidental. Para lhe fazer face assistiu-se à reação norte-americana, apoiando política e militarmente os movimentos oposicionistas aos governos então estabelecidos.

A noção do «Não-Alinhamento de Bandung» evoluía assim para a temática claramente anti-imperialista.

No entanto, toda esta materialização de uma unidade africana não impede o emergir de divergências africanas, que se manifestaram através de três grandes grupos, com tendências difíceis de conciliar: (i) o «grupo Brazzaville» ou da «África moderada», integrado pelo Congo-Brazzaville, Senegal, Chade, República Centro-Africana, Costa do Marfim, Níger, Alto Volta, Mauritânia, Gabão, Benim, Camarões e Madagáscar. Era um grupo que procurava manter boas relações com as ex-potências coloniais; (ii) o «grupo Casablanca» ou a «África revolucionária», com um cunho afro-asiático, constituído pelo Gana, Guiné-Conacri, Marrocos, Mali, Egito e a Frente de Libertação Argelina. Este grupo era hostil ao mercado comum europeu e a toda a espécie de cooperação dos novos estados com os anteriores poderes coloniais; (iii) o «grupo de Monróvia», impulsionado pela Libéria, Camarões, Nigéria e o Togo, com o objetivo de servir de elo de ligação entre as duas anteriores tendências. Reclamava-se uma igualdade entre Estados africanos, a não ingerência em assuntos internos e o respeito pela soberania, mas também a condenação formal da manutenção de focos de subversão dirigidos contra outros Estados.

Apesar de os meios a utilizar serem diferentes, todas estas conferências e grupos tinham o propósito comum de procurar uma forma de unidade africana e a criação de um organismo regulador da cooperação intergovernamental. Ou seja, com as independências coloniais, o pan-africanismo necessitava de um organismo que gerisse as diversas sensibilidades africanas. É neste contexto que, em 25 de maio de 1963, foi fundada a OUA, em Adis-Abeba, na Etiópia. A máxima a reter é que, ao contrário dos movimentos pan-africanistas que defendiam «África para os Negros», a OUA dava prioridade a «África para os Africanos, independentemente da sua cor».

O seu objetivo principal era proporcionar apoio económico, militar e diplomático aos movimentos de luta pela descolonização, contribuir para a sua unidade e divulgar as suas atividades, que foi, em geral, bem-sucedido. Quanto a outros objetivos inscritos na sua agenda, os resultados foram mais modestos: o desenvolvimento de políticas comuns e de cooperação económica entre os países africanos; a consolidação da influência internacional dos estados do continente; a proteção da soberania, da integridade territorial e da independência dos estados; a coordenação das atividades destes em matéria de política externa, economia, defesa e cultura.

Na sequência das sucessivas conferências e da criação da OUA foram tentadas algumas alianças africanas, mas sem sucesso, pois eram imensos os obstáculos: a proliferação de jovens líderes nacionalistas; a heterogeneidade étnica; a balcanização da África; as diferenças económicas; as minorias brancas; os mais de 600 dialetos negro-africanos.

O nacionalismo não foi suficientemente forte para unir a África Negra, mas as independências multiplicaram-se ao longo da década de 1960. Curiosamente, nas outras partes do mundo, as nações precederam os nacionalistas, que nasceram para defender a sua causa, enquanto em África os nacionalistas fizeram o seu aparecimento antes das nações.

 

2.2. Guerras de Descolonização

Se alguns dos países africanos obtiveram a independência de forma pacífica, mediante negociações ou acordos entre os líderes africanos e as potências europeias, como aconteceu, entre outros, com Marrocos (França) e a Líbia (Itália), na África do Norte; a Nigéria (Grã-Bretanha) e o Gana (França), na Costa Ocidental Africana; o Sudão (Egito-Grã-Bretanha) e a República Centro Africana (França), no Centro-Norte; ou a Tanzânia e a Zâmbia (Grã-Bretanha), no Centro-Leste, o exemplo de guerras de matriz subversiva, revolucionária ou de guerrilhas conducentes à descolonização foram uma realidade[9].

Como guerras de descolonização mais relevantes, atendendo aos contornos relacionais colono-colonizado, divergências políticas a nível interno, especificidades territoriais, matriz social, caracterização histórico-cultural e tipologia de conflito, apontamos os do Quénia britânico, da Argélia francesa e da Angola portuguesa: (i) o primeiro assume-se maoista, centrou-se nas zonas rurais e confinou-se ao território; (ii) o segundo é de carácter nacionalista, essencialmente urbano e com forte influência social; (iii) o terceiro apresenta uma marca revolucionária, divergente quanto aos atores subversivos e desenvolveu-se sobretudo nas faixas fronteiriças.

Peses embora as diferenças ideológicas apresentadas e os métodos de combate desenvolvidos, estes conflitos inspiraram-se na doutrina de guerra subversiva praticados por Mao Tsé-Tung, na China, e Ho chi Min, na Indochina, ou seja, praticaram a guerra revolucionária.

 

Quénia (1952-1956)[10]

A guerra que assolou o Quénia a partir de 1952 e tem no movimento Mau Mau o ator dominante, releva de particularidades que importa, desde já, identificar: é desenvolvida por um movimento revolucionário marxista que assenta na ferocidade da luta a sua imagem de marca; é travada contra o mais importante poder colonial europeu – a Grã-Bretanha; o movimento perde o apoio populacional; remete a luta às zonas florestais interiores do País; não obtém apoios externos que lhe garantam bases ou zonas de refúgio.

Em 1948, cerca de 1,3 milhões de Kikuyus, grupo dominante no Quénia, viviam numa área de cerca de 5.200 km2, enquanto 30.000 colonos britânicos ocupavam 31.000 km². A partir de 1950, devido à depressão interna, derivada do aumento dos preços agrícolas, das rendas e do desemprego, verifica-se um aumento de insatisfação social e um fluxo migratório para os principais centros urbanos e a criminalidade dispara em Nairobi e Mombaça. Enquanto as autoridades procuram travar as movimentações demográficas em elevada escala e nas cidades aumenta o reforço policial, o movimento Mau Mau afirma-se, colhendo apoios na «desamparada» juventude urbana.

Sob liderança de Jomo Kenyatta, define objetivos irredutíveis que acabaram por emprestar ao conflito uma inaudita ferocidade: apoiado na religião (luta em nome de Deus) e na cultura social Kikuyu (Justiça da causa), impôs um elevado nível de disciplina e de coesão no seio dos Kikuyus, onde a quebra do juramento de lealdade era punido com a morte; oposição a tudo que representasse o colonialismo e a influência europeia; recuperar as terras dos colonizadores brancos; destruição de toda e qualquer estrutura considerada importante para a implantação britânica no território. As lideranças eram eleitas com base em provas de lealdade à causa e de capacidades militares e políticas. O recrutamento era voluntário e coercivo, constituindo-se uma militância de guerrilha e uma componente de apoio encoberta, que incluía mulheres, responsáveis pelo transporte de comida e de armas para os guerrilheiros refugiados nas florestas. A organização militar compreendia: Batalhões de 300 a 500 elementos; Companhias de 100 a 250 elementos; Pelotões de 50 a 100 elementos; Secções de 10 a 50 elementos. O armamento era rudimentar e maioritariamente de conceção artesanal e a falta de munições era crónica.

Iniciada em 1952, a fase armada incluía a intimidação da população, punição de traidores e comunidades leais às autoridades, sustentação das forças e combate direto com autoridades britânicas. No entanto, o método desenvolvido pelos Mau Mau alienou o apoio populacional (perda da ala passiva), fechou-lhe as fronteiras (ausência de manobra externa) e fixou-o estrategicamente nas zonas florestais, facilitando as medidas de contrassubversão das autoridades.

Consequentemente, sem liberdade de ação estratégica e incapaz de garantir uma estrutura militar coordenadora, os Mau Mau foram obrigados a remeter-se a uma atitude de sobrevivência aspirando à independência.

Do lado britânico, o Estado de Emergência foi declarado em Outubro de 1952, iniciando-se a denominada fase de limpeza através da operação Jock Scott, que conjugava forças policiais, componente militar reforçada com efetivos da metrópole e da Rodésia e o desenvolvimento de uma sistema de informações baseado numa extensa rede de informadores locais. A operação obrigou os Mau Mau a recolher à floresta.

À Operação Jock Scott sucedeu a Operação Anvil, iniciada 24 de abril de 1954. Nairobi foi colocada em quarentena e todos seus habitantes submetidos a controlo, os membros das tribos obrigados a demonstrar sua inocência e os seguidores do Mau-Mau foram transferidos para Langata. Sujeitas a um rigoroso controlo, as populações foram deslocadas e fixadas em campos de realojamento, originando o deslocamento de mais de um milhão de Kikuyus dos seus lares. Paralelamente, desenvolveu-se um programa de infraestruturas escolares e sanitárias e uma rede de estradas que ligavam as localidades às áreas rurais.

A manobra militar foi organizada em três componentes: (i) forças regulares britânicas, usadas para segurança das quintas dos colonos; (ii) Kikuyu Guard, forças leais a Londres e da mesma tribo que os Mau Mau; (iii) Kenya Police Reserve, milícia irregular de fazendeiros brancos.

Com a detenção do líder militar dos Mau Mau, Waruhiu Itote (General China), em Janeiro de 1964, os britânicos tomam conhecimento dos locais de acantonamento, organização militar e dificuldades logísticas e de armamento das forças subversivas. A fase seguinte consistiu no patrulhamento das zonas montanhosas pelas forças de quadrícula, maioritariamente constituídas por forças locais, muitas delas antigos membros Mau Mau, sobre quem recaiu o grosso das ações de combate com apoio de meios aéreos, que em muito contribuiu para desmantelar o dispositivo da guerrilha.

Em 1956, o dispositivo subversivo estava desmantelado e as lideranças capturadas. Apesar da vitória militar e do apoio maioritário das populações locais, o governo britânico manteve o estado de emergência até 1960. Mas reconheceu a não existência de condições políticas conjunturais para manter o status quo, negociando a independência do Quénia, efetiva em 1963, sob a presidência de Jomo Kenyatta.

A importância da guerrilha Mau Mau residiu na inspiração dada a outros movimentos de libertação em África.

 

Argélia (1954-1962)[11]

O conflito na Argélia caracteriza-se pela competição em três frentes: o governo francês, que lutou pela preservação do território; o colono francês, orientado para manter interesses adquiridos; o nacionalista argelino, decidido a criar um estado independente.

Por um lado, para a França, a questão argelina tornou-se em necessidade de afirmação no contexto internacional, que surgiu temporalmente numa altura de fragilidade face ao desastre militar sofrido na Indochina[12] e a perda de controlo do Canal do Suez. Apresentava uma incomparável superioridade militar, materializada em quatro corpos de exército que ultrapassavam os 100 000 homens, carros de combate, peças de artilharia e meios aéreos como helicópteros e aviões.

O conceito estratégico militar assentava numa ação militar rápida, necessidade de aniquilar o grosso das forças do adversário e evitar que o mesmo corrigisse a situação de inferioridade. Na zona do interior, inicialmente, a população francesa apoiava a guerra, os colonos eram um fator de ponderação e parte da população muçulmana argelina começou por reclamar a cidadania francesa colocando-se do lado do poder europeu.

Por outro, se, até 1954, o nacionalismo argelino estava fragmentado por um vasto leque de partidos políticos, une-se numa frente comum materializada na Frente de Libertação Nacional (FLN) e, depois, na organização de um Exército de Libertação Nacional (ALN), braço armado do partido desenvolvido através de bases de unidades de guerrilha (companhias de 80 a 110 homens) e armamento ligeiro. A subversão argelina implanta-se em Wilayas, zonas autónomas rurais semelhantes às inter zonas do Viet Minh (braço armado vietnamita de Ho Chi Min na Guerra da Indochina), apesar de a matriz ideológica do movimento não seguir as teorias revolucionárias comunistas. Em 1 de Novembro de 1954 (Dia de Todos os Santos), tem início o período insurrecional, com ataques seletivos em todo o território, incidindo nos interesses franceses e dos colonos, com especial relevo na região montanhosa de Aurés.

Face a estas ações, deu-se uma resposta militar francesa à base de meios aéreos e manobra de forças no terreno que quase desmantelou o movimento, complementada com a adoção, por parte das autoridades, de políticas de reaproximação e reintegração das populações, iniciando assim uma estratégia indireta complementada com o recurso à ação militar direta. À medida que a técnica de quadrícula desenvolvida pelas forças francesas vai fixando e manietando a liberdade operacional da resistência argelina, em 1956, Paris concede a independência a Marrocos e à Tunísia, que se tornariam zonas de refúgio para a FLN, a Oeste e a Este, respetivamente, em virtude do apoio daqueles países à causa da independência argelina.

Segundo o Centro de Doutrina de Emprego de Forças, os franceses adotaram as seguintes técnicas: (i) técnica de coluna – Unidades constituídas pela Legião Estrangeira e tropas coloniais reforçadas pelos «partisans», apoiadas por artilharia, aviação e reconhecimento. Não comportava muitos efetivos e por isso não era uma solução eficaz, dado que operavam sozinhos; (ii) quando os efetivos aumentaram, adotaram a técnica de defesa de área – defesa de pontos-chave do território (quintas europeias, vilas muçulmanas, estradas, caminhos de ferro, pipelines e outros alvos sujeitos a ataques ou sabotagens) com unidades de vigilância e patrulhas regulares. Isto criou um espírito defensivo.

O apoio e o contacto permanente com a população local e as autoridades civis era essencial, pois permitia ganhar a confiança dos habitantes e, através dos poderes mediáticos e das infraestruturas de comunicação, era possível influenciar a moral e sensibilidade da população. Tinha como inconvenientes a necessidade de numerosos efetivos e a imobilização das forças que, após um certo tempo, começaram a perder a iniciativa, fruto da rotina da missão, que provocava o tédio, a passividade e o isolamento das unidades.

Como resposta, a FNL/ALN trocou os pouco úteis e seguros santuários rurais pela guerra urbana. A intenção consistiu em levar a guerra para junto da população argelina onde pretendia colher apoio logístico e uma base de recrutamento, minar a motivação dos colonos franceses, anular a importância dos meios aéreos e desacreditar internacionalmente a França, mediatizando o conflito. Curiosamente, as técnicas subversivas desenvolvidas pela FLN nas localidades são «copiadas» da resistência francesa contra a ocupação Nazi da França, durante a II Guerra Mundial, isto é, sabotagens, assassinatos seletivos, paralisação da ação governativa, ações de força contra efetivos militares oponentes. A técnica do «bate-e-foge» do ALN impunha-se.

É neste contexto que, em 1957, se inicia a sangrenta Batalha de Argel. Sob o comando do General Massu, a 10.ª Divisão Paraquedista entra em Argel e implementa a tátita da quadrícula, ou seja, implanta as forças militares por sectores na cidade, fazendo patrulhas, operações de cerco e busca e montando postos de controlo apoiados por desertores da FLN. Ao mesmo tempo, os agentes secretos destruíam as redes do inimigo e implementaram-se medidas de controlo da população.

A nível militar, o ALN saiu da Batalha de Argel muito fragilizado, com as suas redes desmanteladas, a prisão de milhares de ativistas, a captura de personalidades chave e a paralisia da sua capacidade operacional. O ALN foi obrigado a retirar para o interior do país e a procurar refúgio e apoio em Marrocos e na Tunísia. Situação que levou o poder francês a instalar barreiras ao longo das fronteiras com esses dois países, em particular no caso da Tunísia onde foi construída uma cerca eletrificada, denominada de linha Morice.

Contudo, o sucesso militar obtido em Argel resultou num fracasso político de amplas repercussões para Paris, em face das acusações de torturas, morte e desaparecimento sofridos por milhares de argelinos muçulmanos, que apontam números de dezenas de milhar.

Em 1958, a situação argelina estava num impasse. Os franceses tinham a noção (aprendida com a experiência da Indochina) que a vitória não podia ser unicamente militar, sobretudo quando o movimento subversivo tem vontade política. E, na verdade, a FLN afirma-se em fatores determinantes, isto é, com uma forte determinação política, irredutibilidade militar e o apoio crescente da população.

Para as forças militares francesas instaladas na Argélia, ao sucesso militar impunha-se juntar uma liderança política forte a partir de Paris que conduzisse à vitória total, situação que conduz à V República do General Charles de Gaulle que, de imediato, anunciou um plano de industrialização da Argélia (Plano Constantine) e prometeu uma nova campanha militar para exterminar o ALN, intensificando a guerra no interior e nas montanhas, reduzindo de forma quase total a atividade do ELN.

Mas a resistência permanece, com ataques terroristas perpetrados na Argélia e na própria França, em Tunes formaliza-se o Governo provisório da República da Argélia (GPRA) e o bloco comunista é motivado a apoiar politicamente o movimento.

De Gaulle acaba por alterar o rumo político de uma Argélia francesa e, mesmo com a situação militar considerada resolvida, evoluiu para a autodeterminação dos argelinos, iniciando conversações com a FLN, em Setembro de 1959. Consequentemente, entre 1960 e 1961, efetivos do Exército e colonos argelinos opõem-se à via da independência e criam uma forte agitação a partir de Argel, que ameaçam fazer alastrar ao território francês da Europa. No entanto, a opinião pública francesa, cansada da guerra e a sentir os efeitos dos avultados gastos financeiros, apoia De Gaulle, que legitimou a sua política através de referendos.

Em Março de 1962, em Evian, foi finalmente alcançado um acordo que conduziu à independência da Argélia, fundamentada depois por um referendo que recolheu uma maioria esmagadora.

Mas a dureza da Guerra da Argélia mede-se pelas perdas sofridas por ambos os lados: Entre 141 000 e 155 000 elementos da FLN, 16.000 insurgentes e um milhão de argelinos foram mortos; o exército francês sofreu entre 17.456 e 25.000 mortos e perdeu 97 aeronaves.

 

Angola (1961-1974)[13]

O contexto da guerra em Angola apresenta o facto interessante de a autoridade portuguesa estar simultaneamente envolvida em três frentes de guerra de cariz semelhante (Guiné, a partir de 1963, e Moçambique, desde 1964) e de as forças subversivas angolanas estarem divididas internamente em três movimentos de libertação antagónicos. E, nesse sentido, se Portugal tinha limitações ao nível de efetivos e projeção de forças, os movimentos de libertação lutavam entre si pela primazia político-militar interna e sentiam enormes dificuldades de sustentação operacional face ao poder estabelecido.

Entre 1961 e 1974, o Estado Português desenvolveu uma guerra de contrassubversão nos territórios de Angola, Guiné e Moçambique, com a convicção que lutava pela manutenção da inviolabilidade e integridade do seu território e a garantia da sua própria soberania. Dessa forma, assumindo que estava em causa a preservação do Regime do Estado Novo e a sobrevivência do próprio Estado, Portugal definiu a preservação dos territórios em África como objetivo vital, pela qual se predispôs a combater.

Os ataques efetuados em Luanda (Casa de Reclusão Militar, Esquadra de Polícia Móvel e Cadeia de São Paulo) por elementos supostamente afetos ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), em 4 de Fevereiro de 1961, e a chacina perpetrada pela União dos Povos de Angola (UPA) na Província de Uíge contra populações e fazendeiros brancos e negros, na noite de 15-16 de Março desse ano, iniciaram a Guerra.

Para Portugal, o que se pensava, inicialmente, que seria uma campanha de pacificação rápida resumida a ações de polícia, tornou-se numa campanha militar de desgaste estendida no tempo. Quando a guerra estalou, as forças portuguesas em Angola contavam com 6500 militares, dos quais 1500 eram europeus e 5000 recrutados localmente. Espalhavam-se por toda a província e não estavam preparados para repelir uma subversão em grande escala. Igualmente sem preparação estava a máquina de guerra portuguesa, que foi incapaz de levar para a região efetivos em número suficiente até 1 de Maio de 1961. Contudo, perto do final desse ano, Portugal movera cerca de 25 000 tropas europeias para Angola e, no final do conflito, em 1974, tinha 60 000 em armas no território.

Dos princípios estratégicos aplicáveis na guerra salientam-se: a contrassubversão é uma luta pela população e nunca contra a população; a luta contra a subversão não pode ser levada a efeito exclusivamente pelas forças militares e estas não devem atuar unicamente pelas armas. Portanto, a atuação contra subversiva partia da premissa de que este tipo de guerra não se ganha pela ação militar, mas perde-se pela inação militar, constituindo objetivo primário das Forças Armadas garantir a liberdade de ação política, governativa e administrativa.

A estratégia de contrassubversão adotada assentou, assim, em quatro premissas: (i) com a estratégia diplomática, garantir a cooperação ou a acomodação dos aliados tradicionais, conter a oposição dos países vistos como ameaça política e tentar encontrar plataformas de entendimento com os movimentos subversivos; (ii) através da estratégia económica, melhorar as condições de vida das populações autóctones, fazendo-as sentir-se parte integrante do Portugal uno; (iii) a estratégia psicológica destinava-se a obter o apoio das populações e a desmoralizar o adversário, fortalecendo o moral das próprias forças; (iv) através da estratégia militar, manter a ordem nas províncias e combater as forças subversivas.

Foram uma Forças Armadas de massas, com elevados efetivos e baixo nível de equipamentos e armamentos, que combateu em África. Como a guerra se desenvolveu em terra, foi sobre o Exército que recaiu o esforço de guerra: a implantação territorial ficou à responsabilidade de unidades de quadrícula, através de ações de nomadização, patrulhamento, proteção de itinerários e segurança das populações; as forças de intervenção (Caçadores Especiais e Comandos), atuavam contra formações inimigas que se revelassem, efetuando golpes de mão, ações nos redutos adversários ou defesa de pontos sensíveis. Às forças navais e aéreas competia apoiar as operações terrestres. A Marinha, através de lanchas de fiscalização e desembarque, controlava as vias fluviais, operando, principalmente, nos rios do Leste, rio Zaire e Chiloango, e a Força Aérea (avião Noratlas, Fiat G-91 e heli Alouette ) desenvolvia ação de reconhecimento, fogo, transporte e evacuação, detendo a vantagem de ausência de capacidade aérea e antiaérea por parte dos movimentos de libertação. Muitos dos efetivos eram recrutados localmente, com os quais foram constituídas unidades, os denominados Grupos Especiais ou os Flechas.

Em Angola, registam-se três movimentos de libertação: União dos Povos de Angola/Frente Nacional de Libertação de Angola (UPA/FNLA), dirigido por Holden Roberto; Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), liderado por Agostinho Neto; União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), comandado por Jonas Savimbi.

Operando a partir de uma base e porque os efetivos eram reduzidos, a guerrilha exigia dos combatentes grande rusticidade e mobilidade, características que fundamentavam a sua adaptação aos terrenos difíceis, que conheciam melhor do que as forças regulares, mais pesadas e mais lentas. Como norma, as guerrilhas evitavam empenhar-se decisivamente com as tropas regulares, privilegiando a manobra de lassidão como manobra de ação estratégica. No entanto, os guerrilheiros angolanos tinham vulnerabilidades, porquanto os laços estabelecidos pela consciência étnica criavam fraturas entre eles. Estas diferenças culturais e ideológicas e, até, as disputas entre as chefias, minaram-lhes, em alguns casos, a disciplina e o moral, diminuindo-lhes a eficácia.

A FNLA, de Holden Roberto, era um «grupo tribal», americanizado e acantonado de forma sedentária no santuário de Mobutu, no Zaire, onde tinha uma força de cerca de 6000 homens. Ficou remetida a uma bolsa de refúgio na área dos Dembos, de onde desencadeava as suas atividades de guerrilha. Foi ali sistematicamente combatida pelas Forças Armadas Portuguesas e, depois, pelo MPLA, pelo que nunca pôde sustentar essa bolsa nem tão pouco expandi-la.

A UNITA, de Jonas Savimbi, representava uma cisão da FNLA, foi constituída no Leste, em 1966, e ali se fixou um contingente de guerrilha a rondar o meio milhar, numa área a Sudoeste do Luso, operando na zona do caminho-de-ferro de Benguela, onde se opunha à progressão do MPLA que, na impossibilidade de a contornar, a combatia. Portanto, a UNITA, sobretudo a partir de 1970 e através do acordo «Operação Madeira», revelou-se um apêndice do esforço de guerra português contra o MPLA.

O movimento de Agostinho Neto tinha, inegavelmente, uma superior representatividade interna e apoios internacionais, onde a proeminência política estava claramente acima da capacidade militar. O MPLA estabeleceu-se inicialmente em Brazzaville e, a partir de 1966, na Zâmbia, contando 4700 homens (cerca de 1/3 a operar no interior de Angola). Identificada pela OUA como movimento representante da libertação de Angola, o MPLA constituiu o principal problema subversivo com que o poder português teve que lidar.

1963 constitui um ano de transições. O MPLA é expulso do Zaire, de Mobutu, que passa a auxiliar as ações da FNLA no norte de Angola, e no Congo Brazzaville ocorre um golpe de Estado de onde emerge o governo de Massamba-Débat, que assume o apoio ao MPLA, através da utilização de campos de treino e facilidades de utilização da Rádio Brazzaville. Isso permitiu ao movimento abrir uma frente em Cabinda, contando posteriormente com a colaboração de instrutores cubanos a partir do Congo, em 1965. Mas, em Cabinda, o fracasso do MPLA na «Operação Macaco», através da qual pretendia efetuar ações de flagelação em Sanga Planície, reforçou a convicção de que aquela região não era favorável à guerrilha.

Depois do fracasso em Cabinda, o MPLA transferiu as forças de guerrilha para a Zâmbia, quando esta se tornou independente, em 1964, montando a sua estrutura na fronteira do Moxico. Daqui penetrava profundamente nos distritos da Lunda, Moxico e Cuando Cubango, fazendo crescer a área de subversão.

A Frente Leste é ativada pelo MPLA, a partir de 1968. O Leste, a partir do qual o MPLA pretende alcançar o interior, através da denominada «Rota Agostinho Neto» e ligar-se aos seus guerrilheiros no Norte, será o mais importante campo de batalha de toda a guerra de Angola. Mas a guerrilha não consegue manter as bases durante longo tempo, nem controlar número significativo de populações.

Em 1973, fruto da ação militar portuguesa e de dissidências internas, o MPLA perdeu iniciativa operacional sem alcançar os seus objetivos. O movimento, que desenvolvia ações de monta, recuou até à fronteira, minado por contradições internas, tendo na denominada «Revolta Ativa» um dos episódios mais marcantes. O MPLA estava reduzido a pequenas bolsas de guerrilha ao longo da «estrada do Café», tinha sido irradiado do Leste para Sul, organizando bases a Sul de Gago Coutinho (Lumbala) e a Leste de Mavinga, retrocedendo depois para o Cazombo, face à acção combinada da tropa portuguesa e de guerrilheiros da UNITA e, em parte, devido ao abandono da guerrilha pelos líderes e combatentes da Revolta do Leste.

Entretanto, a FNLA estava confinada à fronteira com o Zaire e a UNITA constituía uma pequena reserva quase inativa entre o Moxico e o Bié.

Assim, no início de 1974, Portugal assumia Angola como província politicamente sustentada, socialmente estabilizada e militarmente controlada. Mas a questão política estava por resolver, constatação aproveitada pelo MPLA, para quem, nesta fase, o mais importante era resistir para existir, provando uma estratégia que resultou após a descolonização.

A guerra culminou de forma imprevisível e surpreendente. A inação política revelada pelo Governo Português relativamente a decisões relacionadas com a Guerra de África motivou uma Revolta Militar contra o Regime do Estado Novo, planeada e desencadeada por oficiais de patente intermédia, sobretudo do Exército, em 25 de Abril de 1974.

 

3. Tipologia dos Conflitos na África dos Estados Soberanos[14]

Alcançada a independência, há três imagens marcantes da conflitualidade em África: (i) guerras inter estatais – apesar de tudo menos comuns; (ii) guerras civis – tipologia principal; (iii) ausência de denominador, no dealbar do século XXI.

Os conflitos inter estatais foram pouco relevantes, sobressaindo a rivalidade étnico-cultural e os diferendos de fronteira como móbil principal. Como exemplos, apontamos a crónica desestabilização verificada no «corno de África», entre a Etiópia, a Eritreia e a Somália, permanente desde 1991, e a instabilidade recorrente entre o Ruanda, o Burundi, o Uganda e Congo Kinshasa. Contudo, das cerca de trinta disputas fronteiriças decorrentes da descolonização, verificável até meados dos anos 1990, vinte e cinco não envolveram recurso à força, mas negociações diplomáticas.

Os conflitos internos foram mais marcantes, seja ao nível de golpes de estado, revoltas militares ou guerras civis. A competência identificada em muitos dos líderes africanos no processo de descolonização revelou-se um desastre quando o assunto foi governar em prol do bem comum. Em pouco tempo (1965-1966), verificou-se uma sucessão de golpes militares, concretamente, na Nigéria, Argélia, Zaire, Gana, República Centro-Africana, Alto Volta e Burundi. Em 1967, a maioria das novas nações africanas já não estava nas mãos dos legisladores eleitos, mas de regimes militares ou de governos civis autoritários. Talvez um dos problemas mais latentes, como refere Gordon Kerr, tivesse a ver com o facto de “os habitantes dos novos Estados sentirem maior lealdade para com o seu grupo étnico ou clã do que em relação ao Estado e, uma vez desaparecida a euforia do fim do colonialismo, retomarem essas lealdades”.

Desde então, ocorreram mais de trinta golpes de estado e a conflitualidade permaneceu, sendo África o continente com o maior número de conflitos armados, com destaque para as guerras civis:

(i) depois de alcançar a independência da França, em 1962, a Argélia passou por um golpe de Estado, em 1965, e envolveu-se numa guerra civil, em 1992;

(ii)     no Congo, independente da Bélgica, em 1960, com Patrice Lumumba, o diferendo deu-se pela posse de Katanga, região rica em urânio e diamantes, que Kapenda Tsombé declarou independente, enquanto Mobutu Sese Seko encetou um golpe militar que depôs Lumumba do poder. Mas a luta pelo poder continuou, através da guerrilha que Laurent Kabila manteve ao longo dos anos, até alcançar o poder em 1997;

(iii)    na Nigéria, também independente em 1960, a guerra de secessão do Biafra, rico em petróleo, provocou um genocídio e o país permanece suspenso da indispensável unidade político-social;

(iv)     as guerras civis caracterizaram também as antigas colónias portugueses, uma vez que a Guiné-Bissau, independente desde 1974, segue de golpe militar em golpe militar, motivando Cabo Verde a separar-se em 1980. Moçambique, independente em 1975, teve na guerra Frelimo-Renamo (1977-1992) a consequência de duas vontades internas opostas, e em Angola a situação foi ainda mais complexa, com três partidos/movimentos de Libertação (MPLA, FNLA e UNITA) a disputarem o controlo do Estado após a proclamação de independência em 1975, numa guerra que se tornou a dois (MPLA-UNITA) e que durou até 2002;

(v) a Espanha abandonou o Sara Ocidental, em 1976, sob pressão marroquina, que ocupou o território, e a disputa entre a Frente Polisário, movimento de libertação do Sara, e Marrocos continua até ao presente;

(vi)     em 1994, no Ruanda, outrora colónia alemã e belga, a luta interna entre hutus e tutsis saldou-se num dos maiores genocídios da História, registando cerca de um milhão de mortos, de maioria tutsi;

(vii)    na Somália, depois do derrube de Siad Barre, em 1991, o território balcanizou-se por catorze «senhores da guerra», sendo o país palco de uma intervenção militar da ONU, em 1992, maioritariamente composta por americanos, com fins proclamados de distribuir ajuda humanitária. As fações somalis, especialmente a liderada por Mohamed Aidid, ofereceram uma resistência inesperada, obrigando à retirada americana do país, em Março de 1994. Este país, que quinze anos antes havia tentado criar uma grande Somália, fragmentou-se em clãs armados, originando um conflito tribalizado, constituiu-se como base de pirataria marítima e é refúgio seguro para operacionais terroristas da Al-Qaeda;

(viii)   o Sudão, por sua vez, em guerra civil praticamente desde a sua independência (1956), tornou-se um estado apoiado em leis islâmicas desde o golpe militar de 1989, fomentando a revolta e o regresso da guerra, após uma trégua de alguns anos. Praticamente proscrito da comunidade internacional, prosseguiu uma luta contra os rebeldes negros cristãos e animistas do sul, mergulhando a região no caos, com milhões de mortos, deslocados e refugiados. Em 2012, o país cindiu-se, originando o Sudão do Sul;

(ix)     outro país atingido por uma guerra civil foi a Costa do Marfim, onde os rebeldes se apoderaram da metade norte do país, em 2003, na sua luta contra o governo, tendo sido necessário uma intervenção francesa em apoio do mesmo;

(x) já as Ilhas Comores, independentes desde 1975, tiveram seu 18.º golpe de Estado em 28 anos de independência.

 

No final da década de 1980, os sinais do fim da Guerra-fria começaram a aparecer em África. Depois da derrota sofrida pelos sul-africanos na batalha de Cuíto-Cuanavale perante tropas cubano-angolanas, em 1988, os EUA propuseram a retirada cubana em troca da independência da Namíbia, que ocorreu em 1990.

Regimes de partido único eram substituídos, frente a pressões internas e externas, por sistemas liberal-democráticos multipartidários, Estados em guerra civil, como Angola (maio de 1991) e Moçambique (outubro de 1992), assinavam acordos de paz e os demais regimes marxistas eram derrubados, como na Etiópia, em maio de 1991. A própria África do Sul anunciou, em Fevereiro do mesmo ano, o fim do apartheid, após a libertação de Nelson Mandela no ano anterior. Viviam-se, então, anos de «afro-otimismo», com novas democracias e novos líderes. Mas a adequação de África aos parâmetros da chamada nova ordem mundial, contudo, não significava a solução dos problemas existentes. O fim da bipolaridade e do próprio conflito Leste-Oeste, agravado pelo desmembramento e desaparecimento da União Soviética, em fins de 1991, fizeram com que o continente africano perdesse relevância estratégia, importância económica e referências ideológicas.

O resultado foi a marginalização da África no sistema internacional e a desestatização e tribalização dos conflitos e da política regional. Com armas menos modernas, financiamento das máfias, senhores da droga a imporem a «sua ordem» e a intromissão de médias potências, regionais e externas, os conflitos persistiram. Alguns acordos de paz, como os de Angola, não foram respeitados, com a persistência da guerra e a devastação de amplas regiões.

Assim, entre 1994 e 2003, notabilizam-se, pelas piores razões, o já referido genocídio ruandês, que marca o retorno da barbárie, a tragédia do Darfur, no Sudão, causadora de 200 000 mortos e qualquer coisa como dois a três milhões de refugiados, e o drama da região dos Grandes Lagos marcado pela segunda guerra do Congo (1998-2003). Considerado o conflito mais mortífero desde a II Guerra Mundial, envolveu oito nações africanas e cerca de vinte e cinco grupos armados, originando mais de cinco milhões de vítimas, a maioria devido a doenças e à fome, e milhares de deslocados.

Entretanto, o fundamentalismo islâmico fez avanços significativos no norte da África, com atentados no Egito, Líbia, Marrocos e na Argélia, na década de 1990. Fundamentalismo islâmico que marca presença nos conflitos do Mali ou República Centro Africana, sem esquecer a postura de perturbador endémico nos Estados norte africanos saídos das revoltas populares da denominada «Primavera Árabe», nomeadamente, no Egito, Tunísia, Líbia, Síria ou Iémen, onde a deposição de ditadores como Hosni Mubarak, Bem Ali ou Kadhafi originaram um relativo vazio de poder.

Na verdade, convém ter em atenção a presença islâmica de cariz radical subsidiária do terrorismo da Al-Qaeda, que atua em proveito do pan-islamismo em Estados como a Nigéria, o Mali e a República Centro Africana. O tampão do Magrebe Árabe desapareceu e a tendência aponta para os radicais do Crescente «estiquem o manto» para Sul. De tal forma, que a eventual constituição de um «shaelistão» fez «soar as campainhas de alarme» nos Estados africanos e na própria comunidade internacional.

 

4. «Em África surge sempre algo de novo»

África não é atualmente o cenário principal da conflitualidade mundial, surgindo sinais positivos a merecer ponderação: (i) o lançamento, em 2001, da nova parceria para o desenvolvimento africano (NEPAD), um plano que se caracteriza pelo vínculo entre democracia, governabilidade e desenvolvimento económico; (ii) uma abordagem diferenciada do FMI e do Banco mundial nos problemas africanos; (iii) a criação, em Julho de 2002, da União Africana (UA), que substituiu a OUA, ratificada por 53 países do continente apostados em criar estruturas que contribuam para o fim dos conflitos em África e para o desenvolvimento sustentado do continente; (iv) o surgimento de um conjunto de Estados diretores pouco complacentes com Estados ou organizações «apátridas» desestabilizadores da desejada conjuntura de paz necessária aos povos.

De acordo com o Programa de Dados sobre Conflitos da Universidade de Uppsala, reconhecido programa de acompanhamento da guerra no mundo, as guerras dos anos 2000 estão substancialmente reduzidas em comparação com o pico atingido na década de 1990, verificando-se uma diminuição em cerca de 1/3 na África Subsaariana. Os genocídios ou extermínio em elevada escala estão em declínio em toda a África.

Inclusivamente, há menos guerras ocorridas, devido a ingerências externas regionais, que foram padrão até aos anos 1990: em Angola, Moçambique, Namíbia e Zimbabué, a Sul; na Etiópia, Eritreia e no Sudão, no Corno de África; ou no Ruanda, Uganda, Burundi e Congo Kinshasa, nos Grandes Lagos. Os conflitos entre exércitos de dois ou mais países que procuravam domínios territoriais ou o usufruto de recursos restringiram-se, são tipicamente menores, envolvem pequenos grupos insurgentes de rebeldes divididos em fações, nas periferias dos Estados. E também se desenrolam de forma diferente, exibindo dimensões transfronteiriças que dependem não tanto de financiamento de países estrangeiros, mas sobretudo do comércio ilegal, tráfico e das redes internacionais.

Mas há fatores adicionais a reter relativamente à diminuição da conflitualidade. O aumento da política multipartidária arrebatou o financiamento, a energia e o empenho antigovernamental das moitas para o meio da arena política doméstica. Depois, convém assumir que a China é uma potência externa em ascensão na África Subsaariana, que tem na economia o seu principal objetivo estratégico, não interferindo na política interna dos Estados e não estando interessada na destabilização das regiões onde interage.

Finalmente, ao se decidirem pela inserção internacional de África, os Estados africanos apostam na diplomacia e nos fóruns de debate regionais, como a Comunidade Económica dos Estados da África Central (CEEAC) e a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), enquanto plataformas de diálogo conducentes à paz e ao desenvolvimento.

Apesar de a guerra, objetivamente, não ter acabado na África Subsaariana, estando identificados mais de uma dezena de conflitos, as razões apontadas fundamentam a previsão de que é expectável uma diminuição da sua frequência e intensidade nos próximos tempos. E, assim, África assume o que de novo e positivo apresenta ao mundo, enquanto continente em ascensão do século XXI.


* Texto desenvolvido a partir da palestra ministrada ao 9.º Curso de Estudos Africanos, ministrada no Instituto de Estudos Superiores Militares, em setembro de 2014.

[1]  Luís Soares de Oliveira, História Diplomática. O Período Europeu 1580-1917, Lisboa, Pedro Ferreira, 1994.

[2]  Luís Soares de Oliveira, ob. cit.

[3]  Luís Soares de Oliveira, ob. cit.

[4]The Times, História da Guerra, Lisboa, Esfera dos Livros, 2006.

[5]  Albert Adu Boahen, História Geral da África. África sob Dominação Colonial, 1880-1935, Vol. VII, Brasília, UNESCO, 2010.

[6]  Bibliografia de Referência: Ali A. Mazrui, História Geral de África. África desde 1935, Vol. VIII, Brasília, UNESCO, 2010; Elikia M’bokolo, África Negra. História e Civilizações. Do Século XIX aos Nossos Dias, Lisboa, Edições Colibri, 2007; Gordon Kerr, Uma Breve História de África, Lisboa, Bertrand Editora, 2013; John Raedar, África. Biografia de um Continente, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2002; Joseph Ki-Zerbo, História da África Negra, vol. II, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1979.

[7]  Podemos definir Pan-Africanismo como um movimento cultural que visa a igualdade de direitos e a melhoria das condições morais e intelectuais das populações submetidas ao colonialismo.

[8]  Nenhuma potência «branca» da Ásia ou de África é convidada, assim como nenhum Estado europeu. Os países reunidos representavam cerca de 25% da população do globo, mas apenas 8% das suas riquezas.

[9]  Guerra Subversiva é a “luta conduzida no interior de um determinado território por uma parte dos seus habitantes, ajudados e reforçados ou não do exterior, contra as autoridades de direito ou de facto estabelecidas, com a finalidade de lhes retirar o controlo desse território ou, pelo menos, de paralisar a sua acção. É uma luta prolongada que procura a tomada do poder”; Inserida na Guerra Subversiva, a Guerra Revolucionária “caracteriza-se por ser conduzida nos pressupostos do Marxismo-Leninismo e pretender, em última análise, a implantação do Comunismo e utilizar uma amplitude de meios e processos que vão da guerra convencional à guerra subversiva ou à mera agitação e propaganda”; Também inserida na Guerra Subversiva, Guerrilha “é uma guerra levada a efeito por forças de organização e características especiais, muito ligeiras, dispersas e clandestinas, contra as forças que controlam um dado território”: Ministério do Exército, O Exército na Guerra Subversiva, I – Generalidades, Lisboa, Estado-Maior do Exército, 1963.

[10]  Bibliografia de referência: J. R. P. Montgomery, Guerra Subversiva: A Campanha Contra os Mau Mau no Quénia, Lisboa, IAEM, 1959; Robert Thompson, A Guerra no Mundo: Guerras e Guerrilhas desde 1945, Lisboa, Editorial Verbo, 1983.

[11]  Bibliografia de referência: Benjamin Stora, Algéria 1830-2000: A Short History, Cornell University Press, 2004; Philippe François, Travando a contra-subversão na Argélia – o ponto de vista francês, Military Review, Janeiro-Fevereiro de 2009; Martin Windrow e Mike Chappell, The Algerian War, London, Osprey, 1997; Robert Thompson, A Guerra no Mundo: Guerras e Guerrilhas desde 1945, Lisboa, Editorial Verbo, 1983.

[12]  Nesse ano de 1954, a França foi derrotada na Batalha de Dien Bien Phu e, em consequência, foi obrigada a retirar da Indochina.

[13]  Bibliografia de referência: Abílio Pires Lousada, “Da Guerra de África 1960-1975”, in Da História Militar e da Estratégia. Estudos de Homenagem ao General Loureiro dos Santos, Lisboa, Exército Português, 2013; Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, Guerra Colonial. Angola – Guiné – Moçambique, Lisboa, Diário de Notícias, 1995; Douglas Wheeler e René Pelissier, História de Angola, Tinta da China, MMIX; Henriques Gomes Bernardo, Angola: Estratégia de um Conflito, Lisboa, Prefácio, 2008; Estado-Maior do Exército, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, Vol. 2 – Angola, Lisboa, 1988; John Cann, Contra-Insurreição em África, 1961-1974, Lisboa, Atena, 1998.

[14]  Bibliografia de referência: AA.VV, Janus 2010 – Meio Século de Independências Africanas, Universidade Autónoma de Lisboa/Público, Lisboa, 2010; Ali A. Mazrui, História Geral de África. África desde 1935, Vol. VIII, Brasília, UNESCO, 2010; Gordon Kerr, Uma Breve História de África, Lisboa, Bertrand Editora, 2013; Universidade de Uppsala, Programa de Dados de Conflitos sobre Conflitos.

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Abílio Pires Lousada

Militar Historiador. Sócio Efetivo da Revista Militar.

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