Pensar, num quadro geo-estratégico, as conectividades entre Portugal, o Magrebe e o Mediterrâneo, no momento em que o Mediterrâneo voltou claramente a estar, como já não estava há muito tempo, no centro das preocupações políticas e dos noticiários, necessita um olhar capaz de perceber os processos em curso na sua profundidade cronológica, além das contingências do tempo curto, leia-se, do imediato.
Neste sentido, gostaria de partir de uma ideia implícita numa obra do Padre António Vieira, “Livro anteprimeiro da História do Futuro”. Vieira tinha uma visão largamente providencialista da História o que justifica que tenha sido relegado, pelos historiadores, para as caves da prática historiográfica, dominada no século imediato ao seu pela definição dos instrumentos críticos que preparam o grande salto modernizador dado por Herculano, em Oitocentos. Porém, essa visão providencialista tinha uma vantagem inequívoca, que era o entendimento da História enquanto processo contínuo e não enquanto realidade terminada, enquanto conclusa. E era justamente esse entendimento da História enquanto processo contínuo que, eu, numa visão muito breve da História do Mediterrâneo e das relações de Portugal com o Mediterrâneo, aqui vinha propor, e esse seria o meu pressuposto de origem, de que, o que se está a passar neste momento no Mediterrâneo não é um facto histórico novo, antes se inscreve num contínuo histórico. E deve ser, portanto, entendido à luz da macro-história.
O que me parece central aqui é começar por perceber o reaparecimento, não o aparecimento, em cena de linhas de fratura que opõem, por um lado, o sul do Mediterrâneo e o norte do Mediterrâneo, essas relativamente mais recentes, e linhas de fratura, essas mais antigas, que opõem o Mediterrâneo ocidental e o Mediterrâneo oriental. Nesse sentido, entender a História do Mediterrâneo não é apenas útil: não se pode perceber o que está a acontecer e pensar num quadro de soluções sem conhecer a História do Mediterrâneo. Ou dito de outra forma, sendo os problemas históricos, não há nenhuma solução para eles fora de um racional histórico. Partindo desta premissa, proporia aqui dois grupos de questões, que abordarei de forma muito sintética.
Um primeiro grupo de questões que me parece mais nuclear e que tem a ver com as dimensões de uma transversalidade cronológica mediterrânica, com aquilo que me parecem ser constantes estruturais de história mediterrânica. E um segundo grupo de questões que se prendem com a articulação de Portugal enquanto entidade no conjunto da História do Mediterrâneo, isto é, com a articulação da História de Portugal e da posição estratégica de Portugal – com essa transversalidade histórica mediterrânica.
No que diz respeito ao primeiro conjunto de questões identificaria, em primeiro lugar, uma série de fenómenos especificamente macro-históricos. Penso nas placas e nas linhas de fractura entre elas – utilizando uma metáfora geológica que parece útil para descrever os processos civilizacionais e cuja ambivalência, unir e separar, poderíamos aplicar com muito proveito ao contexto histórico mediterrânico, distinguindo aqui algumas placas civilizacionais que nos acompanham, pelo menos, desde, provavelmente, o segundo milénio a.C..
O ponto de fractura/junção dessas placas, entendendo o Mediterrâneo na sua globalidade como uma dessas placas – e a História dos últimos 3500 anos tem mostrado mais ou menos isso – o ponto de fratura dessa placa mediterrânea, dizia, situa-se precisamente numa região que tem sido palco de conflitos, durante os últimos vinte anos. É a região do Alto e Médio Eufrates, que é, em grande medida, englobada, ou era, até há pouco tempo, pelo estado sírio e onde se separa muito claramente uma placa mediterrânica de uma placa que poderíamos chamar iraniana. A junção dessas placas tem revestido várias dimensões históricas, talvez a mais significativa sendo a divisão tradicional marcada pelo limes romano, entre o império romano e o império persa – e essa divisão é muito clara no território – e justamente uma das grandes novidades que a difusão do Islão vem trazer, a partir do séc. VII, é reeditar uma tentativa de união dessas duas placas que já tinha sido praticada pelo Império de Alexandre e que agora é consubstanciada de forma mais permanente, isto é, da placa mediterrânica e da placa iraniana. O sucesso histórico do Islão foi realizar a união dessas duas placas. O seu insucesso histórico foi consumá-la incompletamente, porque o projeto de conquista pelo Islão emergente do que havia sido o império – e que ainda era o império romano – acabou por ficar confinado à margem sul do Mediterrâneo. E é justamente esse confinamento que acaba por introduzir aqui uma variável nova, que nunca tinha acontecido, até então, e que é uma clara divisão entre a margem norte e a margem sul do Mediterrâneo. Essa divisão foi criada por uma entidade que é simultaneamente religiosa e política, e que é justamente o império islâmico, primeiro Omíada depois Abássida. Vemos assim que o processo macro-histórico que tem a ver com as placas civilizacionais é acompanhado por falhas que são linhas de fratura menores.
A primeira, é essa, a divisão entre norte e sul do Mediterrâneo e, a segunda, uma divisão que é, em grande medida, cultural e que pode ser representada por várias entidades civilizacionais, uma divisão entre Mediterrâneo oriental e Mediterrâneo ocidental e que pode muito bem ser significada, no interior do próprio do império romano, pela oposição entre o oriente helenístico e o ocidente latino que dará, depois, o que nós chamamos Europa, oposição que virá a ser atualizada em contexto histórico por decorrências dessa divisão. Penso, nomeadamente, após o séc. XV, na oposição entre o Mediterrâneo otomano, que se prolonga até ao séc. XX – podendo nós pensar no império otomano como um império neobizantino, embora islâmico – e o Mediterrâneo ocidental, onde se irão cristalizar soluções islâmicas autónomas, por exemplo, o Reino de Marrocos. Do lado da margem norte ocidental, ir-se-ão, na mesma época, definindo e emergindo os estados nacionais. Todas estas linhas de fratura e oposição entre placas parecem-me absolutamente essenciais para compreender as oposições e tensões que ocorrem, atualmente, no interior do Mediterrâneo, porque nunca desapareceram completamente, mesma depois das descolonizações que procuraram estender o modelo ocidental a toda a bacia mediterrânica.
Depois das questões macro-históricas, as questões políticas.
Qual é o modelo político que ocorre no interior desta realidade mediterrânica? Eu diria que o modelo dominante, que não é inventado exclusivamente em contexto mediterrânico, mas que também é inventado em contexto mediterrânico – tem outras formações: na India, na China – é o modelo imperial. Todos estes exemplos que acabo de dar decorrem de soluções que são de natureza imperial – o Império Romano, o Império de Alexandre, o Império Persa, o Império Islâmico, o Império Otomano – e também os estados-nação que irão desenvolver, através de uma estratégia de expansão para África, para o Atlântico e para a India, modelos de matriz imperial.
Num certo sentido, o estado-nação não é incompatível com o modelo de natureza imperial que, de resto, a meu ver, as instituições da União Europeia, ainda que de forma imperfeita, tendem a reproduzir. Anote-se que este conceito de modelo imperial, capaz de conter no seu interior uma grande diversidade linguística e étnica, sobre a qual age uma fina camada de instituições comuns, organizadas em torno de um centro de dominação, não tem aqui qualquer conotação pejorativa. O conceito tem, seguramente, para os historiadores, um conteúdo diferente daquele que tem para os media. Nesse sentido, o aparecimento em cena, no contexto mediterrânico, de formulações estatais de matriz nacional tem que ser visto como uma decorrência desses modelos imperiais. Em grande medida, se excetuarmos o Mediterrâneo ocidental, onde elas são particularmente precoces, estou a falar, sobretudo, da Península Ibérica, e também, em certo sentido, no Reino de Marrocos – que tem uma personalidade muito particular – se excetuarmos esse extremo ocidental, a recomposição de unidades de natureza nacional está diretamente articulada com as intervenções imperiais e com os interesses das potências europeias. Lembraria o caso italiano, com o Rissorgimento, antes disso, o caso grego, evidentemente ligado à luta entre a potência imperial britânica e a potência otomana e, depois, todos os estados nacionais que resultam dos processos de descolonização ou de abandono dos protetorados que se definem com a autonomização do Egito, nos princípios do séc. XIX, no Império Otomano, mas que tem a sua expressão mais intensa na II Guerra Mundial, na divisão do Médio Oriente em estados que importam modelos do estado nacional de matriz europeia. O problema político dessa importação prende-se, em grande medida, com uma clara divergência entre as estruturas estatais que existiam tradicionalmente nessas áreas e as estruturas estatais de origem europeia.
De facto, no Mediterrâneo oriental e, sobretudo, no Mediterrâneo oriental islâmico, domina, desde o séc. XI, um modelo de estado, a que os historiadores costumam chamar ‘estado militar fiscal’, que assenta, como o próprio nome indica, num controlo muito eficaz da estrutura da execução fiscal por parte de uma elite e na relação íntima entre a elite política e a elite militar. Esse é um modelo estatal que foi essencialmente aperfeiçoado pelos turcos seljúcidas, mas depois todos os outros regimes a seguir – o regime ayyúbida de Saladino, o regime otomano e os estados nacionais que daí advém, assentam no mesmo pressuposto de interpenetração entre estrutura militar e a estrutura política.
Isso relaciona-se, em simultâneo, com a sobrevivência no Mediterrâneo, de estruturas sociais que são naturalmente arcaizantes, isto é, estruturas que tendem a congelar-se, que não são imóveis, mas que tendem a enquistar-se. No caso das sociedades islâmicas, essas estruturas sociais são muito menos dinâmicas do que tinham sido no séc VIII e IX e assentam no equilíbrio entre os poderes militares, por um lado, e os poderes religiosos dos Ulema, isto é, dos detentores do saber alcorânico e guardiães da tradição, que simultaneamente representam a ortodoxia e a oposição, isto é, a capacidade de manter a ordem social através da tradição e da fidelidade à essência islâmica, mas também a contestação a essa ordem. Comparações com estruturas sociais cristãs no Mediterrâneo levar-nos-iam bastante longe, sobretudo no que diz respeito ao progressivo enquistamento das estruturas sociais e ao papel da Igreja no interior da ordem social.
Uma terceira questão, e última destas questões macro-históricas, prende-se com a relação entre tudo isto e o problema que parece ter dominado os estudos sobre o Mediterrâneo, pelo menos desde os anos de 1950 –, que é o problema do subdesenvolvimento, isto é, a explicação do porquê de o Mediterrâneo, com algumas excepções, não se ter desenvolvido – leia-se, industrializado –, ao mesmo ritmo e ao mesmo tempo que a Europa do norte, que, aliás, tem também ritmos de industrialização bastante distintos entre si.
É evidente que isto parte de um pressuposto – o qual poderíamos discutir – acerca dos modelos de desenvolvimento, e parte da ideia que o único modelo de desenvolvimento necessário é o da industrialização, e de que quem falhou a primeira industrialização está condenado a um subdesenvolvimento permanente.
Sabemos, por exemplos, aliás, extra europeus – caso da Índia, caso da China –, que isso não é completamente verdade. Há países que falharam a primeira revolução industrial e estão na vanguarda da terceira revolução industrial, mas, o certo é que essa questão tem vindo a dominar o debate historiográfico, entendendo-se a questão do subdesenvolvimento – aquilo que os italianos chamam ‘sottosviluppo del mezzogiorno’ –, como uma que deriva, de resto, dos bloqueamentos das estruturas sociais.
Perceber o que se está a passar, mais uma vez, no Mediterrâneo, implica pensar também nessas questões das relações entre estrutura política, estrutura social e, finalmente, a estrutura económica.
Por último, qual é o papel de Portugal dentro do contexto dessas relações macro-históricas, sobretudo tendo em vista que se poderia questionar até a inclusão mediterrânica de Portugal: geograficamente, strictu sensu, Portugal não é um país mediterrânico, mas um país atlântico. Como vários autores têm demonstrado, em particular Orlando Ribeiro, Portugal é um país atlântico e também um país mediterrânico, no sentido posicional e geográfico, se tomarmos por bom o conceito que Fernand Braudel, aliás, o maior historiador do Mediterrâneo, depois de Ibn Khaldun, que o antecede na visão estrutural em mais de cinco séculos, dá do grande mar interior. Braudel chamou a estes extremos que são Portugal e o o Mar Negro os “confins” do Mediterrâneo, participando assim da sua identidade histórica. Não podemos esquecer que, por razões posicionais, Portugal tem uma posição chave no interior no golfo hispano-magrebino e, portanto, nesse sentido, é tão mediterrânico como Marrocos – não sendo Marrocos um país do Mediterrâneo porque tem uma parte da sua costa no Mediterrâneo, mas porque historicamente provém de um conjunto de processos de matriz claramente mediterrânica.
Contudo, aquilo que configura a excecionalidade de Portugal, fase ao contexto mediterrâneo, não é propriamente o facto de ser um país de extrema periferia, embora articulado ao mediterrâneo, mas o facto de (no outro lado de Portugal está a Geórgia, um reino mais antigo do que Portugal) ter, através do seu processo histórico, empreendido uma viagem que o leva das suas matrizes mediterrânicas – e quando falo de matrizes mediterrâneas estou a pensar justamente que Portugal, enquanto fenómeno histórico, partilha de muitas das questões macro-históricas que antes enunciei – e que o leva dessas raízes mediterrânicas, dizia, para um processo de ligação ao Atlântico e depois ao Índico que, evidentemente, transforma a matriz portuguesa, mudando a maneira como Portugal se integra no mundo, no sentido que mundializa Portugal, globaliza Portugal, avant la lettre, o coloca numa escala de pensamento diferente, desde logo, porque o tira de uma extrema periferia onde ele sempre tinha estado, da Finisterra, dos confins, desde os tempos da Lusitânia, portanto, desde antes de Portugal, e o coloca no interior de uma certa centralidade. Isto não tem nada a ver, evidentemente, com alguma pulsão nacionalista, mas com o perceber o mundo do séc. XV como um mundo multipolar, um mundo com muitos centros. Inequivocamente, durante muito tempo, Lisboa é um desses centros.
Nesse sentido, o que nos caberia pensar, enquanto papel histórico de Portugal, seria assegurar, continuar a assegurar, hoje, um papel duplo que é, por um lado, atlântico, e, por outro lado, mediterrânico. Isso tem dimensões, longínquas que se prendem com o nosso próprio passado e experiência passada na América e no Índico, e mais longe ainda que o Índico, na China, sobretudo, mas também no Japão. Mas tem dimensões mais próximas do que a redefinição estratégica que ocorre, claramente, no final do séc. XVI, acabou por fazer esquecer. E essas dimensões mais próximas são, inequivocamente, a relação com os outros confins do Atlântico próximos, leia-se, em particular, no Magrebe.
O abandono das praças marroquinas, a partir da segunda metade do séc. XVI, e, depois, a desistência clara, após 1578, da intervenção no espaço magrebino teve como consequência que, Portugal, historicamente, vivesse fora da sua própria posição. Isso resulta, em parte, da viragem de costas face a Espanha, após a Restauração, viragem propositada, deliberada, e de um alheamento quase constante, com alguns intervalos, das circunstâncias políticas magrebinas.
Reequacionar o nosso papel no Mediterrâneo, além dos outros que temos, passa, eu diria, por duas coisas: a primeira, é uma reativação consciente de uma política no espaço magrebino e, portanto, um investimento crescente do país na ativação das relações com os países que dominam esse espaço, em particular Marrocos e a Argélia. Sobretudo, porque o Magrebe, em grande medida, é também um laboratório para o que se passa no Mediterrâneo oriental. Nessa reactivação podem e devem estar presentes os nossos eixos de intervenção tradicionais, aqueles que têm estado ativos, desde o séc. XVI, que são, evidentemente, de forma privilegiada, a América, através do Brasil, e África.
De forma esquelética, espero ter deixado suficientemente clara a relação entre o que me parece ser o papel histórico de Portugal, nos seus limites e potencialidades, por um lado, e as fraturas que ocorrem no Mediterrâneo atual, por outro.
Diretor do Centro de História da Universidade de Lisboa.
Professor Auxiliar no Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde leciona desde 1987, depois de uma formação inicial na FCSH da UNL.
Tem-se dedicado ao ensino da História Medieval, da História do al-Andalus e da História do Islão Medieval. Subdirector da FLUL (2010-2013). [...]