Numa manhã ensolarada, na Messe de Oficiais do Comando OTAN, em Oeiras, tive uma conversa muito interessante com um oficial fuzileiro de origem britânica. Ele não se cansou de elogiar certas passagens da nossa História, dando ênfase aos esforços que Portugal teve, durante tantos anos, na Guerra Colonial, em África. Não demorei para começar a defender a ideia de que essa capacidade, sustentada por tanto tempo, hoje podia ser entendida como tendo sido a abordagem holística portuguesa na gestão de conflitos ou crises. A expressão “abordagem holística às operações”, que considero ser uma tradução aceitável, é a melhor aproximação que encontro e que também tenho registado em diversos ambientes militares nacionais para o que a OTAN, vulgarmente, designa de Comprehensive Approach (CA) to Operations.
Antes de aflorar o tema principal deste artigo, recomendo, desde já, a leitura de um extraordinário livro escrito por um autor americano, John P. Cann, intitulado Counterinsurgency in Africa: The Portuguese Way of War, 1961-1974 que, de forma ímpar, descreve a inimaginável façanha que Portugal levou a cabo, travando uma guerra em três frentes diferentes, durante treze anos, com apenas 100.000 homens e ao longo de extensíssimas linhas de comunicações. John Cann acrescenta que todo este esforço só foi possível devido a uma maneira de ser e estar portuguesas, muito peculiar, e que permitiu estabelecer níveis de compreensão e lealdade duradouros com os povos africanos, como nenhum outro país colonizador foi capaz de alcançar com tanto sucesso.
Existindo muitas definições do que é o CA, dispersas em muita bibliografia e para o qual nem a OTAN chegou ainda a um consenso final, na sua expressão mais simples, é por mim entendida como sendo a sincronização, integração e emprego operacional dos instrumentos de poder disponíveis ao estado, em articulação com as estruturas militares e não-militares presentes, no sentido de se alcançar, de forma holística e eficiente, o desejado Estado Final estabelecido pelo poder politico no decurso da resolução de uma situação de crise ou de conflito. A definição aqui exposta, sujeita a outras visões, serve apenas para os efeitos pretendidos neste artigo.
Os paradigmas PMESII[1] e DIME[2] preveem os domínios Político, Militar, Económico, Social, Informações, Infrastruturas e Diplomático que, em conjunto, garantem a complementaridade entre os pilares do CA, no sentido de estabelecer as formas e meios para atingir um determinado fim. De outro modo, mais simples, pode ser entendido como se de uma caixa de ferramentas se tratasse, com muitos utensílios diferentes, empregues de formas diferentes, por agentes diferentes, contra ou a favor de públicos-alvo diferentes que foram previamente selecionados.
Este artigo pretende, assim, tentar demonstrar os diversos instrumentos militares e não-militares que Portugal utilizou, ao longo dos séculos, e como foram empregues em diferentes ambientes, tendo em conta tradições, culturas, religiões, grupos étnicos e níveis de civilização das audiências a quem foram dirigidos.
O “Comprehensive Approach Português dos Descobrimentos às Colónias” é uma viagem de 600 anos e muitos ficarão surpreendidos com a razão pela qual se recua para tão longe na história para predominantemente explicar algo que ocorreu na segunda metade do século passado. Ao longo desta caminhada, espera-se que isso fique mais claro mas, para já, deve dizer-se que só se pode entender por que razão se chega a um determinado ponto na história, se entendermos o nosso passado, de onde viemos e quais foram os principais acontecimentos que tiveram lugar nesse percurso, moldando a nossa mentalidade, fazendo-nos agir da forma como agimos. Nesta viagem, recordaremos algumas passagens do nosso passado, conectando a história a eventos, eventos a comportamentos e estes a ações que, coletivamente, representaram um significado relevante no âmbito mais amplo do CA.
Será o CA um novo conceito? Na verdade, penso que definitivamente não o é, pelo exemplo que aqui me proponho descrever. Sabe-se que tem sido usado de diversas formas, muitas vezes sem os próprios comandantes efetivamente saberem exatamente o que esperar ou sequer conseguirem antecipar com rigor os resultados finais. Em muitas ocasiões, os acontecimentos desenrolaram-se favoravelmente sem uma clara ou inequívoca explicação, ou tiveram resultados desastrosos, por razões ainda mal compreendidas.
Mas não é uma novidade. Será que Alexandre, o Grande, 330 anos a.C., considerou os elementos do CA quando pensou que fosse útil promover casamentos dos seus súbditos leais com mulheres dos diversos territórios que ia conquistando, para assim ir deixando uma “pegada genética” como resultado das crianças nascidas no seio desses laços familiares?
Iniciemos, então, a jornada.
A extensão da costa de Portugal, com os seus muitos portos e rios que correm para oeste em direção ao Oceano Atlântico foi sempre um ambiente ideal para criar gerações de marinheiros aventureiros. Como uma nação marítima, na região sudoeste da Europa, os portugueses tornaram-se líderes naturais de exploração durante a Idade Média. Como sabemos, no início do século XV, Portugal era um país muito pobre, “entalado” entre o Atlântico e os reinos de Castela e Aragão. Ficou claro que seria mais fácil atravessar o mar do que a terra para chegar a outros mercados de prosperidade.
Nesta encruzilhada, tornou-se óbvio que o mar era o destino português. Serviu como caminho para chegar a outras pessoas, culturas, religiões e crenças. Aprendemos, desde cedo, a saber estar em casa de outrém, tendo cuidado em não impor a nossa vontade sobre a dos outros e, desde cedo, a aceitar as diferenças que existem e facilmente ultrapassá-las. Esta atitude e comportamento foram sendo inegavelmente decalcados no código genético português ao longo dos séculos e hoje é bem reconhecido que todo o português se relaciona bem com qualquer um que não represente uma ameaça. As Forças Nacionais Destacadas (FND) no Afeganistão, Kosovo ou Timor são disso exemplos, reiteradamente comprovados. Considero, pois, que esta maneira de ser, este comportamento humano natural foi extremamente importante para a aplicação dos princípios do CA.
O mapa do mundo (figura 1) apenas serve para fazer um enquadramento, descrevendo as áreas de domínio ou presença portuguesa, desde 1415, quando Portugal adquiriu a primeira das suas possessões ultramarinas com a conquista de Ceuta, Marrocos. As marcas a negro representam as posses territoriais e a área cinzenta escura representa o que ficou conhecido como sendo “O Mar Português”, e que foi mantido por 400 anos até à independência do Brasil, em 1822.
As primeiras descobertas no Atlântico, da Madeira e dos Açores, lideraram os primeiros movimentos de colonização. De Ceuta, até ao reconhecimento formal de Timor-Leste como um Estado soberano, em 2002, o império português foi o mais longo dos modernos impérios coloniais europeus, estendendo-se por quase 600 anos. De facto, pesquisas recentes têm levado a sugerir que a Austrália também está na lista dos descobrimentos portugueses, 250 anos antes de James Cook ter anunciado a sua chegada aos antípodas.
Figura 1 – As posses territoriais portuguesas e o “Mar Português”, desde 1415
Esta enorme “área portuguesa” serviu como um íman que uniu povos, culturas e nações. A plena compreensão do fator humano presente num determinado ambiente é basilar para o sucesso da aplicação do CA. O que pode ser óbvio para nós hoje, certamente não foi o caso há séculos atrás. O curioso é que alguns autores defendem que os portugueses, de alguma forma, detinham uma extraordinária capacidade não só para se adaptarem aos outros, mas, mais interessantemente, fazer com que os outros se adaptassem aos portugueses, oferecendo-lhes total lealdade de forma absoluta e estranhamente voluntária.
D. Manuel I foi reconhecido como um dos mais proeminentes reis da nossa história. Tendo recebido um enorme legado do Princípe Perfeito, o seu empenho e liderança contribuíram para a constituição do império português, fazendo de Portugal um dos países mais ricos e poderosos da Europa, na época. Como então referido, ele foi, Pela Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar em África, Senhor da Guiné e Conquistador da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia.
Com um título desta envergadura, o que os portugueses mantinham sempre presentes é que o seu Rei, na verdade, era o líder de todo o, então, mundo conhecido. Esta consciencialização fortaleceu sobremaneira a vontade nacional de todos os portugueses, quer vivessem na metrópole quer estivessem a fazer as suas vidas nalguma colónia.
Esta visão, quase paternal, que se tinha do Rei era a mesma que ele tinha sobre o império português, o que acabou por se destilar no ser e agir dos colonizadores sobre os colonizados. Embora os portugueses estivessem a colonizar aquelas terras longínquas para cuidar dos seus interesses, e não sejamos ingénuos pensando o contrário, tínhamos uma responsabilidade nacional para cuidar dos colonizados e de tratá-los como se dos nossos filhos se tratasse. Toda a ideia não era dominar vastas áreas do interior, mas manter pontos de comércio fortes com os locais, já que o comércio era obrigatório – representava a principal fonte de receita do país.
Os portugueses, de facto, tinham um carinho especial e que hoje ainda existe, mesmo que haja muitas histórias e, obviamente, muitas situações que demonstraram o contrário. Esta ligação especial foi fundamental para tornar viável a condução da guerra contra os insurgentes com tanto sucesso, por tanto tempo.
Recuemos agora um pouco ao início do século XIX. Com o exílio da corte portuguesa, por força das invasões francesas, no final de 1807 e início de 1808, Portugal ficou com uma parte substancial da governação do seu império instalada no Brasil. Surge a pergunta – o que terá o exílio da corte portuguesa que ver com a forma como se conduziu a guerra em África, 140 anos depois?
Pois bem, entendo que o CA não é algo que se possa ‘ligar e tocar’, plug and play como diriam os saxónicos. É antes uma semente que se planta e, na maioria dos casos, leva muitos anos para produzirem os desejados efeitos. Não podemos falar do CA se não o enquadrarmos no ambiente em questão e sem conectá-lo à história que o moldou num determinado momento. A passagem pelo Brasil esculpiu ainda mais a mentalidade portuguesa que permitiu criar um ambiente favorável para a condução das ações militares em África.
A terra que hoje conhecemos do carnaval, futebol e samba foi, como é sabido, reivindicada por Portugal, em abril de 1500, com a chegada da frota portuguesa comandada por Pedro Álvares Cabral. Portugal ali encontrou nações indígenas, divididas em várias tribos, a maioria das quais compartilhavam a mesma família linguística tupi-guarani, e que disputavam o território. Não demorou muito para que os diferentes grupos étnicos se viessem a misturar. O ditado popular que diz: “Deus inventou os brancos e os negros, mas foi o português que inventou a mulata” encarna bem este processo de miscigenação. Até nos faz lembrar os casamentos que Alexandre havia promovido. Sem surpresa, a história repetiu-se muitos séculos mais tarde.
Não obstante a família real se ter exilado e ter permanecido no Brasil por treze anos, as cortes na metrópole exigiam o regresso de D. João VI, que já tinha colocado o seu filho e herdeiro, o príncipe D. Pedro IV (de Portugal), como regente do Reino do Brasil. D. João VI partiu para a Europa e o príncipe herdeiro continuou no Brasil governando-o como D. Pedro I (do Brasil) com os Ministros do Interior, das Relações Exteriores, da Guerra, da Marinha, da Fazenda e um vasto séquito de conselheiros.
Casado com Maria Leopoldina da Áustria, D. Pedro I foi, por ela, rapidamente convencido de que permanecer no Reino, como Imperador do Brasil, em vez de voltar para Portugal como um mero príncipe na corte, era claramente vantajoso. Imperador em vez de Príncipe? Imperador de um território 92 vezes maior do que a metrópole do seu pai? A escolha não ofereceu grandes dúvidas. Com extenso apoio no Brasil, a 7 de setembro de 1822, D. Pedro I terá bradado junto ao rio Ipiranga, a sul de São Paulo, “Independência ou Morte”, dando assim início ao processo de independência do Brasil.
A mesma pergunta surge novamente. O que teve isso que ver com o CA em África? Apesar de este momento da história de Portugal ter sido o início da queda do império português, curiosamente, apenas no final dos anos 50 do século XX é que esta circunstância foi conscientemente assumida por Salazar, fazendo de África a sua maior prioridade nacional. Para o Presidente do Conselho, a África portuguesa era a última réstia do império que devia ser preservada a todo o custo e, para tal, todos os instrumentos de poder do estado deviam convergir para que isso fosse assegurado.
Voltando por breves momentos à América do Sul, há que observar a circunstância de o Brasil ser o único país de língua oficial portuguesa naquele sub-continente, com metade do total da população sul-americana e não se ter desmembrado como os restantes nove países de língua oficial espanhola. Isto deveu-se ao facto de o exílio da corte ter levado para o Brasil cerca de 15.000 elementos. Desses, destaca-se o mais importante, quiçá a primeira força expedicionária do mundo, constituída pela Brigada Real da Marinha. A sua função maior era proteger a família real, mas também permitiu que a ordem se mantivesse, por ser dotada de suficiente poder e capacidades para combater e contrariar os muitos movimentos populares com aspirações independentistas que foram surgindo.
A corte portuguesa no exílio era composta por políticos, economistas, professores, financiadores, médicos, legisladores, etc.. Isto permitiu que a lei, a ordem, os princípios económicos, as finanças, a justiça, a educação, etc., fossem estabelecidos bem cedo no território. Em muitos aspectos, a edificação do Estado, com leis e regulamentos que ainda hoje vigoram, ocorreu por força da casual circunstância do exílio. Na restante América do Sul, movimentos populares semelhantes tiveram lugar levando ao estabelecimento de poderes locais que mais tarde permitiram as independências da coroa espanhola.
A profunda compreensão do ‘Estado Final Desejado’ da coroa foi também alicerçada por uma governação e liderança coesas. Não só este facto determinou o ser português em África, como está plenamente alinhado com os princípios do CA.
Figura 2 – Mapa exibido nas escolas portuguesas, até aos anos de 1960. Pretendia comparar o tamanho das províncias (Angola e Moçambique) com o restante território europeu
O mapa da figura 2 permite ter uma ideia do tamanho da Angola e Moçambique em comparação com uma parte do continente europeu.
O modo de pensar que D. Manuel I estimulara no século XVI continuou até ao século XX e o referido mapa, exibido nas paredes em muitas escolas primárias, em Portugal e nas colónias, até ao início dos anos de 1960, demonstra bem como isso serviu para, desde tenra idade, tentar fortalecer a vontade nacional.
Em concreto, no âmbito do CA em África e utilizando alguns elementos dos paradigmas PMESII e DIME que foram aludidos a princípio:
O mais relevante foi a integração de locais nas respetivas administrações públicas e, também, de forma mais significativa, a redesignação das colónias como províncias ultramarinas portuguesas. Portugal entra para a Organização das Nações Unidas, em 1952, com os votos relutantes dos Estados Unidos da América e da Inglaterra, bem como de outros países ocidentais. No entanto, a sua entrada na Organização das Nações Unidas estava sujeita a uma condição. Para ser um membro de pleno direito, Portugal tinha de abandonar todas as suas possessões, conforme definido pelo artigo 73º e que estabelece uma colónia como sendo “um território ocupado geográfica, étnica e culturalmente por um país administrador”.
Face a esta imposição, Portugal caiu na categoria de poder colonial. Como resultado, a redefinição das suas colónias evocando a doutrina do “pluricontinentalismo”, na altura, expressa por, “do Minho a Timor”, Portugal, passou a ser considerado, aos olhos da comunidade internacional, menos intrusivo.
Muito pode ser dito neste domínio, sobre efeitos cinéticos e não-cinéticos, da vigilância marítima e controlo do mar, de segurar objetivos terrestres, de bombardeamentos aéreos, etc., mas todos nós sabemos mais do que o suficiente sobre estas matérias.
No entanto, um dos principais esforços operacionais que gostaria de salientar foi efetuado por meio da integração de locais nas nossas estruturas militares. Eles eram extremamente importantes como guias, intérpretes da população que só falavam dialetos locais, direcionando o esforço de guerra para as áreas que conheciam melhor do que nós. Os ‘Flechas‘ eram unidades criadas e empregues em Angola sob o comando da PIDE[3]. Compostas por homens recrutados localmente, muitas vezes ex-guerrilheiros, principalmente de étnia khoisan, estas unidades eram especializadas em fazer rastreios, reconhecimentos e operações anti-terroristas.
Os ‘Flechas’ foram empregues com grande sucesso, particularmente na campanha da frente oriental em Angola, no início de 1970. Era comum argumentar que os soldados africanos eram mais baratos, conheciam melhor o terreno, e eram mais capazes a criar um relacionamento único com a população local, uma estratégia de “vencer os corações sobre as mentes” que os Estados Unidos, mais tarde, tentaram no Vietname, ainda que não suficientemente bem-sucedidos. As unidades dos ‘Flechas’ também operaram em Moçambique, na fase final do conflito, nas antevésperas da “Revolução de Abril”. As unidades continuaram a causar dificuldades aos movimentos de libertação, mesmo depois da independência e da retirada portuguesa, quando os países caíram em guerras civis.
Sistemas agrícolas foram estabelecidos, em grande medida para fixar e manter as populações locais nas áreas sob controlo português, ganhar a sua lealdade e evitar que fossem seduzidos para outras áreas sob o domínio dos insurgentes. Em Portugal, a construção naval florescia e durante o período 1961-74, Portugal construiu cerca de oitenta navios de diferentes dimensões, além de ter vinte e seis navios de passageiros em pleno funcionamento, com as principais rotas para Angola e Moçambique.
Nenhum apoio internacional foi recebido e tudo o que o país precisava para o seu esforço de Guerra tinha de ser produzido em Portugal, o que, naturalmente, manteve a economia nacional saudável. O único país que apoiou Portugal foi a Alemanha, em diferentes domínios, como a produção da espingarda G3 e no projeto das lanchas de fiscalização, presumivelmente, porque Portugal foi o único membro da OTAN que apoiou abertamente a adesão da Alemanha a essa organização, em 1955.
Provavelmente, o mais interessante. “Assimilado” foi o termo dado aos africanos das colónias, desde as décadas de 1910 até 1960. Era entendido como sendo o indivíduo que tinha atingido um nível de “civilização”, de acordo com as normas legais portuguesas e que, teoricamente, os qualificava para terem plenos direitos como cidadãos portugueses. Os portugueses alegaram, como objetivo das suas práticas de assimilação, a “estreita união de raças com diferentes graus de civilização e que iriam apoiar-se mutuamente com lealdade”. Esta ação teve significativas repercussões mais tarde, durante a guerra, permitindo que milhares de homens indígenas se voluntariassem ao lado dos militares brancos para lutar contra os insurgentes. Laços e relações eram estabelecidos, famílias miscigenadas foram constituídas e a existência de mestiços era comum.
Este fenómeno, que se releva, não era nada usual entre as outras potências europeias que também haviam colonizado territórios em África. Muitos dos mestiços receberam ensino superior e, mais tarde, tornaram-se elementos cruciais como intermediários locais e administradores que lhes permitiram agir como pacificadores ou diplomatas entre o poder colonial branco e as comunidades negras. Isto foi deliberadamente efetuado pelo Estado Português, onde esta mistura genética acabou por também atuar como instrumento de poder do Estado.
As operações psicológicas – PSYOPS[4] –, do acrónimo OTAN, foram fortemente conduzidas pelo Exército sob a designação nacional de Ação Psicossocial. Este esforço foi materializado pela propaganda contra os insurgentes através da distribuição de panfletos, de comunicados rádio, em eventos sociais e em ações diplomáticas. O Primeiro-ministro Salazar, como Hitler, Mussolini e Franco, tornaram-se mestres da propaganda e as técnicas por eles usadas foram aperfeiçoadas pelos militares portugueses em África.
É importante notar que, durante a guerra 1961-74, uma significativa rede rodoviária foi construída, especialmente nas áreas rurais, tendo sido fundamental para manter a presença dos brancos em todas as zonas interiores das colónias. A figura 3 é bem demonstrativa do enorme esforço que isso exigiu, juntamente com a ajuda agrícola fornecida, na produção pecuária, na construção de sistemas de irrigação, de ferrovias, de redes elétricas, na abertura de poços de água e nas melhorias nas habitações.
CONSTRUÇÃO DA REDE RODOVIÁRIA | ||
| 1961 | 1974 |
ANGOLA | 36.211 Km | 80.050 Km |
MOÇAMBIQUE | 37.000 Km | 48.000 Km |
GUINÉ BISSAU | 3.102 Km | 3.570 Km |
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UMA MÉDIA DE 1100 Km/ANO |
Figura 3 – Evolução das infraestruturas rodoviárias, entre 1961 e 1974, nas principais províncias ultramarinas
A PIDE era muito parecida com o FBI[5], CIA[6] ou MI6[7] e assemelhava-se em muitos aspectos, ao modus operandi da Scotland Yard[8]. Tinha ligações muito fortes com os locais e as forças especiais no teatro, bem como com os guias indígenas que serviam de agentes, coletando informações de valor militar ou estratégico. Naquele período, contaram-se até 1000 guias indígenas que colaboravam com a PIDE.
A educação e a religião eram ambas partes integrantes do processo de assimilação e qualificação para o estatuto de assimilado. Na figura 4 pode verificar-se como Portugal multiplicou os esforços na área do ensino, no período em apreço. Escolas foram construídas, mas, para além de apenas ensinarem a língua portuguesa, a adoção efetiva da cultura portuguesa como a sua própria, incluindo a adoção do cristianismo e da emulação dos ideais portugueses era parte integrante do processo. A religião e a educação foram, desde cedo, poderosos instrumentos utilizados pelo Estado colonial. Não obstante estas regras, em 1961, o ministro do Ultramar concedeu a todos os africanos nas províncias ultramarinas o estatuto de cidadão português. Esta veio a ser a maior alavanca para estabelecer e fortalecer o “Portugal pluricontinental”.
ESTATÍSTICA DO ENSINO COLONIAL – 1961/70 | |||
ANOS ESCOLARES |
| 1961/62 | 1969/70 |
ANGOLA | Alunos | 103.781 | 420.410 |
Professores | 2.890 | 10.177 | |
MOÇAMBIQUE | Alunos | 338.328 | 578.410 |
Professores | 4.361 | 8.549 | |
GUINÉ BISSAU | Alunos | 13.354 | 26.401 |
Professores | 228 | 563 |
Figura 4 – Evolução do ensino, entre 1961 e 1970, nas principais províncias ultramarinas
Resumidamente, estas foram, no âmbito do CA, as ferramentas que Portugal e as Forças Armadas portuguesas utilizaram em África.
Concluo, dizendo o que é sobejamente partilhado por muitos. Portugal só deixou África porque a comunidade internacional, especialmente os EUA, a Rússia, a França e a China queriam ter acesso aos recursos naturais na região, sem interferência portuguesa. Isso foi tão notório quanto o tempo que não perderam em se estabelecer naquelas regiões, quase imediatamente após a descolonização. Talvez por isso não seja de estranhar que, hoje, até se podem ver sinais de trânsito em cantonês nas ruas de Luanda.
Sendo o “Poder“ igual à “Capacidade” multiplicada pela “Vontade”, o que parece óbvio é que Portugal não deixou as colónias por falta de capacidade. O poder foi sendo reduzido por forças internas e internacionais que, paulatinamente, extinguiram a vontade nacional.
O que me apraz aqui deixar, no âmbito desta pequena reflexão, foi uma capacidade portuguesa, especial, única e incomparável para compreender, como ninguém, as pessoas de todos os cantos do mundo com que contactámos e nos conectámos, como respeitámos as suas culturas, as suas diferenças e como ganhámos os seus corações e mentes, de forma voluntariosa, altruísta e duradoura. Como tudo isso foi resultado direto da nossa exposição ao mundo e empreendedorismo decorrente da nossa epopeia marítima. Só assim nos foi permitido coexistir pacificamente, por tantos séculos, com tantas gentes por tantos lugares.
Esta característica e capacidade dos portugueses foram, sem dúvida, de capital importância para, ao longo de séculos, sem grandes bases doutrinárias, instintivamente e de forma quase improvisada, aplicar, empregar e explorar o Comprehensive Approach to Operations, hoje em dia apresentado como sendo uma novidade.
* Actualmente, presta serviço na Inspeção-Geral da Defesa Nacional.
[1] Political, Military, Economic, Social, Intelligence and Infrastructural.
[2] Diplomatic, Informational, Military and Economic.
[3] Polícia Internacional e de Defesa do Estado.
[4] Psychological Operations.
[5] Federal Bureau of Investigation (EUA).
[6] Central Intelligence Agency (EUA).
[7] Military Intelligence, Section 6 (GBR).
[8] Sede ou Quartel General da Polícia Metropolitana de Londres.
O Capitão-de-mar-e-guerra Manuel Amaral Mota nasceu na República da África do Sul em 06 de Agosto de 1967. Ingressou na Escola Naval em 1 de Outubro de 1984. Desde 5 de janeiro de 2015 que é Capitão-de-mar-e-guerra.
Atualmente está colocado na Inspeção-Geral da Defesa Nacional onde integra equipas multidisciplinares que conduzem inspeções e auditorias aos ramos da FA´s, do EMGFA e da Secretaria Geral do MDN a fim de contribuir para a melhoria dos processos internos das entidades auditadas.
Anteriormente esteve a desempenhar funções na Naval Striking and Support Forces NATO (SFN).