1. Há doze anos, era eu responsável nos Negócios Estrangeiros pela política externa portuguesa, a União Europeia discutiu e depois aprovou, em 2003, o seu primeiro documento estratégico sobre segurança.
Apresentado por Javier Solana, que foi Secretário-Geral da OTAN e, depois, responsável pela Política Externa e de Segurança da União, o documento intitulou-se “Uma Europa segura num mundo melhor – estratégia europeia de segurança”.
Vou recordar apenas a primeira linha de introdução do documento: “A Europa nunca foi tão próspera, tão segura nem tão livre”.
Porventura, não retiveram bem a frase. Vou repeti-la: “A Europa nunca foi tão próspera, tão segura nem tão livre”.
Na realidade – e esta é também a realidade portuguesa – doze anos depois:
• A Europa não é assim tão próspera – a crise financeira, económica, social, e depois politica, ainda não foi ultrapassada.
Basta olhar para os países do sul: a Grécia, o Chipre, a Espanha, Portugal.
A solidariedade europeia e sobretudo a coesão económica e social, que era a contrapartida do Euro no Tratado de Maastricht, foram postas em surdina, atiradas para a periferia.
Vamos levar ainda muitos anos a recuperar a prosperidade e a confiança de antes da crise.
• A Europa não é assim tão segura:
– A situação nos Balcãs;
– A ocupação da Crimeia e a desestabilização da Ucrânia;
– A ocupação da Ossétia do Sul e da Abkházia;
– As migrações e os refugiados;
– O terrorismo;
– A atracção do Estado Islâmico para alguma juventude;
– A insegurança importada da margem sul do Mediterrâneo (da Líbia, da Turquia, da Síria, do Iémen);
– A percepção de insegurança de muitos europeus, obrigados a conviver com dispositivos de segurança quotidianos impensáveis em 2003, e que já não podem escolher onde vão passar as suas férias no lado sul do Mediterrâneo.
• Finalmente, a Europa não é tão livre como pensavam os europeus há doze anos:
– Por exemplo, os “foreign fighters”, os jovens europeus que são recrutados para as fileiras do Estado Islâmico;
– Os muros físicos e as barreiras legais colocadas por diversos Estados membros da UE na recente crise dos refugiados e das migrações económicas;
– A suspensão temporária de Schengen, da livre circulação, por alguns países;
– Os partidos xenófobos de extrema-direita em França, no Reino Unido, na Alemanha;
– Os grupos terroristas que circulam e actuam na Europa;
– As consequências e a instabilidade social e humanitária decorrente da crise financeira, económica e social que começou em 2008 e cujas consequências ainda vivemos.
2. Nesta Europa à procura de soluções, qual é a importância da relação transatlântica?
E sobretudo, do diálogo atlântico, muitas vezes assimétrico, onde se insere Portugal – nos planos políticos, económico, mas também estratégico?
Dito de outra maneira, para irmos directamente ao tema deste Colóquio: como encontrar nesta relação transatlântica a centralidade geoestratégica portuguesa? Como se concretiza a nossa profundidade atlântica?
Quando se fala no eixo transatlântico, refere-se normalmente a OTAN e a relação com os Estados Unidos, a relação Europa – Estados Unidos, e a ligação Portugal – Estados Unidos, no contexto do diálogo europeu com americanos.
Eu acho que é pouco. E gostava de introduzir outro dado: o Atlântico Sul, onde Portugal reganha também, como no Atlântico Norte, uma nova centralidade estratégica. Lá iremos.
3. Começando pela OTAN, o pilar mais visível do transatlantismo.
Todos sabemos a importância da Aliança Atlântica para a política externa, a defesa e a segurança do nosso País. Vamos ao futuro.
Dada a evolução recente das condicionantes políticas e estratégicas na Europa e nas suas fronteiras, o debate que começa a preocupar quem pensa nestes temas é se a Aliança Atlântica deve “back to basics”, isto é, se deve centrar-se no art.º 5º do Tratado de Washington e preocupar-se sobretudo com a defesa colectiva, como no tempo da guerra fria. Ou se, pelo contrário, deve prosseguir a evolução que começou em 1995, na Bósnia, e prosseguir com outras tarefas “out of area”, fora da zona prevista para a defesa colectiva.
Nos últimos vinte anos, a OTAN encontrou a sua identidade, a sua razão de ser, focalizando outras missões e objectivos para além dessa defesa colectiva: as parcerias, sobretudo a leste e a sul; a cooperação em matéria de segurança; a gestão de crises e as operações de manutenção da paz.
O mundo foi mudando e a OTAN procurou acompanhar essa evolução. Como é regra nas instituições, reagindo primeiro, agindo depois.
Os Estados Unidos olham cada vez mais para a Ásia (assinaram a Parceria do Pacífico, há semanas). A China é o seu maior desafio. A Europa quer construir, até aqui sem sucesso, uma identidade ou uma política europeia de segurança e defesa.
A OTAN, depois da Bósnia, esteve no Kosovo, na Somália, mostrou a sua debilidade estratégica no Afeganistão e na Líbia, está a reagir em ordem dispersa às pressões russas na Ucrânia (o que não fez, há anos, na Geórgia). E diversos aliados olham com preocupação o facto das fronteiras da OTAN incluírem a estabilidade no Mediterrâneo. E o facto dessas fronteiras, pela geografia turca, dependerem da porosidade revelada no caso da Síria, do Iraque, do Irão, do Estado Islâmico. Como nunca sucedeu no passado, a OTAN está a ser arrastada cada vez mais para o Médio-Oriente.
O ocidente não soube responder às Primaveras Árabes. E falhou no Iraque, no Egipto, na Síria, na Líbia. E no Afeganistão. Ou seja, para esses países e para a opinião pública lá e cá, foi a OTAN que falhou.
Voltar ao básico, ao art.º 5º e à defesa colectiva, será ignorar:
– Que o mundo evoluiu;
– Que a Rússia está na Síria a tentar construir uma nova ordem mundial;
– Que a OTAN já está envolvida fora de área;
– Que os europeus estão constantemente dependentes da estabilidade a sul;
– Que os Estados Unidos têm a Ásia como prioridade.
4. Acresce outra razão: à geoestratégia somou-se a geoeconomia. A par dos riscos de segurança, hoje emergiram os riscos da economia global, que são cada vez mais estratégicos.
Alguns exemplos:
• Hoje, os países confiam mais na eficácia das medidas económicas do que no poder militar – veja-se o caso das sanções à Federação Russa decididas pelos Estados Unidos e pela União Europeia e pelo que se passa na Ucrânia e na Crimeia.
• A fragmentação das regras do comércio internacional permite medidas proteccionistas (China e países da Ásia).
• As medidas económicas punitivas levam à manipulação dos preços das commodities (petróleo).
• As instituições financeiras internacionais estão a ser desafiadas pela China (Banco de Investimentos da Ásia) e pelos BRICS (Novo Banco de Desenvolvimento).
Estes riscos geoeconómicos têm uma influência cada vez mais determinante na capacidade dos países da OTAN enfrentarem riscos e desafios globais.
Juntamos a este dado o decréscimo significativo, eu ia dizer irrecuperável, das despesas militares, no orçamento da defesa dos aliados. Os EUA ainda consagram à defesa 3,6% do PIB. Mas a média dos aliados é inferior a 1,4% e diversos países, entre os quais Portugal, estão abaixo de 1% do PIB no seu esforço anual de defesa. Ou seja, o “burden-sharing” está falseado.
5. Há alternativa à OTAN?
Para Portugal não. A construção europeia em questões de segurança e defesa é embrionária. E federalista, o que não sei se será aceite por todos os portugueses. E a PESD e a PCSD, previstas no Tratado de Lisboa, estão longe de ser o pilar europeu da Aliança.
Não me parece, aliás, que a Europa de hoje, entre a situação grega, o afluxo das migrações, a ameaça do referendo britânico, o desequilíbrio do eixo Berlim-Paris, as crises periféricas, a fragilidade financeira e a persistência da crise económica, tenha tempo, disposição ou vontade para construir dinâmicas de segurança e defesa.
Vamos ter OTAN por muitos mais anos. Até, talvez, porque existe e funciona, o que permite aos decisores políticos voltarem-se para outras preocupações. Mas temos que assumir responsabilidades. Ser aliado, ser membro da OTAN, não é a mesma coisa do que ter amigos no Facebook.
6. A relação transatlântica não se esgota, porém, na OTAN.
No plano geral, importa começar a projectar na política, na economia, mas também na análise estratégica, os efeitos da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, o TTIP. Além do impacto económico e social, esta Parceria irá estruturar os laços entre europeus e americanos. E, sobretudo, irá alargar o conceito de segurança e defesa às áreas económicas. Reforçando a Aliança e focalizando numa área que é mais acessível para a opinião pública, para os decisores económicos e até a maioria dos decisores políticos. Podendo vir até a transmitir outra densidade e outras dependências mútuas no quadro do diálogo transatlântico.
Penso que o TTIP será o Tratado de Washington do século XXI, acrescentando-lhe uma dinâmica e uma perenidade que irá incluir outras dimensões na relação existente.
7. Mas, repensar o Atlântico deve levar-nos mais longe. O novo atlantismo tem que olhar o sul. Para a segurança e para a economia.
Europeus e norte-americanos não podem deixar que a China se transforme no interlocutor privilegiado de latino-americanos e africanos, o maior importador de matéria primas e que será em breve o maior investidor nas duas margens do Atlântico Sul.
Temos que saber definir o perímetro de um novo espaço geoestratégico e geoeconómico, que engloba o Atlântico Sul. Vencendo os receios dos países emergentes do sul, as instabilidades em diversas regiões daquela zona, sabendo aproveitar laços históricos, da língua e da afectividade. Completando os diálogos que a União Europeia já mantém, muitas vezes em ordem dispersa, com os países do Atlântico Sul. Acrescentando uma nova dimensão geoestratégica. Como já iniciámos no Mediterrâneo.
8. Nesta complexa teia do atlantismo, onde se situa Portugal? Ou como valorizar a nossa profundidade atlântica? Como a generalidade dos países, Portugal não tem uma capacidade autónoma de construir o seu futuro. Estamos integrados em sistemas internacionais e somos dependentes – cada vez mais dependentes – de decisões e dinâmicas positivas ou negativas que não controlamos.
Mas no caso do diálogo atlântico, no norte e no sul, encontramos os três pilares prioritários da nossa política externa: a União Europeia, a OTAN, e o espaço de língua portuguesa. E se acrescentarmos a ibero-américa, de que somos parte, temos o perímetro quase perfeito para definir a nossa centralidade estratégica.
Nas actuais circunstâncias, também não temos alternativas para a União Europeia. Estamos bem como europeus.
O que deve preocupar os portugueses é o futuro desenho da União Europeia, o desenho que irá sair da actual crise, o equilíbrio de forças que alguns já começaram a elaborar.
Numa Europa onde serão inevitáveis várias velocidades, onde nos situaremos? Dito de outra maneira, até agora conseguimos estar nos núcleos duros da Europa, o euro e Schengen. Se não soubermos criar condições para as novas fórmulas de cooperação que se anunciam, em geometria variável, acentuar-se-á a nossa dupla periferia. E correremos o risco da Espanha poder vir a falar por nós, em Bruxelas.
Menos controversa é a nossa posição na OTAN. Pelo contrário, com os novos riscos e ameaças do leste europeu, na Ucrânia, e no sul, no Mediterrâneo, ganhamos uma nova centralidade estratégica que não temos na União Europeia.
Mas temos que saber valorizar essa centralidade. O que não temos feito ou sabido fazer.
O nosso diálogo com os Estados Unidos é rotineiro e burocrático, e está condicionado, em termos de opinião pública, pelo futuro da Base das Lajes. É um erro de percepção que invadiu as prioridades politicas e diplomáticas.
Nunca entendi por que razão o último Primeiro-Ministro a visitar Washington, como chefe de governo português, foi Durão Barroso, em 2003, há doze anos. O Eng. José Sócrates esteve na Sala Oval apenas como Presidente do Conselho Europeu, antes do Tratado de Lisboa ter retirado importância e significado a esse cargo. E o Dr. Passos Coelho nunca atravessou o Atlântico Norte, como Primeiro-Ministro.
Permitam-me um parenteses: como Assessor diplomático do então Primeiro-Ministro Cavaco Silva, preparei-lhe sete visitas a Washington, em dez anos.
Não há diálogo entre Chefes dos dois executivos, há doze anos.
E depois admiramo-nos que as Lajes sejam preteridas por Rota e Morón de la Frontera, em Espanha, que o Comando de Oeiras seja reconvertido, que o escudo antimíssil esteja no sul de Espanha, que o US African Commander venha só de vez em quando a Portugal em visitas de cortesia.
Apesar de tudo isto, e importará reconstruir as relações com a nova administração americana que sair das próximas eleições, a OTAN continua a ser a pedra angular da nossa defesa.
Já no Atlântico Sul temos que saber construir uma triangulação que nos seja favorável. Também aí podemos recuperar centralidade estratégica contra a periferia europeia ou a dupla periferia ibérica e europeia como somos vistos muitas vezes em Paris ou em Berlim.
Vejamos apenas o lado económico, e o sector energético:
• A CPLP, com sete dos nove países no Atlântico, representa 3,6% da população mundial e 3,9% do PIB.
• Mas a CPLP produz hoje 6% do petróleo e 1,5% do gás.
• Nos últimos dez anos, 50% das novas descobertas do petróleo e gás estão localizados em países lusófonos.
• Dentro de vinte anos, os dois lados do Atlântico Sul que falam português, e Moçambique, produzirão entre 15 e 20% do petróleo e do gás do mundo.
O Atlântico Sul será cada vez mais um player económico e político.
Também por isso temos todo o interesse em marcar os ritmos da aproximação. O Atlântico Sul pode ser o triângulo mágico, por potenciar a nossa influência na Europa, na África, na América Latina e no diálogo transatlântico.
O único factor negativo é que, entre nós, as prioridades são quase sempre conjunturais. Nós vivemos permanentemente na conjuntura. Como se vê nos dias de hoje.
Não seria mau alertar alguns decisores que, infelizmente, a vida política internacional, a vida real, não se parece com os “power-points”.
Foi Ministro dos Negócios Estrangeiros em 2002 e 2003 e Assessor diplomático do Primeiro-Ministro Cavaco Silva durante dez anos (entre 1985 e 1994). Foi ainda Embaixador de Portugal na OTAN e na União Europeia Ocidental, em Bruxelas, e Embaixador de Portugal, em Madrid.
É Embaixador de Portugal, desde 1995.