O texto desenvolve a comunicação proferida na Sala dos Atos Académicos do Convento de Mafra no âmbito do 1.º Dia Nacional das Linhas de Torres Vedras, celebrado a 20 de outubro, conforme deliberação por unanimidade da Assembleia da República, a 17 de outubro de 2014. Para tanto, o autor agradece o honroso convite formulado pela Câmara Municipal de Mafra nas pessoas do seu Presidente, engenheiro Hélder Silva, e do dr. Saldanha Lopes, da Casa da Cultura do Município, para dissertar sobre o assunto em apreço.
Presentes também na audiência Presidentes de Câmara e representantes da Plataforma Intermunicipal e da Rota Histórica das Linhas de Torres (Mafra, Loures, Torres Vedras, Sobral de Monte Agraço, Arruda dos Vinhos e Vila Franca de Xira), deputado representante da Assembleia da República, representante da Embaixada da Inglaterra em Lisboa, comandante da Escola das Armas, Diretor da Direção de História e Cultura Militar, Diretor das Infraestruturas do Exército e demais entidades convidadas e público em geral!
Perante o tema sugerido, «As Linhas de Torres, Waterloo e a Construção da Europa», a abordagem do tema é tripartida e feita numa base de complementaridade assente num fio condutor analítico de e para as Linhas de Torres, passando pelos modelos de construção europeia, ao longo do tempo histórico, e a atual problemática dos refugiados do Mediterrâneo.
E de súbito 1789, o ano da Revolução Liberal Francesa. Resultante de uma complexa relação triangular entre a monarquia, as classes privilegiadas e o terceiro estado (povo), curiosamente, a revolução começou por ser uma manifestação de repúdio nobiliárquica contra o Rei e a sua política de aproximação entre deveres e direitos para todos, antes de o terceiro estado a transformar numa revolução anti classes privilegiadas e, posteriormente, contra a própria monarquia. São estes os três estádios sucessivos de um movimento revolucionário que conduzirá a França, a partir de 1793, a uma República iluminista internamente opressiva e externamente agressiva, pondo em causa os pilares seculares da ordem política e social do Antigo Regime europeu.
Num primeiro momento, entre 1789 e 1792 (Convenção), na Europa, os acontecimentos em França suscitam, por um lado, a atenção dos soberanos e, por outro, a curiosidade e a simpatia de uma parte da opinião pública. É um tempo de expectativa. Que rapidamente evolui, pois os acontecimentos em França exercem nos vizinhos um certo contágio, originando movimentos contra os príncipes, os senhores e o clérigo.
Por esta via, entre 1792 e 1799 (Diretório), a Europa mergulha numa nova fase. A França revolucionária passou a manejar, com ferocidade, a argumentação ideológica e a estabelecer ou a divulgar os seus ideais além-fronteiras, nos lugares estratégicos orientados para os seus objetivos. Assiste-se, então, à rutura entre a França revolucionária e os soberanos europeus que procuram entre si a cooperação política e a convergência militar, de forma a esmagarem a revolução nos seus termos e a salvaguardarem a ordem europeia estabelecida.
A terceira etapa, entre 1799 e 1815 (Consulado/Império), é dominada pela personalidade de Napoleão Bonaparte e a ambição de uma ordem europeia imperial centrada em Paris. Napoleão aproveita a generosidade humana e a disponibilidade material da revolução e amplia os seus efeitos, conjugando o vetor militar, enquanto meio de conquista, com a administração territorial, como método de subjugação e usufruto. Se a revolução, do período da Convenção e do Diretório, não conseguiu crescer para além da margem esquerda do Reno e da Itália, com Napoleão estende o seu domínio às extremidades da Europa, da Península Ibérica à Polónia e das províncias da Ilíria à Dinamarca. O grande Império, no seu apogeu, em 1810-1811, cobre metade de uma Europa profundamente remodelada e com as suas fronteiras alteradas.
O Império apresentava três categorias de territórios: (i) a França dos 130 Departamentos, que incluía ainda regiões belgas, suíças (Basileia) e das Florestas (atual Luxemburgo); (ii) Estados vassalos, nomeadamente, reino de Itália, de Nápoles e da Holanda, a Confederação Helvética, a Confederação do Reno (sul da Alemanha), unidades políticas do norte germânico como o reino de Vestefália, o Ducado de Varsóvia (Polónia); Países ocasionalmente aliados, como a Espanha ocupada, a Prússia subjugada e a Áustria manietada.
A Europa vivia nessa época uma guerra generalizada, marcada pela subida aos extremos da violência armada, uma retração comercial preocupante, o aumento desenfreado do desemprego e um êxodo populacional de proporções alarmantes tanto intra como inter estados.
No entanto, a unidade imperial europeia sob uma identidade liberal e republicana francesa sonhada por Napoleão esbarrou em três obstáculos que se revelaram intransponíveis: (i) a incapacidade de dominar o mar e, com ele, os proveitos comerciais, onde velava quase sem restrições a Grã-Bretanha; (ii) o malogro da subjugação da Rússia, que anulou a expansão da águia imperial para leste; (iii) a não aceitação de preitos de homenagem à opressão por parte das populações nacionais, que inviabilizou a conquista dos corações e acicatou ódios e paixões.
O período que medeia entre 1793 e 1815 é dos mais complexos e perigosos da História de Portugal, durante o qual o País foi invadido, por cinco vezes, por contingentes franco-espanhóis, em 1801 e 1807, e franceses em, 1809, 1810 e 1812.
A rivalidade europeia entre o poder marítimo britânico e o terrestre francês vinca a fatalidade geográfica e a importância funcional do conjunto geopolítico português (território continental, ilhas Atlânticas e Brasil). A posição central do seu espaço continental, que servia de praia de desembarque do poder marítimo ou linha de defesa do poder terrestre, associada à premência da pressão espanhola, fez de Portugal um território por onde a guerra inevitavelmente passava.
Incapaz de sustentar a neutralidade devido a divergências ideológicas, incoerências estratégicas da estrutura superior do Estado e à ausência de um aparelho militar dissuasor, a ambiguidade marcou a conduta da política externa portuguesa.
Depois de Napoleão perder capacidade naval com a derrota em Trafalgar (1805), o destino de Portugal fica selado: o imperador não pode permitir que o País seja uma cabeça de praia da Inglaterra no continente. Impõe então o Bloqueio Continental destinado a isolar a Grã-Bretanha e a estrangulá-la economicamente. Entre o dilema da invasão militar francesa ou da asfixia económica britânica, Portugal assume a aliança luso-britânica. Consumavam-se, desta forma, as invasões francesas e a presença militar britânica, fazendo de Portugal teatro de operações no confronto anglo-francês.
Viveu-se a partir de então num ambiente de guerra, feita de paixões e ódios sociais, probabilidades e acaso militares e alguma racionalidade política. Em Portugal, nos anos de 1807-1811, a resistência às invasões napoleónicas assentou na retirada da família real para o Brasil, furtando a legitimidade de ocupação do trono a Napoleão, na exortação à resistência por parte do padroado em nome da Santa Religião, no levantamento em massa dos camponeses a bem da Nação, no erguer da espada por militares licenciados que constituíram aguerridas milícias regimentais para defesa dos direitos régios e no comando de militares britânicos que, sob os auspícios da velha aliança, organizaram um eficiente exército regular aliado luso-britânico.
No início do outono de 1810, o caos está instalado na região centro de Portugal. As populações da Beira Interior refugiam-se da presença militar francesa que operavam na região e na Beira Litoral assiste-se a um deslocamento desesperado de populações em fuga para sul, à conta da aproximação dos efetivos de Masséna.
Mas, na verdade, a 30 de setembro, ainda reinava uma certa calma em Coimbra, nomeadamente depois de se tomar conhecimento que os franceses tinham sido copiosamente derrotados na serra do Buçaco pelos luso-britânicos, três dias antes. Por isso, não deixa de ser irónica a estupefação da população quando, a 1 de outubro, vê chegar à cidade um ofegante exército aliado que, a marchas forçadas, mais parecia derrotado, trazendo na peugada um exército à laia de vencedor. Entre os anseios e receios, a população recebe ordem de evacuação e retirada imediata da cidade. Formou-se então uma torrente de dezenas de milhares pessoas espalhada nos caminhos ao longo de vários quilómetros, que, com parcos haveres, apressou o passo na direção de Lisboa, ao mesmo tempo que um conjunto de embarcações levaram um mar de gente embarcada na Figueira da Foz, tendo também Lisboa como destino.
Para Wellington não havia alternativa para as populações que não fosse fugir ou sujeitar-se à retaliação dos franceses, que tinham Coimbra como «terra da promissão», dado o estado de penúria em que se encontravam.
Coimbra tornou-se uma cidade quase fantasma, que seria sofregamente lapidada pelos franceses, enquanto as áreas que ficavam para trás das populações deslocalizadas para Sul representavam a negação de tudo aquilo que fazia falta a um exército invasor.
A 8 de outubro, exatamente quando começaram a cair as primeiras chuvas do outono, as unidades de vanguarda do exército aliado entram nas linhas de defesa construídas a norte de Lisboa e Lord Wellington posiciona-se no alto de Santo Quintino perscrutando o horizonte na direção de Alenquer, aguardando que os franceses surgissem na linha do horizonte.
Para o comandante operacional do exército aliado luso-britânico o plano decorria conforme previsto.
De facto, na primavera de 1810, já se sabia em Portugal, devido à ação de espionagem dos ingleses, que estava em preparação um colossal contingente militar para novamente invadir Portugal. O espaço temporal entre esta data e a da concretização da invasão (meados de agosto) permitiu urdir um plano e desenvolver uma estratégia para, uma vez mais, anular a ameaça. A estratégia de Lord Wellington no essencial consistiu: (i) barrar o eixo da Beira Alta com o “ferrolho” de Almeida (que não funcionou), por onde penetrou o exército de 65 000 franceses do Marechal André Masséna; (ii) defender Portugal longe da capital (através de ações militares contra o inimigo a partir da fronteira); (iii) evitar empenhamentos decisivos a não ser em situações muito favoráveis (como aconteceu no Buçaco); (iv) efetuar uma ação retardadora trazendo os franceses na sua peugada, de molde a desgastá-los e privá-los de recursos (milícias populares e regimentais); (v) atrair o inimigo para o sistema defensivo edificado a norte da capital (segredo da derrocada napoleónica).
Em 11 de outubro de 1810, o desgastado exército de Masséna esbarra nas Linhas de Torres, sistema defensivo construído a norte de Lisboa e destinado a impedir a progressão em direção à capital portuguesa. A 14 desse mês, o comandante francês, que tomou contacto com as fortificações perto de Alhandra, quedou-se surpreso diante de tão notável obra de engenharia militar.
Fixemos as especificidades arquitetónico-militares das Linhas de Torres Vedras.
Inseridas, como vimos, na estratégia defensiva de Lord Wellington, que recuperou os planos de 1808 do Major de Engenharia português José Maria da Costa Neves e responsabilizou o Coronel inglês Richard Fletcher pela condução dos trabalhos em 1809-1810, formavam um conjunto de 153 fortes e redutos distribuídos por três linhas principais e guarnecidas por cerca de 100 000 homens (30 000 britânicos, 8 000 espanhóis e, do lado português, 25 000 tropas de linha, 25 000 milícias e 12 000 ordenanças). Construídas no maior segredo durante o ano de 1810, nelas trabalharam fundamentalmente os cidadãos das localidades circundantes, num total de 50 mil pessoas, que se revezaram de semana a semana, sendo chamadas mediante requisição.
Com os flancos protegidos e estendidas num terreno acidentado com 85 km entre o Atlântico, a Oeste, e o Tejo, a Este, materializavam a defesa avançada de Lisboa, barravam os itinerários da margem esquerda do Tejo e permitiam, em caso de insucesso, o embarque dos contingentes militares ingleses.
A 1ª Linha ia da foz do rio Sizandro, a Oeste, até Alhandra, a Leste, passando pelos importantes nós de comunicações de Torres Vedras, Sobral de Monte Agraço e Arruda dos Vinhos.
Compreendendo o maior número de fortes, de homens e peças de artilharia, era maioritariamente guarnecida pelas milícias e ordenanças. Destinava-se a suster e a repelir o inimigo ou, pelo menos, a aguentar o mais possível o seu ataque, permitindo a organização e a entreajuda dos efetivos da 2ª linha. A 1ª Linha foi edificada depois da 2ª Linha, aproveitando-se o tempo disponível que as ações de retardamento do exército aliado luso-britânico fizeram à tropa de Masséna a partir da fronteira na Beira Alta.
A 2ª Linha, paralela à primeira e que distava cerca de 30 km para Norte de Lisboa, ia desde Ribamar (a Norte da Ericeira), barrava os desfiladeiros de Mafra, Venda do Pinheiro, Montachique, Bucelas e terminava em Vialonga/Alverca, aí bloqueando acessos. Constituindo a principal linha defensiva, estava ocupada preferencialmente pelo exército de linha e destinava-se a dar profundidade à defesa e a suster o avanço inimigo em caso de rutura da 1ª linha. Permitia também lançar eventuais contra-ataques, razão pela qual a cavalaria foi aí colocada, a maioria no flanco direito, de forma a atuar na região plana do Tejo e em terreno pouco inclinado entre as duas linhas.
A 3ª Linha ia desde o forte das Maias ao de Santo António do Estoril, cuja principal função consistia em servir de área de retaguarda e de base de exfiltração dos ingleses se a operação falhasse.
Adicionalmente, na margem Sul foram construídas mais duas linhas de fortificações, fechando a península de Setúbal.
No tocante às 1ª e 2ª Linhas, as mais importantes do sistema defensivo, importa salientar taticamente a existência de interdependência entre os vários fortes (apoio mútuo) e entre as duas linhas (profundidade), mediante a existência de caminhos desenfiados e trincheiras, que possibilitava o deslocamento de tropas, armas, munições e víveres, bem como o balanceamento de forças. À frente de cada forte o terreno foi trabalhado, de forma a dificultar o acesso e houve ainda o cuidado de identificar e guarnecer pontos de observação, operacionalizar patrulhas, eliminar os pontos mortos que favorecessem a aproximação furtiva do inimigo e criar-lhe zonas de morte através da triangulação de linhas de fogo entre fortes.
As guarnições dos fortes estavam prontas para aí viverem sine die, devido às linhas de comunicações e de abastecimento existentes, tanto pelo mar e pelo Tejo como por via terrestre, que ligavam a Lisboa. A ligação e o comando eram garantidos pela sinalética das bandeiras e uso de luzes e o Tejo era patrulhado por lanchas bombardeiras que impediam a sua travessia de uma margem para a outra.
Perante este cenário não se afigurava fácil a vida para o Marechal Masséna. Jamais suspeitando da existência deste esquema fortificado, ficou estático e apreensivo à frente de um exército exaurido de cerca de 45 000 soldados. Efetuou, então, reconhecimentos minuciosos e testou, sem sucesso, o flanco Leste da 1ª Linha (junto ao Tejo). Concluiu que sem reforços lhe era impossível ir mais além. Ali se quedou até meados de novembro, aguardando pelos reforços que Napoleão, mais preocupado com os preparativos da campanha da Rússia, nunca atendeu. Desiludido, retirou para a zona de Santarém, ficando sob observação de Wellington a partir do Cartaxo.
O inverno consumou-se numa autêntica guerra de nervos de parte a parte. Enquanto a produção de cereais e frutos estremenhos eram carregados para a capital, a fome, as doenças, as baixas e as deserções iam grassando no lado francês. A dada altura, Masséna toma consciência de estar a ser encurralado: à frente tinha as Linhas de Torres, das quais tinha apenas uma pequena ideia do seu real valor defensivo; nos flancos estavam as praças de Peniche e Abrantes, cujas guarnições efetuavam frequentes surtidas ao acampamento francês; na sua retaguarda estavam as milícias do Norte, que desde Coimbra vinham na peugada dos franceses, cortando-lhes as linhas de comunicações e abatendo efetivos desgarrados.
Em desespero de causa, em fevereiro de 1811, o marechal francês procura atravessar o Tejo na Chamusca para, através da margem esquerda, contornar as Linhas. Porém, as populações ribeirinhas afundaram as embarcações disponíveis para o efeito.
No início de março de 1811, no auge do desespero e depois de um saque geral a Santarém, Masséna, abandonando os mortos e deixando os feridos entregues à sua sorte, rompeu o contacto e retirou com o exército esgotado pelo mesmo itinerário com que invadira Portugal, segundo a direção Santarém-Pombal-Coimbra-Celorico-Guarda-Sabugal-Ciudad Rodrigo. Aí chegou a 17 de abril, sempre sob efeito da contínua pressão do exército aliado luso-britânico e sob constantes ações de flagelação das tropas irregulares lusitanas.
Masséna ignorou em Portugal, como antes dele Junot e Soult, a máxima de que os pequenos corpos militares estão sujeitos a serem aniquilados devido à resistência ativa das milícias populares e regimentais, e os grandes exércitos a passar fome, atendendo à orografia de um território parco de recursos e aos camponeses pouco atreitos a colaborar com a intrusão e a contusão.
E as tropas francesas experimentaram ainda a essência do ser português: (i) a rudeza e rusticidade do povo conservador do interior que, associadas aos pergaminhos do apego à terra que é a pequena pátria de cada um, acometeu a varapau um intruso agressivo que exigiu pão e cama apresentando como salvo-conduto pergaminhos ensanguentados; o carácter conciliador da gente do litoral, sonhadora e empreendedora, mas pouco atreita a não enfrentar, com coragem por vezes suicida, águas revoltosas que condicionem a sua existência e o bem-estar da comunidade; e que dizer do português estremenho que, à sombra de Lisboa, resguarda ciosamente o conjunto da portugalidade inalienável, não hesitando em erguer paredões intransponíveis conjugando os quatro elementos da natureza – água, terra, fogo e ar.
A verdade é que o suposto projeto continental europeu sonhado por Napoleão Bonaparte foi travado na ponta ocidental da Europa, em 1810, através da edificação das Linhas de Torres, consensualmente a mais notável obra de engenharia militar da guerra; complementado a Leste, em 1812, pela vastidão do território e os rigores do inverno russo e a ação dos cossacos. Em Portugal, território de reduzida profundidade e diminuto espaço de manobra militar, o exército invasor viu ser-lhe negada a progressão através de uma defesa em profundidade desenhada a norte de Lisboa, mediante a edificação de fortes plantados transversalmente de «costa a costa». Na Rússia, onde o território é infinito, a estratégia foi ignorar o inimigo, trocar espaço por tempo e deixá-lo auto liquidar-se.
E afinal, que projeto de unidade ou unificação europeia tinha Napoleão em mente? Uma reedição unida dos impérios franco de Carlos Magno e germânico de Otão I.
O Império Carolíngio, datado de 800, altura em que o Papa Leão III corou o franco Carlos Magno (tal como Napoleão o fez, em 1804, em Notre Dame, com o Papa Pio VII), além de restaurar o Império Romano no Ocidente, concedeu à Europa a coerência político-social anulada pelas invasões dos «povos bárbaros», nos séculos anteriores, e pela pressão expansionista islâmica, verificada a partir do século VII. Tratava-se de um império que se estendia do Elba ao Atlântico e do Mediterrâneo ao mar do Norte, concretamente, da atual França à Hungria e da Península Ibérica aos Países Baixos. Curiosamente, trata-se de um império cujos contornos territoriais surgem muito próximos dos da Comunidade Económica Europeia (CEE) do Tratado de Roma (1957), constituída por seis países. Durante o século IX, o império não resiste à erosão do tempo e à inabilidade política dos sucessores, desmembrando-se.
Segue-se, no século X (962), a criação do Sacro Império Romano-Germânico, através da investidura, pelo Papa João XII, do saxónico Otão. Trata-se de uma reedição do império carolíngio, centrado agora no espaço germânico, que assimila a Germânia, a Itália e a Borgonha. À época, o Império de Otão I apresenta-se como a única potência cristã a Oeste do Adriático. Sofrendo vicissitudes várias, o Império atravessa o modus bellum dos séculos XI-XIII, mergulhando na anarquia, em meados de 1300.
Depois de Carlos Magno e Otão I nunca se esteve tão próximo de uma Europa política do que com Napoleão Bonaparte. Uma Europa que estenderia o Império Romano do Ocidente na direção do Império Romano Bizantino a Oriente, que a fracassada conquista do Império Turco Otomano e da Rússia inviabilizou, e ampliaria o conjunto para Sul do Mediterrâneo, se não fossem as inconclusivas ocupações do Egipto e do espaço limítrofe.
Esta Europa de ambição pessoal atraiu, todavia, o ódio geral. O resultado foi a progressiva formação interestadual de coligações anti napoleónicas e o desenvolvimento de arreigados movimentos populares nacionais que abateram o projeto, anularam o mentor e deu continuidade à Europa dos Estados-Nação. De facto, Napoleão seguiu de vitória em vitória até à derrota final, constituindo a Península Ibérica e a Rússia o estertor do dobre de finados recebido em Waterloo, em 1815. Para trás ficava um continente devastado pela guerra generalizada. A experiência napoleónica demonstrou que a Europa não se pode criar através da conquista e que os Europeus não podem ser motivados pela baioneta em prol de um desígnio comum em benefício de uns quantos, como os Franceses à época.
Igual desiderato experimentou, mais de cem anos decorridos, Adolfo Hitler que, com a política do espaço vital e a genocida visão da superior raça ariana, gerou uma estratégia expansionista confinada à força para unificação de uma Europa para usufruto alemão. À semelhança de Napoleão, também o Ocidente continental foi subjugado e o centro leste ocupado durante a II Guerra Mundial. No entanto, e tal como aconteceu a Napoleão Bonaparte, a resistência britânica, a que se juntou o esforço industrial e militar americano, e o desastre da invasão das estepes da moscóvia ditaram o ocaso do império hitleriano. O Reich dos mil anos fracassou com estrondo e a Europa autoflagelada saiu do centro do mapa-mundo.
Enfim, foram modelos que, apoiados na coercividade, não se sustentaram, ficando explícito que obrigar o estrato humano das regiões ocupadas à obediência foi uma prova que não vingou. É também percetível que, historicamente, a Europa é um espaço de territórios múltiplos, de História violenta e de linhas de separação pouco pacíficas. Um espaço geopoliticamente heterogéneo que procura a unidade política, a convergência económica e o esbatimento da limes geográfica e cultural. Uma Europa que, durante séculos, foi varrida por exércitos, conheceu cismas religiosos, viveu a anarquia político-social, mas que atravessou períodos de grande fulgor civilizacional e os exportou para o mundo «plantando-se» no seu centro até à II Guerra Mundial.
E é das cinzas da Guerra Mundial 1939-1945 que a Europa se ergue a custo e define um modelo de unidade, assente na cooperação política dos estados e na boa vontade dos povos. Para o efeito se constituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em 1952, e a Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1957. E, por essas vias, a Europa Comunitária, que evoluiu para uma união supranacional em termos económicos e apresentou o Euro como unidade monetária, é presentemente um caso ímpar de sucesso a nível de cooperação, segurança e bem-estar. Um caso de sucesso de tal amplitude que da União Europeia dos vinte e oito Estados-membros só não fazem parte a Europa das estepes e alguns países balcânicos.
O alargamento verificado, desde Roma (1957) até à Europa dos doze (1985), constituiu um processo eficaz que, no fundo, constituía a Europa experimentada «à força» no tempo Carolíngio e do Santo Império Germano-Romano. Os estados «dessa Europa» apresentavam uma linha homogénea nos seus contornos identitários. Com as adesões da Áustria, da Finlândia e da Suécia (1995), a estrutura institucional ressentiu-se, mas conseguiu uma adaptação capaz. Depois, a Europa dos quinze «saltou» para a Europa dos vinte e cinco Estados-membros (2004), depois vinte e sete (2007) e, por fim, vinte e oito (2013), onde as exigências a colocam perante a responsabilidade de integração harmoniosa de um espaço geopoliticamente heterogéneo, um mosaico cultural complexo e de mentalidades profundamente enraizadas, apoiando-se na convergência do Euro.
A Europa foi, portanto, varrida por exércitos durante séculos, conheceu cismas religiosos, viveu a anarquia político-social, mas que atravessou períodos de grande fulgor civilizacional e os exportou para o mundo. E, em certa medida, os seus fatores continuam atuais, onde as classes dirigentes dos estados se relacionam dificilmente quando o tema é território e segurança, riquezas ou influência.
E é na identidade geográfico-cultural que reside um dos maiores desafios da União Europeia. Desafio que a problemática dos refugiados do Mediterrâneo coloca com especial acuidade e que não deixa ninguém indiferente.
Antes de analisarmos a situação, olhemos os factos:
1. O Sul do Mediterrâneo releva de instabilidade política e social, caracteriza-se por ter baixos índices de produtividade e desenvolvimento e apresenta um elevado índice populacional, materializado numa população jovem, dinâmica, instável e frustrada, em que a guerra é parte recorrente do quotidiano e o islamismo a força dinamizadora;
2. A Norte estão as mais pujantes economias do mundo. Habitada por 500 000 000 pessoas, mas estagnada em termos de rejuvenescimento demográfico, os valores judaico-cristãos e a esfera familiar, que foram a matriz congregadora das sociedades, cedem lugar ao individualismo, ao relativismo e à centralidade do «eu» em detrimento «do nós e de Deus»;
3. Foram países do Ocidente, como os Estados Unidos, o Reino Unido, a França ou a Alemanha que alienaram, através de ingerências políticas e intervenções militares, o sistema político e desagregaram sociedades em países como a Líbia, a Síria ou o Iraque, onde irromperam guerras civis e se instalaram organizações terroristas do califado ou da al-Qaeda;
4. Assiste-se à maior vaga de refugiados desde o fim da II Guerra Mundial, na maioria sírios, mas também iraquianos, líbios, afegãos, sudaneses ou eritreus (entre outros). Os países europeus mais fustigados pelas vagas de refugiados são os «ribeirinhos», como a Grécia, a Itália, a França ou os balcânicos. A maioria dos refugiados acantona-se, contudo, nas terras limítrofes do sul do Mediterrâneo, em países islâmicos, como o Egipto, o Líbano, a Jordânia ou a Turquia;
5. Países como a Rússia ou o Irão (patrocinadores do regime sírio de Assad) e os arábicos dos petrodólares, como a Arábia Saudita, Kuwait, Qatar, Emirados Árabes Unidos ou Omã recusam-se a abrir portas;
6. Neste momento acompanhamos, por um lado, a paranoia militar da Rússia que bombardeia indiscriminadamente os rebeldes sírios, que se opõem às forças governamentais de Bashar al-Assad e, por outro, à continuação do apoio das forças ocidentais a esses mesmos rebeldes. Tudo e todos têm como bom tema o combate ao autodenominado «Estado Islâmico» que, contudo, evolui na sanha torcionária enquanto as populações locais vivem num inferno que os impele em direção ao Mediterrâneo, que se transformou num caixão de águas profundas sem fim à vista.
Nesta questão dos refugiados podemos também registar três perspetivas, nomeadamente, a idealista, a realista e a catastrófica, que deixo à consideração:
Perspetiva Idealista (ONU, Igreja Católica, Instituições Comunitárias e Organizações Humanitárias): assiste-se a uma inaceitável tragédia humanitária a Sul do Mediterrâneo, com seres humanos à deriva no mar, crianças que beijam as areias arrastadas pelas marés e famílias em pânico barradas por muros ou arame farpado, a Norte. O refugiado é um ser humano e a urgência é que a riqueza a norte acolha e dê inserção à pobreza do sul. É plausível que as pessoas e as famílias a quem for dada guarida na Europa adotem os padrões de vivência comportamental semelhantes aos dos países de acolhimento.
Para a visão idealista, o problema é humanitário que urge ser resolvido com compaixão!
Perspetiva Realista (Estados-membros da UE): trata-se de uma conjuntural vaga de gente que foge da guerra e dos horrores do terrorismo que martiriza inocentes ou que procura novas e melhores condições de vida. Receiam os anseios sociais, pressão económica e alienação de valores de uma migração passível de ações insidiosas intraeuropeias. Proclama-se compaixão pelos refugiados, mas cada país recetor teme tornar-se vítima da própria situação. O que equivale a constatar que cada estado «exporta» o problema para o vizinho. A migração é um risco geopolítico e impõem-se medidas militares urgentes para varrer as organizações terroristas dos países de origem dos refugiados de modo a normalizar a vida quotidiana, tornar seguras as zonas de proteção e investir em pessoal e infraestruturas para fixação das populações nos locais com acolhimento garantido nos países a Sul, nomeadamente no Egipto, Líbano, Jordânia e Turquia!
O ocidente comunitário é mais inclusivo e propõe quotizações; o Leste (Croácia, Hungria, Eslováquia, República Checa ou Polónia) mais irredutível, levanta barreiras. Ao centro, a bondade germânico-austríaca não pode deixar de causar perplexidade! Falta, na verdade, uma política comum da União Europeia que atalhe um problema que é comum.
Para a perspetiva realista, trata-se uma pressão migratória que deve ser gerida!
Perspetiva Catastrófica (Sociedades/cidadãos): está-se perante uma perigosa e deliberada invasão islâmica de massas destinada a corroer os valores democráticos de uma sociedade laica, motivando medos securitários que pode conduzir à sua desagregação. Como Roma, há 1500 anos atrás, que implodiu à conta da fraqueza dos governantes, fragmentação das elites aristocráticas, da quebra de disciplina das legiões e da inserção dos bárbaros germanos, a norte, dos godos, a este, e dos vândalos, a sul, que minaram a coesão social. Permaneceu firma a Igreja, que reconstruiu espiritual e socialmente um continente e que legou até ao presente o mosaico judaico-cristão, assaz ignorado no presente.
Para a perspetiva escatológica, a questão remete para uma invasão que representa um perigo social que pode revelar-se catastrófico e, como tal, deve ser contido!
A Europa Comunitária está, como se percebe, perante um nó górdio! Como desatá-lo é o dilema em apreço. Para grandes problemas impõem-se grandes e sustentáveis soluções, que exigem medidas concertadas e carecem de líderes adequados. Eis a grande questão!
E Portugal?
Sinceramente, e ao contrário das invasões napoleónicas que foram combatidas com especial fervor pela Nação Portuguesa e definitivamente barradas nas Linhas de Torres, não parece que a presente situação possa ser resolvida acicatando forças de bloqueio.
Portugal é um país envelhecido e a definhar demograficamente, que está em paz consigo mesmo e com o mundo em geral, pese embora ter olvidado Deus e alienado as forças militares, como sempre acontece, infelizmente, em momentos de bonomia.
Portugal, enquanto país periférico europeu, não está na rota dos refugiados, nem o país é visto como um el-dourado a atingir. Mais do que terra de imigrantes (atualmente 13% da população), Portugal é, desde sempre, um país de emigrantes e fora de portas estão 4 a 5 milhões de compatriotas! É de recusar a entrada de 4-5 mil refugiados, sobretudo dentro de uma esfera de partilha de responsabilidades europeia? Portugal recolheu cerca de 500 000 retornados das ex-colónias africanas, na década de 1970, dezenas de milhares de africanos de língua portuguesa, na década de 1980, e alguns milhares de países de leste, na década de 1990. Sem sobressaltos, nem problemas.
Se há qualidade que ninguém nega aos portugueses é a sociabilidade. Como escrevia Aquilino Ribeiro, “o português é o homem mais sociável deste mundo. Fraterniza em casa com quantos estrangeiros lhe apareçam, em África fê-lo com o gentio e na guerra com o inimigo”. Somos gente de cá e de além-mar e terra de hospitalidade. Por isso, os refugiados terão neste terreiro bem plantado na Ibéria e sobranceiro ao oceano um canto de acolhimento. Para eles não se erguerão linhas de betão que barre acessos, nem fortalezas de moralidade que neguem inclusão nem tão pouco taludes chauvinistas que questionem a interação relacional. Não sendo surpreendente a movimentação da sociedade, através das instituições estatais, das dioceses da Igreja Católica, das Misericórdias e até do português de per si – Plataforma de apoio ao Refugiado.
O Português é profundamente humano, sensível e bondoso, sem ser fraco. Não gosta de fazer sofrer e evita conflitos. Mas é resistente à adversidade e inapelavelmente violento e cruel quando ferido no seu orgulho e violentado no seu patriotismo. O Português dá pão, cama e luz a quem vier por bem; e destila ódio perante a intromissão e a contusão. Foi o que aconteceu aos invasores de 1810, para quem as Linhas de Torres se revelaram remédio santo!
Duzentos anos depois, se a orografia das linhas ainda se mantém e os fortes, na sua maioria, foram recuperados da degradação dos elementos para memória histórica, as características do terreno onde se desenvolveu o sistema fortificado mudaram, sobretudo ao nível da hidrografia e ao da vegetação, que ocupou largos espaços outrora aptos à observação, às linhas de fogo e ao deslocamento de patrulhas. Um observador atento que se posicione em alguns dos fortes existentes não pode deixar de reviver as angústias de um Masséna atávico à frente de tropas francesas impotentes, bem como a determinação das tropas portuguesas e britânicas atentamente posicionadas nos fortes, a azáfama dos paisanos no trabalho defensivo do terreno ou a adrenalina dos comandantes em trânsito entre linhas.
As Linhas de Torres formam um conteúdo temático que a memória não apaga e um observador cortês curva-se mecanicamente em homenagem dos milhares de homens que ergueram pedras em segredo, vigiaram atentos e velaram a intransponibilidade de um sistema fortificado que decidiu o curso da guerra em Portugal.
Militar Historiador. Sócio Efetivo da Revista Militar.