Nº 2563/2564 - Agosto/Setembro de 2015
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Globalização
Tenente-general PilAv
Eduardo Eugénio Silvestre dos Santos

Introdução: Um conceito contestado

Normalmente, a globalização é discutida apenas sobre o prisma do sistema económico global emergente, a sua história, estrutura e supostos benefícios e falhas. Se bem que seja útil para explicar as complexidades da política comercial, dos mercados financeiros e dos fluxos de mercadorias internacionais, essa interpretação restrita não nos dá a compreensão completa da globalização, como fenómeno primariamente influenciado pelas novas tecnologias.

A globalização deve ser vista e pensada não como um processo único, mas como um conjunto multidimensional de processos sociais simultâneos e não uniformes, que actuam a vários níveis e em várias dimensões, não podendo ser confinados a uma única moldura temática. De facto, os poderes transformadores da globalização mergulham profundamente nas dimensões económica, política, cultural, tecnológica e ecológica da vida social contemporânea. Por outro lado, a globalização envolve aspectos ideológicos importantes.

Embora o termo possa ser seguido até aos anos de 1960, foi apenas um quarto de século depois que tomou de assalto a opinião pública. Infelizmente, o sucesso de alguns livros iniciais sobre o assunto deixaram nos leitores a ideia simplista de que a globalização era o processo inevitável de uma civilização ocidental universalizante combater as forças provincianas do nacionalismo e do tribalismo. Principalmente depois dos ataques de 11 de Setembro de 2001, e como resultado desta dicotomia rígida que colocou em competição o universal contra o particular e o global contra o local, muita gente teve dificuldade em reconhecer e identificar os muitos laços que envolvem os fundamentalismos religiosos e tradicionais à pós-modernidade secular da idade global. Na realidade, a aparição e crescimento de organizações terroristas internacionais, como a al-Qaeda, representam apenas uma das muitas manifestações da globalização.

Apontam-se aqui algumas definições de globalização que demonstram a sobreposição de temas que tentam identificar as suas características fundamentais:

“A intensificação de relações sociais à escala mundial, ligando locais distantes de tal modo que acontecimentos locais são moldados e influenciados por outros acontecimentos ocorridos em locais distantes.” (Anthony Giddens, economista)

Processo (ou conjunto de processos) que corporizam uma transformação na organização espacial das relações e transacções sociais – avaliadas em termos de extensão, intensidade, rapidez e impacto – gerando fluxos e redes internacionais de actividade, interacção e exercício do poder.” (David Held, professor de Ciência Política)

“O relacionamento imediato e a criação de redes de relacionamento estratégico, económico, científico e financeiro transnacionais.” (Alejandre del Valle, cientista político)

O processo de diluição das fronteiras tradicionais, de aumento das interdependências e das interacções, o acréscimo de intercâmbios transnacionais e a intensificação dos processos e das actividades que fazem do mundo cada vez mais um único lugar.” (Luís Leitão Tomé, Professor de Relações Internacionais)

Interligações crescentes, nas quais redes e fluxos transpõem fronteiras tradicionais ou as tornam irrelevantes.” (Ellen L. Frost, economista)

Conjunto de processos transformativos das interacções humanas em vários domínios: política, economia, ideologia, cultura, sociedade e ambiente”; “Compressão do espaço e do tempo nas relações sociais.” (James Mittelman, professor de Relações Internacionais)

Estas definições apontam para quatro características como nucleares do processo. Em primeiro lugar, a globalização envolve a criação de novas redes e actividades sociais e a multiplicação das existentes, que atravessam as fronteiras políticas, económicas, culturais e geográficas tradicionais. A segunda característica da globalização reflecte-se na expansão e o desenvolvimento das relações, actividades e interdependências sociais. Em terceiro lugar, envolve a intensificação e a aceleração das actividades e trocas sociais. Por último, os processos de globalização não ocorrem meramente num nível objectivo, mas envolvem também o plano subjectivo da consciência humana.

Adopta-se aqui a definição de globalização como a condição social caracterizada pelas interligações e fluxos económicos, políticos, culturais, ambientais e ideológicos globais estreitos que tornam irrelevantes a maioria das fronteiras existentes.

O termo aplica-se a um conjunto de processos sociais que parecem transformar a nossa presente condição social de nacionalidade enfraquecida numa de globalidade. Não é um processo único, mas um conjunto de processos que operam simultânea e irregularmente em vários níveis e em várias dimensões. No seu âmago, a globalização trata da mudança de forma dos contactos humanos e caracteriza-se por um movimento para uma maior interdependência e integração.

 

 

Um pouco de história

Alguns cientistas limitam conscientemente o âmbito histórico da globalização aos anos pós-1989 ou, na melhor das hipóteses, às últimas quatro décadas de pós-industrialização, apresentando provas impressivas sobre a expansão e aceleração dramáticas das trocas globais a partir da década de 1970. Outros, estendem o período aos acontecimentos do séc. XIX, argumentando com a ligação estreita entre as suas formas contemporâneas e a explosão tecnológica da Revolução Industrial. Outros, por sua vez, argumentam que representa na realidade a continuação e extensão dos processos que se iniciaram com a emergência da modernidade e do sistema capitalista, há cerca de 500 anos. Apontam a compressão espaço-tempo ocorrida no séc. XVI, quando a Eurásia, as Américas e a África ficaram ligadas por rotas comerciais. Outros ainda recusam confinar a globalização a períodos de tempo. Afirmam antes que estes processos se têm desenrolado há milénios.

Poder-se-á concluir que a globalização é um processo de longa duração que, durante muitos séculos, atravessou patamares qualitativos distintos.

No início do século XX, a globalização estava no seu auge, apesar do termo ainda não ser conhecido. O cidadão europeu podia beber o seu chá vindo do Oriente, aquecer-se com o carvão de Gales, possuir umas luvas de pele feitas em Paris, ou fumar charutos de Havana. Os impérios ultramarinos europeus usufruíam de mais de 300 anos de comércio, conquista e colonização, beneficiando de uma divisão global do trabalho única. Dos portos europeus saíam linhas marítimas, ferroviárias e telegráficas, interligadas entre si, que sustentavam o poder imperial e colonial do Ocidente, ligando-o a quase todos os pontos do planeta. Estas redes uniam o mundo, criando mercados verdadeiramente globais para mercadorias, trabalho e capital.

Este elevado nível de integração económica não poderia existir se não existissem impérios! Os impérios europeus (britânico, francês, português, alemão, austro-húngaro, belga, holandês, espanhol, italiano e russo) possuíam mais de metade da superfície do planeta e governavam mais de metade da sua população. A circulação de bens, capital e trabalho atingiu níveis comparáveis aos actuais. Era também o zénite da globalização política. Nesta época, o comércio de bens alcançou uma proporção quase tão alargada como nos últimos 30 anos. A I Guerra Mundial veio modificar radicalmente este estado de coisas. O comércio, o investimento e a circulação de pessoas desvaneceram-se. O controlo dos impérios sobre o mundo, alicerce político da globalização de então, sofreu um duro golpe. Após a guerra, começaram a surgir regimes revolucionários – de esquerda e de direita – hostis à integração económica internacional.

As origens da I Guerra Mundial tornaram-se evidentes assim que esta eclodiu. Só nessa altura é que Lenine se apercebeu que a guerra era uma consequência inevitável das rivalidades imperialistas. Só nessa altura é que os liberais norte-americanos entenderam que a diplomacia secreta e o emaranhado das alianças europeias constituíam as causas principais do conflito[1].

A queda dos preços dos activos nos EUA, que deu origem à Depressão de 1929, foi um desastre económico sem precedentes. Entre 1929 e 1933, o Produto Nacional Bruto (PNB) dos EUA caiu para quase metade em termos nominais; a produtividade combinada das sete maiores economias mundiais caiu perto de 20% no mesmo período. Dois países sofreram, mais do que todos os outros, quebras idênticas aos EUA: a Alemanha e a Áustria, a contas com o pagamento das reparações impostas pelo Tratado de Versalhes. A maioria dos países que, em 1931, se regia pelo padrão-ouro, abandonaram-no em 1937. Os EUA e o Reino Unido, dois alicerces do sistema monetário internacional, foram obrigados a fazer flutuar as suas divisas, reduzindo as taxas de juro internas e as suas reservas de ouro, afectando assim as taxas cambiais. Os défices governamentais aumentavam, devido a uma despesa pública acrescida e à quebra das receitas. A desvalorização das divisas estimulava a recuperação de dois modos: permitindo que as taxas nominais de juro diminuíssem, e reduzindo os salários reais.

O proteccionismo instalou-se, levando inclusivamente o Reino Unido a abandonar o comércio livre, e indiciando que as políticas monetárias e fiscais mais abertas pouco podiam contribuir para estimular o comércio. O fluxo de bens foi limitado por direitos de importação, os fluxos de capitais por regulamentos de câmbio, e os fluxos laborais por mais restrições à imigração.

Quando a Depressão surgiu, o primeiro regime verdadeiramente totalitário, a URSS, já existia há mais de dez anos. Ao debilitar os EUA e os seus principais parceiros comerciais, a crise económica parecia favorecer o regime soviético, que afirmava que o capitalismo cederia perante as suas próprias contradições. A economia planificada do estado totalitário soviético queria em troca “apenas” o controlo completo de todos os aspectos da vida, em nome da igualdade: “a cada um segundo as suas capacidades; para cada um segundo as suas necessidades”! Mas a economia planificada tinha uma necessidade premente de trabalhadores e de matéria-prima. A URSS tinha ambos em elevadas quantidades. Porém, nos outros estados totalitários que entretanto foram surgindo (Japão, Alemanha e Itália) a situação era diferente e a economia planificada derivou para políticas muito diferentes. O Mundo ver-se-ia perante a maior catástrofe de sempre: a II Guerra Mundial. No fim dela emergiu um novo império, o americano, enquanto o soviético saiu reforçado e alargado, ao passo que os outros se foram desvanecendo.

 

 

A dimensão económica

A globalização económica diz respeito à intensificação e alargamento das inter-relações económicas em todo o mundo. Fluxos gigantescos de capital e de tecnologia estimularam o comércio de bens e serviços. Enormes empresas transnacionais, poderosas instituições económicas internacionais, e grandes sistemas comerciais regionais emergiram como os maiores alicerces da ordem económica global do séc. XXI. Pode ser identificada contemporaneamente com a emergência gradual de uma nova ordem económica saída da II Guerra Mundial, numa conferência que teve lugar em Bretton Woods, pequena cidade da Nova Inglaterra, em Julho de 1944. Sob a liderança dos EUA e da Grã-Bretanha, as maiores potências mundiais do Norte inverteram as suas políticas económicas do período entre as duas guerras que, por exemplo, tinham introduzido tarifas altas em produtos importados, para proteger as economias nacionais. Os participantes chegaram a um acordo firme em expandir e liberalizar o comércio internacional, e também em estabelecer regras rigorosas às actividades económicas internacionais. Além disso, resolveram criar um sistema cambial mais estável, no qual o valor da moeda de cada país estava ligado a um valor fixo em ouro do dólar americano (tal como o padrão-ouro, mas agora a âncora – a moeda de reserva internacional – seria o dólar e não o ouro, graças às grandes quantidades existentes em Fort Knox). Tal como explicou o economista britânico John Maynard Keynes, o arquitecto de Bretton Woods, “o controlo dos movimentos dos capitais será uma característica permanente do sistema do pós-guerra[2].

Bretton Woods estabeleceu também os alicerces institucionais para o estabelecimento de três novas instituições económicas internacionais. O Fundo Monetário Internacional (FMI) foi criado para administrar o sistema monetário internacional. O Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento, mais tarde conhecido como Banco Mundial (BM), foi inicialmente criado para fornecer empréstimos à reconstrução da Europa pós-guerra. Finalmente, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) foi criado em 1947 como uma organização comercial global encarregada de estabelecer e fazer respeitar acordos comerciais multilaterais. Em 1995, foi fundada a Organização Mundial do Comércio (OMC) como sucessora do GATT. Nos anos de 1990, a OMC tornou-se o ponto central de uma acesa controvérsia pública sobre as intenções e os efeitos da globalização económica.

Deste modo, nos anos que se seguiram à II Guerra Mundial, mesmo os partidos políticos mais conservadores da Europa e dos EUA rejeitaram as ideias de “laissez faire” e aceitaram um certo intervencionismo do Estado. Funcionando mais do que três décadas, este regime contribuiu em larga escala para o estabelecimento daquilo que alguns observadores denominam de “era dourada do capitalismo controlado”.

No início dos anos de 1970, porém, o sistema de Breton Woods ruiu. Em resposta a modificações políticas profundas que estavam a prejudicar a competitividade económica dos EUA, em 1971, o presidente Nixon abandonou o sistema com base fixa no ouro. Aquando da “guerra do Yom Kippur” e do embargo petrolífero, em 1973, a maioria dos bancos centrais tendeu a acomodar o choque dos preços com um crédito mais fácil, provocando uma crise inflacionária. A década seguinte caracterizou-se por uma instabilidade económica global, sob a forma de altas taxas de inflação, baixo crescimento económico, grande desemprego, deficits do sector público, e duas crises energéticas sem precedentes, dada a capacidade da OPEP[3] para controlar grande parte do abastecimento mundial de petróleo. Nos anos de 1980, contudo, a Primeiro-ministro britânica, Margaret Tatcher, e o presidente Reagan lideraram a “revolução” neoliberal contra o “Keynesianismo”, ligando conscientemente a noção de globalização à “liberalização” das economias em todo o mundo.

Esta nova ordem económica neoliberal teve outra legitimação posterior, quando do colapso do comunismo na URSS e na Europa de Leste, em 1989-1991, fazendo pensar num grande triunfo do Ocidente. Em termos ideológicos, falou-se num “mundo unipolar”, numa “nova ordem mundial” e até no “fim da história”. O fascismo e o comunismo tinham sido derrotados.

A seguir ao colapso da URSS sucederam vários acontecimentos convergentes (o aparecimento do “constitucionalismo orientado para o mercado”, o consequente desvanecimento da alternativa socialista, a ascensão dos EUA como superpotência sobrevivente e um conjunto de melhorias nas tecnologias das informação) que facilitaram o crescimento das redes transnacionais e da integração socioeconómica.

Desde então, os três maiores desenvolvimentos relativos à globalização económica foram a liberalização do comércio e da finança, o crescente poder das empresas transnacionais, e papel mais preponderante de instituições económicas internacionais, como o FMI, o BM e a OMC. O processo de integração económica mundial, a globalização, com o comércio livre e a livre circulação de capitais e de pessoas, afigurava-se imparável.

Existem provas que algumas economias nacionais aumentaram a sua produtividade como resultado do comércio livre. Além disso, existem alguns benefícios para as sociedades que advêm da especialização, da competição e da expansão da tecnologia. Mas é menos claro se os lucros resultantes do comércio livre têm sido distribuídos com imparcialidade entre e nas nações. A maioria dos estudos mostra que as diferenças entre países ricos e pobres estão a aumentar rapidamente. Por isso, os defensores do comércio livre têm encontrado fortes críticas dos sindicatos e dos grupos ambientalistas, que reclamam a eliminação dos mecanismos de controlo social que tiveram como resultado um abaixamento dos padrões laborais, formas severas de degradação ecológica, e o crescente endividamento dos países do Sul para com os do Norte.

A internacionalização do comércio trouxe consigo a liberalização das transacções financeiras. Os seus componentes principais são a desregulamentação das taxas de juro, a remoção do controlo dos créditos e a privatização dos bancos controlados pelo Estado. A globalização do comércio financeiro permite uma mobilidade maior entre os diferentes segmentos da indústria financeira, com menores restrições e maiores oportunidades de investimento. Esta nova estrutura financeira surgiu nos anos de 1980 com a desregulamentação gradual dos capitais e dos mercados na Europa, nas Américas, no Extremo Oriente, na Austrália e na Nova Zelândia. Uma década depois, os países do Sueste Asiático, a Índia e vários países africanos se seguiram. Durante os anos de 1990, novos sistemas de satélites e cabos de fibra óptica forneceram o “sistema nervoso” da Internet e de tecnologias similares, que aceleraram ainda mais a liberalização das transacções financeiras.

A maior parte do crescimento financeiro ocorreu sob a forma de “hedge funds” (fundos de investimento não registados, caracterizados por estratégias não convencionais) e outras aplicações baseadas em lucros de produções futuras. Por outras palavras, os investidores apostaram em produtos ou em taxas de câmbio que ainda não existiam. Os sistemas financeiros mundiais caracterizam-se por grande volatilidade, competição desenfreada e insegurança generalizada, dominados por mercados de acções altamente sensíveis. Estes fluxos de capitais internacionais podem ser rapidamente alterados e criar ciclos artificiais de expansão que colocam em perigo o bem-estar social de regiões inteiras.

O Acordo Multilateral de Investimento (MAI) foi lançado, em 1994, em Paris, pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), uma instituição intergovernamental para promover e desenvolver políticas económicas, com trinta países, onde se incluem os mais ricos, com a finalidade de estabelecer o enquadramento legal para o investimento estrangeiro directo. Os objectivos do MAI eram expandir a liberalização e as privatizações e significavam praticamente a redução da autoridade reguladora do Estado sobre as empresas, nacionais e estrangeiras, que tivessem negócios nesse Estado. O primeiro director geral daquela organização afirmou que “estamos a escrever a Constituição da economia global única”![4]

Foi por esta altura (anos de 1990) que os governos da Tailândia, da Indonésia, da Malásia, da Coreia do Sul e das Filipinas abandonaram gradualmente o controlo sobre o movimento doméstico de capitais, a fim de atrair investimento estrangeiro directo, aumentando as taxas internas de juro e ligando as suas moedas ao dólar. A euforia irracional de investidores estrangeiros que se seguiu, traduziu-se numa subida nos mercados das acções e do imobiliário em todo o Sueste Asiático. Contudo, em 1997, os investidores concluíram que os preços se tinham inflacionado muito, entraram em pânico e retiraram mais de 100 mil milhões de dólares daqueles países, forçando os seus governos a abandonarem a ligação ao dólar. Incapazes de parar a queda das suas moedas, utilizaram todas as suas reservas em divisas estrangeiras. Como resultado, a economia colapsou, o desemprego aumentou e os salários caíram. Os bancos estrangeiros e os credores reagiram, não aceitando novas aplicações de crédito e recusando-se a estender os empréstimos existentes. Toda a região entrou numa crise financeira que ameaçou a economia global de entrar em recessão. Hoje, os cidadãos daquela região ainda estão a sofrer das desastrosas consequências políticas e sociais dessa crise.

No início do séc. XXI, ao mesmo tempo que os críticos salientavam os custos das intervenções militares[5], um aumento súbito da securitização[6] financeira levou à explosão das bolhas das hipotecas e imobiliárias.

Em 2001, para proteger os investidores, Alan Greenspan, presidente da Reserva Federal Americana, decidiu orientar os investimentos para o sector imobiliário. Adoptando uma política de taxas de juros muito baixas e de redução das despesas financeiras, induziu os intermediários financeiros e imobiliários a incitar uma clientela cada vez maior a investir em imóveis, principalmente através de empresas que diferentes governos e políticos dos Estados Unidos usaram para financiar casas aos mais pobres. O governo garantia os investimentos feitos por estas empresas. Bancos de vários países do mundo, atraídos pelas garantias do governo americano, acabaram emprestando dinheiro a imobiliárias.

Foi assim criado o sistema das hipotecas “subprime”, empréstimos hipotecários de alto risco e de taxa variável concedidos às famílias “frágeis”, ou seja, sem renda, sem emprego e sem património. Na realidade, eram financiamentos de casas, muitas vezes conjugados com a emissão de cartões de crédito, concedidos a famílias que os bancos sabiam de antemão não ter renda familiar suficiente para poder arcar com suas prestações. Uma hipoteca “subprime” é assim um tipo de empréstimo concedido a indivíduos com um passado de crédito duvidoso, sem comprovação de bens e sem emprego e que, como resultado dessa deficiência, não poderia qualificar-se a hipotecas convencionais. Dado que os beneficiários do “subprime” apresentam um maior risco para os financiadores, as hipotecas “subprime” têm taxas de juros maiores do que o normal.

Tornou-se assim possível conceder empréstimos a grupos de maior risco. Imagine, por exemplo, um casal jovem e promissor que anda entre empregos e quer comprar a primeira casa, ou uma família de meia-idade que faz uma hipoteca para financiar a montagem de um negócio. Os contratos de empréstimo tinham uma taxa baixa nos primeiros dois anos em que era necessária a liquidez, e uma taxa bem maior nos seguintes, para compensar o risco. Estes empréstimos são com certeza arriscados, pois os jovens podem nunca conseguir emprego, e a empresa pode ir à falência. Essa valorização contínua dos imóveis permitia aos mutuários obter novos empréstimos, sempre maiores, para liquidar os anteriores, em atraso – dando o mesmo imóvel como garantia. As taxas de juros eram pós-fixadas, isto é, determinadas no momento do pagamento das dívidas.

 Como os empréstimos “subprime” eram dificilmente liquidáveis, isso é, não geravam nenhum fluxo de caixa para os bancos que os concediam, esses bancos arquitectaram uma estratégia de securitização desses créditos. Assim, os bancos que fizeram essas hipotecas criaram derivativos negociáveis no mercado financeiro (troca de títulos vencidos de uma dívida velha por títulos a vencer no futuro, e que passam a constituir uma dívida nova), instrumentos sofisticados para as transformar em títulos livremente negociáveis – por eles garantidos e caucionados – que passaram a ser vendidos para outros bancos, instituições financeiras, companhias de seguros e fundos de pensão pelo mundo afora. Assim, criaram-se títulos negociáveis cujas garantias eram esses créditos “podres”.

Quando, em 2005, a Reserva Federal aumentou a taxa de juros para tentar reduzir a inflação, houve incumprimento em massa e a máquina desregulou-se; o preço dos imóveis caiu, tornando impossível o seu refinanciamento para os clientes do “subprime”, e esses títulos derivativos tornaram-se impossíveis de ser negociados, a qualquer preço, o que desencadeou um efeito dominó, arrastando vários bancos para uma situação de insolvência, repercutiu-se fortemente sobre as bolsas de valores de todo o mundo, fazendo deste modo balançar o sistema bancário internacional, a partir de Agosto de 2007[7].

O mercado de acções afundou-se. Apesar de a liquidez representar o problema imediato, a solvência era um desafio mais difícil, que requeria uma maior intervenção governamental. Assim, para evitar os adornos do socialismo, os políticos codificaram como “bridge loans” [8] aquilo que na realidade significou a nacionalização de certas empresas. Porém, retirada esta conotação, a mudança foi para capitalismo de estado[9].

Esta crise financeira que atingiu o mundo ocidental fez-nos recordar uma das verdades eternas da história financeira. Mais cedo ou mais tarde, todas as bolhas rebentam. Tendo sofrido perdas astronómicas, muitos dos mais conhecidos bancos norte-americanos e europeus tiveram de recorrer não só aos bancos centrais ocidentais, mas também aos fundos soberanos asiáticos e do Médio Oriente, procurando ajuda a curto prazo para restabelecerem as suas reservas[10].

Empresas transnacionais (TNC) são firmas poderosas com subsidiárias em vários países. A General Motors, a Walmart, a Exxon-Mobil, a Mitsubishi e a Siemens, são algumas das duzentas maiores empresas transnacionais responsáveis por cerca de metade da produção industrial do mundo. Nenhuma delas tem sede fora da América do Norte, da Europa, do Japão e da Coreia do Sul. Esta concentração geográfica reflecte as relações assimétricas de poder entre o Norte e o Sul. O seu número subiu vertiginosamente (cerca de 7000, em 1970, para mais de 78000, em 2006), e as suas estratégias tornaram-se determinantes nos fluxos comerciais, na localização das indústrias e noutras actividades económicas, influenciando as economias, as políticas e o bem-estar social de muitos países.

Rivalizando com estados-nação no poder económico, estas empresas controlam a maior parte do capital de investimento mundial, a tecnologia e o acesso aos mercados internacionais. Para manter as suas posições hegemónicas no mercado global, as TNC fundem-se com frequência. Em 2007, as empresas Nokia e Siemens fundiram-se, valendo o acordo cerca de 38 mil milhões de dólares. Quarenta e duas das cem maiores economias mundiais são empresas. A Conoco-Phillips, a nona maior empresa transnacional, tem uma receita idêntica ao PNB de Portugal. Algumas empresas têm sido criticadas por manterem preços baixos à custa de más condições de trabalho nas fábricas funcionando noutros países, que produzem a maioria dos seus produtos.

As três principais instituições económicas internacionais (FMI, BM e OMC) gozam de uma posição privilegiada de fazer e fazer cumprir as regras da economia global. Durante a “guerra fria”, a sua importante função de conceder empréstimos aos países em desenvolvimento ligaram-nas ao objectivo político ocidental de conter o comunismo. Após a queda da URSS, as agendas económicas destas instituições sincronizaram os interesses neoliberais para integrar e desregular os mercados mundiais. Em troca da concessão dos tão necessários empréstimos, o FMI e o BM exigiram dos seus credores a implementação dos chamados “programas de ajustamento estrutural”. Contudo, na prática, os termos dos programas significavam uma nova forma de colonialismo. Infelizmente, grande parte destes empréstimos para desenvolvimento, enriqueceram líderes políticos autoritários ou empresas locais satélites das grandes empresas do Norte. Por vezes, somas exorbitantes foram gastas em projectos de construção mal planeados e concebidos e, normalmente, a maior parte dos orçamentos nacionais é gasto para pagar o serviço das enormes dívidas.

A globalização económica não é, pois, apenas uma extensão do comércio e do investimento mundiais, mas está a ter efeitos revolucionários nas vidas política, económica e social dos povos do mundo; os alicerces ideológicos regressivos foram estabelecidos pelo neoliberalismo, que privilegia o mercado e os interesses do capital e da finança, e negligencia as consequências adversas nas pessoas e nas culturas.

Como se pode constatar, as perspectivas económicas da globalização dificilmente podem ser discutidas aparte de uma análise dos processos e instituições políticas. A natureza multidimensional da globalização requer que analisemos em maior detalhe a interacção entre os seus aspectos económicos e políticos.

 

 

A dimensão política

A globalização política diz respeito à intensificação e expansão das inter-relações políticas em todo o mundo. Estes processos levantam um conjunto importante de assuntos políticos relativos ao princípio da soberania do Estado, ao impacto crescente das organizações intergovernamentais e às perspectivas futuras para a governação regional e global. Obviamente, estes temas respondem à evolução dos arranjos políticos para além do enquadramento do Estado-nação, abrindo novas perspectivas conceptuais.

Esta divisão artificial do espaço social planetário entre as esferas “doméstica” e “estrangeira”, corresponde às identidades colectivas baseadas na criação de um “nós” comum e de um “eles” indefinido. Assim, o sistema moderno de “Estados-nação” assenta em alicerces psicológicos e assumpções culturais que transmitem um sentido de segurança e continuidade histórica, exigindo aos cidadãos, ao mesmo tempo, que coloquem as suas lealdades nacionais acima de tudo.

As manifestações contemporâneas da globalização levaram à penetração parcial destas velhas fronteiras territoriais, amenizando também fronteiras conceptuais e linhas de demarcação cultural.

Surgiram três questões fundamentais que testam a extensão da globalização política:

– O poder do Estado-nação foi realmente reduzido pelos fluxos maciços de capitais, pessoas e tecnologia através das fronteiras territoriais?

– As causas primárias destes fluxos são políticas e/ou económicas?

– Estamos a testemunhar o aparecimento da governação global?

Antes de responder a estas perguntas, porém, debrucemo-nos sobre as principais características do sistema de Estados-nação.

As origens do sistema de Estados-nação remontam aos desenvolvimentos políticos do séc. XVII, na Europa. Em 1648, a Paz de Vestefália terminou uma série de guerras religiosas entre as principais potências europeias, que se seguiram à Reforma Protestante. Baseado em princípios novos de soberania e territorialidade, este modelo substituiu o mosaico medieval de poderes políticos locais e pessoais, embora subordinados a uma autoridade imperial superior.

De acordo com o cientista político David Held, o modelo “vestefaliano” continha os seguintes aspectos fundamentais:

– o mundo consiste e está dividido em estados soberanos que não reconhecem qualquer autoridade superior;

– os processos de elaborar leis, resolução de diferendos e de fazer respeitar a lei estão maioritariamente nas mãos dos Estados;

– a lei internacional está orientada para o estabelecimento de regras mínimas de coexistência;

– a responsabilidade por actos de violação de fronteiras é um “assunto privado” entre os envolvidos;

– todos os Estados são considerados iguais perante a lei, mas esta não tem em consideração as assimetrias de poder;

– as diferenças entre Estados são muitas vezes resolvidas pela força, para o recurso à qual não existem praticamente obstáculos; a lei internacional fornece apenas uma protecção mínima;

– a prioridade colectiva dos Estados deve ser minimizar os impedimentos à sua liberdade[11].

Os séculos que se seguiram à Paz de Vestefália aprofundaram a centralização do poder político, a expansão da administração do Estado, o desenvolvimento da diplomacia profissional e o monopólio dos meios de coacção nas mãos do Estado. A maturidade deste sistema foi atingida após a I Guerra Mundial, com os famosos “14 pontos” do presidente americano Woodrow Wilson, baseados no princípio da auto-determinação nacional. Ao sacralizar o Estado-nação como paradigma ético-legal e a Sociedade das Nações, emprestou inadvertidamente legitimidade às forças etno-nacionalistas radicais que empurraram as grandes potências mundiais para uma nova guerra de proporções globais.

A globalização económica vincula uma aceleração dos fluxos transfronteiriços (capitais e serviços, entre outros) que atravessam os Estados. Contudo, de acordo com o modelo “vestefaliano” territorial de organização política, os Estados soberanos pretendem controlar estas transacções e afirmar a lógica do sistema inter-estados[12].

Num mundo super competitivo, o Estado é apenas um actor, pressionado por muitos, organizações internacionais, entidades regionais, corporações, sociedades civis, movimentos sociais, indivíduos, etc.. Envolvendo todos estes actores estão as culturas, as redes e o ambiente, todos envolvidos na governação global a vários níveis.

À medida que as tendências da globalização aumentavam durante os anos de 1970, tornou-se claro que a sociedade internacional de Estados independentes se estava rapidamente a transformar numa rede global de interdependências políticas que começava a desafiar a soberania dos Estados-nação. Em 1990, em vésperas da “guerra do Golfo”, o presidente George Bush (pai) declarou a “morte de facto” do sistema vestefaliano, ao anunciar o nascimento de “uma nova ordem mundial”. Significava isto que o sistema de Estados-nação tinha deixado de ser viável?

Os adeptos incondicionais da globalização responderam à pergunta anterior afirmativamente. A maioria deles considera os seus aspectos políticos como um mero fenómeno secundário, liderado por forças económicas e tecnológicas mais poderosas. Argumentaram que a política se tornou praticamente impotente perante uma inexorável força técnico-económica que esmagará todas as tentativas governamentais para repor regras e políticas restritivas. Estes adeptos desejam uma nova fase na História, onde o papel dos governos seja apenas o de servir os superiores interesses da economia, um supercondutor do capitalismo global. Consequentemente, estes grupos de seguidores da globalização defendem que o poder político se exprime melhor através de redes globais do que através de estados territoriais. Para eles, os Estados-nação já perderam o seu papel dominante na economia global. Insistem que a ordem política minimalista do futuro será determinada por economias regionais ligadas por uma rede global quase contínua de produção e trocas.

Os críticos da globalização estão em desacordo, acentuando o papel central da política na libertação das forças globalizantes. A seu ver, a rápida expansão das actividades económicas globais não pode ser reduzida, nem a uma lei natural nem ao desenvolvimento da tecnologia informática. Ao contrário, é originada por decisões políticas para levantar as restrições internacionais ao capital, feita por governos neoliberais, nas décadas de 1980 e de 1990. Por isso, insistem na continuada importância das unidades políticas convencionais.

Os argumentos de ambas as partes continuam enredados numa versão particular do problema “do ovo e da galinha”. Ao fim e ao cabo, as formas económicas de interdependência são desencadeadas por decisões políticas, mas estas decisões são, por seu turno, decididas em contextos económicos específicos. Como ficou exposto, os aspectos económicos e políticos da globalização estão profundamente interligados. Não há dúvida de que desenvolvimentos económicos recentes restringiram as opções políticas possíveis aos Estados, em particular no Sul global. Tem sido, por exemplo, muito mais fácil ao capital fugir a impostos e outras restrições políticas nacionais. Assim, os mercados globais limitam frequentemente a capacidade dos governos para estabelecer objectivos políticos nacionais e impor os seus próprios padrões domésticos. Por isso, temos de aceitar o declínio do Estado-nação como entidade soberana. Pouco a pouco, os governos vão perdendo a faculdade de intervirem na evolução da sua própria nação. Enquanto o fluxo de mercadorias e do capital ficou disponível no mundo inteiro, a regulamentação e a supervisão permaneceram uma questão nacional. Na realidade, a economia devorou a política!

Os governos podem ainda tomar medidas para tornar as suas economias atractivas aos investidores globais. Além disso, os Estados têm mantido o controlo sobre a educação, as infra-estruturas e, sobretudo, sobre os movimentos migratórios. De facto, o controlo, registo e supervisão da imigração tem sido citado como a excepção mais notável à integração global.

Finalmente, a série de medidas de segurança drásticas implementadas à escala mundial após o 11 de Setembro de 2001, em resposta aos ataques terroristas a Nova Iorque, reflectem a dinâmica política que contraria as previsões hiperglobalizantes de um mundo sem fronteiras. Ao mesmo tempo, as actividades das redes de terrorismo global revelaram a inadequação das medidas de segurança convencionais baseadas no sistema de Estados-nação, forçando-os a novas formas de cooperação internacional.

A globalização enfraqueceu algumas das fronteiras convencionais entre política interna e externa, ao passo que fomentou o crescimento de espaços e instituições sociais supra-territoriais que, por seu turno, desestabilizavam os arranjos políticos tradicionais. No início do séc. XXI, o mundo encontra-se numa fase de transição entre o sistema de Estados-nação e formas pós-modernas de governação global.

Os pensadores políticos neoliberais têm tido um papel fundamental na construção do discurso sobre a globalização. Um grupo deles é constituído por ex-estudantes, na maioria “trotzkistas”, que frequentaram o “City College of New York” nos anos de 1930 e de 1940, e que aderiram posteriormente à direita. Irving Kristol, Daniel Bell e Daniel P. Moynihan são alguns deles. Outra fonte de neoliberalismo provém dos ensinamentos de Leo Strauss, filósofo político da Universidade de Chicago. Alguns dos seus alunos são Allan Bloom, Albert Wohlstetter, William Kristol, Paul Wolfowitz (secretário de estado adjunto de George W. Bush e, posteriormente, presidente do BM) e Richard Perle (presidente do Conselho de Política e Defesa). Bloom ensinou Francis Fukuyama, e Wolfowitz, juntamente com Dick Cheney e Donald Rumsfeld, rascunharam o “Guia de planeamento para a Política de Defesa” (1992) e o “Projecto para um novo século americano” (1997). Ambos os documentos propunham uma visão militarista do poder americano.

Os neoliberais estão de acordo que a ordem mundial futura assenta sobre a garantia da segurança. O neoliberalismo nos EUA significa perseguir inimigos, por vezes preemptivamente, sozinho ou, quando conveniente, em coligações ou alianças. O poder militar defende não só a segurança e a liberdade, mas assegura também a estabilidade que uma economia global requer[13].

Ao nível regional têm proliferado organizações e acordos multilaterais. Começando como tentativas de integrar economias regionais, estes blocos evoluíram, nalguns casos, para federações políticas incipientes com instituições de governo comuns. Por exemplo, a União Europeia (UE) começou, em 1950, com a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço.

A um nível global, os governos têm formado várias organizações internacionais, tais como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO), a OMC, etc.. Apenas Estados-nação são admitidos, e o processo de decisão está a cargo de representantes dos governos nacionais. A proliferação destas instituições transnacionais mostra que os Estados-nação sentem crescentes dificuldades para gerir redes extensas de interdependência social.

Por fim, a estrutura emergente de governação global é também moldada pela “sociedade civil global”, espaço ocupado por milhares de voluntários de centenas de organizações não-governamentais (ONG) de âmbito global, tais como a Amnistia Internacional, a Cruz Vermelha, ou a Greenpeace.

Alguns estudiosos da globalização crêem que a globalização política pode facilitar o surgimento de forças sociais democráticas transnacionais baseadas neste bloco de sociedade civil progressista. Outros analistas menos optimistas não acreditam que a globalização política vá em direcção à democracia. Por outras palavras, a intensificação das interacções culturais, políticas e económicas tornam possível tanto a resistência e a oposição, como a acomodação e tolerância mútuas às diferenças.

 

 

A dimensão militar

A mão escondida do mercado nunca resultará sem um punho
fechado escondido
”.

Thomas Friedman (jornalista)

 

A Carta da ONU fechou os olhos à tensão entre a sua afirmação jurídica da igualdade dos Estados e o seu reconhecimento constitucional da sua desigualdade na forma do direito de veto dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança.

A “guerra fria” culminou a dinâmica das relações internacionais, assegurando a segurança das maiores potências e tornando o espectro da guerra tão temível, que se manteve estável pela perspectiva da “mútua destruição assegurada”. Esta ordem bipolar estabeleceu uma condição de vulnerabilidade apocalíptica em todo o planeta que nunca tinha existido anteriormente, e levou a amoralidade do realismo político para níveis impensáveis de omnicídio potencial, aquilo a que alguns observadores chamaram “geopolítica de extermínio”.

Após o colapso da URSS surgiu um desafio, face aos seguintes desenvolvimentos convergentes:

– o alastrar do que ficou conhecido como “constitucionalismo orientado para o mercado”;

– a consequente quebra da alternativa socialista;

– a ascensão dos EUA a única superpotência;

– um conjunto de novidades associadas à tecnologia da informação, que facilitaram a formação de redes transnacionais e a integração sócio-económica.

Foram estes desenvolvimentos interligados, desenrolados numa atmosfera sem rivalidades ideológicas, que deu saliência às tendências do comércio e do investimento que fazem parte da globalização económica.

A excepção a esta calma geopolítica veio com a “guerra do Golfo”, em 1991, com uma resposta colectiva liderada pelos EUA e apoiada pela ONU. O então presidente George Bush (pai) associou a resposta militar a uma “nova ordem mundial”, precisamente porque legitimada pela decisão do Conselho de Segurança da ONU. Mais tarde, o secretário de estado James Baker afirmou que tinha sido um erro ter associado a “nova ordem mundial” com a segurança colectiva, e não com a ideologia neoliberal. Foram estes padrões emergentes de comportamento, em especial a combinação de mercados financeiros com controlos mínimos e o controlo do Sul global, através do FMI e do BM, que, cumulativamente, criaram a primeira ruptura na concepção “vestefaliana” da política mundial de Estados soberanos delimitados por fronteiras territoriais. Os EUA têm-se apoiado cada vez mais na sua componente de poder militar para proteger e promover os seus interesses num mundo super competitivo.

A segunda ruptura chegou uma década depois, com os ataques de 11 de Setembro de 2001. Estes ataques foram marcantes, porque demonstraram o poder dos actores e redes não-estatais, e a sua temível capacidade de quebrar os mecanismos tradicionais dos Estados soberanos, que assentava no seu controlo não desafiável do poder militar para dissuadir e defender. Após esta demonstração de vulnerabilidade “pós-estatal”, veio a estupidez da resposta, um flagelo de capacidades destrutivas com muito pouco impacto na ameaça terrorista.

Aquilo que se observou após o 11 de Setembro foi a globalização da insegurança, caracterizada por uma incapacidade de assegurar protecção ou de remover a ameaça.

A segurança não pode ser restaurada pelo velho sistema militarista “vestefaliano”. De facto, como a presidência neoliberal americana revelou, o impulso militarista acentuou fortemente a insegurança americana e infligiu grandes sofrimentos a terceiros. A velha maneira não resultará e os novos caminhos ainda não foram aceites por aqueles que têm a autoridade e a capacidade para agir[14].

A globalização gera segurança ou insegurança? Como estão ligadas e quais as implicações para a ordem mundial?

A insegurança globalizou-se numa configuração que pôs em movimento uma confluência única de forças que prognosticam conflitos em larga escala. Existe uma reconfiguração da violência política, de uma incerteza penetrante, marcada por um crescente clima de medo e conflitos (armados ou não) que não estão necessariamente nas mãos dos Estados, e instabilidade crescente a nível mundial.

O problema é que, enquanto a globalização corrói o princípio da territorialidade, o imperativo da segurança nacional afirma a importância da jurisdição nacional. Estas forças puxam em direcções opostas, alterando o equilíbrio entre segurança e insegurança.

Aos modelos tradicionais de paz e de guerra, junta-se agora o modelo de paz perpétua através da competição sem limites. Porém, a competição desmedida é mais do que uma aceleração nas anteriores práticas do capitalismo; agora, a ênfase está na desestabilização do ambiente negocial e na criação de riscos.

A partir dos anos de 1970, aconteceram alterações profundas, tais como a queda do “keynesianismo”, o falhanço do sistema de taxas cambiais fixas de Bretton Woods, o crescimento de um conjunto de novas ideias e de um conceito político para acelerar a integração global dos mercados, o neoliberalismo[15].

A segurança e a insegurança são estados de espírito. Estão ligados ao medo, à paranóia e aos preconceitos que dividem as pessoas e as alinham como amigos ou inimigos. A conceptualização da segurança mostra múltiplos níveis e diferentes pontos de vista classificando as prioridades relativas (militar, ontológica, da energia, da alimentação, do ambiente, do crédito e das finanças, etc.).

Pode a segurança nacional, reflectindo a lógica do sistema “vestefaliano”, responder adequadamente aos problemas globais de segurança? Os assuntos de segurança global transcendem as fronteiras territoriais e processam-se de acordo com um enquadramento mais fluido, em que os fluxos transnacionais, facilitados por políticas de desregulamentação e liberalização que reduzem as barreiras e, aceleradas pelas novas tecnologias, penetram cada vez mais a jurisdição dos Estados “soberanos”.

A globalização é a força motriz dos conflitos que põe a ordem mundial em convulsão. A globalização alterou as condições para os conflitos, levando a novas formas de violência organizada, já não predominantemente entre Estados. Esta transformação está ligada à redução da autonomia do Estado e ao seu monopólio da coacção. Os conflitos são também criados pela tensão entre as lógicas que se centram no Estado e as que são policêntricas, nascem de um declínio da legitimidade e da reestruturação da hegemonia[16].

Outro factor que contribui para as “novas” guerras é a inovação tecnológica, nomeadamente nas comunicações e no transporte, que facilita a transferência rápida de dinheiro e as remessas de armas ligeiras. Com a desregulamentação e a liberalização do comércio, as fronteiras são cada vez mais “porosas” e os actores não-estatais têm assim maior capacidade de utilizar a violência e de transformar a assimetria em vantagem.

Uma das principais características das “novas” guerras é, assim, ser um conflito localizado que envolve ligações extensas a NGO e a organizações internacionais (ONU, OTAN, OUA, etc.).

Outro aspecto da dialéctica de integração e fragmentação na globalização é o aparecimento de políticas de identidade. Um aumento dos conflitos sobre identidade, representados frequentemente por aspectos religiosos e etno-nacionalistas, suplementam os objectivos tradicionais das rivalidades geopolíticas e geoestratégicas.

Ainda outro aspecto das “novas” guerras é que os combatentes não são prioritariamente Estados, mas também redes (senhores da guerra, terroristas, mercenários, unidades paramilitares, grupos de diásporas, etc.).

Um quarto aspecto é que os conflitos não estão contidos nas fronteiras jurídicas de Estados soberanos, mas sim entrelaçados nelas. Apesar do contrato social prever que sejam ao Estados soberanos a fornecer segurança, eles apenas dão protecção limitada contra os efeitos indesejáveis das mudanças globais e tornam-se mais e mais vulneráveis a forças que não podem controlar.

Quinta característica, a globalização complica a distinção entre actividades legais e ilegais.

Finalmente, as “novas” guerras envolvem violência em larga escala contra civis[17].

 

 

A dimensão cultural

A globalização cultural diz respeito à intensificação e expansão dos fluxos culturais à volta do mundo. Obviamente, “cultura” é um conceito muito abrangente. Engloba a construção, a representação, a disseminação e o valor simbólico de algo. A língua, a música e as imagens são as maiores formas de expressão simbólica, e assumem significado especial na esfera cultural.

Vários analistas sugerem que as práticas culturais estão no centro da globalização contemporânea, mas a globalização cultural não começou com a disseminação mundial do “rock’n roll”, da Coca-Cola ou dos “hamburgers”. Facilitados pela Internet e pelas outras novas tecnologias, os sistemas simbólicos de expressão dominantes do nosso tempo, tais como o individualismo, o consumismo e os vários discursos religiosos, circulam de forma mais livre e alargada do que nunca. As imagens e as ideias podem ser transmitidas mais rápida e facilmente de um local para outro, e têm um impacto profundo no modo como as pessoas vivem o seu dia-a-dia. Debruçarmo-nos-emos sobre três temas importantes: a tensão entre a igualdade e as diferenças na cultura global emergente; o papel fundamental das empresas multinacionais de comunicação na disseminação da cultura popular; e a globalização das línguas.

Será que a globalização torna as pessoas em todo o mundo mais iguais ou mais diferentes? Vários analistas anti-globalização argumentam em favor da primeira. Afirmam que não estamos a caminho de um “arco-íris cultural” que reflicta a diversidade das culturas existentes no mundo. Testemunhamos antes o surgimento de uma cultura popular cada vez mais homogénea, subscrita pela “indústria cultural” ocidental, baseada em Nova Iorque, Hollywood, Londres e Milão. Como prova da sua interpretação, mostram-nos índios da Amazónia usando ténis Nike, nómadas do Sahara a comprar bonés da equipa de “basebol” dos New York Yankees, e jovens palestinianos de Ramallah vestindo orgulhosamente “T-shirts” dos Chicago Bulls[18]. Os defensores desta tese sobre a homogeneização cultural afirmam que as normas e estilo de vida ocidentais são irresistíveis e esmagadoras para as culturas mais vulneráveis.

Os analistas pro-globalização concordam que a globalização cultural cria homogeneização, mas consideram este fenómeno positivo. Alguns são adeptos fiéis que vêem a Internet como uma premonição de uma tecno-cultura homogeneizada, e outros são entusiastas do mercado livre que defendem os valores do capitalismo consumista global.

Alguns comentadores influentes dão-nos uma visão oposta da ligação entre a globalização e novas formas de expressão cultural. Afirmam que os fluxos de cultura global reforçam muitas vezes nichos culturais locais. As diferenças locais têm um papel importante na criação de uma constelação cultural sem igual.

De facto, os argumentos de cada uma das facções não são necessariamente incompatíveis. A experiência de vida contemporânea, atravessando fronteiras culturais, significa a perda de símbolos tradicionais, mas também a criação de novas expressões simbólicas. Alguns observadores argumentam mesmo que a modernidade está lentamente a ceder lugar a uma “pós-modernidade” caracterizada por um sentido de identidade e de conhecimento menos estável.

A aparição de um imaginário global está intimamente ligada à aparição de meios de comunicação globais. Durante as duas últimas décadas, um pequeno grupo de grandes TNC dominaram o mercado global do entretenimento, das notícias, da televisão e dos filmes. Em 2006, apenas oito conglomerados da comunicação arrecadavam mais de dois terços dos lucros anuais (250-275 mil milhões de dólares) gerados pela indústria da comunicação: Yahoo, Google, Time/Warner, Microsoft, Viacom, GE e Disney. Estas empresas estavam quase todas nas trezentas maiores firmas não-financeiras do mundo. Hoje, a maioria dos analistas da comunicação concorda que a aparição de um mercado global do sector equivale à criação de uma oligarquia idêntica às do petróleo e dos automóveis, na primeira metade do séc. XX.

As consequências negativas deste “casamento” entre finanças e cultura são óbvias. Um dos mais clamorosos desenvolvimentos das últimas décadas tem sido a transformação de noticiários e programas educativos em frívolos programas de entretenimento, continuamente atacando a autonomia profissional dos jornalistas. As parcerias e as alianças entre empresas de notícias e de entretenimento estão rapidamente a tornar-se a regra.

Um método directo de medir e avaliar as alterações culturais trazidas pela globalização é estudar a mudança de padrões na utilização das línguas. A globalização das línguas pode ser vista como um processo pelo qual algumas línguas são cada vez mais utilizadas nas comunicações internacionais, enquanto outras perdem a proeminência e desaparecem mesmo por falta de gente que as fale.

Foram identificadas cinco variáveis fundamentais que influenciam a globalização das línguas:

– o declínio do número de línguas faladas;

– as migrações;

– a aprendizagem de línguas estrangeiras e o turismo;

– a Internet; e

– as publicações científicas internacionais.

O crescente significado da língua inglesa tem uma história longa, desde o início do colonialismo britânico, no final do séc. XVI, quando apenas sete milhões a falavam, até à actualidade, em que é falada por mais de 350 milhões, enquanto outros 400 milhões a usam como segunda língua e mais de 80% dos conteúdos disponíveis na Internet são em Inglês.

Paralelamente, o número de línguas faladas no mundo decaiu de cerca de 14500, no ano de 1500, para cerca de 7000, na actualidade. À presente razão de declínio, alguns linguistas prevêem que 50-90% das línguas actualmente existentes terão desaparecido no final do séc. XXI.

 

 

A dimensão ecológica

Recentemente, os problemas ambientais têm recebido uma enorme atenção de institutos de pesquisa científica, dos meios de comunicação social, dos políticos e dos economistas. De facto, os impactos ambientais estão a ser progressivamente reconhecidos como as ameaças mais significativas e perigosas para a vida e para o planeta.

No início do séc. XXI, tornou-se impossível ignorar o facto de que os povos do mundo estão íntima e inexoravelmente ligados pelo ar que respiram, pelo clima de que dependem, pela água que bebem e pelos alimentos que consomem. Apesar desta lição óbvia de interdependência, os ecossistemas do nosso planeta estão sujeitos ao contínuo assalto humano para manter estilos de vida esbanjadores. Na última década, a escala, a velocidade e a profundidade do declínio ambiental não tem precedentes.

Desde que, há cerca de 480 gerações, começaram a surgir sociedades agrárias, a população mundial explodiu geometricamente para mais de sete mil milhões. Metade desse crescimento ocorreu nos últimos trinta anos. O enorme acréscimo na procura de alimentos, madeira e fibras colocaram uma pressão grave nos ecossistemas do planeta. Por exemplo, os EUA possuem apenas 6% da população mundial, mas consomem 30-40% dos seus recursos naturais.

Alguns dos efeitos do consumo excessivo e do crescimento da população são dolorosamente óbvios na actual crise alimentar que assola vastas regiões do nosso planeta. Por um lado, o agravamento da crise alimentar e o aumento do preço do petróleo acentuam as interligações entre os problemas políticos, económicos e ecológicos. De facto, os processos de globalização, tais como a expansão do comércio e do transporte, levam ao consumo excessivo e à degradação ambiental. Por outro lado, a crise alimentar também mostra como as respostas globais aos problemas ambientais podem levar a novos problemas tais como o desvio do uso de cereais para biocombustível, ou os riscos associados à alternativa nuclear às energias fósseis.

Outro problema ecológico significativo associado com o aumento populacional e a globalização da degradação ambiental é a redução da biodiversidade mundial. Alguns especialistas temem que cerca de 50% de todas as espécies de animais e plantas – a maioria no Sul global – desaparecerão até ao final deste século.

A poluição transfronteiriça representa outro grave perigo à nossa sobrevivência colectiva. O despejo de grandes quantidades de químicos sintéticos poluentes na atmosfera e na água criou condições que estão fora dos prévios limites da experiência biológica. As alterações climáticas mundiais, especialmente o aquecimento global, podem ser catastróficas. Muitos cientistas apelam à acção imediata dos governos para diminuir as emissões de “gases de estufa”. De facto, o aquecimento global representa um exemplo sinistro do agravamento decisivo dos problemas ambientais contemporâneos, em intensidade e em extensão.

A poluição e o aquecimento globais, as alterações climáticas e a extinção de espécies são desafios que não podem ser contidos no âmbito nacional ou mesmo regional. Não têm causas nem efeitos isolados. São problemas globais, causados por acções humanas colectivas e requerem, por isso, uma resposta global coordenada.

Os países pobres não têm nem a infra-estrutura nem as capacidades económicas necessárias para se adaptar às inevitáveis alterações climáticas que ocorrerão devido às emissões de carbono já existentes na atmosfera. Para tornar as coisas piores, os países menos desenvolvidos são também altamente dependentes da agricultura. Uma vez que este é o sector económico mais sensível ao clima, os países em desenvolvimento serão mais afectados pelas alterações climáticas. O custo de vida continuará a subir e o Sul global necessitará, sem dúvida, de um apoio significativo para se adaptar e sobreviver às alterações climáticas. Estes assuntos não são meramente ambientais ou científicos! São económicos, políticos, culturais mas, acima de tudo, éticos, que se intensificaram pelos processos de globalização.

Na maioria dos casos, a vontade política para alterar rapidamente as coisas tem sido fraca e limitada. Contudo, os maiores obstáculos à criação e implementação de um acordo ambiental global efectivo têm vindo da indisponibilidade dos EUA e da China – os dois maiores poluidores mundiais – em ratificar acordos essenciais. Ambos os países vêem as medidas para reduzir as emissões de carbono como ameaças ao crescimento das suas economias. Porém, a inacção actual neste domínio trará consequências ainda mais terríveis para o crescimento económico no futuro.

Outros países desenvolvidos tomaram já a liderança na implementação de estratégias para reduzir as emissões de carbono. A UE, por exemplo, implementou com sucesso um esquema utilizado já por vários países, e o Relatório Stern[19] expandirá este sistema por muitos mais.

A presente década pode ser a de todos os perigos nas áreas da alimentação e da energia, e o mesmo se poderá dizer dos anos seguintes. Os preços dos cereais já causaram tumultos na Argélia e protestos em massa na Tunísia, mas o facto de os preços continuarem a aumentar e a existência de outras pressões económicas em crescendo fazem parecer inevitável a eclosão de mais motins. Em termos simples, os padrões do consumo mundial começam a por em causa os limites dos recursos naturais do planeta. Continua a haver populações em crescimento e continuam a surgir novas potências (China, Índia, Brasil, etc.). Ao mesmo tempo, as alterações climáticas, resultado da utilização desenfreada da energia, estão a aumentar a pressão sobre as reservas. Por outro lado, os “hedge funds” (fundos de retorno absoluto) e os investidores privados estão a comprar instrumentos financeiros associados ao preço do “crude” e, portanto, a contribuir também para o aumento do preço do petróleo.

Alguns produtos alimentares básicos (açúcar, óleo alimentar e gorduras) estão a ser comercializados bastante acima dos máximos de 2008; outros, como a carne, os cereais e os produtos lácteos, avançam perigosamente para níveis recorde.

A maior preocupação é o aumento dos preços do milho, do arroz e do trigo, produtos básicos de muitos milhões de habitantes dos países mais pobres. Os analistas atribuem o aumento dos preços à procura crescente, mas também a alguns fenómenos climáticos catastróficos e à especulação dos investidores. O que torna o quadro tão preocupante são os indícios de que a severidade e a frequência destes fenómenos extremos estarão a aumentar.

Aumentos de preços dos alimentos que geram levantamentos, protestos e revoltas, preço do petróleo em ascensão, desemprego desmesurado por todo o mundo e uma recuperação periclitante, parecem um conjunto perfeito de condições para um cenário perfeito de instabilidade e caos mundial[20]. A clara amplitude da desigualdade à escala mundial é uma fonte suplementar de desigualdade.

 

 

Globalização e ideologias

Ideologias são poderosos sistemas de ideias amplamente divulgadas que são aceites como verdadeiras e tidas como modelo por grupos significativos da sociedade. Fornecem às pessoas um quadro mais ou menos coerente do mundo, não só como é, mas como deveria ser. As ideologias ajudam, assim, a organizar a tremenda complexidade da experiência humana em pretensões bastante simples, que servem como guia e orientação para a vida social e para a acção política. Estas alegações e pretensões são utilizadas para legitimar certos interesses políticos e para defender ou atacar as estruturas dominantes do poder. Procurando imbuir a sociedade com as suas normas e valores, as elites sociais responsáveis pelas ideologias fornecem aos cidadãos uma agenda de coisas a discutir, de exigências a fazer, e de questões a colocar. Assim, as ideologias ligam teoria e prática, orientando e organizando a acção humana de acordo com exigências generalizadas e códigos de conduta.

Como todos os processos sociais, a globalização opera numa dimensão ideológica, plena de normas, exigências, crenças e narrativas sobre o fenómeno em si mesmo. De facto, o aceso debate público sobre se a globalização é algo de bom ou de mau ocorre na esfera da ideologia.

Actualmente, três tipos de globalismo[21] competem em todo o mundo por adeptos. O globalismo de mercado procura dar à globalização normas de mercado livre e significado neoliberal. Contestando o globalismo de mercado, o globalismo justicialista surge da esquerda política, construindo uma visão alternativa da globalização, baseada em ideais igualitários de solidariedade global e de distribuição da justiça. Da extrema-direita política, o globalismo de luta (jihadista) combate contra os outros dois e procura mobilizar a “umma” (comunidade muçulmana de crentes) global em defesa de valores e crenças islâmicas que pensam alegadamente estar a ser atacados pelas forças do secularismo e do consumismo. Seria errado acusar os dois opositores do globalismo de mercado de serem anti-globalização. Pelo contrário, a sua posição é de alternativa à globalização, visões que resistem à ideia de um mundo predominantemente neoliberal.

Seguramente que existem também vozes poderosas anti-globalização, nacionalistas inveterados e proteccionistas económicos, tais como Pat Buchanan nos EUA, Jean-Marie Le Pen, em França, e Pauline Hanson, na Austrália, entre outros.

O globalismo de mercado é, sem dúvida, a ideologia dominante do nosso tempo. Nas últimas três décadas foi disseminado mundialmente por elites de poder que englobam gestores de empresas, executivos de TNC, jornalistas influentes, grupos de pressão especializados em relações públicas, intelectuais, celebridades do entretenimento, burocratas e políticos.

Analisando centenas de artigos de jornais e revistas, escritos e on-line, podem identificar-se cinco argumentos fundamentais do discurso e dos pronunciamentos dos globalistas de mercado:

1 – a globalização diz respeito à liberalização e integração globais dos mercados;

2 – a globalização é inevitável e irreversível;

3 – ninguém lidera a globalização;

4 – a globalização beneficia todos;

5 – a globalização encoraja a disseminação da democracia no mundo.

Para os neoliberais, a globalização assenta na ideia do mercado auto-regulado que serve como enquadramento de uma futura ordem global. Em particular, apresentam a liberalização e a integração dos mercados globais como fenómenos “naturais” que encorajam a liberdade individual e o progresso material no mundo.

 

A globalização é o triunfo dos mercados sobre os governos

Business Week”, Dezembro de 1999

 

O problema com o primeiro argumento é que a sua mensagem fundamental só é realizável através do projecto político de construir mercados livres. Deste modo, os “globalistas de mercado” têm de estar preparados para utilizar os poderes governativos para enfraquecer e eliminar as políticas e instituições sociais que restringem os mercados.

O segundo argumento estabelece a inevitabilidade e irreversibilidade históricas da globalização, entendida como a liberalização e integração globais dos mercados.

A descrição da globalização como uma espécie de força natural, como o tempo ou como o vento, é determinista e torna mais fácil aos “globalistas de mercado” convencer as pessoas que se devem adaptar à disciplina do mercado, se quiserem sobreviver e prosperar. As políticas neoliberais são descritas como estando acima da política; preenchem apenas o que está predestinado pela natureza.

O terceiro argumento afirma que os globalistas de mercado executam apenas os imperativos de uma força inalienável. Ninguém é responsável pela globalização; os mercados e a tecnologia é que o são!

O quarto argumento mente! Quando um mercado vai demasiado longe no domínio das consequências sociais e políticas, as oportunidades e recompensas da globalização são geralmente distribuídas de forma desigual, concentrando poder e riqueza num grupo seleccionado de pessoas, regiões ou empresas, em prejuízo da generalidade da população. Dados publicados em 2000, pela ONU, mostram que, em 1973, a razão entre os salários dos países mais ricos e mais pobres era cerca de 44:1. Vinte e cinco anos mais tarde, subiu para 74:1. Desde o final da “guerra fria”, o número de pessoas subsistindo abaixo da linha internacional de pobreza subiu de 1,2 mil milhões, em 1987, para 1,5 mil milhões, actualmente. Se a tendência se mantiver, atingiremos 1,9 mil milhões, em 2015.

A mesma tendência para a desigualdade pode ser observada nos países mais ricos. Mais de um terço da força de trabalho dos EUA, 47 milhões de trabalhadores, ganham menos 10 dólares por hora e trabalham mais 160 horas por ano do que era normal em 1973. Existem muitos outros indicativos de que a procura global do lucro torna mais difícil às pessoas pobres ter os benefícios da tecnologia e da inovação científica.

O quinto argumento baseia-se na afirmação neoliberal que mercados livres e democracia são sinónimos, isto é, que a globalização facilita a expansão da democracia no mundo. Este argumento articula-se com um conceito e procedimentos formais de democracia, tal como votar, à custa da participação directa de largas maiorias nas tomadas de decisão políticas e económicas. Esta definição “restritiva” de democracia reflecte um modelo elitista de democracia de mercado “formal” ou de “baixa intensidade”. Por conseguinte, a afirmação de que a globalização favorece a disseminação da democracia no mundo é baseada numa definição superficial da mesma.

A análise aos cinco argumentos centrais do discurso do neoliberalismo sobre a globalização é ideológica, porque é motivada politicamente e contribui para a construção de determinados significados de globalização que preservam e estabilizam as relações de poder existentes.

Quando o séc. XX chegava ao fim, as críticas ao “globalismo de mercado” começavam a ter mais atenção nas discussões públicas sobre a globalização. Entre 1999 e 2001, a disputa entre o “globalismo de mercado” e os seus adversários ideológicos da esquerda política explodiu em manifestações de rua em muitas cidades do mundo.

O globalismo justicialista é o conjunto de ideias e valores políticos, associados às alianças sociais e actores políticos crescentemente conhecidos como o “movimento de justiça social global”. Surgiu nos anos de 1990 como uma rede de ONG que se viam como uma “sociedade civil global” dedicada à construção de uma relação Norte-Sul mais justa, à protecção do ambiente global, ao comércio justo, aos assuntos laborais internacionais, aos direitos humanos, etc..

Sonhando com a construção de uma nova ordem mundial baseada na redistribuição mundial da riqueza e do poder, o “globalismo justicialista” coloca ênfase na relação crucial entre a globalização e o bem-estar local. Acusa as elites do “globalismo de mercado” de forçar políticas neoliberais que estão a levar a uma desigualdade global cada vez maior, a altos níveis de desemprego, à degradação ambiental e ao fim do bem-estar social. Apelando a um “Novo Pacto Global” favorecendo os pobres e os marginalizados, procuram proteger as pessoas normais de uma globalização neoliberal vinda das classes superiores.

Os partidos “verdes” vêm sugerindo, há muito, que a globalização neoliberal sem limitações resultou numa degradação séria do ambiente. Grupos neo-anarquistas da Europa e dos EUA concordam com esta perspectiva e querem utilizar selectivamente a força para alcançar os seus objectivos, ao contrário de os “verdes”. No Sul global, o “globalismo justicialista” está representado por movimentos populares de resistência contra as políticas neoliberais, tais como os Zapatistas, no México, o movimento Chipko, na Índia, ou os comunitaristas do intelectual Walden Bello, nas Filipinas.

No início do séc. XXI, as forças do “globalismo justicialista” ganharam força política. Como local ideológico chave surgiu o “Fórum Social Mundial” (World Social Fórum – WSF), onde se reúnem anualmente dezenas de milhar de representantes de todo o mundo, no Brasil ou na Índia. Os apoiantes do “globalismo justicialista” elegeram o WSF como “organização sombra” do Fórum Económico Mundial (World Economic Fórum – WEF), globalista de mercado, em Davos, na Suíça, interligando movimentos da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e qualquer forma de imperialismo.

Uma indicação clara de uma confrontação em larga escala entre as forças do “globalismo de mercado” e do “globalismo justicialista” deu-se em Novembro de 1999, quando cerca de 50000 pessoas tomaram parte num protesto anti-OMC, em Seattle, nos EUA, quando da “ronda do milénio” de negociações sobre comércio internacional, naquela cidade. Esta reunião ministerial da OMC provocou a resistência dos movimentos sociais e provou ser um “ponto de passagem” para as actividades transnacionais à volta da globalização. A polícia prendeu cerca de 600 mas, significativamente, as acusações foram sendo retiradas; apenas catorze foram a julgamento, tendo apenas duas sido consideradas culpadas. Ironicamente, a “batalha de Seattle” provou que muitas das novas tecnologias utilizadas pelos neoliberais como “marca registada” da globalização, também podem ser utilizadas em apoio do “globalismo justicialista” e da sua agenda.

A “batalha de Seattle” constituiu a metáfora utilizada também no mês seguinte, em Davos, Suíça. Nos sete anos seguintes, recorrentemente, aquela metáfora acompanhou protestos em Washington DC (Abril de 2000), Melbourne, Praga, FMI e BM (Setembro de 2000), Davos, WEF (Janeiro de 2001), área comercial de Londres e Gotemburgo, na Suécia, Cimeira da UE (Junho de 2001); Génova, na cimeira do G8 (Julho de 2001), etc..

Em resumo, o “globalismo justicialista” estabeleceu argumentos ideológicos críticos e construtivos. Construtivamente, traduz o imaginário global num programa político concreto, exemplificado nas exigências seguintes, entre outras:

– um novo “plano Marshall” global, incluindo o perdão total da dívida do “terceiro mundo”;

– cobrança da “taxa Tobin”[22] sobre as transacções financeiras internacionais, que beneficiariam o Sul global;

– abolição dos centros financeiros “off shore”;

– estabelecimento de padrões de protecção laboral internacionais;

– criação de uma nova instituição de desenvolvimento, financiada maioritariamente pelo Norte e gerida maioritariamente pelo Sul;

– implementação de acordos ambientais globais restritivos e rígidos.

Os globalistas justicialistas estavam a preparar um novo conjunto de manifestações contra o FMI e o BM quando aconteceram os atentados de 11 de Setembro de 2001.

Organizações baseadas na religião, tais como a rede terrorista “al-Qaeda”, alimentam a percepção comum que o modo ocidental de modernização não só falhou em acabar com a pobreza generalizada no Médio Oriente, mas também aumentou a instabilidade política e fortaleceu as tendências seculares nas suas próprias sociedades. Assim, o “globalismo de luta (jihadista)” é uma resposta àquilo que muitas vezes é visto como um ataque materialista do mundo liberal ou secular. Revendo-se nos temas revivalistas popularizados no séc. XVIII pelo teólogo saudita Abd al-Wahab, Bin Laden e os seus seguidores procuram globalizar uma forma “pura e autêntica” de Islão, necessária por todos os motivos. Os seus inimigos não são só as forças do “globalismo de mercado”, lideradas pelos EUA, mas também os grupos locais que aceitaram estas influências externas e as impuseram aos povos islâmicos.

Osama Bin Laden não deixou dúvidas que os homens ligados à sua organização cometeram as atrocidades de 11 de Setembro em resposta à americanização do mundo: expansão das forças militares americanas à volta do mundo, especialmente na Arábia Saudita; internacionalização da “guerra do Golfo” de 1991; escalada do conflito israelo-palestiniano; “paganismo”, “secularismo” e “materialismo” do “globalismo de mercado”, liderado pelos EUA; e 80 anos de “humilhação e desgraça” perpetrados contra a “umma” por uma sinistra “aliança judaico-cristã”.

Mas importa ser claro: o termo “globalismo de luta (jihadista)” aplica-se não só ao Islão radical, mas também a todas as franjas extremamente violentas de ideologias influenciadas pela religião. Aplica-se também à ideologia dos fundamentalistas violentos que, no Ocidente, sonham transformar o mundo num “império cristão” (i.e., o protestantismo evangélico).

Com um terço dos muçulmanos vivendo hoje em países não-islâmicos, a al-Qaeda olha para a restauração da “umma” não como um acontecimento local ou regional, mas como um esforço global concertado, construído na transição ideológica do imaginário nacional para o global, que retém fortes metáforas que têm impacto nas solidariedades nacionais, ou mesmo tribais, das populações. As exigências ideológicas fundamentais da al-Qaeda – reconstruir uma “umma” global unificada através da luta contra a não-crença global – encaixam bem na dinâmica de um mundo globalizante. Apesar do seu teor violento e aterrorizador, a visão da al-Qaeda contém uma alternativa ideológica aos outros dois globalismos e que, apesar de tudo, imagina claramente a comunidade em termos globais.

 

 

Avaliação do futuro da globalização

Sem dúvida que o 11 de Setembro e a “guerra global ao terror” que se seguiu foi um choque inesperado na discussão sobre o significado e a direcção da globalização.

A pergunta final que se coloca nesta análise da globalização é se a luta global contra o terrorismo levará a formas mais alargadas de cooperação e interdependência internacionais, ou poderá parar o poderoso impacto da globalização?

A compressão tecnológica do espaço e do tempo, fruto da globalização, fez com que o mundo parecesse mais pequeno e mais interligado. Paralelamente, porém, muitas pessoas reagiram à mudança com discursos nacionalistas desagregadores. A globalização pode gerar integração económica e fragmentação política ao mesmo tempo. A implementação de controlos fronteiriços mais apertados e um conjunto de medidas de segurança mais rígidos nos portos e aeroportos mais importantes tornou as viagens e o comércio internacionais mais incómodos. Apelos para apertar as fronteiras nacionais e manter divisões culturais distintas podem ouvir-se mais frequentemente nos discursos públicos.

As regras competitivas do mercado livre destruíram relações sociais complexas de obrigação mútua e minaram regras e valores tais como o comprometimento cívico, reciprocidade e redistribuição. À medida que segmentos mais largos da população se encontram sem um sistema de segurança social e um apoio comunitário adequados, recorrem a medidas radicais para se proteger contra a globalização dos mercados.

Como a anterior versão do séc. XIX, a versão actual do “globalismo de mercado” representa também uma tentativa gigantesca de permitir a desregulamentação económica e uma cultura de consumismo no mundo inteiro. Como a Grã-Bretanha do séc. XIX, os EUA atraem ao mesmo tempo a admiração e o desprezo de regiões do mundo, que se sentem oprimidas e exploradas por uma lógica global liderada por um “império americano” desdenhoso.

No sentido restrito, os EUA não são um império. Pode, no entanto, argumentar-se com a persistência do imperialismo americano como um processo contínuo e informal que começou com a colonização do continente norte-americano, no séc. XVIII, e que, periodicamente, assumiu expressões mais coercivas, tais como a anexação do Hawaii, de partes de Samoa, das Filipinas, e de Porto Rico, nos anos de 1890. Após o 11 de Setembro, os EUA encontraram-se na posição histórica sem precedentes de impor a sua própria ideia de ordem global, unilateralmente, se necessário. Para os “falcões” neoliberais, o novo ambiente geral de insegurança apresentava uma oportunidade única para o “império americano” estabilizar um mundo desestabilizado por acções terroristas.

“Globalismo imperial” pode ser um epíteto apropriado para caracterizar esta tendência neoliberal para moldar o mundo à imagem americana por meios militares. Mantém as alegações principais do “globalismo de mercado” com duas modificações importantes: o terceiro argumento (ninguém lidera a globalização) foi alterado pelas declarações públicas da administração Bush II (filho), afirmando que os EUA estavam prontos para impor o, alegadamente, mercado auto-regulado. Como resultado disto, adicionou-se um novo argumento: a globalização, entendida como a liberalização e a integração globais dos mercados, exige uma “guerra global ao terror”.

Para erradicar as causas sociais do terrorismo, o Norte global necessitará de substituir a versão neoliberal dominante da globalização por uma agenda de reformas substantivas, desenhada para reduzir as disparidades existentes na riqueza e bem-estar globais. Infelizmente, apesar das encorajantes promessas de dar “uma face humana” na sua versão predadora da globalização, muitos globalistas de mercado mantiveram os parâmetros da sua agenda corporativa. Se implementadas alguma vez, as suas “reformas” propostas permanecem simbólicas. Por exemplo, como resultado das manifestações do “globalismo justicialista”, representantes dos países ricos juntaram-se ao secretário-geral da OMC na promessa de estarem dispostos a alterar as regras daquela organização, para a tornar mais transparente e responsável. Contudo, muitos anos depois, não existem passos concretos para honrar aquelas promessas.

Economistas reputados e prémios Nobel, como Joseph Stiglitz e Paul Krugman, têm alertado sem êxito para essa incapacidade. O FMI tem vindo também a insistir – agora – “em repensar tudo de novo”. É um progresso para uma instituição que, durante décadas teve fracassos enormes, como o da Argentina, foi a expressão do chamado “consenso de Washington” e, consequentemente, do neoliberalismo e da globalização desregulada que nos conduziram à crise global, nesta encruzilhada em que nos encontramos.

O internacionalismo, antigamente uma arma de propaganda do movimento do proletariado contra os governos e contra os capitalistas, mudou de campo! O rumo económico da globalização fez com que “o que os marxistas afirmavam há 100 anos (…) tornou-se agora realidade. Os capitalistas enriquecem cada vez mais, enquanto a classe operária empobrece. A competição globalizada ‘esmaga as pessoas como um passador’ e destrói a coesão social[23].

De facto, o mercado mais a democracia foi a fórmula vencedora que tinha derrotado as ditaduras de partido único da Europa de Leste. Hoje, a economia de mercado e a democracia já não alimentam em conjunto a prosperidade de todos. Pelo contrário, as duas figuras ideológicas centrais da civilização ocidental vivem hoje numa contradição permanente. Sem segurança social não há liberdade política, isto é, não há democracia.

A longo prazo, o crescimento das desigualdades e a persistência da instabilidade social contêm o potencial para despoletar forças sociais que tornarão insignificantes os distúrbios ocorridos nos anos de 1930 e de 1940. A sobrevivência da globalização, como alguns factos recentes demonstram, dependerá da capacidade da humanidade em enfrentar três desafios globais prioritários que nos confrontarão no séc. XXI: as alterações climáticas, o aumento da desigualdade económica e a escalada da violência social e política.

A globalização é uma mega-tendência que moldará todas as outras tendências, que coloca uma enorme pressão nos governos, e que gera um sentimento penetrante de insegurança resultante de ameaças como o terrorismo, crime organizado transnacional, ataques cibernéticos e pandemias[24].

Não existe nada de errado nas manifestações de maior interdependência social que surgem como um resultado da globalização. Porém, estes processos sociais de transformação têm de ter uma orientação moral e um princípio ético orientador, que sirva de guia aos nossos esforços colectivos: a construção de uma ordem global realmente democrática que proteja os direitos humanos universais sem destruir a diversidade cultural que é vital à evolução humana.

 

 

Bibliografia

FERGUSON, Niall – A ascensão do dinheiro – Uma história financeira do mundo, 2009, Civilização Editora, Porto.

HELD, David – Global transformations, 1999, Stanford University Press.

KLARE, Michael T. – “O ano de todos os perigos”, em Courier International, Março de 2011.

MARTIN, Hans-Peter & SCHUMANN, Harold – A armadilha da globalização – O assalto à democracia e ao bem-estar social, 1996, Terramar, Lisboa.

MITTELMAN, James A. – Hyperconflict – Globalization and insecurity, 2010, Stanford University Press, Stanford.

STEGER, Manfred B. – Globalization – A very short introduction, 2009, Oxford University Press, Oxford.

 

 * Mestre em Estratégia pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.

 

[1]  FERGUSON, Niall – “A ascensão do dinheiro”, 2009, Civilização Editora, Porto, pp. 262-266.

[2]  FERGUSON, Niall – obra citada, p. 268.

[3]  OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo.

[4]  MITTELMAN, James A. – “Hyperconflict – Globalization and insecurity”, 2010, Stanford University Press, Stanford, pp. 67-69.

[5]  Face às campanhas do Afeganistão e do Iraque, os valores da percentagem do PNB dedicada aos gastos militares, em 2008 e 2009, foram os mais elevados desde a II Guerra Mundial.

[6]  Processo de transformar um bem ilíquido e, através de engenharia financeira, transformá-lo num bem seguro, ao qual se pode dar um valor e ser comercializado.

[7]  pt.wikipedia.org/wiki/Crise_econômica_de_2008, 2011-05-02; diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/edicion_impresa/economia/pt/desarrollo/1026508.html (2011-05-02).

[8]  Empréstimo de curta duração até que uma pessoa ou empresa assegure o financiamento permanente ou remova uma obrigação existente. Este tipo de financiamento permite ao utilizador cumprir obrigações correntes, fornecendo dinheiro imediatamente.

[9]  MITTELMAN, James A. – obra citada, pp. 188-189.

[10]  FERGUSON, Niall – obra citada, pp. 15-16, 249.

[11]  HELD, David – “Global transformations”, Stanford University Press, 1999, pp. 37-38.

[12]  MITTELMAN, James A. – obra citada, p.193.

[13]  MITTELMAN, James A. – obra citada, pp. 55-57.

[14]  FALK, Richard – introdução a MITTELMAN, James A.- obra citada.

[15]  MITTELMAN, James A. – obra citada, pp. 1-5.

[16]  MITTELMAN, James A. – ibidem, pp. 21-27.

[17]  MITTELMAN, James A. – ibidem, pp. 44-45.

[18]  Famosa equipa de basquetebol.

[19]  Nicholas Stern, economista britânico que, em 2006, elaborou um relatório de 700 páginas para o governo, descrevendo os efeitos do aquecimento global na economia mundial.

[20]  “Courier International”, Março de 2011

[21]  Globalismo – ideologia da globalização.

[22]  Nos anos de 1970, o economista americano e Prémio Nobel James Tobin elaborou um plano para conseguir refrear a força destrutiva dos negociadores. O argumento de Tobin era que o fluxo de capitais desregulamentado, com as suas brutais mudanças de direcção e caóticas variações das cotações, prejudica a economia material. Recomendou uma taxa de 1% sobre todas as transacções em divisas.

[23]  MARTIN, Hans-Peter & SCHUMANN, Harold – “A armadilha da globalização – O assalto à democracia e ao bem-estar social”, Terramar, Lisboa, 1996, pp. 12-17.

[24]  MITTELMAN, James A. – obra citada, p. 58.

 

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2015-11-04
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REVISTA MILITAR @ 2024
by COM Armando Dias Correia