Continuação da página 776, da edição n.º 2539/2540 – Agosto/Setembro de 2013
O Corpo Expedicionário que o Governo prepara para seguir para França e que já tinha recebido instrução em Tancos, estava em espera de embarque ao seu destino, em princípio de 1917. Quem fosse subalterno nestas alturas, não podia ter ilusões sobre o destino que o esperava: mobilizado. Claro está que há sempre certas habilidades e situações que alguns sabem aproveitar. Naturalmente foi sempre assim em toda a parte e continuará a ser. Aumentando a isto as “recócas” (serviços da retaguarda), conseguindo na própria França e a grande quantidade de oficiais que se tornaram necessários para os efectivos relativamente grandes, está explicado porque na frente algumas vezes as companhias só tinham dois ou três subalternos, quando pertenciam quatro.
Justo é dizer que Portugal foi para esta guerra, sem preparação moral e que muitos não viam explicação suficiente para nela tomarmos parte, a começar pelos partidos políticos. Por exemplo o democrático que era chefiado pelo Dr. Afonso Costa, era intervencionista, mas já não pensava assim o do Dr. Brito Camacho. Estas divergências e para mais políticas, tinham como não podia deixar de ser efeitos desastrosos na moral da tropa. E quem a acompanhou, melhor que ninguém o pode confirmar.
Antes de marcharem houve até casos em Santarém e Figueira da Foz nos regimentos de infantaria que ali se encontravam aquartelados, que eram respectivamente os n.º 34 e nº 28, que deram origem ao castigo de alguns oficiais e sargentos. E não se podia dizer que foi por cobardia que estes graduados tiveram tal atitude. Era apenas por entenderem que a nossa intervenção não tinha razão de ser em França, mas em África, nem para ela estávamos preparados. Na verdade não se podiam considerar oficiais que depois de liquidados os actos de indisciplina cometidos embarcaram para França e ali se portaram valentemente. Deu-se até o caso de o oficial mais condecorado com medalhas portuguesas e estrangeiras por actos de coragem, pertencer ao número dos recalcitrantes, o capitão Aníbal de Azevedo.
O meu caso era aparte destes extremos: nem intervencionista, nem recalcitrante. Considerava tais assuntos alheios à minha missão. Sabia que tinha que ir e por isso foi a minha colocação no RI n.º 28, por ter ali rapaziada amiga, em Dezembro de 1916. Comandava o Batalhão de Infantaria 28, que já estava pronto para embarcar, o major Guanilho. O batalhão tinha os seus quadros completos e por isso não fui considerado mobilizado. Passados alguns dias fui transferido para o 3º Grupo de Metralhadoras Pesadas do Porto, que estava mobilizado para seguir para Moçambique. Mas dias depois vim novamente para o RI n.º 28.
O Batalhão estava em vésperas de tomar o caminho para Lisboa e eu como não fazia parte dos quadros do batalhão, fui nomeado para comandar a 6ª Companhia que não lhe pertencia seguir para França. Um jovem e fresquinho alferes, ficar na “recóca”, numa altura destas, era coisa que não deixava de fazer certos ciúmes e deu motivo falarmos no assunto mais de uma vez, eu e o Major Guanilho. Este oficial era um grande intervencionista e por isso era natural que desejasse que o seu batalhão se apresentasse em boa forma. Pouco antes da partida disse-me: você vai até Lisboa e ali fala com o ministro da Guerra (General Norton de Matos).
Eu, claro, não pretendia ser voluntário, mas também nem por sonhos me passava a ideia esquivar-me a um dever de tanta responsabilidade e até não estava achar desajeitado seguir. Pelo menos ia no batalhão onde havia rapaziada amiga.
Chegados a Lisboa (a 22 de Fevereiro de 1917), várias vezes perguntei ao comandante do batalhão se já tinha falado ao ministro e nunca tinha. À última hora saiu-se com esta: não foi possível falar ao ministro sobre o seu caso, mas você o melhor é “vir daí”. O meu pensamento, na verdade, já estava fixo na ideia de ir e por isso meti as malas no barco (tive-as até a última hora no cais) e lá fui ao … “venha daí”. Isto de ser intervencionista ou recalcitrante, nada tinha a ver com o carácter, o patriotismo ou a valentia dos que se distinguiram nessa guerra. Era uma coisa de origem política. E assim intervencionistas houve que arranjaram pretexto para se safarem o mais breve possível de onde elas mordiam, se é que lá chegavam.
O major Guanilho, parece que tinha um braço paralítico e talvez outras mazelas, nem as trincheiras chegou a ver. Ainda nas bases, adoeceu e veio-se embora dado por incapaz. Era um democrático convicto e como tal intervencionista. Por outro lado recalcitrantes houve que se portaram como heróis. Devo dizer que também conheci intervencionistas, coerentes com a sua ideia e que cumpriram bem o seu dever.
Na manhã de 22 de Fevereiro de 1917, embarcou o batalhão sob o comando do major Guanilho. Para transporte foi destinado um bojudo navio inglês de carga, designado pela letra B, pelos que as comodidades deixavam muito a desejar. A comovedora despedida e o adeus da multidão que no cais assistiu ao embarque, e que se prolongou até perder de vista, afirmou bem o sentimento de saudade dos que ficam e dos que partem obrigados a deixar os seus e a sua querida terra. Apenas embarquei fui nomeado comandante da 4ª Companhia, porque nem todos os oficiais pertencentes ao batalhão tinham embarcado. Uns já lá estavam porque foram à frente fazendo parte de missões, outros não embarcaram por outros motivos.
A viagem metia probabilidades de submarino inimigo nos presentear aos tubarões e as defesas eram pouco animadoras. Um navio de guerra à frente com uma peçazinha à proa e os competentes cintos de salvação para o que desse e viesse. E para que nos serviriam os cintos mantendo-nos ao de cima da água com o frio de regelar os ossos? Mas enfim era uma esperança!
A pequena distância de Lisboa a Brest, não deu motivo a peripécias que nos comovessem. Nada digno de nota. Apenas vários alarmes de submarino à vista, que não passaram de sustos e de pretextos para exercícios de cintos, imensos enjoos (eu felizmente nada senti), mar bravíssimo, principalmente no Golfo da Gasconha, em que alterosas vagas nos faziam perder de vista o navio de guerra que ia à nossa frente. Parecia em certos momentos que era engolido pelas ondas, e o nosso navio igualmente parecia que ia passar ao fundo. Tão depressa era coberto por grandes vagalhões, como dava a impressão que ia desaparecer. Enfim viagem curta mas tormentosa. 26 de Fevereiro e Brest à vista.
A 26 de Fevereiro de 1917, estávamos no porto da cidade de Brest. Apenas chegámos apresentou-se a bordo um oficial do Estado-Maior Português, o Capitão D. José de Serpa Pimentel, comunicando que era expressamente proibida a saída do navio fosse a quem fosse. Eu e mais alguns oficiais, entre eles o tenente Silveira, alferes Ermitão e Ribeiro Salgado, entendemos que era uma proibição mais por capricho do que por qualquer outra conveniência e que nada significava de interesse para a disciplina. Entendemos por isso não cumprir tal determinação. Então, quem dentro de tão pouco tempo ia dar o corpinho ao manifesto, nem ao menos podia gozar o panorama das terras por onde passava? Não senhor D. José, temos que sair e saímos a dar um passeiozinho pela cidade, iludindo a vigilância, claro está, do major Guanilho, que ficou todo atrapalhado com a recomendação do capitão Pimentel.
Ora tantas voltas demos que fomos passar em frente do hotel onde se encontrava o referido oficial do Estado-Maior. Claro que pouco tempo depois de recolhermos ao barco, lá estava ele com toda a arrogância a perguntar quem tinham sido os oficiais que saíram. Foi à hora da refeição e por isso estávamos todos juntos. Apenas eu me acusei e o alferes Ermitão. Lá foi a participação ao seu destino porque mais tarde, depois de estarmos na frente fomos chamados a um coronel encarregado das averiguações. Mas como não passaria de uma barbaridade se nos castigassem aquilo ficou em nada.
No mesmo dia da chegada a Brest embarcamos no comboio com destino às povoações de Crecques e Rebecq que distam do “front” uns 35 quilómetros. Na madrugada do dia 2 de Março chegou o batalhão às aldeias referidas, sendo a minha companhia (a 4ª que eu comandava desde Portugal) destinada a Rebecq. No dia 15, fui transferido para a 2ª que lhe pertencia ficar instalada em Crecques, pouco mais ou menos a um quilómetro de distância.
A viagem até estas aldeias nada teve de extraordinário, apenas bastante monótona por ser já uma região próxima da zona de guerra onde se via e ouvia já o relampejar e o troar dos canhões, iluminado todo o horizonte como uma espécie de belo horrível. A chegada à referida aldeia foi desoladora. E tudo concorria para assim suceder: era madrugada, um grande nevão, um frio de regelar os ossos e por tais motivos ou fosse pelo que fosse, não me lembro de ter visto alguém a receber-nos. Parecia uma aldeia deserta, uma tristeza!
Durante os dias que estive em Rebecq, de 2 a 14 de Março, foi-me destinada uma casa dum francês muito amável, pois todas as noites me levava à cama uma botija de água quente a que ele chamava o “petit bebé”. Tinha duas filhitas a estudar num colégio da cidade próxima, Aire. Este indivíduo pediu-me o retrato e dois anos depois, tendo-lhe feito uma visita, verifiquei que o tinha em estimação numa redoma de vidro, juntamente com o do Alferes Ribeiro Salgado, que também tinha estado na casa dele. Na aldeia de Crecques onde estive mais tempo (de 15 de Março a 18 de Maio e, mais tarde, de 22 de Setembro a 5 de Novembro de 1917), quando já com alguns meses de “front”, nos pertenceu a reserva, coube-me ficar aboletado em casa da família Denuneq, constituída pelo casal, dois filhos (um sargento em Paris e outro de 13 ou 14 anos) e uma filha de nome Berthe Denuneq.
O mês de Março por aquelas paragens ainda é bastante frio e à noite lá estava a família toda à volta do belo fogão – por aqueles sítios as casas, embora de gente modesta, têm todas um belo fogão – onde nós tínhamos também o nosso lugar, não só à volta do fogão como também na indispensável roda da xícara do café. Terminado o serão, recolhia ao meu quarto onde uma aprazível cama me esperava para passar o resto da noite, quase esquecido que tão perto estava da infernal grande orquestra. Em camas também os franceses têm bom gosto, pois que até em casas pobres, se encontravam camas fofas. A minha era de molas, onde eu, muito “sumidinho” pelo colchão abaixo, me regalava até ao dia seguinte. Ficava num pequeno quarto com chão de tijolo esmeradamente limpo, crucifixo em redoma de vidro sobre a mesinha de cabeceira. Assim fosse a guerra sempre! Das pessoas só tenho a dizer: boa gente esta família Denuneq. Do sargento tenho o retrato.
De 25 de Março a 14 de Abril de 1917, frequentei a escola de metralhadoras ligeiras em Marthez, povoação que ficava a um quilómetro de Crecques; o batalhão recebia instrução geral em Marmetz que ficava muito perto de Marthez, onde existia uma escola para tal fim, dirigida pelo Capitão Bento Roma. Em 20 de Abril, recebeu o batalhão instrução de gás em Marthez. Esta instrução consistia principalmente em colocar a máscara com rapidez, e não podia deixar de ser porque isto era ao vivo, dentro duma câmara de gás, e de substituir a máscara de gás pelo capuz dentro dessa câmara, para o que era preciso um certo desembaraço e perícia com a respiração suspensa. Um buraco no capuz, ou na máscara ou um pequeno descuido era tragédia garantida. E bem mal tratados eram estes objectos, pois que serviam de travesseiro, de encosto, etc.
No próprio dia de instrução um soldado que se descuidou nas mudanças ou que estivesse rota a máscara ou o capuz, o que é certo é que ao sair da câmara de gás, caiu sem sentidos e com a cara e olhos roxeados, ali terminou os seus dias no meio de horríveis sofrimentos.
Os batalhões antes de entrarem nas trincheiras com responsabilidade, visitaram-nas e ali se demoraram uma semana em visita de estudo para aprenderem como aquilo era, para se acostumarem ao “clima”, à convivência com o seu vizinho boche e talvez para perderem o… “medo”. A responsabilidade da defesa do sector durante esta estadia pertencia à tropa que lá estava, que neste caso era inglesa.
Ora no mês de Abril de 1917, dia 4, já a primeira tropa portuguesa chegada a França, a que nós pertencíamos, estava prontinha para a “doença”; instrução geral, instrução de especialidade e de gás e é neste dia que lá vamos de abalada à sensacional visita. Eu fui por empréstimo na 4ª companhia (a minha era a 2ª) comandada pelo competentíssimo e heróico capitão Hermenegildo Bexiga, e como subalternos os valentes alferes Palma Mestre e Rafael Sampaio. Foi nesta visita às trincheiras que perdeu a vida o primeiro soldado português que morreu na guerra. Chamava-se António Curado e tem um busto em bronze na praça pública da Figueira da Foz, por ser dali o regimento a que ele pertencia (Inf.ª 28).
Fotografia n.º 3: Notícia da morte de António Curado, 1º soldado morto do CEP no Diário da Manhã de 9-4-1932
O batalhão deu entrada nas trincheiras debaixo de forte bombardeamento inimigo, talvez por terem presenciado a nossa chegada dos seus observatórios e balões cativos que constituíam uma fileira de espias constantemente alerta, ao longo das trincheiras alemãs. O soldado Curado ia no meu pelotão que lhe pertenceu tomar posições na 2ª linha, que estava guarnecida por tropa inglesa. O soldado estaria a arrumar a sua bagagem de guerra no respectivo abrigo, quando uma granada alemã caiu sobre esse abrigo e o fez num feixe. O soldado Curado recebeu morte instantânea e lá seguiu ao seu derradeiro destino, transportado por dois soldados numa passarelle, de onde os braços e pernas lhe pendiam, pois que ossos ficaram todos partidos.
Nem ao menos chegou a ver o inimigo, nem tão pouco teve ocasião de se defender, o primeiro soldado morto na guerra! Terminada esta visita às trincheiras, regressámos novamente aos aboletamentos de Crecques e Rebecq, onde estivemos até 17 de Maio de 1917.
No dia 18 de Maio de 1917, já o batalhão se encontrava em condições de tomar a responsabilidade da defesa de qualquer sector e por isso neste dia começámos a marcha para as trincheiras. A região onde nos encontrávamos é uma monótona planície da Flandres, onde abundam o milho, o trigo e beterraba e bem pouco arvoredo. Aquele sistema de hortas, com os seus pomares de fruta é coisa que por estas paragens não se encontra facilmente. Os vinte cinco ou trinta quilómetros que nos separam das trincheiras tem que ser vencidos em marcha pela via ordinária, visto que já nos encontramos na zona de guerra. Ao fim de sete ou oito quilómetros chegámos a Aire, uma bonita cidade bastante frequentada por portugueses.
A marcha é feita quase toda de noite e a paisagem vai mudando. À beira da estrada e principalmente junto às casas dispersas de um lado e de outro, bastantes sepulturas, ajardinadas, enfim bem tratadas por mãos caridosas dos habitantes dessas casas, com suas cruzes, indicando o nome dos mortos – geralmente ingleses – e sobre elas os capacetes ou mesmo outros pertences de campanha que pertenciam aos mortos.
Os balões cativos inimigos encarregados de comunicar à sua artilharia o que viam; aqueles monstros suspensos no ar um pouco à retaguarda das linhas inimigas e em toda a sua extensão, já nos espiavam; os aeroplanos já nos obrigavam a aplicar a táctica de defesa, que consiste a tropa abrigar-se o mais possível disfarçada ao longo da estrada dum lado e de outro e sendo possível fora dela. Alguns combates se deram entre aviões inimigos e os nossos, o que era também coisa nova e por isso motivo de bastante sensação. Um avião inimigo caiu bem perto da estrada de marcha abatido por três dos nossos – ingleses. Os clarins e troar dos canhões em todo o horizonte é surpreendente e cada vez mais à medida que nos aproximamos. É o belo – horrível como se diz.
Enfim, esta viagem já tinha um certo tom de guerra e de desolação, porque à medida que nos aproximávamos das trincheiras, em vez da vida, do movimento, das casitas bem tratadas com os seus jardinzitos à beira da estrada, íamos vendo casas em ruínas desfeitas pela metralha, e em seu lugar crateras e mais crateras, árvores mutiladas e secas, envolvendo tudo cada vez mais em tenebroso silêncio e num conjunto confrangedor. A marcha não foi demorada e no mesmo dia – 18 de Maio de 1917 – chegámos à povoação de La Couture, alta noite. Esta povoação fica distante das trincheiras uns quatro ou cinco quilómetros e é considerada sua terceira linha – linha de aldeias. Estava quase desmantelada pela artilharia. Apesar disso ainda se viam por lá alguns civis, principalmente de dia, lembrando-me de uma família à qual pertencia a professora da vizinha povoação Vieille Chapelle, de nome Lucienne Gloriant. Era uma família muito amável constituída pelo casal e filha.
A permanência em La Couture nas semanas a que nos pertencia a 3ª linha (o serviço era: uma semana na 1ª linha, uma semana na 2ª linha, e outra na 3ª linha e assim sucessivamente) deu lugar à convivência com os poucos habitantes que teimosa e corajosamente continuavam agarrados aquela sombra de povoação, mas que na verdade, melhor não tinham onde se abrigar. E de lá ficavam de vez em quanto vítimas de metralha, porque costuma dizer-se, e é verdade: elas não trazem escritos.
Tal convivência criou mesmo certa amizade como era natural. E assim, ao regressar da primeira linha, tinha sempre o reconfortante da amável recepção da família Gloriant. Ainda vínhamos distante junto do grupo de soldados que comandávamos – os soldados saiam da trincheira em grupos de pequenos efectivos e distanciados para não serem vistos pelo inimigo e no caso de bombardeamentos serem atingidos o menos possível – lá estava na estrada, na frente de sua casa que por acaso pertencia ao pequeno número das que não estavam desmanteladas, de nariz no ar e pulando de contente, a simpática família Gloriant, comovida até às lagrimazinhas, de nos verem com os ossinhos inteiros, entre os que tinham a sorte de voltar. E consolava-nos bastante o carinho que estes amáveis franceses nos dispensavam. Mas eles bem viam e presenciavam, embora de longe – não passavam a noite em La Couture, mas numa aldeia mais à retaguarda – aquele inferno que era a primeira linha onde o diabo andava sempre à solta e era mais feio do que o pintavam, de onde muitos dos que iam não voltavam.
O meu alojamento em La Couture foi num “château” abandonado onde me instalava durante a semana que me pertencia a 3ª linha, e por sinal era uma vivenda linda e aprazível, com o seu jardim e árvores de fruto, coisa rara naquelas paragens porque a neve queimava todo o arvoredo. Durou a minha estadia nesta povoação uns quatro ou cinco meses, findos os quais mudamos de sector e lá tive como companheiros o tenente Fernando Limpo Toscano, que era comandante interino da companhia, porque o efectivo, capitão Nascimento Dias, exercia as funções de Segundo-comandante do batalhão, que tinha por primeiro comandante o major António Batista Justo. Eu comandava o 2º pelotão da 2ª Companhia.
O tenente Fernando Limpo Toscano era um homem decidido e valente, coerente no seu ideal como poucos, amigo do seu amigo, bom companheiro até ao ponto de passar mais tempo na 1ª linha junto dos seus soldados e subalternos do que no seu posto à retaguarda na 2ª linha. Disciplinado e disciplinador que chegava a parecer mau quando afinal era apenas um homem muito exigente. Como subalternos da mesma companhia ali estiveram também os alferes Armando Calejo, José Guimarães Ficher, Américo Sanches e José Joaquim Gomes. Todos bons companheiros.
Fotografia n.º 4: sentados, Capitão Fernando Limpo Toscano (1) e Alferes José Joaquim Gomes (3); em pé, Alferes António Joaquim Henriques (2) e Alferes Américo Sanches (4)
O Calejo era um rapaz um pouco de carácter romântico, culto e bom camarada. Com o seu aspecto um tanto académico, era todo prudência, calma e fé. Comandava um dos pelotões da companhia. Por feitio, pouco militar. Um dia numa ocasião de forte bombardeamento inimigo das nossas trincheiras da 1ª linha, vou dar com o amigo Calejo, que comandava um posto perto do meu, sentado fitando muito atento o tecto do abrigo que era constituído por umas tábuas com terra por cima. Você está a ver se entra alguma granada Calejo? Não amigo Henriques – tratava-me sempre por amigo Henriques – o que estou a ver é uma grande teia de aranha e um espécie de musgos com espécie de coisa antiga e por isso me dão a esperança de sair daqui com os ossos inteiros. Na verdade aquilo indicava que já lá estava à muito e que os bombardeamentos, apesar de diários, tinham poupado aquele cantinho e por isso não devia haver azar. E felizmente assim sucedeu e o nosso bom amigo Calejo lá se safou daquela, sem azar apesar de tanta metralha ter caído à sua volta.
Pouco tempo por lá se demorou pois que adoeceu e veio para a retaguarda e depois para Portugal. O Alferes Ficher pouco tempo lá esteve pois foi transferido para outro regimento. Era um rapaz decidido e valente. O alferes Sanches era homem decidido e corajoso. Uma noite, a de 31 de Dezembro de 1917, pelas 11h45 teve lugar um dos maiores bombardeamentos sobre as nossas linhas, em represália ao que a nossa artilharia (portuguesa e inglesa) tinha feito sobre as trincheiras inimigas no dia de Natal. O nosso bombardeamento foi na verdade formidável, mas o do inimigo, que afinal já se esperava em resposta não foi inferior. Houve muitas baixas na tropa portuguesa, principalmente no regimento de infantaria 22 que estava ao nosso lado.
Aquilo andava tudo pelos ares, parecia o fim do mundo e as tropas da 1ª linha retiraram para a 2ª linha na quase totalidade, o que era permitido e até às vezes aconselhável para evitar baixas escusadamente, tanto mais que a 1ª linha não é linha de resistência. Eu e o alferes Sanches comandávamos os pelotões da 1ª linha. Os outros dois estavam de apoio na 2ª linha como de costume. Comandávamos os postos designados por Cadbury (n.º 1) e Farm Corner (n.º 2). Os outros dois postos guarnecidos pelo batalhão eram conhecidos por Boars Head (n.º 3) e Cockspur (n.º 4). O Boars Head que quer dizer cabeça de porco por sua configuração, foi por mim comandado proximamente cinco meses.
Mas como ia dizendo, o alferes Sanches não se atrapalhou e com toda a calma e coragem em vez de retirar para a 2ª linha como fizeram as tropas que nos ficavam nos flancos, procurou encontrar-se comigo e disse-me: Henriques que é que a gente faz? Respondi-lhe que devíamos ficar. Ele concordou e dirigiu-se imediatamente para junto dos seus soldados e lá se conservou até que aquele pavoroso inferno terminou, que foi só de madrugada. Era costume o oficial mais antigo nas 1as linhas orientar o que se devia fazer em casos graves. E como eu era o mais antigo em posto e serviço de trincheiras, foi esse o motivo porque o alferes Sanches me procurou para saber o que havia de fazer.
Devo explicar que a minha opinião para nos aguentarmos na 1ª linha de preferência a retirarmos, era baseada na experiência do que já tinha observado em casos idênticos – e bastantes tinham sido – mais baixas na tropa que retirava do que na tropa que ficava na 1ª linha, com a agravante de se desorganizar, pois que a travessia de 1ª para 2ª linha através das trincheiras de comunicação, que nas ocasiões de ataques ou bombardeamentos são especialmente atingidas, é um caso muito sério e arriscado. Há o terreno intermédio mas esse também “come” a sua conta. Enfim, pensava assim e não me dei mal.
O alferes José Joaquim Gomes era um rapaz novo, muito alto e forte e natural de Vila do Conde. Foi para a França no mesmo navio que eu. Bom camarada e um tipo de herói dos mais completos que tenho visto. Ao cumprimento dos seus deveres nada se opunha e tinha sempre uma calma extraordinária nos casos mais “bicudos”. Dizia-me ele: Dizem que com o tempo a gente se acostuma a isto (a guerra). Pois eu cada vez me parece que tenho mais medo. Dizia isto por dizer, claro porque o comportamento dele mostrava bem que se podia considerar entre os melhores oficiais.
Lembro-me que um dia tendo ele que ir do posto do comandante da companhia da 2ª para a 1ª linha onde tinha o seu pelotão, estava incidindo sobre a trincheira de comunicação que ele tinha que percorrer forte bombardeamento inimigo. O comandante de companhia – Tenente Toscano – que era bastante amigo dele dizia que não fosse naquele momento, que deixasse terminar o bombardeamento. Amigo Gomes a nada atendeu, e embora o comandante da companhia quase lhe proibisse a saída de junto dele, nada conseguiu e calmamente, por não dizer temerariamente, lá vai trincheira (de comunicação) adiante com o seu grande bengalão – usava uma bengala muito grande – e só por milagre não ficou feito em pedaços, pois o bombardeamento parecia que não poupava um palmo de terra.
Fotografia n.º 5: Oficias do Batalhão do R.I. n. º 28 em França que foi transformado em II Batalhão de Infantaria: 1º Comandante Major Pires do Carmo; 2º Capitão Raul de Carvalho; 3º oficial francês intérprete; 4º Capitão Almeida; 5º Alferes Caio; 6º Alferes Almeida; 7º Alferes José Joaquim Gomes; 8º Alferes Francisco Serrão Sampaio; 9º Alferes Costa Gomes; 10º Alferes António Joaquim Henriques; 11º Alferes Macedo; 12º Alferes Machado; 13º Alferes Palma Mestre; 14º Alferes Bettencourt; 15º Alferes Sinel Cordes; 16º Alferes Sardinha; 17º Alferes-Capelão (padre)
Estes bombardeamentos às trincheiras de comunicação eram afinal vulgaríssimos de parte a parte porque serviam para acertar o tiro a essas trincheiras, o que era importante em caso de ataque por ser um ponto obrigatório para a passagem da tropa de reforço ou retirada. Mais tarde em combate na 1ª linha no posto de Farm Corner foi ferido tendo ficado com uma clavícula partida e lá seguiu para o hospital e não mais o tornei a ver, este óptimo camarada.
Outro rapaz brioso que pertenceu à minha companhia foi o alferes Alberto dos Santos [Ludias]. Óptimo camarada. Valente como os que o eram. Teve pouca sorte pois que passado pouco tempo depois de ter chegado foi gravemente ferido por uma bala que lhe atravessou a cara por debaixo das orelhas. Parece impossível como não morreu. Ficou surdo e tendo seguido para o hospital da retaguarda não mais tornei a saber parte dele.
Boa rapaziada era a do R I nº 28!... Além daqueles oficiais a que já me referi, outros conheci no batalhão como bons camaradas e briosos oficiais. Citarei alguns nomes de que me recordo: majores Baptista Justo (comandante do Batalhão) e Pires do Carmo, capitães Gago (morreu numa ambulância), Almeida, Raul de Carvalho, Luís Nascimento Dias, comandante da minha companhia (2ª) e Segundo-comandante de 2º Batalhão, tenente Costa Ferreira, alferes Palma Mestre, Rafael Sampaio, Francisco Serrão Sampaio, Macedo, Caio (de Salvaterra do Extremo), Veiga, Rosas, José J. Pacheco, António Joaquim Galrito, Costa Gomes, Ermitão, Sardinha, Martinho, Bettencourt, Sinel de Cordes, Almeida e Machado
As trincheiras constituíam um labirinto de valas lamacentas, com variadíssimos objectos, os mais diversos: aqui um osso humano ou mesmo uma caveira, ali uma sepultura de alguém desgraçado que por lá ficou e não houve tempo de o levar para melhor sitio. Essas sepulturas conheciam-se por cruzes ou mesmo pelos próprios mortos que muitas vezes se encontravam em parte desenterrados. Por lá as sepulturas em geral não eram em profundidade, mas em relevo, e de maneira que a própria chuva punha à vista os corpos. Enfim, uma paisagem desoladora que só quem viu pode fazer ideia.
A defesa das trincheiras era feita por postos baptizados com diversos nomes. O batalhão defendia quatro postos, com duas companhias em 1ª linha e as outras duas em reserva. Cada companhia defendia dois postos com um pelotão em cada posto e os outros dois em reserva na 2ª linha. O batalhão ocupou o sector de “Ferm du Bois” (sub-sector da direita). Os quatro postos a guarnecer eram: n.º1 “Cadbury”, n.º 2 “Farm Corner”, n.º 3 “Boars Head” (cabeça de porco) e nº 4 “Cockspur”. O batalhão 28 pertencia à 1ª brigada constituída por quatro batalhões. Os outros eram os dos regimentos de infantaria 21, 22 e 34.
Ao meu pelotão, que era o 2º da 2ª Companhia, pertenceu o posto “Boars Head”. O “proprietário” do posto à direita, o Farm Corner, foi bastante tempo o bom companheiro e distinto oficial alferes José Joaquim Magro, natural de Salvaterra do Extremo. Este posto parece que tinha uma peça de artilharia inimiga em pontaria especialmente para o bombardear, pois que de momentos em momentos lá rebentava a respectiva granada martirizando a guarnição do pobre alferes Magro.
Fui comandante deste posto, aproximadamente, cinco meses. Estes postos à noite eram uma espécie de quartéis. Fechavam-se com os arames farpados (cavalos de presa) e dali não saia nem entrava ninguém. A ligação entre os postos era feita por patrulhas ambulantes que usavam umas veredas fora das trincheiras para evitar alguma surpresa do inimigo.
Enfim, estes postos eram uma espécie de sepultura em vida. Mas não se julgue que não havia distracções. Havia-as e ao “vivo”. A tenebrosa orquestra constituída pelo matraquear das metralhadoras principalmente de noite, para não serem localizadas, a inevitável regularização quase diária do tiro da artilharia inimiga, sobre a nossa 1ª linha, bode expiatório de todas as represálias, os terríveis morteiros ligeiros e médios nos seus fretes diários, as diversas surpresas nocturnas que os nossos vizinhos de setenta ou oitenta metros nos reservavam e o mais que só vendo se acredita e se pode fazer ideia, chegava bem para nos distrair e nos trazer familiarizados com a ideia da morte.
Aqueles traiçoeiros caçadores de cabeças (os chamados “snipers”) daqueles que se descuidavam, ou melhor, dos que o destino escolhia para vitimas desses emboscados, porque descuidados eram todos, visto que os parapeitos não nos protegiam por completo e ninguém andava constantemente agachado.
O que na verdade evitava mais vítimas era o facto de as guarnições durante o dia exporem-se o menos possível e abrigarem-se nos buracos a que se chamavam abrigos. Só as sentinelas, com os competentes periscópios vigiavam atentamente. As granadas surdas assim chamadas por não rebentarem porque vinham cheias do traiçoeiro gás, completavam a infernal comédia! E então aquele “Bois du Brés”, bosque maldito chamado misterioso, que nos ficava em frente e que tanta metralha vomitava! Diziam até que “engoliu” uma brigada inglesa que o atacou sem nunca se saber parte dos atacantes. Sumiram-se misteriosamente e por isso lhe chamaram “bosque misterioso”.
Ao anoitecer e de madrugada eram os “alertas” que constavam de toda a guarnição se postar atrás dos parapeitos de baioneta armada pronta para o que desse e viesse, pois eram a estas horas a ocasião mais favorável para ataques. E claro está que durante toda a noite a vigilância era reforçada e permanente.
Os “snipers” (atiradores especiais) abrigados em troncos de árvores camuflados, casas arruinadas, etc.), estavam sempre a caçar a primeira cabeça que lobrigassem. Era essa a missão deles. Ao colocar a 1ª sentinela no posto n.º 3 “Boars Head” (no ponto 2 do esquema) e no momento em que lhe indicava o terreno e o sector a vigiar, devida à nossa pequena experiência, pois era o primeiro dia de trincheira com responsabilidade, não nos acautelamos o suficiente. Foi o bastante para um dos tais “snipers” alvejar uma cabeça à sorte das duas que viu e por acaso calhou a ser a do soldado (podia ter sido a minha que estava junto da do soldado) para afinar a pontaria. Um tiro em cheio na testa que lhe atravessou o chapéu de ferro deu-lhe morte imediata. Devia ter sido bala explosiva porque lhe fez sair a massa encefálica.
Eu nem sequer ouvi o tiro. Vi o soldado cair julgando até que seria um ataque epiléptico mas a testa furada tirou-me as dúvidas. Este nem soube que morreu. E na verdade para estreia não podia ser mais limpinho!
Fotografia n.º 6: Sector e esquema do posto Boars-Head (Cabeça de Porco)
Para manter o espírito ofensivo da tropa, diziam “os de cima” que era preciso movimentar, agitar, não parar e daí a ideia de uma patrulha do comando de oficiais, noite sim noite não, ir à terra de ninguém até onde pudesse e o inimigo consentisse. A estas patrulhas eram atribuídas certas e diversas missões menos a de cavar claro está, mas muitas vezes as circunstâncias… tinham muita força. Nos relatórios respeitantes às patrulhas, devia-se descrever o terreno, declarar em que condições estavam os arames farpados inimigos, se colocados em ferros ou estacas de madeira, qual a altura, qual a largura da faixa do arame farpado, crateras existentes no terreno, etc. e trazer algum alemão a reboque e porque não? Sucedia simplesmente os alemães não estarem de acordo e como não estavam a dormir, o caso tornava-se bicudíssimo e lá se iam ás vezes os objectivos por água abaixo desmoronados à metralhadora e granada com que os alemães eram artistas em nos mimosearem ao pressentirem-nos, o que era fácil.
De mais a mais tanto de um lado como do outro, se iluminava a terra de ninguém com constantes “very-lights”, que munidos de paraquedas se retardavam no ar o mais possível, logo que fossem pressentidos quaisquer movimentos na terra de ninguém, o que afinal era bem simples, não só pela pequena distância às trincheiras inimigas, como também pela permanente vigilância das patrulhas de escuta, que se lançavam de parte e parte. Estas patrulhas eram constituídas por dois soldados que se conservavam deitados à frente dos arames farpados. E para evitar que regelassem, eram rendidos de dez em dez minutos. Alguns casos se deram o que não é de admirar dado o fortíssimo frio que por lá se aguentou. No inverno de 1917, chegou a temperatura a 20º negativos.
Devemos concordar que com tal temperatura, uma pessoa vestida na terra, embora pelo espaço pequeno de dez minutos, sem mais abrigo que o capote ou uma simples capa impermeável, de mais a mais tratando-se de indivíduos nascidos no doce clima de Portugal, devia ter poucas probabilidades de não sair de tal situação regelada até aos ossos! Mas tinha que ser. Era a guerra.
Descobertas pelo inimigo as patrulhas na “terra de ninguém”, começava logo a disparar “very-lights” com toda a força. Então recorria-se a vários estratagemas para o iludir. Ora nos servíamos das crateras como abrigos quando as havia, ora ficávamos imóveis a fingir de troncos de árvores mutilados. Mas fraca defesa era esta, porque os very-lights, devido ao sistema de paraquedas, demoravam-se no ar ainda assim bastante tempo e com a sua luz clara e fortíssima, ficávamos completamente descobertos e de pouco nos valia a imobilidade a fingir de troncos de árvores. Serviam também de amparo alguns pequenos arbustos e mesmo erva que nos camuflavam um pouco. Enfim, eram fracas defesas é certo, mas ainda assim, muitas vezes nos livram de morte certa.
Estas patrulhas não tinham grandes efectivos, nem era conveniente para não serem pressentidos, porque muita gente junta não se salva. Numa noite, uma dúzia de soldados e um graduado chegavam. Saiam a horas e num ponto certo, geralmente num extremo de um posto para entrarem noutro extremo. As “viagens” das patrulhas pela terra de ninguém não deixavam de ser bastante “divertidas”. Nesta faixa de terra sem amigos e inimigos, mas que todos martirizavam, cheias de inúmeros despojos, como ossos humanos, caveiras, restos de equipamento e toda a espécie de material de guerra, testemunhava bem o desfecho trágico de episódios de que eram vítimas tantos e tantos desgraçados que o capricho do destino ali fazia terminar os seus dias.
As primeiras linhas, nossas e do inimigo, ficavam a uma distância em média talvez dos seus 100 metros e os parapeitos quase nunca nos protegiam além dos ombros. À frente das primeiras linhas, tanto nossa como do inimigo, existia uma faixa de obstáculos constituída por arames farpados. Para as patrulhas de exploração saírem, haviam uns pontos já assinalados onde existiam quase imperceptíveis umas pequenas aberturas nos arames farpados. A saída tinha que ser cautelosa evitando qualquer barulho para o inimigo não nos pressentir, porque na guerra a surpresa é factor importante para o bom êxito de qualquer operação e o amor à pele, também aconselhava essa cautela, porque ao mais pequeno sinal de movimento, era uma saraivada garantida, pelo menos e lá se ia a missão por água abaixo, não falando nas “carcaças” que também podiam ter um destino trágico.
Das primeiras às segundas linhas, ligadas por trincheiras de comunicações a distância já era maior, uns 300 ou 400 metros, e já lá se “vivia” um pouco melhor, pois que uma das apoquentações mais terríveis da 1ª linha eram os malditos morteiros ligeiros, que à 2ª linha não chegavam. Mais a retaguarda, aí a uns 700 ou 800 m da 1ª linha, ficavam os postos de comando dos batalhões.
A primeira patrulha que me pertenceu, foi constituída a meu convite, por 7 ou 8 soldados voluntários. A todos me dirigi, começando por um dos flancos do pelotão, corresponderam imediatamente e da melhor vontade, excepto um que embora se prontificasse a ir também, murmurou “ai minha rica mãe, que não te torno a ver”. Este soldado apelidaram-no os camaradas de “kaiser” e era muito dado a gracejos. Dispensei-o desta vez da patrulha, mas claro está que entrou na escala para as que seguiram, e não foram poucas e não pode dizer-se que não cumprisse. A viagem da patrulha pela “terra de ninguém” era ultra-tenebrosa e tantas voltas se davam que a uma certa altura já não se sabia para que lado ficava o inimigo. É certo que os oficiais tinham a sua bússola luminosa, mas mesmo assim havia desorientações, devido aos ziguezagues das trincheiras, cujo flanco foi o melhor que se pode arranjar e que o inimigo consentiu.
Tanto à saída para a terra de ninguém, como a entrada para as nossas linhas, eram feitos em locais previamente designados, o que se compreende facilmente. A saída, era feita com calma e cautela, o que não evitou que na primeira patrulha que fiz, não fosse, logo à saída do parapeito, varado por uma bala no estômago, um soldado, que arrastando-se como pode, veio morrer às nossas linhas. A entrada era às vezes complicada. Os soldados dos pontos onde se devia entrar, embora avisados, estavam sempre na dúvida de quem se aproximava se seria tropa amiga ou inimiga, de maneira que algumas vítimas houve devido a tal nervosismo. Com as patrulhas que comandei – e não foram poucas, porque era noite sim, noite não, uma patrulha de oficial subalterno – nenhum incidente felizmente se deu, a não ser passar às vezes longo tempo a dizer em verdadeira surdina as palavras sacramentais para poder avançar, tais como: Portugal – Infantaria 28 – tal companhia, etc., para as sentinelas nos permitirem entrar.
Na verdade, de noite todos os gatos são pardos e por isso não era de admirar que às sentinelas de noite os soldados portugueses nas patrulhas parecessem inimigos. Claro está que estas demoras e barulho embora reduzidos ao mínimo, em pontos tão críticos, despertavam alarme no inimigo, e por isso não poucas vezes fomos mimoseados com saraivadas de metralha, a dose a lembrar-nos que era importante estar ali e que davam lugar a não se fazer questão de se entrar nas nossa trincheiras com a devida calma e com as formalidades apropriadas à situação, porque não sendo assim teríamos tragédia pela certa.
Um simples enredamento nos arames farpados no fardamento ou equipamento já parecia a manápula do inimigo. E então durante a tenebrosa viagem à procura dos tais objectivos na terra de ninguém uma lata parece um capacete dum boche, uma rata (e que as havia com fartura e grandes) girando, parece uma patrulha inimiga arrastando-se para nos deitar a mão. Eram coisas normais e embora de causar certas preocupações também faziam rir. Algumas vezes na escuridão senti um soldado atrapalhado tocar-me com jeitinho e ainda com mais jeitinho dizer-me gaguejando “meu alferes, estão ali!” Silenciosamente esperava-se pelo very-light, nossos ou inimigo – que iluminasse e afinal verificava-se que a montanha… pariu não um rato mas uma ratazana que por ali andavam como nas suas sete quintas e latas velhas que pareciam patrulhas inimigas com os seus horrendos capacetes e baionetas reluzentes pouco tranquilizadoras.
As trincheiras eram construídas por três linhas: a terceira a linha de aldeias, a segunda onde estacionavam as reservas e a primeira onde estacionavam os postos mais avançados. Como é de calcular a 1ª linha era a “mais confortável”, onde mais cavilha se cortava como diziam os soldados. Era uma vala irregularíssima em ziguezague com o parapeito a dar pelo ombros ou menos, a pequena distância dos “amáveis vizinhos”, com um piso lamacento que se tornaria intransitável, se não fossem as passerelles em buracos de onde a onde a servir de abrigos, ossos e caveiras ao abandono de despedaçados que por lá ficaram corpos enterrados mas em parte à vista por terem sido apenas cobertos de terra em vez de metidos em sepulturas – num dos postos havia seis infelizes enterrados na mesma sepultura – fartura de metralha de toda a espécie, destacando-se os odientos morteiros ligeiros e os snipers sempre prontos a abater a primeira cabeça que lobrigassem, enfim o bode expiatório de todos os caprichos e represálias do inimigo.
Os habitantes deste “paraíso” comiam por tabela de todos os lados e por todas as formas. Pela frente não nos deixavam passar frio, apesar da temperatura nestas paragens de alguns graus negativos (chegou a 20º abaixo de zero), a ponto de se terem dado alguns casos de gelarem pés e mãos de soldados, principalmente dos que tinham que estar imóveis nas patrulhas de escuta, deitados na terra de ninguém.
Pela retaguarda, também tínhamos o nosso “calor” de vez em quando que nos dava a nossa artilharia no posto de “Boars Head” quando pedíamos auxílio dela, que geralmente, era todas as vezes que os alemães atacavam. Na madrugada de 6 de Junho de 1917, foram mortos pela nossa artilharia o sargento Reis e o soldado 106 da 2ª Companhia que era meu impedido. O Primeiro-sargento Reis foi morto com um estilhaço na cabeça quando, por minha ordem estava deitando ao ar o foguetão vermelho que era o sinal (SOS) para a nossa artilharia nos socorrer por os alemães estarem atacando. O soldado 106 ficou num feixe com uma granada em cheio. Isto passou-se no posto n.º 3 (Boars Head). Claro está que comuniquei para o comando do batalhão o que se passava, embora soubesse, que são coisas que não se podem evitar. São coisas que acontecem. No final do bombardeamento foi o alferes Burnay de artilharia o encarregado de verificar os efeitos dos tiros. Disse ele e não se pode dizer que não tinha razão: as condições atmosféricas, as estrias das peças gastas, os invólucros servidos mais de uma vez, a distância do tiro para bater uma faixa de terra tão estreitas e ainda com as trincheiras em ziguezague, eram motivos mais que suficientes para justificar a queda de algumas granadas nas nossas linhas. Claro que também havia que contar com certo nervosismo dos artilheiros!...
Mas a par destes inconvenientes, próprios da guerra em todas a parte, pois que era vulgar a artilharia inimiga deitar granadas nas suas primeiras linhas, como nós verificamos a nossa artilharia era óptima. Era um gosto vê-la bombardear as linhas inimigas e as granadas a passarem-nos rente às nossas cabeças quando estávamos na primeira linha. Aquilo andava tudo pelos ares. Parecia um furacão.
Mas claro está que, quando o pobre infante começou a perceber que apesar do ânimo que dava o auxílio da artilharia, tinha que “comer” também por tabela, passou a governar-se quanto possível com a prata da casa. Quero dizer que só em último recurso e muito “apertado” pedia o auxílio da artilharia. Só quando verificava que o inimigo não era repelido com as espingardas, metralhadoras e granadas de mão e de espingarda e ainda morteiros ligeiros, que era o material que tínhamos na 1ª linha, é que se recorreu ao auxílio da nossa artilharia por meio do S.O.S., isto é deitando o foguete vermelho.
Não tenho a pretensão, nem é possível narrar todos os acontecimentos de menção que presenciei nas trincheiras durante todo o tempo que por lá permaneci, limitando-me apenas a referir algumas passagens que ficaram em recordações ou documentadas, no intuito de se ficar fazendo uma ideia, embora bem pálida do aquilo era. Na verdade uma testemunha de tantos meses, para mais no cargo de comandante de pelotão de infantaria, sempre na primeira linha, acumulando com o cargo de Segundo-comandante de Companhia, por certo que teria muito que contar. Mas a vida foi acidentada de mais para registar cronologicamente tudo que se ia passando. Limito-me por conseguinte a escrever estas recordações para uso caseiro, mas que têm a virtude de ser verdadeiras.
Trata-se de um capitão de apelido Almeida, que tinha pertencido ao RI nº 21. Homem de muita cultura, filósofo que nunca se casou porque não encontrou o seu ideal que deveria ser uma donzela de aspecto anémico e de santa. Muito religioso. Um dia bombardeava o inimigo a nossa trincheira de 2ª linha, onde ele se encontrava como comandante da sua companhia. A segunda linha em relação à primeira já era uma coisa razoável, onde se respirava um pouco, porque tinha à frente o bode expiatório da 1ª linha. Nos seus abrigos já havia uma espécie de camas que constavam de quatro faces sobre as quais se pregava uma rede de arame, engenhoca esta deixada pelos ingleses.
Um dia o capitão Almeida estava descansando sobre uma destas redes, na ocasião que o inimigo bombardeava. A uma certa altura levantando-se e acto continuo uma granada entra pelo telhado do abrigo, que não passava de uma pouca de terra sobre umas velhas tábuas e, furando esse pobre telhado cai na rede de onde ele tinha acabado de se levantar e não rebentou.
Sem se desconcertar, arregaça a manga do casaco e mostrando a imagem de Nossa Senhora da Conceição que tinha no pulso, diz para os oficiais presentes: Foi Nossa Senhora que me salvou. Era extremamente religioso. Todos os actos que na guerra era obrigado a praticar, eram sempre guiados por uma grande fé religiosa, por Nossa Senhora da Conceição.
Na guerra de trincheira o maior inimigo da primeira linha, o mais repelente e traiçoeiro, era sem dúvida o morteiro ligeiro. Nem a artilharia com o seu grande poder de destruição, nem os morteiros pesados a que os soldados, com certa propriedade chamaram porcos por com eles se parecessem quando eram avistados no ar e que tinham grande alcance e efeito destruidor e mortíferos da artilharia, nem as metralhadoras com o seu matraquear de tiro rápido e eficaz, nem as espingardas dos atiradores ou mesmo dos “snipers” que bala que vomitassem era cabeça abatida, nem as granadas surdas cheias de gás que se introduziam traiçoeiramente nos recantos dos abrigos fazendo as suas vitimas muitas horas depois de explodirem, quando já não se esperava, nem o reluzir das baionetas e chapéus de ferro do inimigo quando atacava, nada disto tinha a influência se comparava à maldita “garrafinha de litro”, designação que os soldados davam ao célebre e peçonhento morteiro ligeiro. Até o zurzir dos estilhaços dos estilhaços era mais tenebroso que qualquer outro. E compreende-se.
Enquanto as outras armas se aplicavam indistintamente sobre a 1ª, 2ª ou 3ª linha e as retaguardas por o seu alcance o permitir e por conseguinte todos ou só os da retaguarda “comiam”, o que era já um certo alívio para os filhos da… trincheira, o morteiro ligeiro era arma de pequeno alcance, foi inventado para pequena distância e por isso só se empregava como “encomenda” diária para martírio da 1ª linha. E quando um maldito rugia, já se sabia que tínhamos basta chuva deles. E a defesa era aguentar cara alegre…ou de defunto conforme…
A minha ordenança, com o seu olho de lince e ouvido afinado e por dever de ofício, quando começava a “dança”, punha-se logo de atalaia e ao ver as tais “garrafinhas” no ar (viam-se reluzir no ar principalmente quando chegavam ao ponto culminante e urravam), começava fatalmente com a sua lengalenga: meu alferes “lá vem um”. Já se sabia que vinha direitinho a nós, mais à frente, mais à retaguarda, mas vinha na nossa direcção. Retesavam-se os músculos à medida que o zunir se aproximava, como quem espera um toiro à solta, a esta espécie de bacalhau à sorte, porque tudo dependia do calhar ou não calhar, com um malandro em cima do corpinho. Havia ainda assim uma alternativa nestes fretes que era os morteiros virem com uma certa inclinação para a direita ou para a esquerda e neste caso já não era: “Lá vem um”, era lá vai… para os vizinhos, claro. E a pequenina diferença entre lá vem e lá vai, representava para os espectadores da primeira fila um formidável alívio. Descansavam os músculos, respirava-se. Já não sucedia outro tanto com os vizinhos do lado.
Terminados estes fretes, porque na verdade tais bombardeamentos na maioria dos casos não se lhe via outro objectivo que não fosse a ideia de flagelar, desmoralizar, restava-nos a conclusão de que não nos dispensava-mos: a represália que se dava sem demora com os nossos morteiros e a maior parte das vezes com juros. E a pobre ordenança que tantos morteiros viu no ar, tantas vezes com os seus avisos, pretendem salvar os outros, não conseguiu ver, nem livrar-se do que havia de matar na madrugada de 6 de Junho de 1917. Jaz no cemitério de La Couture.
A antipatia pelos tais morteiros era geral, porque tinha todas as características de uma coisa repelente: era uma espécie de garrafas de litro, como diriam os soldados, que se aplicavam a um cano aproximadamente de um metro de comprido, que de ante mão já estava na posição que se desejava, conforme o ponto a bombardear. Este cano era bastante portátil e por isso tão depressa estava num ponto, como noutro. Era uma artilharia ambulante. Ao chegar ao fundo do cano tocava num percutor e era então expelido ao seu destino e tudo isto quase sem ruído algum. A velocidade não era grande pelo que dava lugar a verem-se reluzir no ar, mas nem tão pequena que desse tempo para qualquer defesa.
O rebentamento só tinha lugar quando chegava o alvo, ao contrário de alguma artilharia e de outras armas que detonavam no início do seu emprego e no ar. Tudo concorria para ser uma arma traiçoeira. Uma pequena picada, um sibilar quase despercebido e zás. O malandro tinha feito das suas. Tinha ainda a particularidade de cair quase em vertical o que o tornava mais mortífero, ao contrário das outras armas que, actuando mais ou menos paralelamente ao terreno, se tornavam menos perigosas.
Pelas 16h20m do dia 13 de Setembro de 1917, no posto de Cockspur (n.º 4), sete soldados de guarnição de metralhadoras comentavam a imprudência de reunirem em grupo para comerem o seu rancho. Mas mão inimiga lembra-se de, àquela hora, começar o antipático frete. Em má hora o destino os reuniu pois um malandro caiu-lhes em cheio, matando-os a todos! Claro está que sete de cada vez dum tiro só, não era coisa muito vulgar, mas fariam sempre das suas.
Fotografia n.º 7: Sector Ferme du Bois – Posto n.º 4 – Cockpur
Continua …
* Recordações da Grande Guerra de 1914-1918, na qual tomei parte como Alferes comandante de um pelotão do RI n.º 28, da Figueira da Foz, de 26 de Fevereiro de 1917 a 1 de Julho 1919 (a Guerra terminou em 11 de Novembro de 1918, mas só regressei a Portugal em 1 de Julho de 1919).
Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Documentalista e bibliotecário do sector audiovisual.
Licenciado em História pela Universidade Autónoma de Lisboa “Luís de Camões”. Curso de Pós Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Curso de Pós Graduação em Profissionalização de Docentes na Escola Superior de Educação de Lisboa. Professor em Lisboa.