História da conquista de Ceuta
PAULO DRUMOND BRAGA[1]
No dia 21 de agosto de 1415, por volta das seis da manhã, um exército português, comandado por D. João I, desembarcou em Ceuta e conquistou a cidade. Ao lado do rei seguiam os seus filhos mais velhos D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique, que viam nesta expedição um palco mais digno e honroso para serem armados cavaleiros do que um simples torneio.
Esta é a razão fundamental para tamanha empresa, lembrada por Gomes Eanes de Zurara, na sua Crónica da Tomada de Ceuta, a qual viria a perdurar e a fazer escola durante séculos.
Contudo, a partir do século XIX, outros estudiosos começaram a levantar novas razões para esta conquista, as quais são sintetizadas pelo doutor Paulo Drumond Braga, no início desta sua obra, e seriam[2]:
– A velha inimizade com o Islão;
– Os ataques dos piratas muçulmanos à costa portuguesa;
– Os interesses da burguesia no tráfico comercial das riquezas do Oriente e nos cereais de Marrocos;
– A continuidade das campanhas da Reconquista;
– O domínio do estreito de Gibraltar;
– A miragem do ouro do Sudão;
– Os riscos para a estabilidade interna, por se achar a nobreza ociosa e desocupada;
– A observância do espírito heróico da cavalaria medieval;
– A abertura de Portugal aos mundos atlântico e mediterrânico;
– A intenção de pôr termo à pirataria e ao corso islâmico;
– O passo em frente na direção do mundo do ouro, das especiarias e dos escravos;
– A concretização de uma utopia, de uma fantasia e inutilidade grandiosa, semelhante à construção do convento de Mafra;
– As razões estratégicas visando o equilíbrio das relações internacionais;
– Uma forma de pressão sobre Castela;
– O desejo da nobreza de aumentar as honras, as terras e outros bens através do manejo de armas;
– A necessidade de afirmação de D. João I e da casa de Avis a nível interno e externo;
– A obtenção das boas graças do Papado e da Cristandade em geral;
– Etc..
Todas as boas razões apresentadas serão defensáveis, mas certo é que, com a ida a Ceuta, D. João I passou a controlar o estreito de Gibraltar, abriu Portugal ao mundo mediterrânico e desviou para Marrocos uma nobreza turbulenta, ávida de conquistas, tenças e comendas, afrouxando algumas das tensões sociais internas.
O essencial da empresa é descrito pelo professor Drumond Braga, com base na Crónica de Zurara e outras fontes, começando com o prover de navios, a mobilização de carpinteiros e calafates, o apuramento de combatentes, os cuidados com artilharias e outras armas, o abastecimento de víveres. Segundo o relato de Zurara[3]:
Uns andavam a limpar suas armas, outros a mandar fazer biscoitos e salgar carne e mantimentos, outros em correger navios e aparelhar guarnições.
Na ribeira do Tejo jaziam naus e navios, nos quais de dia e de noite andavam calafates e outros mesteirais, que lhes reparavam seus falecimentos.
O destino da armada, esse, era sigiloso e somente partilhado pelo rei e seus conselheiros.
Depois de Ceuta conquistada, dos combates corpo a corpo, através das apertadas vielas da cidade, do saque habitual em empreendimentos bélicos daquela época, havia que usufruir do doce sabor da vitória. D. João I mandou limpar a principal mesquita da cidade, para se sagrar Igreja e nela se celebrar Te Deum em ação de graças, o que aconteceu em 25 de agosto de 1415, tendo aí armado os seus filhos cavaleiros.
Ceuta passou a ser a primeira cidade portuguesa fora de Portugal e para lá se transferiu a organização das nossas cidades daquela época. Neste sentido, o autor traça uma interessante panorâmica de Ceuta, nos séculos XV e XVI, abordando a evolução e composição da população, o papel do clero, o trabalho dos mesteirais, a situação dos degredados, as comunidades de judeus, mouros e estrangeiros, etc..
Também se debruça sobre as atividades económicas, o comércio, as alfândegas, a moeda e as finanças, as dificuldades de abastecimento, as contribuições financeiras da metrópole destinadas ao sustento da cidade, a escassez de mantimentos e as importações de cereais da Andaluzia.
Depois, aborda as questões da administração e defesa, a nomeação dos capitães, o isolamento do enclave, rodeado de inimigos que atacavam sempre que podiam, as técnicas de defesa, o recurso a forças expedicionárias que ajudavam a guarnecer a cidade, os combatentes anónimos que se procuravam eximir aos rigores do serviço, a periódica escassez de armamento e munições, a defesa da cidade que era também tarefa da população civil, sempre que o perigo rondava.
Drumond Braga descreve ainda a vida religiosa da cidade, a plena remissão dos pecados aos que defendessem Ceuta, as questões da saúde e da assistência e os quadros da vida quotidiana, numa narração colorida e humanizada e situada no tempo e no espaço.
Ceuta foi portuguesa de 1415 a 1656[4], sob o ponto de vista jurídico, embora na prática somente até 1640, quando ocorreu a chamada Restauração e a entronização de D. João IV. O autor explica-se, afirmando[5]:
Ceuta, em 1640, optou menos por Filipe IV, rei de Espanha, do que por Filipe III, rei de Portugal, pois foi a este último que os amotinados, todos ou quase todos portugueses, juraram fidelidade em fevereiro de 1641.
Seria, pois, uma cidade dominada por portugueses, que pretendiam continuar a ser portugueses, mas mantendo o juramento de fidelidade àquele que consideravam o seu soberano legítimo e não aderindo a quem viam como usurpador.
Portugal manteve, contudo, a sua presença em Marrocos, com as praças-fortes de Tânger, que veio a ser entregue aos ingleses, em 1661, e de Mazagão, que D. José I mandou evacuar, em 1769. Posteriormente, em 1774, foi assinado um tratado de paz entre Marrocos e Portugal, que se mantém vigente até aos nossos dias.
Ilustrado com excelentes fotografias, dotado de anexos, notas, fontes e bibliografia, esta obra, Uma Lança em África, apresentada num volume de 189 páginas, pela Esfera dos Livros, em julho de 2015, é de leitura obrigatória para os que se interessam pela História Medieval e pela presença de Portugal em Marrocos.
A Revista Militar agradece a oferta deste livro e felicita o seu autor por mais esta iniciativa.
Major-General Manuel de Campos Almeida
Vogal da Direção da Revista Militar
[1] Paulo Drumond Braga é professor na Escola Superior de Educação Almeida Garrett, em Lisboa.
[2] Uma Lança em África, História da Conquista de Ceuta, pp. 15 e seguintes.
[3] Idem, pp. 33 e 34.
[4] Ceuta requereu a integração na coroa de Castela, tendo sido confirmada em 03mar1656, por real cédula de 30abr1656. Uma Lança em África, p. 102.
[5] Idem, Uma Lança em África, p. 101.
Vogal Efetivo da Direção da Revista Militar.