Pretendemos com este artigo perceber se os instrumentos que a OTAN tem à sua disposição são os adequados para fazer face aos novos desafios identificados na Cimeira de Gales e que emergem do novo arco de crises que se tem vindo a desenvolver ao redor das fronteiras leste e sul da Aliança; e, em última análise, tentar visualizar o que pode ser feito para os melhorar.
Argumentamos que o processo de adaptação em curso, isto é, o conjunto de medidas que visam provocar alterações de longo prazo na estrutura de comandos e de forças da Aliança, que lhe permitirão reagir mais rapidamente a crises, e os instrumentos associados que a OTAN tem à sua disposição são adequados para enfrentar os desafios colocados pelo novo ambiente estratégico que emergiu dos acontecimentos de fevereiro de 2013, na Ucrânia, necessitando, contudo, de serem melhorados e adaptados de modo a poderem enfrentar eficazmente as ameaças assimétricas oriundas das regiões a sul da sua fronteira Sul, considerando o Sul numa perspetiva restrita, isto é, o Levante, o Médio Oriente e o Magrebe[1]. O flanco sul da Aliança nunca foi tão inseguro como na atualidade, o que urge o seu reconhecimento como uma zona de elevada instabilidade.
Nos finais de 2013, dando cumprimento ao ritual de realizar cimeiras de dois em dois anos, a OTAN procurava desesperadamente temas para incluir na agenda da cimeira que se avizinhava e que se previa completamente desprovida de interesse, apenas para cumprir calendário. Não se antecipavam decisões importantes; não iria ficar na história. Mas tudo se alterou num ápice. Os novos desafios que entretanto se vieram colocar à Aliança, no novo quadro político-estratégico que emergiu da crise na Ucrânia, vieram fazer com que a Cimeira de Gales se transforma-se num marco. Aí se tomaram decisões cruciais. Embora de uma forma não explícita, subjacente a essas decisões encontrava-se a reavaliação da importância atribuída à defesa coletiva.
É inquestionável o facto de a OTAN ter saído reforçada da Cimeira de Gales, ficando mais equipada para fazer face aos novos desafios que passou a ter pela frente, sobretudo a leste. Para isso, muito contribuíram as medidas de adaptação acordadas, medidas essas que visavam dotar a Aliança de capacidades estruturais que lhe permitissem reagir mais rapidamente a crises. Referimo-nos, em concreto, às medidas de adaptação incluídas no Readiness Action Plan, mais conhecido pelo seu acrónimo RAP. Falamos do incremento da Força de Reação Rápida, da Força Tarefa de Muito Elevada Prontidão (VJTF), da NATO Force Integration Units [2], e dos Quartéis-generais de Alta Prontidão[3].
Contudo, não nos podemos esquecer de outros instrumentos, de menor visibilidade, enquadráveis na core task segurança cooperativa, igualmente acordados na Cimeira de Gales, que se vieram juntar aos já existentes e que são fundamentais para que a OTAN possa enfrentar os desafios colocados pelo novo arco de crises. Referimo-nos, por exemplo, à “Partnership Interoperability Initiative” (PII) e à “NATO’s Defence and Related Security Capacity Building Initiative” (DCB).
O argumento que trouxemos à colação transporta-nos para um debate em curso no seio da OTAN que, não sendo novo, merece ser revisitado, no atual quadro político-estratégico que enformou a Cimeira de Gales: que fazer para reconciliar as prioridades nacionais dos diferentes Estados-membros e manter a OTAN coesa e eficaz para enfrentar as ameaças e os desafios provenientes do novo arco de crises? Como conciliar preocupações securitárias significativamente distintas?
A resposta a estas questões passa por promover a reconciliação entre as diferentes prioridades nacionais vis-à-vis as ameaças e desafios vindas do novo arco de crises que presentemente se inicia na Ucrânia e vai até à Líbia, com uma extensão ao Mali. Essa reconciliação terá de se basear na solidariedade, isto é, na solidariedade entre os diferentes membros da Aliança, uma vez que a solidariedade é um dos pilares fundamentais do funcionamento da OTAN. Solidariedade é a resposta para se atingirem compromissos e reconciliação de interesses. Só através da solidariedade nos será permitido estabelecer um equilíbrio entre “o que estamos a fazer juntos” e os “diferentes interesses nacionais”.
As atuais políticas da Aliança, no que respeita a capacidades, a operações, a finanças e a estruturas deveriam ser testadas com base no que se acabou de afirmar. É sabido que as perspetivas de segurança dos seus membros são influenciadas, entre outras coisas, pelas suas origens históricas, ameaças percebidas e pela postura securitária dos países vizinhos, situados no outro lado da fronteira da Aliança. Quer queiramos quer não, esta combinação de posturas securitárias vai fazer com que os Estados-membros coloquem ênfases diferentes nas core tasks[4] mencionadas no conceito estratégico aprovado em Lisboa.
Os membros da Aliança inseridos numa certa área regional têm, mais ou menos, as mesmas perceções sobre os desafios securitários regionais comuns que os afetam. Devido à especificidade de cada região, as suas visões da segurança nacional ou regional tendem a ser diferentes de outras perceções de segurança regional concorrentes. As prioridades e as perceções variam de região para região. Como corolário, perceções diferentes competem por necessidades e capacidades de segurança diferentes.
Os recentes desenvolvimentos na situação política e militar nas fronteiras leste da Aliança provocaram, naturalmente, uma alteração da sua postura, transformando a defesa coletiva na core task prioritária. Alguns Aliados vão mais longe, indo ao ponto de a quererem transformar na core task exclusiva, relegando as restantes core tasks para um papel marginal e irrelevante, para não dizer inexistente. Compreende-se que o apelo à solidariedade é mais fácil no caso da segurança coletiva. Contudo, deve sublinhar-se que os desafios nas fronteiras sul da Aliança, apesar de serem essencialmente diferentes daqueles da fronteira leste, não são igualmente fáceis de gerir nem são desafios de uma grandeza menor, como, aliás, ficou recentemente demonstrado pelos atentados de Paris, em 11 de novembro, o presente conflito na Síria, a instabilidade vivida na Líbia e os incidentes na Tunísia e no Mali. Se, por um lado, a OTAN tem de defrontar-se a leste com ameaças de contornos relativamente definidos, apesar do hibridismo que, nalguns casos, estas se possam revestir, no sul, a ameaça é de natureza mais volúvel, envolvendo atores menos racionais e de elevada imprevisibilidade.
Se, no primeiro caso, são necessárias medidas de tranquilização, via, por exemplo, o recurso a forças militares convencionais, no segundo, a natureza assimétrica dessas ameaças não permite a sua mitigação através do recurso a instrumentos semelhantes. A inevitável atenção e prioridades dadas à defesa coletiva não deve e nem pode distrair a Aliança das restantes core tasks, muito em particular a segurança cooperativa, mais orientada para as fronteiras do sul. Se não lhes for prestada a devida atenção, as ameaças em desenvolvimento poderão vir a ter consequências tremendamente malignas.
Por isso, a solidariedade deve também significar um equilíbrio entre as três core tasks, em particular com a segurança cooperativa. Só uma combinação adequada de hard power com soft power poderá ter sucesso e gerar respostas que se enquadrem e se subordinem ao princípio da solidariedade. Isto requer compromissos (pelo menos tácitos) entre Aliados, sobretudo entre aqueles que não partilhem espaços geográficos próximos ou adjacentes.
É compreensível que a solidariedade no seio da Aliança possa estar sob pressão, causada por motivações nacionais, devido às orientações internas dos seus Estados-membros. Contudo, não devemos permitir que as diferentes perceções securitárias nacionais ou sub-regionais coloquem em causa a solidariedade, e que um grupo de países sequestre a agenda da Aliança, colocando os seus interesses à frente dos interesses securitários de outros grupos, ou mesmo do interesse coletivo dos vinte e oito Estados-membros.
Tendo em consideração a solidariedade e a necessidade de reconciliar prioridades nacionais, e que o RAP foi aprovado para assegurar que a Aliança se encontra pronta para responder rapidamente a novos desafios de segurança, este deverá aumentar a prontidão da Aliança para responder a todos os desafios, de onde quer que eles venham, tanto do leste como do sul. Consequentemente, as medidas de adaptação acordadas devem ser implementadas no contexto da presente estrutura de comandos e aplicadas a todas as áreas e missões da Aliança, não se descortinando motivos que justifiquem uma reforma da sua, recentemente, reformada estrutura de comandos.
A OTAN continuará com a implementação do calendário das medidas de adaptação prevista. A forma como o está a fazer é reveladora da sua determinação em garantir aos Estados-membros que não haverá quaisquer cedências, quer na implementação das medidas de tranquilização quer no compromisso de segurança assumido entre Aliados, como ficou demonstrado, entre outras manifestações, pela realização do exercício de alta visibilidade Trident Juncture 15, por sinal previsto antes da crise que opôs a Ucrânia à Rússia, que envolveu cerca de 36 000 participantes oriundos de trinta países Aliados e parceiros, e que culminou com a certificação do quartel-general do Joint Forces Command Brunssum e das várias NATO Response Forces que estarão prontas em 2016.
Nenhum dos instrumentos à disposição da OTAN reúne condições para cobrir todos os desafios colocados pelo presente arco de crises. Apesar da segurança cooperativa ser a core task mais adaptada para fazer face às ameaças assimétricas, sobretudo se pensarmos em medidas estruturantes com efeitos de longo prazo, temos de reconhecer que a segurança cooperativa não é uma panaceia. São conhecidas as suas potencialidades e limitações. Por isso, é fundamental aprofundar a busca de novos instrumentos, a acrescentar aos já existentes, que permitam à OTAN ficar mais e melhor equipada para defrontar desafios assimétricos.
Este tema transporta-nos diretamente para a discussão dos instrumentos e das ferramentas a utilizar. Muitos tentaram que este debate se fizesse ao redor da polivalência das capacidades militares. A verdade é que, não só as capacidades convencionais não são as mais adequadas para combater as ameaças assimétricas como os seus requisitos operacionais diferem consoante as áreas geográficas onde se planeia utilizá-las. Embora sejamos defensores de capacidades polivalentes, convém recordar que este debate não fornece respostas para os desafios securitários que os estados do flanco sul da Aliança têm de defrontar. Esta observação não pode, de modo algum, ser confundida com um libelo contra os insistentes apelos no seio da OTAN para a necessidade de se colmatarem as lacunas existentes em matéria de capacidades militares e de enablers estratégicos.
Ainda em matéria de lacunas, há a sublinhar o facto destas se encontrarem perfeitamente identificadas, assim como as formas de as mitigar. Recorda-se que, na Cimeira de Gales, foi aprovado um “Pacote de Planeamento de Defesa” em que foram identificadas as várias prioridades em matéria de capacidades de defesa, de acordo com decisões semelhantes tomadas nas Cimeiras de Lisboa e de Chicago, para não recuar mais no tempo. Os documentos sobre a matéria acordados naqueles três eventos definem claramente o que tem de ser desenvolvido e/ou adquirido e as capacidades que necessitam de ser mantidas e/ou melhoradas.
Por outro lado, no que respeita à forma como obter essas capacidades, a OTAN encontra-se muito bem apetrechada em termos de soluções. O conceito de “defesa inteligente” tem demonstrado ser uma resposta apropriada, tendo promovido a conjugação de esforços e o aumento da eficiência. Deve, contudo, sublinhar-se que, para lá das declarações é a vontade política das nações em fornecerem conhecimentos, recursos materiais e humanos, assim como capacidades o que verdadeiramente conta para que as coisas aconteçam.
No debate ao redor dos instrumentos à disposição da OTAN passíveis de se inscreverem na lógica da core task segurança cooperativa é importante salientar os contributos trazidos pela Cimeira de Gales e que são instrumentos primariamente orientados para a cooperação com os países que se inscrevem no novo arco de crises que rodeia a OTAN, os quais se vêm juntar à panóplia de instrumentos já utilizados pela Organização na cooperação com os seus parceiros das vizinhanças sul e leste. Referimo-nos fundamentalmente à PII e à DCB.
A PII tem por objetivo manter os níveis de interoperabilidade que a OTAN e os seus parceiros atingiram, ao longo de mais de uma década de envolvimento comum em operações, nomeadamente no Afeganistão. Para atingir esse objetivo, a PII organiza-se em dois níveis de ambição: a Interoperability Platform (IP) e a Enhanced Opportunities Partners (EOP).
A IP é, fundamentalmente, um fórum do tipo “28+n”, que se enquadra no conceito de “formatos flexíveis” concebido para discutir temas específicos entre Aliados e grupos ad hoc de parceiros, independentemente dos quadros de parcerias em que se inserem[5], um formato de diálogo com os parceiros na linha da política de parcerias acordada na reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros, em abril 2011, em Berlim. Pretende-se com a IP estabelecer um diálogo pragmático e regular com os parceiros para debater assuntos relacionados primordialmente com interoperabilidade. Apenas três parceiros do “Diálogo para o Mediterrâneo” (dos sete) – Jordânia, Marrocos e Tunísia – participam na IP[6]. Por seu lado, a EOP é dirigida a parceiros que tenham participado em operações lideradas pela OTAN com contribuições significativas, inclui cinco países – Marrocos, Suécia, Finlândia, Austrália e Jordânia – e tem por objetivo incrementar o diálogo político destes países parceiros com os Aliados.
Sem questionar a importância destes dois novos instrumentos – IP e EOP –, cujos objetivos são sem dúvida da maior relevância para a OTAN, a verdade é que parecem não ter sido concebidos para enfrentar os desafios que a OTAN encontra a sul. No caso da EOP, apenas a Jordânia reuniu condições para participar.
Outro instrumento no âmbito da segurança cooperativa que emergiu da Cimeira de Gales foi a DCB que será, porventura, a proposta mais criativa apresentada na Cimeira. Através deste instrumento, a OTAN pode chegar a países não parceiros como a Líbia, a Somália, o Níger e o Chade numa perspetiva de prevenção de conflitos, de modo a impedir o colapso de estados, ou numa abordagem de pós conflito e ajudar a consolidar a paz, evitando que situações de instabilidade alastrem e contagiem regiões mais a norte. Os projetos de DCB têm por objetivo contribuir para a resolução de problemas muito concretos, através de projeções de curta duração com o recurso a um número muito reduzido de forças.
Deste modo, a OTAN poderá ajudar a impedir a deflagração de guerras. De certo modo, esta abordagem foi já ensaiada na antiga república jugoslava da Macedónia com a operação Allied Harmony, através da qual conselheiros militares da OTAN apoiaram o governo macedónio a garantir a segurança em todo o território do país. Com o intuito de aprender, identificar falhas e avaliar resultados, a OTAN envolveu-se em projetos piloto de DCB com a Geórgia, a Moldova, a Jordânia e o Iraque, apesar destes países, com exceção do Iraque, não se encontrarem numa situação de instabilidade política e securitária. Com estas experiências, a OTAN pretendeu fundamentalmente adquirir competências que lhe permitam encontrar-se mais bem preparada para enfrentar, quando necessário, casos de maior complexidade.
A DCB foi uma iniciativa americana que tinha como fim último ajudar países em convulsão a lidar com os seus problemas de segurança. Muitos Aliados manifestaram dúvidas sobre a sua eficácia. A iniciativa tem suscitado um debate interno, que se encontra ainda no início, sobre o modo como a DCB pode ser usada para melhor apoiar as políticas da OTAN. Alguns assuntos relacionados com a implementação da DCB necessitam ainda de ser limados, de modo a compreenderem-se melhor as condições em que a sua utilização terá maiores probabilidades de sucesso. A DCB parece ser um instrumento particularmente adequado e útil para situações de pós-conflito, para prevenir o reinício da violência, ocupando nichos específicos daquilo que em linguagem onusiana se designa por construção da paz (peacebuilding). O seu uso em casos preventivos parece ser, contudo, bem mais complexo e mesmo controverso. De salientar que apenas um país do Dialogo para o Mediterrâneo – a Jordânia – tem um pacote de DCB atribuído.
Há vários aspetos da DCB que merecem ser salientados. Um desenvolvimento importante prende-se com o facto de o Secretário-Geral Adjunto da OTAN ser o “Coordenador Especial” para a DCB, o que denota a importância que a OTAN dedica a este instrumento. Irá permitir uma melhor sincronização da ação entre os diferentes atores civis e militares da Organização que têm de se envolver na DCB; outro desenvolvimento importante reporta-se às possibilidades conferidas pela DCB para que a OTAN aprofunde a cooperação com outras organizações internacionais e regionais. Passado um ano após a Cimeira de Gales, é ainda cedo para proceder a uma avaliação dos resultados, assim como do verdadeiro alcance da DCB. A sua efetiva implementação dependerá de elementos políticos cruciais que necessitarão de um rigoroso exame e estudo, entre os quais incluiríamos, por exemplo, os critérios para selecionar os países potencialmente beneficiários de programas de DCB. Não sendo um instrumento especificamente dirigido para fazer face aos desafios oriundos do sul, não deixa de poder incluir, se assim for considerado conveniente, atividades de grande utilidade para os parceiros da fronteira sul como sejam, por exemplo, a reforma do setor de defesa, matéria em que a OTAN adquiriu ao longo dos anos uma tremenda experiência, o que lhe confere uma nítida vantagem comparativa relativamente à ONU e à União Europeia.
Neste arco de crises que aqui tratamos, muito particularmente em relação àquelas crises reais ou potenciais que podem afetar os países do sul – tanto da Aliança como da margem sul do Mediterrâneo –, coloca-se sempre com veemência a necessidade do diálogo e da cooperação com a União Europeia. É um debate antigo que, como o da solidariedade, merece ser revisitado, mas com propostas e reformulações pragmáticas e exequíveis. A OTAN reconhece no seu conceito estratégico de 2010 a União Europeia como um parceiro único e essencial, e apela a que ambas as organizações se complementem e reforcem mutuamente na ação, assim como à criação de circunstâncias favoráveis para que isso aconteça. Nem a OTAN nem a União Europeia conseguem sozinhas defrontar os desafios com origem a sul das suas fronteiras. Precisam urgentemente de encontrar fórmulas criativas que permitam ultrapassar o impasse existente provocado pela falta de colaboração e de diálogo entre elas.
Os problemas e os obstáculos que se têm vindo a verificar no relacionamento entre a OTAN e a União Europeia, relativamente ao Norte de África e ao Médio Oriente, são exatamente os mesmos que se colocam relativamente à cooperação entre ambas as organizações noutras regiões do globo. As causas são conhecidas e residem nas resistências e nos bloqueios colocados por um Estado-membro da OTAN e por outro da União Europeia. Enquanto esse problema não for resolvido, será inútil prolongar o debate sobre o assunto. Os prolixos exercícios académicos que sobre a matéria manifestam, amiudadas vezes, perplexidade pela reduzida cooperação entre as duas organizações, não passam de sofisticados raciocínios lógicos que parecem esquecer as dinâmicas políticas existentes em ambas as organizações, as quais inviabilizam os anseios dos muitos que desejam uma maior proximidade.
A necessidade de uma maior e mais aprofundada coordenação de ações entre a OTAN e a União Europeia não é questionada por ninguém. Porém, o que está em causa é como fazê-lo. Apesar de todos os obstáculos que têm surgido no caminho, dentro das condicionantes existentes, são assinaláveis os progressos registados. Mencionamos os contatos de natureza política e militar ao nível de: Cimeira (Chefes de Estado ou de Governos); ministeriais (Ministros da Defesa e de Negócios Estrangeiros); Conselho do Atlântico Norte e Comité Político e de Segurança, na sua esmagadora maioria com caráter formal, nos quais se incluem as reuniões do Grupo de Capacidades da OTAN e da União Europeia, que se reúne todas as 4/6 semanas; comités militares da OTAN e da União Europeia, no formato de Chefes de Estado-Maior das Forças Armadas, ou equivalente; estados-maiores militares da OTAN e da União Europeia, todos de natureza informal e muitas outras reuniões regulares ao nível de várias agências da OTAN e União Europeia, que ultrapassam um total de trinta formatos diferentes.
Uma visão realista sobre o modo como ambas as organizações podem cooperar tem de ter em consideração o quadro institucional onde aquela cooperação deverá ocorrer. Ou seja, no seio dos atuais quadros de parcerias desenvolvidos por cada organização, isto é, o “Diálogo para o Mediterrâneo”, da OTAN, e a “União para o Mediterrâneo”, da Política Comum de Segurança e Defesa, da União Europeia? Ou, através da criação de um órgão de ação política conjunto, reunindo a OTAN e a União Europeia para analisar os problemas da cooperação?
Apesar desta última proposta ser assaz interessante, por se basear num arranjo institucional não previsto nos Tratados, tem uma probabilidade extremamente elevada de ser boicotada. Por isso, faz sentido que as soluções sejam encontradas nos quadros de cooperação existentes. Uma vez encontrada resposta sobre o arranjo organizacional de funcionamento, poder-se-á então passar à fase seguinte identificando o contributo que cada organização poderá dar.
Embora o quadro institucional em que decorrem as relações entre a OTAN e a União Europeia se encontre limitado à Política Comum de Segurança e Defesa, as áreas de interesse comum vão muito para além disso (aspetos civis da ação da União Europeia no Afeganistão e no Kosovo, aspetos civis do combate ao terrorismo; comprehensive approach, etc.). Tudo isto tem de ser levado em consideração quando debatemos a cooperação entre as duas organizações, sobretudo nas regiões onde existem sobreposições de agenda, para que a cooperação prevaleça sobre a competição.
Uma proposta realista de cooperação entre a OTAN e a União Europeia para o Norte de África e Médio Oriente poderia passar, em primeiro lugar, por uma ação coordenada com parceiros que pertencem simultaneamente ao “Diálogo para o Mediterrâneo” e à “União para o Mediterrâneo”. Esta abordagem tem uma elevada probabilidade de sucesso, porque as ações colocadas em movimento por ambas as Organizações podem ser melhor coordenadas, apesar da obstrução de um Estado-membro da OTAN à cooperação com um parceiro do “Diálogo para o Mediterrâneo”. A sincronização das ações alimentará a alavancagem das duas organizações, permitirá ganhos de eficiência na cooperação bilateral dos Estados-membros com os países da região e evitará a dispersão de recursos. Para implementar esta proposta faria sentido criar um mecanismo informal de clearing house[7] que permitisse identificar as necessidades de cada parceiro e, simultaneamente, coordenar as contribuições de ambas as organizações evitando a duplicação de esforços. Seria assim possível à OTAN e à União Europeia otimizarem a cooperação nos seus domínios de conhecimentos e de competências. Há vários campos muito concretos onde é possível encontrar formas de cooperação orientadas para os desafios que se colocam a ambas no flanco sul. Refiro-me, por exemplo, à luta contra o terrorismo e ao controlo de fronteiras, temas da maior atualidade e de elevada prioridade na agenda de ambas as organizações. Este último assunto tem sido, de há uns anos a esta parte, objeto de grande atenção e interesse por parte da OTAN.
Com este arranjo, que não é mais do que uma extensão do quadro institucional existente, as duas organizações poderiam desenvolver uma cooperação conjunta com os estados do sul do Mediterrâneo, tendo sempre presente que teria de ser uma cooperação feita numa base de pares inter pares e no seguimento de necessidades identificadas pelos estados do sul, evitando paternalismos.
Apesar do debate acerca do “quem faz o quê” ser interminável, à que sublinhar o envolvimento da OTAN e da União Europeia numa iniciativa levada a cabo pela ONU para identificar as áreas onde a coordenação pode ser reforçada com base nos pontos fortes e nas áreas de competência das três organizações. O mapping exercise liderado pela ONU no domínio da reforma do setor de segurança, que contou com a participação da OTAN e da União Europeia, foi muito importante, porque tentou identificar as áreas onde a coordenação poderia ser fortalecida. Pretendeu-se com este exercício evitar duplicações de esforços com outros atores internacionais e aproveitar aquilo que cada um faz melhor.
A OTAN dispõe de competências ímpares no âmbito da reforma do setor de defesa, bem evidentes tanto no modo como ajudou à transformação das forças armadas dos países que emergiram do antigo espaço soviético e que se tornaram membros da Aliança, assim como nos esforços em curso com um número significativo de parceiros que integram a “Parceria para a Paz” e o “Diálogo para o Mediterrâneo”. Esse é claramente um instrumento que, com as devidas adaptações, tem um enorme potencial para ser empregue na lógica do novo arco de crises. Sem embargo da necessidade de prosseguir na conceção de medidas de banda mais estreita e de afinar as medidas já existentes, reforçar as capacidades de defesa dos parceiros do sul parece-nos ser, de momento, uma forma de atuação não negligenciável. As competências referidas são claras e evidentes na forma como a Aliança tem vindo a colaborar em ações de reforma do setor de defesa em Marrocos e na Jordânia. Contudo, é fundamental persuadir os restantes parceiros do Norte de África dos benefícios dessa cooperação, de modo a alargá-la à Argélia, Tunísia e Mauritânia, esta última extremamente vulnerável a ações de desestabilização propiciadas pela sua localização geográfica.
* Sócio Efetivo da Revista Militar.
[1] Numa abordagem mais lata, há até quem considere o Afeganistão incluído no “Sul”.
[2] Foram inicialmente constituídas seis NATO Force Integration Units (NFIU) multinacionais, na Bulgária, Estónia, Lituânia, Polónia e Roménia. Encontram-se previstas outras duas NFIU, na Hungria e na Eslováquia.
[3] O quartel-general do Corpo de Exército Multinacional Nordeste tem vindo a ser adaptado pela Dinamarca, Alemanha e Polónia para poder garantir a capacidade de comando a forças de alta prontidão destacadas nos estados bálticos e Polónia, se for necessário. A Roménia mostrou-se igualmente disponível para albergar um quartel-general multinacional de Divisão, na região sudeste do país.
[4] O conceito estratégico da OTAN aprovado na Cimeira de Lisboa, em 2010, articula-se em três “CoreTasks”: Defesa Coletiva, Gestão de Crises e Segurança Coletiva. De uma forma simplista, diríamos que a Defesa Coletiva tem a ver com o art.º V do Tratado do Atlântico Norte, a Gestão de Crises com as operações de gestão de crises e a Segurança Coletiva com as parcerias.
[5] Referimo-nos aos quatro quadros de parcerias: Parceria para a Paz, Diálogo para o Mediterrâneo, Iniciativa de Cooperação de Istambul e Parceiros Através do Globo.
[6] Para participarem na Interoperability Platform (IP), os países têm de cumprir vários critérios como, por exemplo, terem participado em operações da OTAN nos dois últimos anos. Uma vez que existem cada vez menos operações, torna-se difícil para países do Diálogo para o Mediterrâneo reunirem os critérios para permanecerem no IP. Marrocos poderá vir a defrontar-se com esse problema no próximo ano quando atingir os dois anos desde que terminou a sua participação na KFOR. Outros critérios incluem a participação no OCC, PARP, ou NRF. A Jordânia preenche todos estes requisitos. A Tunísia aderiu recentemente à PARP, permitindo assim a sua inclusão no IP, no biénio 2015-16.
[7] Expressão normalmente associada aos mercados financeiros. É aqui empregue como um fórum onde é difundida aos doadores (Estados ou organizações) informação sobre as necessidades a suprir e onde aqueles podem coordenar os programas de assistência evitando duplicação de esforços.
Major-general do Exército Português, na situação de reserva.
Presentemente, é investigador do Instituto Português de Relações Internacionais.