Nº 2567 - Dezembro de 2015
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
Símbolos, tradições e rituais: representações do Duque de Caxias pelo Exército Brasileiro
Dr.
Marcus Vinicius Gomes da Fonseca

Introdução

A arte de se “fazer e ensinar” história não fica somente relegada à seleção de fontes (enaltecimento de um fato e esquecimento de outro), ela se sobrepõe a essa situação, de tal modo que, em sua prática epistêmica, desenvolve formas de conhecimento com pretensões verossímeis, baseando-se numa racionalidade construída e convencionada a quem a ela domina, ou seja, o historiador. Segundo Rosa, o conceito de memória diverge do da história, é uma entidade suposta, responsável pelas recordações e pelos esquecimentos, sendo capaz de imaginar o desaparecido ou desistir de fazê-lo (ROSA, 2007, p. 53).

A memória, para ter seu sentido pleno, precisa estabelecer conexões (representações) com o tempo presente, de modo que uma entidade, estabelecendo essa ligação, consiga se conservar por meio de todas as mudanças ocorridas ao longo do tempo. Ela é imprescindível para a formação e manutenção de uma identidade, seja ela coletiva ou individual, pois o que se considera virtuoso, positivo, é lembrado, venerado, enquanto as lembranças ruins ou pouco significativas são marginalizadas, esquecidas. Os atos de recordação são, ao mesmo tempo, atos de identificação. As lembranças assumem poder quando queremos idealizar o nosso futuro.

Por isso que o historiador Jayden White afirmava que as formas de recordação têm conteúdo, uma explicação, uma hipótese de mundo e uma ideologia. Daí, a ideia de neutralidade se extingue, pois ela tem de preparar um futuro mais ou menos imediato. Ela é parcial e objetiva.

No campo da memória, há o conceito de tradição, onde se valorizam práticas ou valores espirituais de geração em geração, cujas crenças são conservadoras e invariáveis ao longo do tempo. Hobsbawm lança a ideia de “tradição inventada” para explicar as práticas e rituais devidamente inventados, construídos e institucionalizados, na qual estas visam absorver valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica num processo de continuidade do passado. Inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações amplas e rápidas, tanto na demanda quanto na oferta.

Evitemos pensar que as formas mais antigas de sociedade, e as tradições a ela associadas, eram rígidas e se tornaram obsoletas. E que novas tradições surgiram apenas pela incapacidade de adaptação das velhas tradições. Estas surgem para um fim intencional, atendendo a um novo ensejo de uma coletividade. Seguindo a lógica do historiador Eric Hobsbawm, as tradições inventadas desde a Revolução Industrial se dividem em três categorias: a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade; c) aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de comportamento (HOBSBAWM, 1984, p.18).

O Exército Brasileiro, ao longo do tempo, soube muito bem administrar as “invenções” de tradições no seu corpo institucional, a fim de manter certos valores morais e cívico-militar em detrimento das mudanças de costumes e ideias insurgentes dentro e fora dos quartéis.

Nosso objeto de pesquisa trata, respectivamente, da ideia de institucionalização das memórias e das tradições na Força Terrestre brasileira, a partir da representação de uma figura humana, o militar Luís Alves de Lima e Silva, mais conhecido como Duque de Caxias, na qual analisaremos o porquê da escolha dessa personagem para instituir uma tradição dentro do Exército, quais suas reais intenções e sua interação com os dias atuais.

 

A figura humana de Caxias

Luís Alves de Lima e Silva nascera no município de Porto da Estrela, atual Duque de Caxias, no dia 25 de Agosto de 1803. Era filho do Tenente Francisco de Lima e Silva e de Dona Cândida de Oliveira Belo. Foi admitido como praça no dia 22 de Novembro de 1808, no Regimento de Infantaria de Linha, com apenas cinco anos de idade, e aos quatorze entrou para o serviço efetivo. Em 1821, forma-se na Academia Real Militar, com o posto de Tenente e, já em 1822, comandou um batalhão que servira numa campanha contra soldados portugueses na província da Bahia. Com a vitória do batalhão, fora promovido a Capitão, e com 21 anos, recebe das mãos de D. Pedro I a Imperial Ordem do Cruzeiro e, em 1825, lutando na campanha em defesa da região Cisplatina, ganhou as insígnias de Major e as Comendas[1] da Ordem de São Bento e Hábito da Rosa.

Em 1831, após a abdicação de D. Pedro I, permaneceu ao seu lado e participou do Batalhão Sagrado, para manter a ordem no Rio de Janeiro. Organizou a Guarda Nacional que depois de transformou em Guarda Municipal Permanente. Em 1832, a guarda municipal lutou contra a tentativa de derrubar a Regência.

Casa-se com Ana Luísa do Loreto Carneiro Vianna, no dia 2 de fevereiro de 1833, ela com apenas 16 anos, neta da Baronesa de São Salvador de Campos. Em dezembro do mesmo ano, nasce Luísa de Loreto. Em 24 de junho de 1836, nasce a segunda filha Ana de Loreto. Percebe-se o amor que Luís Alves tinha por sua esposa, como demonstra um trecho de uma carta escrita, no dia 10 de Agosto de 1840, em campanha na região da província do Maranhão:

Meu bem! Esta foi escrita às 11 horas da noite em uma barraca de palha que eu estou morando... Tal é o cuidado que me dás e o amor que te tenho que cheios de trabalhos não me esqueço de ti. Dá uns beijinhos nos meus anjinhos e a todos de casa. Sou só teu. Luís”. (CARVALHO, 1976, p. 53).

Ele, em trechos de outras cartas, referenciava o nome da esposa várias vezes como “Anica”, e a segunda filha Ana de Loreto como “Aniquita”.

Na Guerra dos Farrapos, luta ao lado das tropas do exército (Caramurus) em 1837, sendo promovido a Tenente-Coronel. E, em 1844, volta ao Rio Grande do Sul, desta vez para resolver o término da Guerra, usando a diplomacia. Escreve uma carta a sua esposa, no acampamento da Guarda Velha de Santa Maria. Quando fora combater na Revolta da Balaiada (Maranhão), em 1837, adota um menino órfão indígena, e que a considerava como criado e filho ao mesmo tempo, dando o próprio nome a ele, Luís Alves.

Em 1842 foi nomeado Comandante das Armas da Corte. Em 1845 foi promovido a Marechal-de-Campo, e recebe o título de Conde por D. Pedro II. Combateu em vários conflitos na fronteira Sul do país, em especial na Guerra do Paraguai (1864-1870), onde travou batalhas épicas como a “Batalha do Avaí”, cuja representação foi pintada em um quadro pelo artista Pedro Américo. Uma curiosidade: Pedro Américo apresenta Caxias na cena do conflito com a farda desabotoada, deixando o mesmo contrariado: “Gostaria de saber onde o pintor me viu de farda desabotoada, e nem no meu quarto”. Na verdade, o artista quis mostrar que o Duque sofria de um inchaço no fígado, devido aos problemas provenientes da malária, contraída no Maranhão e agudizada na Guerra do Paraguai, e isto implicava Caxias de usar uma faixa na cintura e fechar sua túnica, em função da dor que sentira. E foi assim que Luís Alves fora imortalizado na pintura. Por pedido do cirurgião-mor que o acompanhava, o Duque se retira do Paraguai, no dia 22 de Janeiro de 1869, e, em 7 de Fevereiro de 1869, no Quartel General em Montevidéu, deixa o comando das tropas brasileiras (explícito em sua Ordem do Dia nº 275), por questões de saúde:

Achando-me, gravemente enfermo, e tendo obtido licença para tratar
de minha saúde no Brasil, é com o coração oprimido pela dor que sinto,
ao separar-me do Exército, a quem me coube a honra de comandar, que
me dirijo aos meus camaradas para dizer-lhes... Se porventura, eu tiver ainda a fortuna de restabelecer-me nos lares pátrios, contem os meus
bravos companheiros de glórias e fadigas, que ainda um dia voltarei
para continuar a ajuda-los na árdua campanha que nos achamos empenhados... Ass: Marquês de Caxias
”. (CARVALHO, 1976, p. 180).

 

Após repouso na fazenda Machadinha, em Quissamã (atual Macaé), junto com sua esposa e filha Ana de Loreto, encontra certo alívio com o uso de águas gasosas engarrafadas de Baependi (Caxambú) que comprava no Rio de Janeiro.

Nas campanhas que fez no exterior, nos chama a atenção que, na volta para casa, quem estava no porto à sua espera era somente a sua esposa “Anica”, não havendo nenhum representante do governo, visto que ele era um homem importante e influente na Côrte e com o próprio Imperador.

Um fato curioso a ser dito, era que Caxias trouxera do Paraguai três cavalos de estimação: “Moleque”, “Douradilho” e “Aedo”. O biógrafo Vilhena de Moraes conta que: “Ao Fogoso Douradilho, da ponte de Itororó[2], Caxias, já velho e enfermo, costumava melhorar a ração na data do aniversário daquele combate” (MORAES, 2003).

O acontecimento que mais abalou o “Duque de Ferro” foi, sem dúvida alguma, a morte de sua esposa Ana Loreto, ocorrida em 23 de Março de 1974, fato este que abalara seu moral até os dias de sua morte. Em uma carta respostada ao seu genro, o Visconde de Ururay de Quissamã, ele comenta a dor da perda de sua amável esposa:

Meu Manoel Carneiro!

Recebi sua carta de 29 março, e lhe agradeço o sentimento que mostra pela prematura morte de minha idolatrada mulher. Sem dúvida ainda na minha longa vida havia sentido dor maior! Parece que ainda sinto o aguçado punhal cravado em meu coração!!! Altos destinos da Providência Divina! Ela está no céu, sem dúvida, pois que é o derradeiro dos anjos e não neste mundo infame de enganos e ilusões. Diga a minha pobre filha (Ana de Loreto) que sua mãe não se esquecia dela um só instante e que repetiu o seu nome e o de Aniquita poucos instantes antes de perder a vida. Resta-me a única consolação de que nada lhe faltou. Pois cinco médicos a viram. Dois de um sistema e três de outo, mas o mal era de morte, e seus dias estavam contados... e eu só fiquei para chorá-la... Peço-lhe que agradeça a seus manos, cunhados e Exma. Sra. Viscondessa, os pêsames que me enviaram e me desculpo por não lhes responder agora, pois ainda estou atordoado com o golpe que sofri e nem sei o que escrevo. Logo que Aniquita (Ana de Loreto) esteja desembaraçada, espero que venham, pois não desejo morrer sem abraçar meus filhos e meus netos.Seu sogro que muito o estima. Luiz.” (CARVALHO, 1976, p. 245).

Percebe-se nos trechos dessa carta que Caxias era um cristão-convicto, tudo o que acontecia de ruim ou bom em sua vida, era por influência da providência divina. Por consequência de seu fervor religioso, destacamos também que ele era membro da Irmandade da Cruz dos Militares[3], na qualidade de provedor (colaborador).

Caxias faleceu em 08 de Maio de 1880, na fazenda Santa Mônica, de propriedade de uma de suas filhas, triste e magoado. Magoado em função de três fatores: o desgaste com o Imperador D. Pedro II, desde 1875, quando o Duque concedera com a relutância do monarca, a anistia aos Bispos de Pernambuco e do Pará, solucionando de forma apaziguadora a chamada “Questão Religiosa”[4], e a destituição do Gabinete Conservador, presidido por Luís Alves, nomeando outro candidato, do Partido Liberal; a igreja queria que Luís Alves abjurasse da Maçonaria (o Duque de Caxias era membro desta sociedade secreta). Como ele não obedeceu à ordem fora expulso da Irmandade da Cruz dos Militares, na qual era provedor; e a insatisfação da Maçonaria diante do decreto de anistia concedido aos Bispos, cujo Visconde do Rio Branco, na qualidade de Grão-Mestre da Ordem, solicitou demissão do Conselho de Ministros, a fim de não assinar o dito decreto, abalando a relação entre os dois antigos amigos. Em seu testamento, deixara uma quantia em dinheiro, e todas as suas roupas para seu filho adotivo, o índio “Luís Alves”, seguido, atrás deste, o resto de seus familiares.

A figura do “Soldado-Maior”, como alguns militares, desde a primeira metade do séc. XX o distinguem, tivera sua luz ofuscada diante das transformações sofridas na política e na sociedade brasileira durante o último quartel do séc. XIX, tendo em vista as três questões que abalaram a monarquia: Religiosa, Militar e Abolicionista (Caxias fazia parte do Partido Conservador, no qual pregava a manutenção do sistema monárquico) e o surgimento das ideias positivistas aliadas ao desejo de proclamação da república no país. E para que o sistema republicano vingasse, era preciso apagar, menosprezar os feitos da monarquia, e respectivamente marginalizar a figura do Duque de Caxias.

 

A figura heroicizada de Caxias: valorização dos seus feitos

Baseando-se nas ideias de Celso Castro, dizemos que o resgate da figura do Duque de Caxias, na qual estava esquecida na memória da sociedade, e principalmente na dos militares, começa ganhar corpo a partir da introdução do “culto a Caxias”, em 1923. Antes disso, a figura venerada pelos militares era a do General Osório, herói da Guerra do Paraguai. Essas duas figuras ganharam estátuas em suas homenagens, encomendadas ao escultor Rodolfo Bernadelli – Caxias, em 1888, e Osório, em 1894, bem antes da fabricação das estátuas dos ditos “heróis republicanos” – Peixoto (1904), Benjamim Constant (1926) e Deodoro da Fonseca (1937). Aí nos perguntamos: por que essa monumentalização tardia para homenagear os formadores da República? Ela pode ser respondida devido ao fato de que existiam disputas internas e falta de consenso entre os diferentes grupos republicanos (jacobinistas, gliceristas [castilhistas], liberais), inclusive a respeito do qual principal herói a ser cultuado: Benjamin, o fundador, Deodoro, o proclamador, ou Floriano, o consolidador. Era a busca de um símbolo representante para propagar e legitimar o sistema republicano nos seus anos iniciais, ideia esta discutida na obra A formação das almas, de José Murilo de Carvalho.

Quais são os simbolismos representados nas estátuas de Osório e Caxias? A primeira, composta pela fundição de canhões utilizados na Guerra do Paraguai, mostra o cavalo do general em movimento, enquanto este segura com uma mão na rédea, e a outra uma espada empunhada ao ar, vinculando-o à imagem de um guerreiro. A localização da estátua fica na Praça XV de Novembro, situando a lembrança de Osório à República, que o exalta como modelo de soldado-cidadão. Já a segunda, mostra Caxias como aristocrata e estrategista. Com o cavalo estático, olha o horizonte com seu binóculo, e junto da estátua estão apresentados o brasão ducal, a coroa e as armas.

A instituição oficial de uma festa em homenagem ao General Osório foi aprovada, em 15 de Novembro de 1901, na gestão do presidente Campos Sales, no qual criada uma medalha do mérito militar e fixando sua data de entrega no aniversário da Batalha do Tuiuti (24 de Maio de 1866).

A imagem de Osório, dentro da instituição militar, desfrutava amplo prestígio, e entre os militares era vinculada e exaltada como modelo de soldado cidadão. Entretanto, com a institucionalização oficial da festa a Caxias, em 1923, a queda da popularidade de Osório fica evidente a partir da década de 30, 40, 50 em diante. Eugênio Vilhena de Moraes (um biógrafo de Duque de Caxias, já citado anteriormente neste artigo), membro do IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – tem a iniciativa de propor uma comemoração oficial à Caxias, no ano de 1923, e em 25 de Agosto do mesmo ano, o então Ministro da Guerra, Gal. Setembrino de Carvalho (o mesmo que combateu as forças insurgentes na Guerra do Contestado) decreta a oficialização da festa de Caxias. No ano de 1925, o dia do nascimento do Duque passou a ser comemorado como Dia do Soldado (veja a intencionalidade de provocar um simbolismo ao associar a data de nascimento de Luís Alves ao Dia do Soldado – mostrar o exemplo de um militar perfeito, um soldado maior, um padrão homem e conduta a ser seguido pelos demais). No mesmo ano, Caxias aparece como “Patrono”[5] de uma turma de cadetes da Escola Militar do Realengo. Essa turma ingressou no ano de 1923, um ano depois da “Revolta Tenentista”, e a escola estava praticamente vazia devido a prisão e deserção dos elementos envolvidos nesta.

Osório, como citado acima, foi perdendo gradativamente seu espaço imagético de “soldado perfeito” para Caxias. Este teve sua imagem atrelada ao patronato de Exército, e Osório teve seu lugar na Arma da Cavalaria. A partir desse fato, o restante das armas (Infantaria, Engenharia, Artilharia, e outras) começaram a cultuar os seus patronos, formando, assim, nos dizeres de Celso Castro, como a “corte de heróis” de Caxias. Mas qual era o real motivo dessa inversão de culto ao “herói maior” do Exército Brasileiro? A vinculação da imagem de Caxias como patrono da Força Terrestre tinha como função de disciplinar a tropa, ou seja, afastar os militares das questões políticas da nação, visto que nos momentos iniciais do firmamento do sistema republicano, passando pelo período da Revolta Tenentista, os militares se consideravam soldados-cidadãos, “o braço armado da democracia”, pois se sentiam incomodados com o uso da farda (fato este que os distanciava dos civis) e queriam exercer seus direitos e sua cidadania num movimento de dentro para fora dos quartéis. Hierarquizador, e também como “a cara nacional conservadora da República” – Caxias sendo o maior lutador pela unidade e integridade da Pátria, discurso este repercutido na sociedade brasileira, visando uma aproximação do Exército-Caxias com o povo.

O simbolismo de Caxias foi também atrelado à reformulação da antiga Escola Militar do Realengo, no ano de 1944, onde ela fora transferida para a cidade de Resende-RJ, e mudou seu nome para Academia Militar das Agulhas Negras – AMAN, em 1951, nome este vigente até aos dias de hoje. Os motivos causadores dessa mudança foram as revoltas tenentistas de 1922, 1924, Coluna Prestes, e a Intentona Comunista, de 1935. O intuito era afastar os jovens cadetes das “más influências” que pairavam a antiga Capital Federal. Essa transferência fora uma significativa importância para a oficialização do culto a Caxias. O espadim, miniatura da espada de Caxias simboliza, em referência ao juramento pronunciado pelos cadetes da AMAN, como “o próprio símbolo da honra militar”, e o próprio uniforme de cerimônia de formatura, lembrando os tempos imperiais. No final do ano de 1931, José Pessoa institui a entrega da Medalha Caxias, ao aluno destaque na classificação da Escola Militar, e, em 1932, ordenou que todas as unidades do Exército inaugurassem um retrato do Duque de Caxias.

 

A imagem de Caxias nos dias atuais

Analisando algumas fontes como jornais, cartazes e revistas, percebemos que o culto a Caxias ainda é muito forte dentro do Exército Brasileiro. Os comandantes maiores da Força Terrestre tentam perpetuar esta tradição entre os seus subordinados, no que diz respeito a referência à imagem, a disciplina, a hierarquia, ao modo de conduta do soldado ideal. Não obstante a isso, essa “devoção” se estende à população civil, como citamos no capítulo anterior, no sentido da instituição aproximar-se do povo. Por meio da veiculação na mídia televisiva de propagandas institucionais relativas à comemoração ao Dia do Soldado (25 de Agosto), da competição esportiva denominada “Corrida Duque de Caxias”, ocorrida em todo o país, onde atletas e amadores disputam as melhores colocações.

Todavia, essa quase “divinificação” do Duque, ao longo dos anos, criou uma distorção com a realidade, pois o símbolo perdera sua humanidade e a aproximação com os soldados era uma coisa inatingível, tendo como resultado a designação do Patrono como um individuo extremamente rigoroso em disciplina, gerando o termo “caxias”. Também, há certa repulsa com a imagem sacralizada do mesmo, formada com o passar do tempo, entre os militares de religião protestante.

Vejamos como é representada a imagem do militar no periódico voltado para o público infantil chamado “Recrutinha” (figuras 1 e 2):

 

Figura 1

Figura 2

Chama a atenção, na primeira figura, o seguinte trecho escrito: “Caxias foi um exemplo de cidadão e defensor da união entre todos os brasileiros. Organizou o Exército Brasileiro, comandou as tropas brasileiras e expulsou os invasores do nosso imenso território. Além de ser um valente soldado, defendia a convivência pacífica entre os brasileiros. Quando vencia uma batalha, era generoso com os derrotados. Por todos esses motivos, recebeu a denominação de “Pacificador” e de Patrono do Exército Brasileiro”... Note o emprego da palavra “generoso” e “pacificador”. Generoso seria pelo fato de que Caxias, na época, quando assumira o comando das tropas brasileiras na Guerra do Paraguai, não havia proteção aos prisioneiros de guerra, e nem sequer um livro de registros dos mesmos. Tratou de providenciá-lo. E Pacificador, porque tratou com diplomacia alguns conflitos existentes na época da regência imperial, exemplo disso fora a Guerra dos Farrapos (1835-1845).

Todavia, devemos ter cuidado ao analisar o emprego dessas palavras, pois quando heroificamos uma figura humana, estamos exaltando suas qualidades e esquecendo os seus defeitos. Nas palavras do historiador Francisco Doratioto, “no Paraguai Caxias teve dúvidas, foi orgulhoso, teve ressentimento e cometeu erros. Em suma, foi uma personagem real”. E, além disso, sufocou com brutalidade, diversas revoltas na época regencial do império. Novamente o Exército defende o discurso que Caxias e a própria instituição esteve e sempre estará defendendo a nação, a pátria, da cobiça e dominação dos inimigos estrangeiros, um afloramento nacionalista que é oriundo desde os tempos de defesa da corrente positivista, nos anos iniciais do sistema republicano brasileiro. Na segunda figura repete-se o discurso da imagem anterior, onde o soldado de nome “Recrutinha” monitora a visita de três crianças ao Quartel do Exército e comenta sobre a importância do Dia do Soldado, associando-o com a figura “heroica” do Duque de Caxias, chamando-o de “grande comandante”.

 

Figura 3

 

A imagem retirada da revista “Verde-Oliva”- nº 212, Jul/Ago/Set de 2011, p. 11 (figura 3), mostra a comemoração do Dia do Soldado, representando Caxias na Batalha de Itororó, e um trecho do livro “Caxias”, do biógrafo Affonso de Carvalho, no qual enaltecia enormemente a figura do “bravo Marechal”. Note como o Duque está posicionado na gravura, empunhando sua espada e montado em seu cavalo (possivelmente era o “Douradilho”, que ajudou-lhe a ganhar a batalha) durante o tiroteio entre as forças paraguaia e brasileira. A intenção é clara: mostrar a perseverança, perspicácia e heroísmo do comandante Caxias naquela ocasião, levantando a moral dos seus soldados diante do inimigo. Destaque para a última frase da gravura: “Caxias passa a ponte. Todo o Exército o acompanha. [O líder (Duque de Caxias) – o obstáculo (a ponte) – a atitude dos liderados (avançam ferozmente, a fim de liquidar o inimigo)].

 

Figura 4

Figura 5

Nos dois cartazes exibidos acima, vemos na figura 4 um soldado armado, provavelmente em simulação de combate, e o outro socorrendo um garoto de uma enchente. O lema égide da Força Terrestre se baseia na frase: “Braço forte, Mão amiga”. Neste caso, a frase está associada a outra, abaixo, descrita: “defendendo o brasil, protegendo o cidadão”. É o envolvimento do Exército com o povo, a ideologia sustentada no conceito do “soldado-cidadão”. No segundo cartaz (figura 5), faz referência ao bicentenário de fundação da Academia Militar das Agulhas Negras, com a imagem de alguns cadetes em formação. O espadim é o símbolo que representa o sabre de Caxias, e o uniforme faz alusão aos tempos imperiais do Exército Brasileiro.

 

Figura 6

 

Por último, a imagem de Caxias pintada em um quadro, feito pelo artista sergipano Florival Fontes. O quadro está exibido no Salão de Honra do 28º Batalhão de Caçadores em Aracaju-Sergipe. Nota-se a posição de Caxias demonstrada na pintura em perfil, com seu uniforme de gala, insígneas, medalhas, platinas, galão[6], mostrando sua posição como combatente militar e nobre do império brasileiro.

 

Conclusão

Ao analisarmos o presente estudo, vimos que o uso da figura do Duque de Caxias pelo Exército Brasileiro funcionou, além de formar tradições e rituais comemorativos, como um dispositivo de controle dos seus soldados ao longo dos anos, ditando padrões a serem seguidos, como a obediência a hierarquia, disciplina e conduta moral. Quem não segue esses preceitos citados, é “participado” (delatado por um subordinante ao seu superior hierárquico – gíria militar) e sofre punições administrativas, até, inclusive, sendo preso, ficando retido no batalhão.

É importante frisar que os rituais são fenômenos acessórios e superficiais, mas que passam a ser vistos, com o tempo, como elementos essenciais à existência de qualquer grupo. O passado é resultado de seleções que privilegiam certas narrativas em detrimento de outras – “batalhas de memória”. A ideologia desses rituais de comemoração não é um fruto da ingenuidade, mas tem a função de estabelecer uma conexão entre o presente com o passado.

 

Referências Bibliográficas

CARVALHO, Affonso de. Caxias. Rio de Janeiro, Ed. BIBLIEX, 1976.

CASTRO, Celso. A invenção do exército brasileiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das Almas. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1990.

CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1987.

CARRETERO, Mario. GONZÁLEZ, María Fernanda, ROSA, Alberto (Org.): Ensino da história e memória coletiva. Tradução: Valéria Campos. Buenos Aires, Artmed Editora S.A. p. 53-60. 2007.

HOBSBAWN, Eric. RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1984, p. 9-23.

MORAES, Vilhena de. Duque de Ferro: novos aspectos da figura de Caxias. Rio de Janeiro, Ed. BIBLIEX, 2003.

Referências visuais

Figura 1 – revista “Recrutinha”: 25 de Agosto, Dia do Soldado. Sempre em ação ajudando a preservar o meio ambiente. CCOMSEx, Edição 2013.

Figura 2 – revista “Recrutinha”. 25 de Agosto, Dia do Soldado. Sempre em ação ajudando a preservar o meio ambiente. CCOMSEx, Edição 2013.

Figura 3 – revista “Verde-Oliva”: Centenário de Nascimento do Sgt. Max Wolff Filho. Ano XXXIX. Nº 212. Edição Jul/Ago/Set. CCOMSEx. 2011.

Figura 4 – Cartaz: 19 de Abril, Dia do Exército. CCOMSEx. 2011.

Figura 5 – Cartaz: AMAN 200 anos. CCOMSEx. 2011.

Figura 6 – Quadro: Duque de Caxias. Florival Fontes.

Referências eletrônicas

http://www.ahimtb.org.br/c1f.htm – Acessado em 09/09/13, às 20:00 horas.

 

* Graduado em Lic. História pela Universidade Federal de Sergipe.

[1]  Distinção honorífica concedida aqueles que excedem em suas atividades.

[2]  (06/12/1868) Primeira batalha ocorrida na “Dezembrada”, uma série de conflitos vencidos pela Tríplice Aliança durante a invasão ao Paraguai.

[3]  Irmandade vinculada à Igreja de Santa Cruz dos Militares, construída a partir do desuso do Forte de Santa Cruz, em 1623, e existente até hoje. Ela cumpria funções de assistência social. Foram protetores da irmandade D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II.

[4]  Conflito ocorrido no Brasil na década de 1870 que, tendo iniciado como um enfrentamento entre a Igreja Católica e a Maçonaria, acabou se tornando uma grave questão de Estado.

[5]  A palavra pode designar o sentido de “protetor”, tanto quanto o de “padrão”.

[6]  Tira dourada ou prateada usada no fardamento militar, como distintivo de patentes militares.

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by COM Armando Dias Correia