Seiscentos anos depois
LUÍS MIGUEL DUARTE[1]
O autor deste Ceuta 1415, Seiscentos anos depois principia a sua obra declarando que se tem investido demasiado no esclarecimento das causas da expedição e menos no estudo das estratégias e das táticas militares usadas por ambas as partes, e que também se tem dado pouca atenção ao estudo da situação política que se vivia nos reinos de Marrocos e à compreensão da história da cidade desde a sua fundação.
Acima de tudo, afirma, continua por fazer um bom estudo sobre a vida em Ceuta, durante os dois séculos e meio de domínio português. Sobretudo, urge conceber um exame rigoroso dos custos brutais, que foram suportados pelo erário público e pelo povo do continente, e ainda analisar os negócios e enriquecimento que a manutenção de Ceuta proporcionou a algumas entidades e grupos sociais.
As inquietações apontadas são suficientes para aguçar o apetite e para levar à leitura desta obra, na qual o professor Luís Miguel Duarte se comprometeu a[2]:
Tentar o mais que me for possível descentrar o olhar de Lisboa e de Portugal e a procurar ver este episódio, em primeiro lugar, a partir da cidade muçulmana, mas também das aldeias e montanhas que a cercam, da cidade de Fez, a capital do reino, ou do reino vizinho da Yfriqyia; teremos de o observar pelos olhos dos muçulmanos de Gibraltar e dos castelhanos de Tarifa, pelos olhos dos aragoneses e dos genoveses, dos franceses, dos ingleses e do papado, ao tempo dilacerado por 40 anos de convulsões.
A análise do mundo daquele tempo, porque ele não acabava na Europa ocidental nem no mar mediterrânico, começa por ser a grande preocupação do autor, ultrapassando assim a tradicional, tranquila e redutora descrição da corte portuguesa pelos anos de 1411 e seguintes, da tomada de decisão, acompanhada dos esforços para levantar uma grande armada, da escolha do alvo, do assalto a Ceuta e do regresso.
Em seguida, então sim, analisa os preparativos para a expedição e as contrariedades da viagem, entre nevoeiros intensos e correntes fortíssimas, que arrastaram os navios da armada para Málaga. Descrita a chegada ao destino, comenta a situação de Marrocos e de Ceuta ao tempo da conquista portuguesa e tenta responder a importantes e ainda pouco esclarecidas questões[3]:
Porque é que a cidade não recebeu socorros mais eficazes e numerosos?
Porque é que os muçulmanos não deram mais luta, numa cidade com uma fortíssima tradição naval, com excelentes arqueiros e besteiros e um sólido sistema defensivo?
Porque é que assim que a armada portuguesa deixou Ceuta a caminho de Portugal, nos primeiros dias de setembro de 1415, não foi imediatamente lançado um ataque poderoso que submergisse a frágil guarnição lusa? Esse ataque teve lugar apenas em 1418, não conseguiu reocupar a cidade e depois dele não houve mais nenhum.
As respostas podem não ser completas e definitivas, mas o professor Luís Miguel Duarte relata a complexa cronografia e conjuntura do norte de África, a história de Ceuta, a sua relação com os poderes locais e regionais e com o lago mediterrânico, o que nos permite dissipar grande parte da neblina que ainda cobre a Ceuta dos princípios de século XV.
Descreve ainda a cidade que os muçulmanos perderam, os seus cemitérios, as mesquitas, as bibliotecas, as arrábidas, as ruas, os lugares de comércio, os armazéns de trigo, a indústria, as oficinas da lã e da seda, a perícia no fabrico de arcos e de bestas, as armações para a pesca do atum e as fontes, riachos, banhos públicos e casas de recreio da agradável aldeia vizinha de Balyunes.
Que foram os portugueses fazer a Marrocos, e porquê Ceuta? Responde o professor[4]:
As teorias cresceram e multiplicaram-se; uma inventariação proposta há alguns anos atrás listava nada menos de 23 e depois disso ainda apareceram mais algumas, embora o tempo do grande debate tenha já passado. A bem dizer, cada historiador tinha a sua explicação.
A hora da verdade em Ceuta chegou com o início das hostilidades, com o combate, o desembarque e o envolvimento dos lusos. Episódios que nos chegaram através dos relatos dos cronistas, escritos à distância de muitos anos, que foram encomendados pelos protagonistas ou seus familiares, em tempos diferentes, com números e factos nem sempre coincidentes, o que obriga o historiador moderno a questionar e a comparar as diversas fontes portuguesas com as crónicas muçulmanas.
E depois seguiu-se o saque, praticado pelos milhares de portugueses, gente humilde do campo ou da cidade, em regra com uma vida cheia de dificuldades, recrutados a contragosto. A pilhagem era para eles a compensação pelos seus sacrifícios, gente que vivia na extrema pobreza e que era deixada à solta, durante algumas horas, para deitarem a mão a tudo o que tivesse valor. Zurara, na sua crónica, teve o cuidado de alterar a semântica, quando falou do comportamento dos portugueses mais ilustres. Como constatou o autor[5]:
Onde antes se lia “roubo e cobiça”, agora, com os fidalgos e gente mais distinta que entrou pelo castelo os verbos são “apanhar” e “carregar” e o substantivo é “proveito”.
Ceuta nunca mais foi a mesma depois de 21 de agosto de 1415. E provando que as histórias dos povos estão ligadas entre si, Portugal também nunca mais seria o mesmo:
– O infante D. Henrique começou a concretizar o seu sonho das navegações;
– A coroa lançou mais impostos para sustentar Ceuta;
– Lamentavam-se muçulmanos, mas também aragoneses, castelhanos e genoveses, constatando que um reino rival havia metido uma lança em África;
– O comércio muçulmano foi desarticulado;
– Saíram favorecidas as nossas relações com a Santa Sé;
– Exultaram D. João I, D. Henrique, D. Pedro de Meneses e alguns jovens fidalgos que passaram a ter onde fazer breves tirocínios militares;
– Rejubilaram ainda os que enriqueceram com a carreira de Ceuta, armadores e comerciantes empenhados na logística e no abastecimento da cidade.
Acreditamos que as notas atrás aludidas serão suficientes para estimular os entusiastas da história a lerem Ceuta 1415, seiscentos anos depois, obra do professor Luís Miguel Duarte, publicada por Livros Horizonte, em junho de 2015, num volume de 255 páginas, ilustrado com fotografias, cartas militares, gravuras e desenhos, e acompanhada das referências a inúmeras fontes impressas e bibliográficas, em que o autor se fundamentou.
A Revista Militar agradece a oferta deste livro e felicita o seu autor por mais esta iniciativa.
Major-General Manuel de Campos Almeida
Vogal da Direção da Revista Militar
Vogal Efetivo da Direção da Revista Militar.