Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
EDITORIAL - O que fundamenta um Serviço de Saúde Militar?
General
Gabriel Augusto do Espírito Santo
A Georges Clemenceau, político francês do século passado (1841-1929) atribuiu-se, sobre cujo comportamento e ideias deverão ser os franceses a pronunciar-se, uma frase original que ficou para a História: “A Justiça Militar é para a Justiça o que a música militar é para a música”. Debatia-se o caso Dreyfus, a condição militar e a sua especificidade para a tipificação dos crimes “essencialmente militares”. Uma opinião pública pouco activa era alvo de argumentos de base ideológica e pouco racional que a Europa do iluminismo tinha dividido entre a esquerda jacobina e a direita da resistência ao progresso.
 
De há muito tempo a esta data que a confusão que se estabeleceu entre alguma classe dirigente do Estado, porque não sabe sobre alguns assuntos específicos mas raramente pergunta, entre o que deve entender-se pela “inserção das Forças Armadas na administração central” e a “função Comando”, específica da Instituição Militar, tem conduzido a que o Serviço de Saúde Militar seja discutido nos termos do espírito da frase que acima citámos. Alguns dirigentes continuam a pensar que bastará um Serviço Nacional de Saúde, com as suas estruturas e infra-estruturas, para responder às necessi­dades específicas de Saúde para a condição militar e para as funções que a força militar organizada, quando o Estado a aplica, requerem. Em tempo de paz serão as estruturas daquele Serviço Nacional a responder às necessidades das Forças Armadas, ignorando o que o conceito de Família Militar e a noção enraizada de pertença a um grupo representam para um conjunto de cidadãos que a par da sua cidadania se assumem como detentores de uma pertença especial perante a Nação: a sua condição militar. Só nessa linha de pensamento se compreende que o apoio de saúde a um contingente do Corpo de Tropas da Guarda Nacional Republicana em Timor-Leste esteja garantido, parece, pelo Instituto Nacional de Emergência Médica.
 
A Revista Militar, fiel aos princípios que a orientam, tem alertado para o tipo de relações civis-militares que caracterizam os tempos de pós-modernidade que vivemos. É hoje reconhecido, pelas escolas e pensadores que se debruçam sobre o assunto, que a procura continuada do controlo civil das Forças Armadas tem levado a exageros que começam a ser preocupantes, pelas reacções que se sentem e poderão agravar-se na Instituição Militar.
 
O presente número da Revista procura evidenciar a especificidade do Serviço de Saúde Militar em várias vertentes. Com a colaboração de alguns especialistas militares dos três Ramos das Forças Armadas, nas áreas da medicina, da veterinária e da farmácia, e de um médico civil, a sua coordenação deve-se à preciosa dedicação do Major-General Médico Dr José Carlos Nunes Marques, que mobilizou vontades e esforços. Para ele e todos os que colaboraram neste testemunho, a gratidão e o reconhecimento da Revista Militar.
 
O Director-Geral de Pessoal e Recrutamento Militar do Ministério da Defesa Nacional, Dr Alberto Rodrigues Coelho, deixa-nos o testemunho do pensamento político sobre o Serviço de Saúde Militar. Retomando conceitos já propostos pelas Forças Armadas desde os anos 70 do século passado, onde sobressaem os serviços comuns aos três Ramos e um único Hospital Central e o conceito, também já algumas vezes debatido, da necessidade de articulação entre o Serviço Nacional de Saúde e o Serviço de Saúde Militar, o seu depoimento esclarecedor sobre dúvidas que pairam na Família Militar é muito importante para o debate a que nos propomos. A Revista Militar agradece ao Senhor Director-Geral a sua disponibilidade de colaboração e a visão política sobre o assunto.
 
Não iremos sobrepormo-nos às opiniões de reconhecidos especialistas e repetir o que já se disse sobre o Serviço de Saúde Militar noutro número da Revista.
 
 Desejamos enfatizar, de novo e numa reiteração de esforço, que a Instituição Militar é a única organização onde os incentivos individuais ao desempenho são apagados face ao reconhecimento que se faz ao grupo. Que incentivos individualizados podem ser dados a quem voluntariamente aceita perder a vida em defesa da Pátria? Por isso as sociedades modernizadas procuram reconhecer a condição militar com incentivos ao conjunto: na habitação, na saúde ou na educação. À lógica da competitividade em benefícios directos responde-se, como excepção, com o recurso à velha fórmula de contrato entre a Nação e aqueles que a Servem de uma forma singular.
 
Nessa linha de pensamento pretendemos recordar e avivar alguns pressupostos fundamentais de um Serviço que é essencial para manter o moral, a coesão e a identidade da condição militar. Recordar que o Serviço de Saúde Militar visa, acima de tudo, cuidar dos aspectos preventivos e curativos da saúde dos militares, que ao assumirem a sua condição recebem uma Ficha Sanitária Individual que os acompanha toda a vida, que foi instituída há muitas décadas e que deve merecer tratamento actual face às novas tecnologias disponíveis. Um Serviço Nacional de Saúde não terá aptidão nem capacidades para este acompanhamento. Recordar que o Serviço de Saúde Militar tem necessidades de valências médicas, veterinárias e farmacêuticas específicas que devem e têm de ser experimentadas diariamente, desde o tempo de paz, para as respostas adequadas em tempos de crise ou de guerra. Uma articulação entre o Serviço Nacional de Saúde e o Serviço de Saúde Militar, em áreas como serviços nacionais de urgência aos acidentados nos desastres rodoviários ou tratamento de queimados, como há anos foi proposto pelo Comando do Exército, seria medida a pensar, desenvolvendo num Hospital Militar Central, como noutros Países, uma capacidade de excelência naquelas áreas. Essa seria uma visão política inovadora e não redutora para o que funciona bem e que, se a contabilidade nacional for apresentada realisticamente e sem paixões, até não é cara e terá, seguramente, um retorno de eficiência. Recordar, finalmente, que manter a Família Militar apoiada pelo Serviço de Saúde Militar se traduz numa especificidade que mantém uma identidade de contrato com a Nação, dignificando a condição militar e evitando a tentação de percorrer caminhos de futuro incerto e perigoso, como sejam os da privatização da defesa ou a criação de grupos com tendência a substituir a Instituição Militar.
 
Naturalmente que apoiamos transformações. Transformações que têm de se verificar em várias áreas da concepção e do funcionamento do Serviço de Saúde Militar. Na formação e gestão dos profissionais de saúde nas suas carreiras e administração; na articulação e posicionamento dos órgãos de saúde, face às novas concentrações geográficas de pessoal militar e seus dependentes; nas valências médicas mais adequadas ao actual emprego da força militar; na concepção e articulação de um Hospital Central das Forças Armadas, que alguma tendência corporativista entre Ramos, esquecendo experiência e saber acumulados, prejudicou na sua concretização em tempo adequado e oportuno.
 
Naturalmente, também, que ficamos preocupados com a visão política sobre o Serviço de Saúde Militar expressa pelo Senhor Director-Geral de Pessoal e Recrutamento no seu artigo. Ainda que nos pareça importante a criação de um órgão coordenador para o Serviço de Saúde Militar, ao nível do Ministério da Defesa Nacional, já nos parecem menos articulados os princípios que foram definidos para o orientar e a necessidade externa para a sua avaliação. O Serviço de Saúde Militar é uma responsabilidade primeira do Comando. Caberá aos Comandantes Militares no seu diálogo com a direcção política a responsabilidade de salvaguardar o que receberam e transmiti-lo às gerações futuras sem alterações de conceitos, ainda que com adaptações conjunturais.
 
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*     Sócio Efectivo da Revista Militar. Presidente da Direcção.
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2006-10-21
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General

Gabriel Augusto do Espírito Santo

Nasceu em Bragança em 8 de Outubro de 1935.

É General do Exército, na situação de Reforma desde o ano 2000, depois de ter servido nas Forças Armadas Portuguesas durante 49 anos.

Além de Tirocínios e Estágios na sua Arma de origem possui os Cursos da Escola do Exército (Artilharia), Curso Complementar de Estado-Maior e Curso Superior de Comando e Direcção (Instituto de Altos Estudos Militares), Curso de Comando e Estado-Maior (Brasil) e o Curso do Colégio de Defesa Nato (Roma).

Falecido em 17 de outubro de 2014.

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by COM Armando Dias Correia