O ano de 1961 foi trágico para Angola. Em Janeiro, ocorreram graves incidentes de cariz laboral na Baixa do Cassange, extensa área algodoeira, a leste de Malange; no final do mês, Luanda viveu sobressaltada a ameaça, pouco provável e não concretizada mas inquietante, de um desembarque do paquete “Santa Maria”, que havia sido desviado por oposicionistas chefiados pelo capitão Henrique Galvão; em 4 de Fevereiro, ocorreram os sangrentos assaltos às prisões, Casa de Reclusão e Esquadra da PSP de Luanda e, logo de seguida, viveu-se em toda a Província, o bárbaro e gigantesco massacre perpetrado pela UPA, em todo o Norte de Angola, a partir de 15 de Março.
É nosso propósito determo-nos, para já e tão só, sobre a primeira das ocorrências iniciada em 11 de Janeiro de 1961.
Em “Angola 1961 – Da Baixa do Cassange a Nambuangongo”, ed. Prefácio, Lisboa, 2005, abordámos com algum pormenor o capítulo relativo à Sublevação da Baixa do Cassange (Antecedentes – pág. 59 a 64 e a Sublevação – pág. 68 a 79), baseado em documentos manuscritos, muitos dos quais se transcreveram. Quando o livro foi publicado, pensámos, o que ainda nos parece pertinente, que pouco mais seria possível acrescentar ao assunto a não ser com base em especulações ou obscuras intenções.
Escrito fora das emoções da “evocação dos 50 anos do evento” e com preocupações de rigor, fomos tomando conhecimento de textos muito acusatórios para a actuação das Forças Armadas, embora sem grande sustentação histórica, alguns deles com uma intenção claramente pré-concebida “As Forças Armadas cometeram na Baixa do Cassange um massacre de milhares de cultivadores de algodão“. O ponto de partida para estas acusações tem residido quase sempre nos fantasiosos 5.000 mortos citados pelo piloto-aviador, José Ervedosa, a uma revista francesa. As suas declarações influenciaram muitos incautos e até renomados e sérios historiadores que ao assunto têm dedicado a sua atenção, gerando-se, sem fundamento, a tendência de considerar aquele número como um ponto de partida razoável, que o não é de todo.
Revive-se agora o cinquentenário desse acontecimento e ressurge a atoarda do massacre, se bem que seja cada vez maior o número dos estudiosos que já duvidam da sua existência.
Em trabalhos jornalísticos recentes aparecem “intervenientes directos” a fazerem declarações, aparentemente a querer credibilizar o número citado por Ervedosa. Um deles chega mesmo ao rigor de dizer que na Baixa do Cassange foram mortos 5.524 angolanos, entre os quais velhos, mulheres e crianças, não com o napalm referido por Ervedosa, saliente-se, mas por fuzilamento. Outros referem que a 3.ª Companhia de Caçadores Especiais (3ª CCE) (capitão Teles Grilo) construiu uma cadeira eléctrica para fazer interrogatórios aos revoltosos, prolongando-os até à morte dos interrogados, num delírio que não tem limites.
A tudo isto temos assistido com perplexidade e sem qualquer reacção, que ela seria inócua, perante as ideias que se pretendem incutir na opinião pública, mas com a certeza de que a verdade se irá impor por si, ainda que por algum tempo impere o discurso fantasioso, como tem sucedido com outros aspectos desta guerra.
O que justifica a minha saída deste longo silêncio é o excelente artigo do Professor John P. Cann (in Revista Militar, Janeiro de 2011), de um equilíbrio notável, com recurso a fontes de investigação que julgamos ainda pouco ou nada exploradas, como é o caso da correspondência do brigadeiro Resende, à época, Comandante da Força Aérea de Angola, para o Chefe de Estado-Maior da Força Aérea. Acresce a troca epistolar com o capitão Morais, comandante da 4ª CCE, interveniente na operação “Cassange” e trabalhos meus, a que dá credibilidade, o que agradeço, citando o meu nome ou os dois livros que tenho inseridos na Resenha da Comissão de Estudos das Campanhas de África (CECA) (ver bibliografia).
O trabalho do Professor Cann parece-nos tão arguto que nos despertou a vontade de o complementar com passagens do “Angola 1961” e juntar outros argumentos sem negar nem o seu escrito nem o meu livro. Neste, escrevi sobre a influência do PSA congolês (Partido Solidário Africano) nos revoltosos maholos da Baixa do Cassange, acrescentando que essa influência era facilitada por ser uma etnia transfronteiriça. Sucedia ali, como noutras áreas da fronteira que, por vezes, os sobas portugueses chegavam a residir no Congo Belga mas nunca nos ocorrera um importante pormenor que o Professor Cann traz a primeiro plano. Após a independência do Congo Belga o assunto agravou-se pela razão de que parte dos maholos e até de famílias eram agora independentes enquanto outros dependiam de Portugal e das suas leis. Os maholos do Congo viviam com exuberância toda a desordem reinante no Congo e as “delícias” da independência mas os de Angola eram obrigados a cumprir a ordem portuguesa que, lamentavelmente, era ali profundamente atropelada pela Companhia Geral dos Algodões de Angola (COTONANG) com o aparente consentimento da Administração Portuguesa, pelo menos local.
Este problema colocou-se também na fronteira dos rios Zaire e do Cuango e a ele voltaremos quando tratarmos dos acontecimentos de 15 de Março.
Não admira, pois, que se gerasse um sentimento de independência da Baixa do Cassange, sob a égide do Congo, onde tudo eram promessas risonhas, mas, na nossa opinião, não passava por ali a restauração do antigo Reino do Congo que estava já a gerar-se, em 1959, na região de S. Salvador, pelo menos, desde a crise da eleição do novo Rei do Congo, que as autoridades portuguesas permitiam.
Nos capítulos seguintes tentaremos esclarecer melhor a situação social da Baixa do Cassange, antes de Janeiro de 1961, a pretensa existência de massacres, esclarecer o papel da Força Aérea durante os distúrbios e, de um modo geral, o das Forças Armadas na pacificação e nos tempos subsequentes.
Para uma perfeita compreensão das motivações da sublevação na Baixa do Cassange julgámos importante colher informações na 3ª CCE, do Cap. Teles Grilo, que estava sedeada em Malange, desde meados de 1960. Tem sido esquecida na análise da problemática da Baixa e procurámos obter o testemunho de um ex-militar com lucidez e discernimento para o fazer e falar também com alguém que tivesse trabalhado na COTONANG e fosse conhecedor do que se passou. Afortunadamente conseguimos ambos os desideratos. O Sr. José Castelo Branco, que foi militar da 3ª CCE, pareceu-nos ter boa capacidade de análise e memória para recordar os acontecimentos, concedeu-nos um valioso depoimento e prestou-nos esclarecimentos sobre o ambiente social e militar da Baixa, antes da eclosão da sublevação, respondendo mesmo a perguntas provocatórias que lhe colocámos sobre práticas da sua unidade. Acresce que o Sr. José Castelo Branco, foi o militar da 3ª CCE que disparou o primeiro tiro real, desde a 1ª Grande Guerra, ou seja, aquele que, usando a sua expressão, “iniciou a Guerra Colonial”.
Depois de exprimir a ideia, contrária à nossa, de que o início da “Guerra Colonial” se iniciara na Baixa do Cassange e lamentar que em “Angola 1961” tivéssemos dado mais relevo à 4ª CCE, descurando o papel da sua 3ª CCE, acedeu a elucidar-nos um pouco mais sobre o que aconteceu, do lado da sua companhia.
«(…) E agora passo a responder às questões postas pelo tenente-coronel Pires Nunes:
Quando saímos de Lisboa, rumo a Angola, em 6 de Junho de 1960, fomos avisados de possíveis distúrbios motivados pela independência do Congo ex-belga e, assim, as três Companhias de Caçadores Especiais foram colocadas em locais estratégicos, junto da fronteira com aquele país: 1ª CCE, em Cabinda, a 2ª CCE, no Toto e a 3ª CCE, em Malange.
Ao chegarmos a Malange fomos recebidos principescamente pela população, sobretudo branca. Devo acrescentar que a grande maioria do pessoal da 3ª CCE (oficiais, sargentos e praças) se entrosou na sociedade civil participando em diversos eventos sociais, no desporto, fazendo parte dos clubes da cidade, em festas de variada índole, religiosas e pagãs, participação na Rádio Clube de Malange com programação própria, no apoio às populações mais carenciadas e nos itinerários rodoviários desatascando, na época das chuvas, inúmeros camiões que, antes da nossa chegada, estavam semanas atolados etc.
A área do distrito que nos foi destinada a defender tinha uma dimensão duas vezes superior à área de Portugal Continental e só a Baixa do Cassange possui oitenta mil quilómetros quadrados.
Iniciaram-se os patrulhamentos nos principais itinerários: Malange-fronteira com o distrito de Salazar; Malange-fronteira do distrito do Huambo; Malange-fronteira do distrito do Congo e Malange-fronteira do distrito da Lunda. Este último itinerário foi o que concitou a maior parte das nossas atenções não só por ser o mais extenso (cerca de 700 quilómetros) mas porque estabelecia a ligação do Congo ex-belga a Luanda, ali o tráfego rodoviário, sobretudo de mercadorias, já apresentava alguma dimensão e ainda por ser o eixo que atravessava a Baixa do Cassange, a zona mais rica do distrito de Malange. A Baixa era uma extensa área agrícola de solos riquíssimos, produzindo cereais duas vezes ao ano, com cursos de água abundantes e ali se situava uma grande empresa monopolista da cultura do algodão (a COTONANG) que proporcionou um grande desenvolvimento da região, sendo de referir ainda a ligação à zona diamantífera da Lunda. Este itinerário demorava normalmente dois a três dias a percorrer e, os restantes, dois dias.
Durante os patrulhamentos fomos contactando as populações indígenas, auscultando-as acerca de todos os seus problemas: sociais, familiares, económicos e políticos. Prestávamos assistência sanitária e, para isso, cada patrulha levava um maqueiro. Embora de início, os resultados não fossem encorajadores, com o tempo as populações foram-se abrindo e, em finais de Outubro e princípio de Novembro de 1960, fomo-nos apercebendo do descontentamento dos indígenas que trabalhavam para a COTONANG. Queixavam-se da obrigatoriedade da permanência nos campos de algodão, deslocados do ambiente familiar durante meses, dos baixos salários auferidos pelo trabalho árduo e da imposição de terem de semear duas ou mais vezes quando havia inundações dos campos, sem que fossem ressarcidos dessa contingência. As queixas sobre os capatazes da empresa, cipaios da administração, autoridades administrativas e ainda dos enganos de que eram vítimas na pesagem do algodão e os baixíssimos preços que lhes pagavam eram recorrentes.
No mês de Dezembro de 1960, começou a notar-se um relaxamento no trabalho dos indígenas, com resistência ao acatamento de ordens até que, nesse mês, a PIDE instalou-se em Malange, inicialmente só com dois agentes e começa a prender indígenas, rotulando-os de cabecilhas.
Os doutrinadores vindos do Congo (Nota do autor: agentes do PSA citado), aproveitaram o descontentamento descrito para sublevar as populações. E não demorou muito tempo. Em Janeiro de 1961, os trabalhadores autóctones começaram a recusar o trabalho, a matar galináceos e toda a espécie de animais brancos e os cantineiros começaram a ir a Malange apresentar as suas queixas temendo pela sua segurança e dos seus bens. O Governador de Distrito (cabo verdiano) “proibiu” a tropa de desencadear acções violentas até que, em 9 ou 10 de Janeiro de 1961, ocorreu a morte de um capataz mulato da COTONANG. Desde então, a 3ª CCE não mais parou e passou a percorrer toda a Baixa com patrulhas pequenas de meia dúzia de militares, tentando apaziguar as populações.
Subitamente, no dia 11 de Janeiro, o tenente Silva Santos viu-se rodeado por uma centena de nativos e, para evitar um confronto com gravíssimas consequências, entendeu baixar as armas. A partir deste episódio e durante mais duas semanas, deixou de haver noites dormidas, o “incêndio” tinha alastrado a todo o distrito, desde Forte República até às minas da Quivota, de Nova Gaia ao Camaxilo. Toda a população branca clamava por medidas, sentindo-se à mercê dos revoltosos porque o Governador de Distrito tinha proibido a aquisição de espingardas a um empresário da região.
Em 31 de Janeiro, realizou-se uma conferência de várias entidades com responsabilidade na zona algodoeira para discutir a necessidade da eliminação ou não da intervenção da autoridade na cultura do algodão; a mecanização do sistema; a constituição de cooperativas, quem deveria suportar os riscos da cultura, até então pelo indígena e o aumento do preço do algodão com caroço (Nota do autor: estas medidas e outras foram iniciativa do Governador Geral Silva Tavares). Apesar da opinião favorável da maioria, os resultados no terreno não se fizeram sentir (Nota do autor: surgindo em Luanda o “4 de Fevereiro” e, pouco depois, no Norte o “15 de Março”, a atenção do Governador Geral foi distraída para estes acontecimentos gravíssimos, o que deu ocasião aos beneficiários do sistema, tal como estava, de continuarem os abusos não dando conta que a situação se agravava dia a dia).
Finalmente, em 2 de Fevereiro de 1961, sem massacres e em legítima defesa, deram-se os primeiros tiros da Guerra Colonial que provocaram, é certo, 11 vítimas mas tiveram o condão de fazer começar aí a pacificação daqueles povos (Nota do autor: até aqui, os doutrinadores do PSA vindos do Congo convenceram os indígenas de que as balas dos brancos eram “Maza” (água), o que explica o seu atrevimento. A partir deste dia passaram a convencer-se de que as balas matavam mesmo, mas esta novidade não se espalhou com rapidez pela enorme extensão da Baixa do Cassange, pelo que a situação continuava muito grave. Cada povo só acreditava, depois de sentir as consequências dos disparos das armas dos militares. Os revoltosos aludiam frequentemente aos nomes de Kasavubu e Lumumba (chefes militares do Congo ex-belga, sendo o PSA o partido do comunista Gizenga), de forma incoerente e afirmavam que obedeciam a Maria. Alguns escritores aludem a que isso se deve a um agitador de nome Mariano, mas nunca encontrámos documentos com este nome, antes alusão a Maria e a Lúcia, de Fátima).
2. Quanto à pergunta da “cadeira eléctrica” do capitão Teles Grilo, devo informar que é uma infâmia. A ter havido uma tortura com arame electrificado, ela só poderia ter sido montada pela PIDE que tinha um número muito elevado de interrogatórios a fazer e recorria a todos os meios para obter confissões.
3. Também devo afirmar, ao contrário do que se tem escrito, até por alguns militares, que não houve bombardeamentos de napalm na Baixa do Cassange, até Janeiro de 1962. E será muito fácil de comprovar, averiguando junto dos pilotos ainda vivos que sobrevoaram aquela região. Houve sim largada de granadas de mão ofensivas e talvez, até defensivas. (Nota do autor: o piloto que mais vezes sobrevoou a área com o PV-2 foi o tenente piloto-aviador Carlos Alves, que faleceu num desastre com este avião em Junho de 1961).»
Com muito esforço e alguma sorte chegámos à fala com um elemento da COTONANG, de nome José Mendes Martins que, à época dos acontecimentos, trabalhava no campo onde ocorreram os distúrbios. Era ainda jovem, exercia funções de encarregado havia pouco tempo depois de sair de um estágio e viveu toda a sublevação. Ao chegar à área, verificou que tudo se passava de forma contrária às leis, que havia corrupção evidente de muita gente que andou anos a ganhar dinheiro ilícito e, na sua ingenuidade, ia denunciando o que via o que lhe acarretou alguns problemas. Iria certamente ter outros bem maiores se os acontecimentos não se precipitassem.
Tendo-lhe sido apresentado o nosso livro já citado, que tem transcritos vários documentos acusatórios dos comportamentos da COTONANG para com os agricultores, as arbitrariedades e injustiças a que estes eram sujeitos, e a sua rede de conivências locais, confirmou até ao ínfimo pormenor tudo o que leu, afirmando mesmo que o texto está tão realista que se sentiu transportado à época. Explicou-nos ainda que a população de Malange tinha a 3ª CCE, cujas patrulhas espalhadas por toda a Baixa lhe davam alento e alguma segurança, e o capitão Teles Grilo em tão elevada consideração que a edilidade local resolveu dar o nome de uma rua da cidade a este oficial.
Este senhor cedeu-nos algumas fotografias (1960) relativas ao cultivo do algodão, que se juntam:
Fig. 1 – Campos da Baixa do Cassange Fig. 2 – Colheita do algodão
Fig. 3 – Pulverização mecânica Fig. 4 – Pesagem de uma embalagem de
algodão
Fig. 5 – Mercado de algodão
Não obstante o extenuante e extraordinário trabalho efectuado pela 3ª CCE, que se desdobrava em esforços para acorrer a todo o lado e prevenir a expansão da amotinação, em especial para a Lunda, o seu efectivo revelava-se claramente insuficiente. Perante a exiguidade de meios militares na área, o Comando Militar de Angola chamou a si o problema e elaborou uma Instrução tendo em vista realizar na Baixa do Cassange uma operação de maior envergadura, designada por Operação “Cassange”. Seria concretizada por um Batalhão Eventual, com um Comando reduzido, organizado no RIL (Regimento de Infantaria de Luanda), entregue ao major Camilo Augusto Rebocho Vaz (ver a sua obra “Norte de Angola-1961, A Verdade e os Mitos”). Este batalhão era constituído pela 3ª CCE, já referida, que estava em Malange, a 4ª CCE, comandada pelo capitão Morais e a 5ª CCE, sob o comando do capitão Mendonça.
A participação da 4ª CCE esteve em risco de não se concretizar. Na manhã do dia 4 de Fevereiro estava já com armas e bagagens no comboio da linha de CF Luanda-Malange a fim de seguir para Malange, quando nessa madrugada ocorreram os ataques aos estabelecimentos prisionais de Luanda, a que aludimos no Prólogo. Sendo a única Unidade operacional que o Comandante Militar de Angola, o general Libório, dispunha e não sabendo exactamente a extensão dos distúrbios de Luanda e as suas consequências, colocou-se-lhe o difícil dilema: fazê-la seguir para Malange, como estava programado, ou suspender a sua marcha com as incidências que isso poderia acarretar para o que se passava na Baixa do Cassange, uma vez que a 5ª CCE ainda não chegara a Luanda. Foi uma situação que supomos nunca mais se colocou a um chefe militar durante toda a Guerra de África. O General Libório decidiu mandar avançar a 4ª CCE para Malange, quando não estava ainda a situação definida na capital. Teve que confiar para a defesa de Luanda em Unidades indígenas, o que constituía na altura um grave risco mas a sua decisão revelou-se acertada.
O Comando do Batalhão Eventual chegou a Malange no dia 3 de Fevereiro, a 4ª CCE a 5 do mesmo mês, ficando a 5ª CCE, quando desembarcou em Luanda, em reserva nesta cidade e só chegou a Malange a 16, quando as duas primeiras companhias tinham já a situação sob controlo.
Ainda assim, a sua presença foi muito útil para acalmar as populações de Malange, onde ficou em guarnição enquanto a 3ª CCE partia para a Baixa na sua acção normal de patrulhamento e vigilância da situação acabada de viver.
A operação decorreu de acordo com a figura. As companhias foram submetendo os povos revoltosos nos itinerários assinalados, às vezes à custa de baixas nos revoltosos, que num dos povos, se cifrou em mais de 70. As multidões, entoando cânticos a Maria e gritando slogans sem sentido, chegavam frequentemente a aproximar-se perigosamente das viaturas militares, com catanas e armas de fogo gentílicas, aos milhares (um relatório usa mesmo a expressão: “nuvens de amotinados”), não havendo outra forma de os convencer senão mostrar-lhes que as balas dos militares não eram água. Mesmo os aviões eram considerados como enviados de Maria e as bombas de demonstração só acicatavam os ânimos. À custa de baixas, os povos foram acalmando e recomeçaram os trabalhos, em especial os povos mais pacíficos mas os belicosos maholos, que haviam aliciado os gingas, fugiram para o Congo e não voltaram a criar problemas.
Todos os militares tinham a percepção de que havia que agir com muita prudência fazendo apenas as baixas necessárias e foi ciente disso que o Comandante do Batalhão Eventual escreveu no seu Plano de Operações: “(...) Em qualquer acção contra os indígenas devia recorrer-se sucessivamente pela ordem indicada e com os meios seguintes ao desarmamento, à entrega de armas e à dispersão dos grupos: meios sucessórios, com avisos em língua local (pelo que a 4ª CCE, a primeira a ser lançada no TO, deveria levar intérpretes); armas de fogo com disparos para o ar; granadas de mão ofensivas; armas de fogo com o propósito de causar baixas e impôr a ordem a qualquer custo sem reserva de meios(...)”. Infelizmente e apesar de toda a prudência quando a 4ª CCE atingiu Quela, em 6 de Fevereiro, tornou-se inevitável o primeiro embate sangrento.
O número de mortos feito por cada companhia está assinalado nos relatórios dos respectivos comandantes, sendo o Comandante de 4ª CCE muito concreto, podendo contabilizar-se cerca de duas centenas. Os feridos, na sua grande maioria com ferimentos nas pernas, conforme relatório do major Rebocho Vaz feito após os acontecimentos, em sinal inequívoco de que os militares faziam pontaria baixa, foram tratados no Hospital de Malange. Do relatório é ainda possível concluir que houve a preocupação de abater os indivíduos que nitidamente se destacavam como cabecilhas dos grupos amotinados.
Fig. A – Zona de Acção da Operação “Cassange”
A acção do Batalhão Eventual foi notável de prudência, sangue frio e ponderação, tendo em atenção que era a primeira vez que se fazia fogo real sobre pessoas.
O Comandante da 4ª CCE demonstrou sempre a sua opção por fogo de demonstração, o mesmo pedindo fosse feito pelos meios aéreos que actuavam em seu proveito.
As populações de Malange nunca se esqueceram do desempenho do Batalhão Eventual e do seu Comandante major Rebocho Vaz. Este veio, depois, a ser Governador do distrito do Uíge e, anos depois, Governador-Geral de Angola. Em sua homenagem, foi dado o nome a uma das praças da cidade, no centro da qual foi postado o seu busto.
Para finalizar o capítulo, retomemos o testemunho do Sr. José Castelo Branco:
«Antes da chegada do Bat. Eventual a Malange, a 3ª CCE adquiriu um precioso conhecimento de toda a Zona de Acção. A 4ª CCE fez a pacificação do seu sector beneficiando desse conhecimento e da ajuda de um pelotão da 3ª CCE, que se lhe juntou em Cunda Rio-Baza. A 5ª CCE, chegou a Malange em 18 de Fevereiro, e aqui permaneceu cerca de um mês em substituição da 3ª CCE que marchara, de novo, para a Baixa. Fez a defesa da cidade, captura e interrogatórios a indígenas em ligação com a PIDE e regressou a Luanda em 16 de Março (...)».
A COTONANG, comummente apontada como sendo a responsável pelos acontecimentos ocorridos na Baixa do Cassange, era uma companhia com capitais belgas, criada em 1926, à qual foi atribuída a concessão da cultura e exploração do algodão, em regime monopolista, numa extensa área a leste de Malange equivalente à de Portugal Continental.
Cometeu ou deixou que cometessem em seu nome todos os atropelos já citados, que estiveram na base da sublevação dos agricultores indígenas, que para ela trabalhavam num regime de trabalho condenável, contrário às leis portuguesas, que era do conhecimento geral, senão na sua real dimensão, ao menos nos aspectos mais gravosos que ali se praticavam. Os relatórios da época dão conta de um ou outro processo administrativo contra administradores da região mas seriam a excepção no conjunto de cumplicidades locais estabelecidas, aceitando-se que os factos, com a gravidade com que se passavam na realidade, não chegassem ao conhecimento da Administração da COTONANG e do Governo Geral de Angola. Os rumores de que nem tudo estava bem tiveram eco no Governo Central (Ver Rebocho Vaz, in “O Norte de Angola-A Verdade e os Mitos”), que chegou a enviar inspectores à região, mas os relatórios não tiveram qualquer consequência prática. Julgamos que a nomeação do civil, Juiz Conselheiro, Dr. Álvaro Rodrigues da Silva Tavares, para Governador-Geral de Angola, em substituição do general Horácio de Sá Viana Rebelo, numa altura em que havia já graves preocupações militares e a hesitação havida pois o general Sá Viana regressou a Lisboa em Agosto de 1960 e Silva Tavares só desembarcou em Luanda a 14 de Janeiro de 1961, no início da crise do algodão, estará relacionada com o que se passava na Baixa.
O Dr. Silva Tavares era um experiente político que fora Governador da Guiné, e Subsecretário de Estado da Administração Ultramarina e iniciou o seu mandato tomando imediatamente medidas urgentes relativamente ao algodão, algumas das quais já citadas no depoimento do Sr. Castelo Branco da 3ª CCE (Ver nota do autor inserida nesse testemunho).
Importa dizer, todavia, que a COTONANG teve um importante papel no desenvolvimento da região, conforme o mesmo senhor dá conta e dispunha de diversos meios de apoio ao indígena trabalhador, nomeadamente sanitário. Isso mesmo se infere do excerto do relatório do capitão Teles Grilo, que se reproduz, e é equilibrado na denúncia dos excessos e no apontar das virtualidades da COTONANG. (O documento original está já um pouco deteriorado mas deduz-se com facilidade o sentido do relatório).
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FIGURA
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Com base em relatórios a que tivemos acesso e declarações de pilotos experientes que actuaram na área, nomeadamente o sargento Pedro Carvalhão e o tenente Carlos Alves, em especial o primeiro com quem convivemos em Negage, em Maio de 1961, julgamos poder afirmar que as baixas causadas pelos aviões foram muito limitadas, contrariamente ao que pode supor-se. Os detractores da actuação das Forças Armadas na Baixa continuam, porém, a sustentar que houve aqui “um monstruoso massacre”, faltando juntar aos milhares de mortos (não sabemos feitos por quem, que isso nunca é explicado) os causados pela Força Aérea, insinuando sempre que é arrasador o número de vítimas que esta causou.
Embora certos de que, quem não quer ser convencido nunca o será, mas que é útil para os vindouros, que não deixarão de estudar a Guerra de África, passo a expor, uma vez mais (já o havia feito, em “Angola 1961”, sem êxito), os dados que tivemos ao nosso dispor, alguns dos quais têm sido divulgados por outros:
– Até 6 de Fevereiro, as saídas da Força Aérea foram apenas de observação, sendo verdade que, desde o levantamento inicial, em Milando, até esta data, não houve qualquer baixa entre os sublevados;
– A 7 ou 8 de Fevereiro, deve ter sido feita a primeira missão de fogo aéreo, conforme se deduz de uma mensagem da 3ª Rep/QG de Luanda para o Comando Militar de Malange que “numa acção sobre dois grupos em atitude hostil, os nativos foram metralhados pelo avião PV2, parecendo haver 20 baixas”. Deve acentuar-se que, em linguagem militar, uma baixa é um morto ou um ferido;
– A 10 de Fevereiro, a Ordem de Operações do Comando da 2ª Região Aérea para a actuação dos PV2 diz-se que”as suas missões eram de reconhecimento da Zona de Acção e lançamento de panfletos, mas que deviam ir armados”. Todavia, a 4ª CCE só pediu fogo de demonstração;
– Durante a operação “Cassange”, a Força Aérea esteve praticamente em apoio da 4ª CCE, com aviões ligeiros Auster e PV2. Os Auster descolavam de Negage e um documento oficial, datado de 11 de Fevereiro de 1961, refere que este avião executava numerosas acções de reconhecimento e largada de cargas, não falando nele em acções de fogo. Este documento refere mais que os campos de aviação de Quela e Milando não podiam ser utilizados pelos Auster pelo que “a evacuação de feridos e de transporte de reforços para a frente não podiam ser efectuados”;
– Em 12 de Fevereiro aparece pela primeira vez em documentos oficiais que “os ataques serão sempre com a intenção de provocar baixas, no itinerário de Bange para Marimba”, onde actuava a 4ª CCE.;
– Em relatório da PIDE (informação 593), de 18 de Abril, a propósito do que se passava no Norte, depois de 15 Março, diz-se: “a capacidade ofensiva da aviação na Baixa do Cassange foi muito diminuída, pela morosidade em autorizar operações de retaliação”;
– A nota de 8 de Fevereiro do general Libório para o Ministério do Exército, Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e Chefe do Estado-Maior do Exército, alude às dificuldades sentidas pela força Aérea, afirmando: “Têm sido efectuadas missões de reconhecimento e de apoio de fogos pelos PV2, de transporte de Nord Atlas e de ligação e observação pelos Auster. Têm sido assinalados pelos últimos (Auster) objectivos com interesse em atacar mas não é possível porque os Auster não têm armamento para actuarem por si próprios nem comunicações para poderem dirigir os PV2”.
Acresce que o então tenente-coronel Diogo Neto escreveu várias vezes que os PV2 eram pouco manobráveis e que a pontaria com eles era difícil de fazer. De resto, os amotinados sabiam furtar-se à acção destes aviões lentos que se ouviam ao longe, dispersando antes que estes pudessem largar bombas, deduzindo nós, talvez apressadamente, que os PV2 poucas baixas terão causado. De acordo com o Professor Cann (correspondência do brigadeiro Resende) os 4 frágeis Auster foram muito mais eficazes do que os pesados PV2, pomposamente denominados de bombardeiros.
Em 11 de Fevereiro, quando a situação estava mais esclarecida, o major Rebocho Vaz, Comandante do Batalhão Eventual, expôs à 2ª Rep/QG/3ªRM a opinião de que a operação “Cassange”, ainda em curso, seria de efeito efémero se não fosse acompanhada de uma acção eficaz de protecção aos nativos e que era de exigir à COTONANG, no mínimo, o que se encontrava legislado sobre o algodão (Rel. Sec. de 11 de Fev.). O relatório chegou às mais altas entidades governamentais e militares de Lisboa e todos concordaram com o que nele se expressava.
A todas essas entidades foi também enviado um auto de queixa, elaborado na 4ª CCE, em 25 de Fevereiro, findas já as operações e com a região pacificada, em que os principais sobas e sobetas da região lembravam que havia quatro anos estivera ali um branco a ouvi-los, presumindo-se que fosse um inspector administrativo, mas nada se alterou e as represálias não se fizeram esperar, ficando tudo na mesma. Pediam a substituição das autoridades administrativas e do agente da COTONANG e acrescentavam que os homens do Congo só haviam sido bem recebidos porque viam neles uma esperança de justiça e de pôr termo à situação que levara à sua revolta.
O Comandante-Chefe, general Libório, entendeu tomar posição perante o Governo Geral para que fossem tomadas na Baixa um conjunto de medidas humanitárias, distribuídos víveres e concedidas verbas às autoridades administrativas para que os nativos, devidamente pagos, pudessem reparar os estragos nas vias de comunicação, pontes e outras infra-estruturas danificadas por eles próprios.
Por seu lado, o Comandante da Força Aérea de Angola, brigadeiro Fernando Pinto Resende, dirigiu-se ao Comandante-Chefe das Forças Armadas de Angola em termos pouco usuais, sugerindo-lhe com veemência que fossem tomadas todas as medidas relativas à alteração da situação no que respeitava ao cultivo do algodão. Apelava ao general Libório que, usando de todas as prorrogativas da sua Carta de Comando, fossem anunciadas essas alterações de imediato, nomeadamente que o cultivo do algodão passasse a ser voluntário, as condições melhoradas e os procedimentos alterados a favor dos indígenas.
Quanto às populações, sentiram-se fortemente apoiadas pelas Forças Armadas e com a certeza de que estas estariam vigilantes e não ficariam à mercê de represálias, como sucedera anos antes.
Em 14 de Março, o Governador-Geral tomou, de facto, todas as medidas para que a situação ficasse desanuviada e enviou para a Baixa toneladas de alimentos e outros mantimentos, mas não é possível conjecturar se, sem a pressão das autoridades militares, teria força para ir tão longe, como o fez.
O Governo Central pelo Decreto-Lei nº 43639, de 2 de Maio de 1961, acabou com a cultura obrigatória do algodão.
Raras vezes as Forças Armadas tiveram perante as autoridades civis uma posição tão clara, insistente e impositiva, neste caso em proveito dos “seus inimigos” que nunca foram considerados como tal num conflito já findo, que durara cerca de quarenta dias, perfeitamente absurdos.
Tivessem todas as medidas referidas sido tomadas quando as denúncias foram feitas ou os indícios de que na Baixa não se trabalhava com normalidade e toda esta situação teria sido evitada.
Não nos parece possível descortinar como é possível haver alguém que queira ver neste conflito o início da Guerra do Ultramar e não uma sublevação clara por motivos laborais, a qual, removidas as causas, não teve continuidade.
– A Sublevação da Baixa do Cassange está ainda, passados cinquenta anos, associada a dois mitos: o do massacre cometido ali pelas Forças Armadas Portuguesas, em Janeiro e Fevereiro de 1961, que algumas mentes mais fantasiosas cifram em milhares de mortos e, por outro lado, constitui o início da Guerra do Ultramar;
– Tentámos deixar expressa a negação da ideia do massacre mas, ainda assim, teria havido entre duzentas e trezentas mortes entre os revoltosos, muitos das quais poderiam ter sido evitadas se não fosse a histeria inicial de que estavam imbuídos e cerca de uma centena de feridos, tratados no Hospital de Malange. As forças militares tiveram dois mortos e quatro feridos (4ª CCE);
– Também nos parece evidente que a guerra nacionalista e independentista, iniciada pela UPA em 15 de Março de 1961, é completamente alheia a esta revolta, que teve um cariz essencialmente laboral, motivado pelas condições muito injustas para os trabalhadores do algodão ao serviço da COTONANG. A doutrinação das populações feita pelo PSA (Partido Solidário Africano) encontrou nestas injustiças terreno fértil para incutir a eventual ideia de uma independência dos maholos. Nem a UPA ou o MPLA reivindicaram sequer a orientação da revolta;
– Conseguida a pacificação da Baixa do Cassange e alterada a legislação da cultura do algodão (Maio de 1961) não mais houve problemas na região, nem após os acontecimentos de 15 de Março de 1961. Recordando a definição de Guerra Subversiva, segundo o Regulamento do Estado-Maior do Exército, a simples existência deste hiato temporal nega a hipótese que alguns querem defender. Por outro lado, o facto de, após a pacificação, os sobas da região terem pedido, em acta exarada com a 4ª CCE, a permanência das Forças Armadas na região, mostra bem que compreenderam que estas não eram o seu inimigo;
– Como afirmação final, dizemos que a revolta foi justa mas não teria ocorrido se as causas laborais tivessem sido eliminadas atempadamente e, não o sendo, se as populações não fossem doutrinadas como o foram, com argumentos infantis, acrescente-se.
Nunes, A.L. Pires, Aspectos da Actividade Operacional em Angola (1961-64), Livro 1 – Tomo 1 (in Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, ed. EME, Lisboa, 1998). “Prémio Ministro da Defesa – 1999”, 630 p.p.
–, Aspectos da Actividade Operacional em Angola (1964-74), Livro 2 – Tomo 1 (in Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, ed. EME, Lisboa, 2006), 730 p.p.
–, Angola 1961 – da Baixa do Cassange a Nambuangongo, ed. Prefácio, Lisboa, 2005, 180 p.p.
–, Angola 1966-74 – Vitória Militar no Leste, ed. Prefácio, col “Batalhas de Portugal”, Lisboa 2002, 105 p.p.
–,“O General Silva Freire – Brilhante Estratega da Reocupação do Norte de Angola, em 1961, ed. Caleidoscópio (no prelo), 250 p.p.
–, O Teatro de Operações em Angola (in,”A Academia Militar e a Guerra de África), ed. Prefácio e Academia Militar, Lisboa, 2010, 25 p.p.
–, A Guerra no Leste de Angola (1966/74). Vitória Militar das FAP sobre a guerrilha em Angola”, Revista da História das Ideias, vol.30, Faculdade de Letras, U. Coimbra, 2009, 20pp.
–, “Correspondência entre as autoridades portuguesas e o Presidente da UNITA, Jonas Savimbi, na década de 70, séc.xx” (col. de textos do autor).
Vaz, Camilo Rebocho, Norte de Angola, 1961 – A Verdade e os Mitos, ed. Autor, 1993.
* Conferência proferida na USALBI-Universidade Sénior de Castelo Branco, em 11 de Janeiro de 2011, nos 50 anos do início da sublevação.
Tenente-coronel de Artilharia. Licenciado em História. Sócio Efetivo da Revista Militar.