A ‘nova’ China de Xi Jinping apresenta-se como um parceiro mais maduro e responsável que, afirmando recusar oficialmente a hegemonia mundial, apresenta à humanidade um projeto de ascensão e desenvolvimento coletivos, através do comércio, entre outras vias, pelo facto de Pequim ser apologista da máxima de que o comércio é fonte de paz.
Por outro lado, a China de hoje é uma China mais pragmática, que ousa questionar certos princípios antigos, como o da não-interferência nos assuntos internos de outros Estados. De facto, a China mostra-se favorável, embora em circunstâncias limitadas, em considerar os atos de repressão interna e as atrocidades como causas legitimadoras de uma intervenção internacional. Por um lado, Pequim sente que a sua célere ascensão económica confere uma visibilidade e consequente responsabilidade maiores a nível internacional, pois a China sabe que o mundo acompanha agora com mais proximidade a sua postura e decisões de política externa, mas também interna (e aqui a própria sobrevivência do Partido Comunista dependerá da forma como os governantes chineses souberem lidar com os desafios e contingências que o novo século lhes impõe).
Por outro lado, a própria China começa a perceber que chegou a hora de agir, não podendo mais ficar indiferente aos constantes sequestros e assassinatos de que são alvo os seus concidadãos chineses que trabalham no estrangeiro, como é o caso de vários países africanos, onde reina a instabilidade, e onde a presença chinesa é, por vezes, geradora de suspeição ou insatisfação. Na verdade, os chineses são muitas vezes vistos como os estrangeiros que tomam os empregos locais, ou que inundam os mercados de produtos baratos, mas de qualidade frequentemente duvidosa, retirando qualquer possibilidade de competitividade aos produtos locais.
Esta ‘nova’ China procura, todavia, inverter, na medida do possível, e paulatinamente, esta visão menos positiva que o mundo tem acerca de si, através de gestos concretos, como por exemplo um (maior) envolvimento nas zonas onde os seus concidadãos ou marinha mercante estão em risco – é o caso da pirataria marítima, no âmbito da qual a China tem enviado um ou outro navio para patrulhar as águas agitadas do Índico –, mas também através de uma (maior) aposta no soft power, conceito que apenas desde há uns anos tem vindo a conquistar a atenção dos decision makers e intelectuais chineses. Ao mesmo tempo que a China moderniza as suas forças armadas – como é o caso da sua marinha de guerra – ela procura, também, converter-se num modelo apelativo, espécie de alternativa ao sonho norte-americano, através da promoção do chamado Consenso de Pequim.
E nesse sentido, a China procura conceder empréstimos – bastante mais atrativos que os empréstimos ocidentais – a economias de países pobres, oferece bolsas de estudo, formação militar, constrói hospitais, escolas, infraestruturas várias, em troca, por exemplo, de acesso aos recursos energéticos de países, como Angola, Sudão, Nigéria, entre tantos outros. Mas ainda assim, quer no que diz respeito ao soft power quer no que concerne ao hard power, procuro explicar no meu livro, que, em ambos os domínios, a China ainda está longe de poder rivalizar com os norte-americanos ou, se quisermos, de ameaçar a hegemonia dos Estados Unidos. Se a isto juntarmos o facto de, como menciono igualmente no livro, a China enfrentar numerosos desafios e obstáculos internos, então facilmente se depreende que a China é demasiado frágil para ameaçar seja quem for, exceto a si própria.
Evidentemente, o crescimento económico é fundamental para a afirmação do Império do Meio, mas não decisivo por si só. Até porque, quer queiramos quer não, ele não gera necessariamente empatia, ou seja, soft power, por muito que a China se esforce em dar-se ao mundo, ou inclusive em ‘copiar’, como dizia um Professor meu (embora eu não vá tão longe), o modelo norte-americano ou britânico, por exemplo.
No livro que escrevi recentemente, Metamorfoses no Poder: rumo à hegemonia do dragão?, procuro, no fundo, explicar que a China tem ainda um longo caminho a percorrer até destronar o hégemon norte-americano, que passa, por exemplo, por ‘arrumar primeiro a casa’, isto é, resolver certos problemas internos – como a estabilidade social, as falências do sistema de saúde, o desequilíbrio dos sexos, o envelhecimento progressivo da população e a criação de uma ‘sociedade de filhos únicos’, a diferença de rendimentos sempre crescente entre cidade e campo, as desigualdades educativas gritantes, as manifestações ligadas à corrupção, aos acidentes nas minas e nas indústrias, entre outros – que fazem com que a China seja demasiado frágil para ameaçar seja quem for. Exceto a si própria. Contudo, a verdadeira questão não deve ser a de saber se a China será a próxima superpotência, pois a hegemonia é cíclica, sendo que todos os grandes impérios ou poderes mais cedo ou mais tarde declinam, como já defendia Paul Kennedy. A questão que deve, ao invés, canalizar a nossa atenção deve ser a de saber que tipo de Hégemon será a China, benigno, ou outro? Por outro lado, refira-se que o comportamento da China parece inspirar-se largamente nos preceitos de Lao Tseu: Não nos coloquemos adiante, mas não fiquemos para trás, ou o maior conquistador é o que sabe vencer sem batalha.
É tudo uma questão de tempo, sendo que não é por acaso que escolhi para o título da minha obra a expressão ‘metamorfoses no poder’. Fi-lo porque o poder está em mutação, rumo a um equilíbrio incerto, composto por vários polos, sendo que a era da unipolaridade norte-americana cede gradualmente lugar a um quadro complexo, onde o poder se encontra disseminado através de uma variedade de estados emergentes (dos quais a China é o mais notável), ou, inclusive, blocos/agrupamentos de estados com poder financeiro, como a União Europeia, mas também atores não-estatais. Todos eles disputam direta ou indiretamente a hegemonia.
Os chineses não têm pressa (a conceção do tempo no Oriente é diferente daquela que o Ocidente tem) e, por outro lado, pelo menos ao nível do discurso oficial, a China recusa o poder ou a hegemonia. Creio que será interessante observar a atitude de Xi Jinping no seio do projeto da Nova Rota da Seda chinesa, o qual tenho investigado no âmbito da minha tese de Doutoramento. É um projeto promissor, quer ao nível da sua componente marítima – como é o caso da chamada estratégia do ‘Colar de Pérolas’– quer terrestre, através da revitalização dos laços e corredores históricos da antiga Rota da Seda, e que visam ligar com mais eficácia e celeridade a China à Europa. Este tema daria certamente para escrever vários artigos, ou mesmo monografias.
Será interessante acompanhar a dinâmica e iniciativa de modernização da infraestrutura portuária marítima e aeroportuária, bem como rodo e ferroviária, que visam ligar de forma mais célere a China ao continente europeu. Os caminhos de ferro ao longo da rota China-Ásia Central-Europa são uma aposta particularmente promissora pela capacidade de escoar de forma mais célere (em cerca de 15 a 20 dias, metade do tempo que levaria por via marítima) os produtos chineses até ao grande mercado europeu, embora os custos sejam maiores do que por mar. Não obstante, há setores-chave da economia, como o segmento dos produtos eletrónicos, que está disposto a pagar mais para que este tipo de bens chegue com maior rapidez ao seu destino. Esta temática daria para uma análise mais vasta, sendo fundamental acompanhar de perto a evolução da Nova Rota da Seda – marítima e terrestre – chinesa neste novo século. Até porque a capacidade de a China superar os obstáculos técnicos, humanos e diplomáticos inerentes a este grandioso projeto, que é, para todos os efeitos, competidor de uma iniciativa norte-americana, russa e, inclusive, europeia, também ao nível da ligação Ocidente-Oriente, dirá muito sobre a própria capacidade, no fundo, de a China conquistar a atenção dos vários povos e governos em torno da promoção de um crescimento e prosperidade, não só da própria China como do resto do mundo, como Pequim assim preconiza.
A forma como a Nova Rota da Seda chinesa evoluir, o seu fracasso ou sucesso, bem como toda a dinâmica e vigor que Pequim a ela consagra, são simultaneamente reveladores das intenções e papel da China face à economia global e, mais do que isso, dar-nos-ão a conhecer se a economia global segue rumo à hegemonia do dragão, ou não. A meu ver, existe grande probabilidade para que a China venha a ser bem-sucedida.
Creio ser ainda prematuro especular se, em termos económicos, a relação Portugal-China produz resultados. Em verdade, a China é um grande mercado para Portugal, mas, por sua vez, Portugal é demasiado pequeno para a China. O nosso país tem cerca de 10 milhões de habitantes. O que é isso para uma China com cerca de mil e trezentos (ou quatrocentos) milhões de habitantes (fora os outros que não se conhecem, já que escapam às estatísticas por causa da transgressão à política do filho único)? A China tem naturalmente interesse no nosso país, mas, para todos os efeitos, não somos uma Angola, rica em petróleo e minérios, ou um Turquemenistão, com abundantes reservas em gás natural. Somos mais modestos desse ponto de vista. Temos outras qualidades e trunfos que, se soubermos aproveitar e explorar bem, poderão vir a ser eventualmente bem-sucedidos. Mas sem pressas. Há que catequisar primeiro, ou seja, despertar o gosto dos chineses, que são um mercado que exige uma paciência e persistência que nem sempre os investidores mais preocupados com a imediatez do lucro estão dispostos a investir. Perseverar pode ser a chave para o sucesso, nomeadamente, em domínios como o vinho. O vinho português tem qualidades únicas que, se forem bem divulgadas, e, diria, ‘saboreadas’, terão, com o devido tempo, todo o potencial para florescer num mercado composto por milhões de pessoas. Quem diz o vinho, diz o azeite, diz a própria comida portuguesa. Existem inúmeros restaurantes chineses em Portugal, mas, por que não, por sua vez, inúmeros restaurantes portugueses na China?
Creio que a indústria alimentar (junte-se igualmente aqui o caso dos pastéis de nata, por exemplo) e o setor cultural, o aprender a gostar de Fado e da própria cultura portuguesa, em sentido lato, poderão colher bons frutos, se semeados com dedicação e empenho. Mas, note-se que Portugal é um mercado relativamente recente para a China, e vice-versa, de modo que as recentes iniciativas de fundar um jornal luso-chinês, e outras que se seguirão, têm primeiro de contribuir para dar visibilidade ao nosso país, para que os chineses menos instruídos, por exemplo, não cometam o grave erro (como há alguns anos ouvi da parte de um turista que conheci num cruzeiro que fiz no Mediterrâneo) de pensar que Portugal será, eventualmente, uma província de Espanha. Parece um episódio anedótico, mas que revela a ignorância que ainda existe no estrangeiro face ao nosso país. Eu, que realizei pesquisa doutoral no Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão, tive, entre outros aspetos, a oportunidade de constatar que Portugal é praticamente um desconhecido (ao contrário dos alemães, ingleses, franceses, ou mesmo dos nossos vizinhos espanhóis) naquele recôndito ‘espaço do espaço pós-soviético’. Não podemos permitir que o mesmo suceda na China. Seria um grave erro.
Como tive oportunidade de alertar ao Professor Marcelo Rebelo de Sousa (que apresentou a minha obra e escreveu o prefácio desta), e a outros notáveis presentes na cerimónia de lançamento do meu livro, Portugal não pode cair num excesso, a meu ver, redundante, de promoção da lusofonia em países que já falam o Português, como os PALOP. Ao invés, os nossos Institutos Camões devem estar presentes, acima de tudo, em países onde a identidade, cultura e língua portuguesas são ainda relativamente desconhecidas, como percebi na Ásia Central. Faz sentido encorajar e seduzir mais chineses a quererem aprender a falar Português, mas, para isso, temos de ser capazes de diversificar a nossa oferta, expandindo os nossos Institutos Camões, um pouco à semelhança da própria China, ou da Alemanha, França, EUA e Inglaterra, que têm intensamente procurado privilegiar os países recônditos, mas de enorme potencial, ao nível de recursos humanos ou de mercado de consumo, inaugurando aí Institutos Confúcio e ou outros. Não chega estarmos presentes em Macau, que já fora nosso.
Há que ousar ir mais longe, investindo em outros locais de uma China que não é heterogénea, nem una. Um outro reparo: as próprias bolsas de investigação frequentemente atribuídas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia pecam, a meu ver, por seguirem a mesma linha redundante, diria, que os Institutos Camões. Mais e mais bolsas para se estudar Angola, Moçambique, Brasil?!... Ao invés, é preciso ousar estudar e investigar o que menos se conhece e, neste sentido, a China é um gigante fascinante e extraordinário que merece, a meu ver, mais respeito e atenção por parte dos nossos investigadores, que não são assim tantos como se possa pensar a analisar as questões chinesas/asiáticas. É preciso apostar em mais parcerias académicas e intercâmbios, em suma, é preciso fazer tanto ainda… Uma nota para louvar a iniciativa de criar pontes entre os portugueses e os chineses que, quer a Embaixada da China (como pude atestar pela recetividade e abertura manifestadas pela diplomacia chinesa em Portugal, em relação à minha investigação) quer o Diário de Todos, primeiro jornal luso-chinês, têm vindo, e bem, a apostar. Este é um caminho que não está feito, antes pelo contrário, mas que pode ser promissor se se inspirar, também ele, nos preceitos e filosofia da Nova Rota da Seda chinesa, que visa ser um projeto coletivo e win-win para todos.