Nº 2439 - Abril de 2005
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Notícias do Mundo Militar
Coronel
Carlos Gomes Bessa
MÉDIO-ORIENTE
O regresso dos velhos demónios no Líbano
 
O L’Express de 21 de Fevereiro destacou o tema de um inquérito sobre o Líbano, considerando que a oposição designou imediatamente a Síria como responsável pelo atentado contra o Primeiro-Ministro Rafic Hariri. Havia vários meses que se registava a existência de uma frente activa contra a tutela de Damasco, que a considerava como configurando uma política assaz perigosa para a Síria, por dispor, além do mais, do apoio de Washington e Paris.
 
Bernard Guetta, numa sua crónica, considera que o assassinato de Rafic Hariri precipitou as coisas em virtude de a Síria ter desafiado ambos aqueles países por motivos diferentes. Paris pretendia a sua retirada do Líbano e Washington que ela interditasse o trânsito pelo seu território dos “jhiadistas” em marcha para o Iraque. Não sendo contraditórias as motivações, também não eram as mesmas, mas coincidiam no facto de ambos não quererem mais vê-la a manter tensões regionais, com vista a conseguir consagrar um dia a presença da Síria no Líbano em troca do seu apoio à regulação do imbróglo iraquiano e do conflito israelo-palestiniano.
 
Em virtude disso, Washington e Paris haviam unido esforços em Setembro último quando fora adoptada uma resolução do Conselho de Segurança no sentido da retirada das forças estrangeiras do Líbano. Era a primeira vez desde longa data que os dois países falavam a uma só voz. Tinham encorajado Rafic Hariri a reagrupar a oposição libanesa, vencer as eleições da próxima Primavera e exigir então a saída dos Sírios.
 
Confiante, o antigo Primeiro-Ministro aceitou o desafio com grandes probabilidades de sucesso, contando até com o apoio do Hezbollah. A morte privou, porém, Bush e Chirac do seu trunfo principal, mas a oposição síria, ao criar um desafio comum e estabelecer um braço de ferro que passou a opô-los a Damasco, teve, em contrapartida, o efeito de reduzir as divergências entre as duas grandes potências.
 
Em termos de visão histórica, Washington e Paris adoptavam dois universalismos que não deixaram de se opor, mas isso não impediu que, na prática, prosseguissem objectivos convergentes: aproveitarem a oportunidade criada pelo diálogo entre Mahmud Abbas e Ariel Sharon, convencer os Iraquianos a não se dotarem de armas nucleares e evitar que a redacção da Constituição iraquiana afecte xiitas e sunitas.
 
Claro que, em cada um destes casos, subsistem divergências tácticas importantes, mas Bush já não pretende a guerra inclinando-se para a estabilização, e para ela necessita dos Europeus, e principalmente da França. A mudança foi tão profunda que fez com que Schröder, inquieto por se ver relegado para segundo plano, se apressasse a pôr as suas condições a esta nova “parceria”, que passam pela transformação da Aliança Atlântica num verdadeiro lugar de coordenação.
A História acelerou-se, como concluiu Guetta.
 
A 14 de Fevereiro, foi no mesmo bairro dos grandes hotéis de Beirute onde em 1975 tinham começado os confrontos que se deu o assassinato de Rafic Hariri, após o agravamento de relações consequentes em grande parte da resolução das Nações Unidas que atrás referimos e fizeram Kofi Annan chamar o seu Embaixador em Damasco.
 
Rafic Hariri era um homem poderoso que, no entanto, não pertencia a nenhuma das grandes famílias do Líbano. Era um homem que se fizera por si, filho de um agricultor sunita de Sayda e fizera fortuna na Arábia Saudita. Em 1989 tornou-se homem de confiança da monarquia saudita, convencendo-a a organizar em Taej reuniões interlibanesas para tentar pôr cobro à guerra que ensanguentava o seu país, financiando inteiramente o encontro, que terminou por um acordo de paz e passou a ser o Primeiro-Ministro. Sunita e pró-ocidental, o que para os Sauditas constituiu um contrapeso valioso em relação à tutela Síria sobre o Líbano.
 
O acordo de Taej mereceu a aceitação dos Sírios, que podiam manter tropas no Líbano enquanto a autoridade do Governo libanês se não exercesse na totalidade do território, portanto, enquanto o Sul estivesse ocupado por Israel. Também permitia, pelo mesmo motivo, a actuacção das milícias xiitas do Hezbollah no Sul, enquanto todas as outras milícias se comprometeram a entregar as suas armas. Os Estados-Unidos, desejando obter o apoio do Chefe de Estado Sírio na coligação contra Saddam Hussein, durante a primeira Guerra do Golfo, aceitaram, do mesmo modo, bem esta solução. Hariri impôs-se, tornando-se o senhor de Beirute, financiando a reconstrução a toda a velocidade do centro da cidade devastado, embora com algumas críticas dos saudosos da velha cidade de Beirute, que não apreciavam muito a Manhattan do Mediterrâneo surgida e embora conseguida à custa do seu dinheiro, o que lhe trouxe a liderança da comunidade sunita. Manteve-se 10 anos à frente do Governo Libanês, com uma breve travessia do deserto entre 1998 e 2000, devida ao mau entendimento com o Presidente da República, Emile Lahoud, teleguiado por Damasco. Mas, dois anos mais tarde, voltou a ganhar as eleições legislativas, segundo se diz, financiando os responsáveis dos serviços sírios no Líbano, no período em que o Presidente Hafez-el-Assad esteve doente. Os chefes destes serviços foram mudados pouco depois. Entretanto, Emile Lahoud terminou o mandato em Setembro de 2004, que, constitucio­nalmente, não podia ser renovado, mas dispondo da confiança das Forças Armadas e de boas relações com a Hezbollah, tornou-se muito útil para a Síria, envolvida num confronto cada vez mais duro com Washingthon. Em consequência disso, aquela não o quis deixar partir, promovendo a prorrogação por três anos do mandato constitucional. Por pressões do novo Presidente, Bachar-el-Assad, filho do anterior, Hariri dispôs-se a não se demitir, o que só fez após quatro dos seus ministros, três dos quais próximos do chefe druso Walid Jumblatt, aprovarem a emenda.
 
Pouco tempo depois houve um atentado contra um destes, e Rafic Hariri acabou por vir a demitir-se, ao não ter conseguido formar um Governo de união nacional. Omzo Karamé substituiu-o formando o mais pró-siriano de todos Governos do Líbano depois dos acordos de Taej. Mas, em 2 de Setembro de 2000, os Estados-Unidos e a França conseguiram que o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovasse a Resolução nº1559 exigindo o respeito da soberania libanesa, a retirada militar das “tropas estrangeiras”, que na realidade, eram os 15 000 militares das Forças Armadas sírias há cerca de 30 anos ocupando o Líbano, o fim da ingerência no processo eleitoral libanês e o desarmamento de todas as milícias, incluindo a Hezbollah.
 
Deste entendimento franco-americano, os Estados-Unidos esperavam que a Síria entrasse na ordem, deixando de se opôr à política americana no Iraque e na região. Chirac, amigo pessoal de Rafic Hariri, aproveitou a circunstância para dar um sinal positivo a Washington, corrigindo os desacordos sobre o Iraque, tanto mais que Bachar-el-Assad, a quem apoiara pessoalmente na sua entrada no cenário internacional, se mostrara “autista” por incapacidade de efectuar as mudanças indepensáveis na sua política.
 
Os Sírios ficaram naturalmente furiosos, denunciando a influência do lobby sionista e acusando a resolução de visar enfraquecê-los. Tinham tanto mais razão de estar inquietos, quanto a prorrogação do mandato de Emile Lahoud e o voto da Resolução 1559, pela primeira vez desde o acordo de Taej, colocando a questão sob a alçada da ONU, fizeram renascer no seio da classe política local o debate sobre a influência síria no Líbano, depois de a oposição sentir aquela prorrogação como um golpe de força e uma humilhação.
 
 Daí, ter-se constituído logo uma verdadeira frente anti-síria, não apenas limitada aos partidos maronitas, mas do qual faziam parte a quase totalidade das formações cristãs agrupadas á volta do Patriarca maronita Nasrallah Sfeir, no seio do Agrupamento de Kornet Chehwane, e, além disso, o chefe druso Walid Jumblatt, rompeu com a Síria após 30 anos de estreita aliança, a ponto de aparecer logo como o porta-voz do que se designa em Beirute como Agrupamento do Bristol, por ter sido no hotel desse nome que se reuniram os membros desta nova “oposição plural”.
 
 Na reunião de 2 de Fevereiro Walid Jumblatt denunciou publicamente pela primeira vez os “resíduos do Partido Baas, que em 1977 lhe tinham assassinado o pai, Kamal Jumblatt, opositor à intervenção síria no Líbano”, o que originou a queixa destes por “falsas acusações”. Contudo, a oposição não era unânime nas suas posições, designadamente no campo cristão, pois Walid Jumblatt não pedia explicitamente a aplicação da Resolução 1559. Preferiu oferecer uma porta de saída honrosa à Síria, sugerindo-lhe que se retirasse “na base do acordo de Taej”. A presença das tropas sírias no Líbano justificou-se enquanto o Líbano esteve ocupado. Tratava-se então de preservar a unidade do país. Mas esta missão inserida no acordo de Taej terminara em 2000 com a partida dos israelitas do Sul do Líbano.
 
 A partir daí tal presença deixara de ser fundamentada. Estava pronto a aceitar a presença negociada de bases militares sírias no Líbano, mas não mais a ingerência dos serviços de informações sírios na vida libanesa. Com ou sem porta de saída honrosa, torna-se evidente que foram os novos dados regionais e internacionais que explicaram a viragem de Walid Jumblatt, colaborador dos sírios durante 28 anos, e a sua aliança com os chefes das formações cristãs. Ele foi um dos que reflectiu mais nas consequências do 11 de Setembro de 2001 e na determinação de George W. Bush, afirmando não ter interesse em ficar do lado dos ameaçados pelo ciclone. Usou da palavra na Universidade de São José, viveiro dos nacionalistas cristãos, sem papas na língua.
 
Alguns dias antes do assassinato de Rafic Hariri falou-se de um possível encontro em Paris entre o Senhor de Mukhtara e o General anti-sírio Michel Aun, exilado havia catorze anos na capital francesa.
 
Para muitos observadores Walid Jumblatt disse então bem alto o que Rafic Hariri pensava muito baixo. O antigo Primeiro-Ministro aproximara-se da oposição depois da sua demissão. Muitos dos seus representantes assistiram às reuniões do Bristol e o chefe druso não se inibiu de afirmar que ele e Hariri se encontravam do mesmo lado. Contudo, Hariri teve sempre o cuidado de se demarcar daqueles que na oposição reclamavam uma total retirada dos sírios, para cumprir o acordo de Taej ou a sua retirada em dois tempos. Prudente, não queria visivelmente que as coisas fossem longe demais. Têm-se como quase certo que repetidas vezes pediu a Jumblatt que atenuasse a sua intenção.
 
Nessas últimas semanas era essa a questão entre os “lealistas” e os do “Bristol”. A 8 de Fevereiro os pró-sírios publicaram, por seu lado, um comunicado após reunião organizada pelo Presidente do Parlamento e chefe do partido xiita, Amal Nabih Berri, lembrando que a presença síria no Líbano estava ligada á situação israelo-árabe, que enfraquecer a Síria correpondia a enfraquecer o mundo árabe face a Israel, e que a “resistência” da Hezbollah não podia ser desarmada.
 
Um dos principais argumentos dos “lealistas” a favor destes dois últimos pontos era a ocupação do Sul do Líbano por Israel do sector designado por “Granjas de Chebaa”. Trata-se de um pequeno território de 18 aldeolas na vertente libanesa do Monte Hermon que domina o Golã sírio. Ninguém sabe se é sírio ou libanês. Quando os Israelitas se apoderaram dele estava ocupado pelos Sírios. As autoridades de Jerusalém, na altura, entendiam que não deveriam entregá-lo aos Libaneses, mas aos Sírios, no quadro de um acordo com Damasco, quando este interviesse. Mas elas não o evacuaram em 2000 ao mesmo tempo que o resto do Sul do Líbano.
 
 Entretanto os Sírios declararam que a faixa de terra era libanesa e, portanto, Israel continuava a ocupar um pedaço do Líbano, o que justificava a presença e as actividades da Hezbollah. Perante este imbróglio, alguns líderes da oposição libanesa, como Amine Gemayel, ou Walid Jumblatt, pediram à Síria que reconhecesse oficialmente na ONU a soberania libanesa nos Granjas de Chebaa, com a esperança de que os Israelitas se retirassem privando o Hezbollah da sua “resistência”. Seria, contudo, de prever que esta invocasse outro pretexto, porque a organização era o único verdadeiro partido de massas libanesas, servindo de correia de ligação entre Damasco e Teerão, não tendo qualquer interesse em depor as armas. E tentar retirar-lhas à força representaria mergulhar o Líbano na guerra civil.
 
A 16 de Outubro de 2004, após a tentativa de assassinato de Marwan Hamadé, o semanário Magazine publicava em parangonas o seguinte título: A guerra amanhã?, declarando-se o redactor-chefe Paul Khalifé inquieto porque em 1975, a guerra tinha rebentado por causa de um desacordo sobre a presença das forças armadas palestinianas. Receava que, desta vez a nova fonte de desentendimento não fosse o Hezbollah.
 
 
A Nova ambição de Walid Jumblatt
 
Dominique Lagarde, duas semanas depois, voltou a tratar do Líbano no L’Express, assunto muito complexo, enredado e importante para a paz no mundo, o que nos leva a dar-lhe especial relevo nestas crónicas.
 
Como dissemos, o chefe druso Jumblatt, após ter sido perto de 30 anos um dos mais fiéis aliados da Síria, é hoje o ferro de lança da “Intifada da Independência” da oposição libanesa contra a Síria, após o atentado de 14 de Fevereiro, que custou a vida ao antigo Primeiro Ministro Rafic Hariri.
 
A vida de Walid Jumblatt mudou radicalmente a 16 de Março de 1997, quando seu pai foi abatido a tiro por uma rajada de metralhadora por ordem de Damasco. Como é habitual no Líbano, a chefia dos partidos políticos passa de pais para filhos, e, nesse mesmo dia, foi investido na Presidência do Partido Socialista Progressista (PSP) fundado por seu pai. Terminou-lhe nessa ocasião chocante a “dolce vita” que levara até então. Apesar da proveniência do atentado de seu pai, Walid tornou-se colaboracionista dos sírios, mantendo estreitos contactos com os Russos que o orientavam e apoiavam no seu papel de chefe de milícia, porque, segundo o próprio explica, a Síria e a URSS estavam com os Árabes contra os Israelitas e como druso, não podia estar noutro campo para preservar a identidade do seu país.
 
Em 1982 as forças libanesas de Béchir Gemayel, encorajada pelos Israelitas, penetraram na montanha druso-cristã a fim de estenderem a sua zona de influência. Foi a guerra do Chouf de que resultou o massacre de várias centenas de aldeãos cristãos. Os drusos pensavam que iriam ser vítimas de uma limpeza étnica. O medo de desaparecerem fez com que não se esquecessem nunca que foi Walid Jumblatt que os levou à vitória e lhes permitiu retomarem a sua montanha. Isso fez dele o chefe druso incontestado. Após a aproximação forçada com os cristãos, constituiu com Rafic Hariri um eixo druso-sunita e passou a contestar cada vez com maior virulência a tutela síria sobre o Líbano. Apesar da sua fama de homem versátil, essas mudanças foram espectaculares.
 
O politólogo Joseph Bahout explica que ele é apaixonado pelos jogos estratégicos, que lê imenso e tem reflectido muito sobre as consequências dos recentes abalos no Médio Oriente. Concluiu que havia necessidade de adoptar atitude diferente. Iria fatalmente haver uma ruptura entre a Síria e a comunidade internacional e seria, portanto, indispensável abandonar o navio. Terá adquirido uma dupla convicção: a política de George W. Bush modificara de modo duradouro os dados na região e o risco de um confronto regional entre sunitas e xiitas nunca fora tão sério.
 
A resolução 1959 da ONU exigindo a retirada das tropas sírias do Líbano permitia-lhe esperar um apoio da comunidade internacional.
 
Dois outros factores favoreceram a emergência de uma corrente pela primeira vez multi-confessional: a constituição de um polo de cristãos moderados à volta do Cardeal Nasrallah Sfeir, Patriarca maronita; e a personalidade de Rafic Hariri que, com o apoio da comunidade sunita, travaria nos corredores o mesmo combate da “oposição plural”.
 
Após o exílio do General Aun, verdadeiro líder da comunidade cristã, ela nunca mais possuíra outro. Há vários anos, o único que falava era o Patriarca para pedir a retirada das tropas sírias nos termos do acordo de Taej de 1989, uma palavra de ordem que acabou por federar diversas personalidades e alguns partidos cristãos no seio do que os Libaneses chamaram o Agrupa­mento de Kornet Chehwane, por ter sido neste local que se efectuaram as primeiras reuniões.
 
A junção entre esse grupo e o Walid Jumblatt fez-se muito naturalmente quando este decidiu mudar de rumo. Assim nasceu a “oposição plural”, que se começou a estruturar nas semanas que precederem o atentado contra Rafic Hariri. O antigo Primeiro-Ministro, prudente e receoso de poder beliscar a sensibilidade sunita, manteve-se afastado. Apenas participavam nas reuniões do Bristol, com o seu aval, dois deputados cristãos, um dos quais, Bassel Fleihau , foi gravemente ferido no atentado de 14 de Fevereiro, o que não o impediu de seguir as coisas de perto, por se ter estabelecido um relacionamento estreito entre ele e o chefe druso. Mais do que os ganhos, contribuiu para isso o desejo de constituirem um arabismo moderno, mais aberto ao mundo.
 
Tocado pelas conclusões do Relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) sobre o défice democrático do mundo árabe, Walid Jumblatt lamentava “um atraso que não podia continuar mais”. Estabeleceu-se uma estratégia: ganhar as eleições previstas para a Primavera com listas comuns, a fim de permitir o regresso de Rafic Hariri à chefia do Governo, o qual pediria à Síria que aplicasse finalmente os acordos de Taej, retirando progressivamente as suas tropas.
 
O atentado de 14 de Fevereiro radicalizou a “opimião plural”. Três semanas após a morte do antigo Primeiro-Ministro, a mobilização não enfraqueceu apesar da demissão a 28 de Fevereiro do Governo de Omar Karamé. Milhares de jovens sunitas, drusos e cristãos, reúnem-se a partir daí todas as noites na Praça dos Mártires, por eles rebaptizada Praça da Liberdade, a poucos metros do túmulo florido de Rafic Hariri, onde alguns acamparam, instalando tendas e afirmam que ali ficarão até que a Síria tenha deixado o Líbano. É uma luta que desejam pacífica, sem armas nem pedras. A dimensão das concentrações tem crescido e, por exemplo, no dia em que estamos escrevendo, foi enorme a multidão, avaliada pelos meios de comunicação social em um milhão se pessoas, que encheu totalmente a grande praça.
 
Em 2 de Março, a oposição reiterou o seu apelo à retirada síria, exigindo uma declaração oficial nesse sentido do Presidente Sírio Bachar-el-Assad. Os mais radicais recusam-se a ir às urnas se os sírios não retirarem, mas Walid Jumblatt considera que essas eleições se devem realizar mesmo sob ameaça das baionetas sírias, e é também o que pensam os Americanos, como afirmou aos Libaneses o Secretário Adjunto dos Negócios da África do Norte e do Próximo Oriente no jantar do dia das exéquias de Rafic Hariri. Há dúvidas sobre o resultado desta atitude, tanto mais que a comunidade sunita se encontra privada de um líder, além de desprovida de tradição militante. Há quem defenda que um dos filhos de Rafic Hariri tome o comando, mas aparece também quem advogue posições de não aceitação da liderança de Walid Jumblatt pela sua subordinação aos Estados-Unidos e à França, embora se admita que se trate de uma maquinação inventada pelos serviços sírios. A organização de juventude criada por Rafic Hariri toma parte em todas as manifestações de rua.
 
Walid Jumblatt deveria esforçar-se para consolidar o eixo druso-sunita, seguindo o que pareceu a sua melhor via de o conseguir, a ligação com a família Hariri, que após os funerais ele qualificou como “amigo fiel”. Alguns julgam que ele seja o mentor dos dois filhos de Hariri e, para a maior parte das pessoas, parece ser o único que tem hoje alguma hipótese de manter a coesão dos opositores, a despeito da diversidade das respectivas forças. O estilo sem papas na língua do líder druso, seduz muito os jovens, mas assusta por vezes alguns notáveis da classe política libanesa, habituados a acautelar a sua linguagem.
 
Há contudo um homem no campo dos pró-sírios libaneses a quem Jumblatt não tem deixado de estender a mão, que é o Secretário-Geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah.
 
Tornado o primeiro partido xiita do Líbano, e respeitado pela sua resistência à ocupação israelita do sul do país, a Hezbollah exerce desde há anos a sua influência na prática política libanesa. Aceitou o multiconfessionalismo do Líbano que impede torná-lo uma república islâmica, bem como o jogo parlamentar, mas não deixa de ser também um instrumento da política iraniana ou síria. Walid Jumblatt não ignora isso, mas sabe não haver nenhum interesse em ostracizá-lo, e tudo a ganhar, pelo contrário, em o amaciar. Por isso, não deixa de o convidar com frequência para se unir à oposição plural, tendo a maior cautela nas suas declarações em distinguir entre a necessidade da retirada síria e a questão do desarmamento do Hezbollah. Foi mesmo convidado pela oposição para ser intermediário para abrir o diálogo com Damasco. Mas não há a certeza de ele ter as mãos suficientemente livres para mudar de campo, nem que o deseje fazer, porque, por detrás do acordo de Taej de que a oposição libanesa pede aplicação, perfila-se a Resolução 1559 que prevê o desarmamento dos combatentes xiitas.
 
Por seu lado a Síria, mesmo que retire as suas tropas dentro de alguns meses, não se dispõe a aceitar quaisquer condições. Damasco considera a sua tutela sobre o Líbano como uma necessidade estratégica a da garantia de que este país não assinará a paz separada com Israel. Pode pois prever-se que a batalha travada não deixará de ser longa.
 
Um jornalista perguntou a Walid Jumblatt recentemente o que ele gostaria de ser se não fosse o chefe dos drusos libaneses. Ele respondeu que gostaria de ser Marechal soviético ou limpador de lama em Nova Iorque, porque nessa cidade, acrescentou, até mesmo para estes os sonhos se podem tornar verdadeiros.

A ligação entre os decorrentes acontecimentos do Líbano com a gravidade dos problema israelo-palestiniano, a situação no Iraque após as eleições, a ameaça nuclear irariana, para não ir mais além, mostram como é intrincada a situação no Médio-Oriente para se prever uma paz próxima. Mas alguns passos se deram recentemente e prosseguem, dando esperanças de virem a ser certamente susceptíveis de gerar algum optimismo quanto a conseguir-se, com firmeza e visão, evitar uma via guerreira, apesar das perspectivas pouco tranquilizadoras. A evolução da questão da violência no Líbano pode ter grande influência, num sentido ou noutro, de forma muito sensível na preocupante situação do Médio Oriente tão semeada de violência. A influência do que venha a acontecer no Líbano, bem merece, por isso a maior atenção.

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* Coronel de Artilharia e do Antigo Corpo de Estado-Maior. Sócio Efectivo da Revista Militar de que foi Secretário (1976) e Director-Gerente (1977-1995).

 
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2006-10-15
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by COM Armando Dias Correia