RM, 70, 5, Mai, 1918, pp. 288-295
(curiosa abordagem – que nem sequer evita um elogio às qualidades do povo alemão – a respeito do relacionamento entre o Exército e a sociedade, com especial ênfase nas dificuldades e falhas do recrutamento e da instrução e no seu emprego nas tarefas de segurança interna)*
O que a desordem social pode acarretar a um país, ninguem apto para pensar ha que o desconheça, senão no seu maximo efeito, no bastante para poder avaliar que é a tal ponto nociva que só a condenação absoluta merece.
Explanar as razões das desastrosas consequencias dessa desordem, é cair na vulgaridade das afirmações em que poderia expandir-se o respectivo Calino.
Tem sido motivo de pasmo, o grau de resistencia oferecida pela Alemanha ao esforço coligado de tantos povos, que com os alemães se poseram em luta. Pois esse grau assombroso de resistencia inesperada tem uma unica fonte, uma unica razão: – a disciplina social verdadeiramente invejavel desse povo, cuja educação sob o ponto de vista patriotico não tem outra igual.
E se precisassemos ainda de mais exemplos alem dos que a historia já nos oferece do cataclismo a que a indisciplina social pode conduzir, tê-los-iamos aí expostos ao nosso criterio, esmagadores em evidencia, um descalabro porque está passando o colosso que foi a Russia, cujos destinos tão grandiosos se nos afiguravam.
Em Portugal a desordem vem minando mais intensivamente os diferentes elementos sociais ha uns 30 anos a esta parte. Homens ponderados e de vistas claras assinalaram o perigo num esforço só louvavel, que se manifestou na imprensa, especialmente na militar, e naquelas reuniões em que as questões sociais mais propriamente se debatem. A corrente de dissolvencia, porem, era demasiado forte, para que o limitado numero de campeões em campo a conseguisse travar. As erupções irromperam, e se guiadas pela Razão delas poderiam derivar beneficios compensadores dos estragos a que deram logar, a verdade iniludivel é que com o desmoronamento dos esteios em que a podridão lavrava, abalaram juntamente as colunas em que a Moral se ergue e donde a Luz irradia.
Se a desordem minava tão fundo, outras não poderiam ser as consequencias.
Era fatal. E de rôdo com o desmoronamento social que assim se desencadeou, o exercito – reflexo sempre da Sociedade e da Sociedade constituindo sempre um elemento embora simultaneamente lhe seja um apoio –, o exercito, diziamos, cambaleou, e se já se não afundou de todo no cáos que era de recear, é porque ainda o ampara o sentimento que tem da Patria carecer do sangue dos seus filhos em holocausto á vida dela, neste momento dificil.
A guerra, porem, que hoje anima o exercito, ha de ter um fim; e, após ela, as lutas que se desencadearem pelas conquistas das aspirações que veem dominando as massas populares, bem poderão subverter de todo a instituição militar, essa força unica a que tantas Patrias que se soergueram devem a sua salvação. Não é de pessimista este raciocinio: a farta sementeira de ideas subversivas justifica-o.
Ainda será tempo de sustar a hecatombe?
Parece que ha vontade de se restabelecer de facto a Ordem. Alentos de vida ainda não extinta, dessa vida que tão pujante foi, manifestam-se em arquejos que ainda teem força e podem ganhar expansão que baste a revigorar o nosso combalido organismo. Não nos faleça então o animo, redobremos de energia e dêmo-nos á obra redentora que nos eleve a sobrepujar o perigo.
E seja pelo exercito que comecemos. Vamos! Mãos á obra.
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O exercito deve ser para o país a escola da obediencia e da moralidade, é tese estabelecida ha bastantes anos por um dos mais ilustres dos nossos oficiais. Nas circunstancias em que nos debatemos não é facil levar o exercito tão breve quanto seria para desejar a ser o que exprime a aspiração contida na tese exposta. Estudada a etiologia do mal que invadiu o exercito, conhece-se que esse mal tem ligações muito intimas com a anormalidade que tem assinalado a época iniciada em outubro de 1910. O conhecimento e o sentimento do dever em que se apoia a disciplina militar, tem por principal elemento de formação a educação geral do todo que se designa Sociedade, vindo a ser a educação militar um complemento da educação social; e, sendo esta viciosa, aquela acha-se consequentemente dificultada pelas más condições de proseguimento com que esbarra e tanto mais quanto essas más condições forem falsas.
Contudo, uma acção intensa exercida no exercito pelo seu corpo educador, pode produzir resultados muito apreciaveis, que se irão acentuando progressivamente, se ao mesmo tempo na parte social uma outra acção tendente ao mesmo fim e pelo que directamente lhe diz respeito se realizar, com aquela energia que as circunstancias reclamam.
Fazer a tentativa no exercito, deixando continuar o estado geral no pé em que se encontra, será – como vulgarmente se diz – remar contra a maré, será arcar com dificuldades insuperaveis, será – numa palavra – um impossivel.
A condição essencial para que o exercito se levante á altura que o pode recomendar como util a todos os respeitos, é que não seja iludido o lema primacial de toda a Sociedade organizada – ordem e trabalho.
Nada mais será preciso; isso será tudo.
Podemos sintetizar em dois artigos unicos, o trabalho a efectivar para a obra a que urge nos entreguemos.
– 1.º Reorganização da sociedade portuguesa;
– 2.º Intensificação na instituição armada de todos os meios especiais próprios a fortalecer e purificar o seu moral.
Deixando de lado o complexo problema enunciado no numero 1.º, que não é de tratar na «Revista Militar», dada a indole deste jornal, versaremos hoje alguns dos pontos sobre que, a nosso vêr, devemos imediatamente concentrar as nossas atenções, pelo que diz respeito ao proposto no 2.º artigo.
Começaremos pelo que podemos classificar um cancro que corrompe o exercito.
Viu-se que nos desmandos que por essa Lisboa se cometeram nos dias 6, 7 e 8 de dezembro, aproveitando a conflagração em que esteve a cidade, tomaram parte criaturas que levaram sobre si o uniforme militar. Estamos inteiramente convencidos que o maior numero dessas criaturas não tinham praça assente no exercito, não passavam de salteadores que havendo ás mãos artigos de uniforme com eles se abrigaram para mais a salvo se darem ás suas façanhas. Mas tambem não nos repugna aceitar, que entre esses assaltantes de ourivesarias e outros estabelecimentos alheios ao ramo de subsistencias, alguns haveriam que realmente sejam soldados. Para termos esta opinião, basta considerar que ha o mau habito (chamemos-lhe assim) de alistar no exercito toda a qualidade de vadios, que da escola das cadeias trazem um curso de anos! Isto que se faz sem a adopção de precauções
especiais, chegando-se ao ponto de encorporar esses tarados nos corpos com quartel nos centros que foram o campo da sua vadiagem, isto é, conservando-os exactamente no meio em que se geraram, ha de fatalmente originar para o exercito casos deprimentes semelhantes áqueles que estamos considerando, sempre que se proporcionem ocasiões. Seriam talvez os vadios encorporados nos corpos de Lisboa que facilitaram o uniforme aos que não eram militares, mas que conheciam como condiscipulos senão como mestres das escolas de bandidismo.
A fora este caso especial de exercicio livre das prendas de salteador, que foi o que nos trouxe á mente o alistamento corrente de vadios, que já bons amargos de boca nos teem dado e hão de dar sempre a todo o comando, devemos ainda considerar a acção dissolvente de cada momento, que tais elementos exercerão para com os simples que dos campos veem para as fileiras.
Não ha necessidade de esmiuçar qual será essa acção, cremos nós, nem de figurar até onde podem ir os seus efeitos. É a corrupção exercendo-se em toda a plenitude!
Tem que cessar a forma porque se faculta aos vadios e a todas as criaturas de semelhante valor moral a prestação da obrigação do serviço militar; e para o momento actual, que poderemos tomar como de excepção, ha que fazer, é forçoso que se faça, uma depuração rigorosa entre o exercito que os meios ordinarios talvez não permitam conseguir-se. Para esta depuração impõe-se a adopção de medidas extraordinarias; não basta, nem mesmo é meio recomendavel pela criminologia dos nossos dias, a repressão violenta; será necessaria uma formula de educação regenedora para esses homens, que se não coaduna, que não pode ser aquela que se adopta para com o geral dos soldados, de que a maioria é composta por homens de sentimentos, honestos, trabalhadores. Estes podem considerar-se como crianças em quem se tem de desenvolver as boas qualidades inatas, que de per si abafarão qualquer germen nocivo, que por ventura exista; os outros são tarados em quem predomina o vicio. Entre uns e outros ha um abismo, em que se confundirão quando se mescluem.
Nós nunca podemos compreender a facilidade com que se alista como soldado toda a sorte de vadios, hoje que o exercito deve ser um agregado perfeito de cidadãos conscientes dos seus deveres e direitos, sem sujeitar tais individuos a um regimen especial, misturando-os entre a grande massa, a contamina-Ia. Ás praças que tendo sido Iicenceadas queiram voltar ao serviço, exige-se, e muito bem, o certificado do registo criminal; mas para a primeira praça pode esse registo estar sujo e bem sujo, que essa triste e ponderosa circunstancia não motiva quaisquer prevenções especiais, nem mesmo é conhecida pelo comando para o orientar na conduta a seguir!
É admissivel este criterio?
Não é.
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Passemos a outro ponto.
Na obra a empreender temos como factor essencial o quadro instrutor. As necessidades da mobilização para a guerra em que estamos envolvidos, cerceou consideravelmente a disponibilidade de graduados e a tal ponto que se luta com serias dificuldades pára manter os quadros indispensaveis nas diferentes unidades, principalmente de infantaria.
A instrução por companhias, tão preconizada, teve de falir por esse motivo. E se para a escola de recrutas a deficiencia existente de instrutores se pode contrabalançar pelo recurso aos graduados de toda a unidade, formando de todos os recrutas uma companhia de instrução, uma vez finda essa escola e regressados os novos soldados ás suas companhias administrativas, a falta de graduados faz-se sentir em absoluto, o soldado corre o risco dum quasi abandono, exactamente quando a natureza do serviço que começa a prestar o afasta dos meios educativos.
É esta a situação que temos de encarar e conhecer se é irredutivel.
Dissequemo-Ia.
Um oficial comanda simultaneamente duas e tres companhias; em cada companhia ha um sargento que responde e uns tantos cabos; o serviço exterior afasta do quartel durante o dia (24 horas) esse oficial, o proprio sargento que responde, e com respeito aos cabos essa ausencia é normal. O serviço interior, com a administração da companhia absorve todo o tempo do oficial e dos sargentos. Diversas circunstancias obrigam a fluctuar o comando das companhias por varios oficiais, dando logar a que esse comando se exerça apenas por dias, um oficial hoje, outro amanhã; e com os sargentos que respondem sucede o mesmo. O comandante do batalhão passa dias sem poder comunicar com as companhias, porque não estão no quartel nem os seus comandantes, nem os seus sargentos.
Nestas condições, que são um facto, o que se pode fazer a bem da instrução e da educação?
Nada, simplesmente nada.
Deve-se deixar permanecer esta situação?
Por forma alguma. Em tal caso ha só um caminho a seguir – reduzir temporariamente as companhias ao numero proporcional aos graduados disponiveis. Não ha outra solução.
Mas, alguma cousa nos parece que se pode fazer, para atacar as causas que conduzem áquele extremo.
O desvio dos quarteis dos oficiais e sargentos que restam, é consequencia de um serviço que não é o proprio do exercito, como guardas, destacamentos, diligencias, policiamento de ruas, etc.
Esses serviços só muito excepcionalmente devem ser pedidos ao exercito e sempre que o sejam deve ser por curtos dias; quando circunstancias se produzam que os prolonguem, deverse-ha providenciar imediatamente para deles libertar o exercito, sob pena de acarretar para o exercito a situação que estamos discutindo. Dadas as circunstancias que originem um prolongamento excessivo desses serviços, como sucede ha uma longa temporada, as medidas a adoptar devem incidir sobre a Guarda Republicana, que é a quem cumpre desempenha-los. Se essa Guarda, no seu efectivo normal, não chega para os satisfazer, seja reforçada, extraordinariamente, por medidas extraordinarias, as quais poderão ser fornecendo cada unidade do exercito um certo numero de praças escolhidas, já por uma mais adiantada instrução, já por um comportamento mais recomendavel.
Estes contingentes de emprestimo á Guarda Republicana, que poderiam mesmo ser acompanhados por alguns cabos, receberiam nesse corpo, nas folgas, uma instrução propria do serviço extraordinario a que eram chamados, e as praças que os constituissem seriam as unicas privadas da sequencia da instrução propria do exercito, deixando que as praças que ficaram nos corpos continuassem a sua instrução, em vez de serem abandonadas, porque continuariam presentes os seus graduados.
E' claro que partimos da hipótese que á Guarda Republicana só faltam cabos e soldados e por consequencia só com cabos e soldados se reforçariam. Mas, mesmo que um ou outro oficial e sargento alguma unidade fornecesse, é ainda assim este processo preferivel ao que se está seguindo ha já tanto tempo e com que se desviam um muito maior numero de oficiais e sargentos, como, por exemplo, no caso de policiamento das ruas, em que diariamente se tem de constituir os diferentes nucleos devidamente comandados, enquanto que na Guarda Republicana esses nucleos já existem, e aproveitando-os, engrossando-os com cabos e soldados, teremos uma grande economia de graduados.
E' preciso sobretudo não olvidar que tanto para os oficiais como para os sargentos do exercito, a sua missão principal, unica que os deverá preocupar e para a qual carecem de uma preparação constante, é incompativel com a missão a que se destina a Guarda Republicana. O exercicio duma importa o sacrifício da outra. Os graduados da Guarda podem absorver todo o seu tempo no serviço de segurança e policia; e fazendo-o fazem tudo a que são obrigados, sem inconveniente para o país. Os graduados do exercito de campanha, não podem desempenhar o serviço para que existe a Guarda Republicana sem inconveniente para a nação.
A medida que alvitramos, que se nos afigura exequivel, trará os beneficios seguintes: –limita a um reduzido numero o mal que actualmente se estende a todos de se tolher a instrução; mantem mesmo nesse numero reduzido os laços de disciplina existentes; importa melhoria para o serviço de segurança e policia, por ser prestado por um pessoal melhor habilitado (uma vez que se aproveitem as folgas como indicamos), e até, sob o ponto de vista da especialidade, melhor comandado.
Não entendemos que devâmos discorrer sobre o lado economico da questão. Nem se quer pensamos se ao pessoal chamado assim a cooperar com a Guarda Republicana, a dentro dela, se deve ou não conceder uma gratificação, visto que as praças dessa Guarda teem vencimentos superiores ao das praças do exercito. Esse aspecto da questão julgamo-lo muito secundario ante a importancia que reveste a necessidade que ha de acabar, ou pelo menos atenuar as causas da situação a que está reduzido o exercito, que tanto dinheiro custa. Essa necessidade sobreleva a todas as considerações.
O que se torna necessário é que superiormente haja sempre a preocupação de que o exercito não existe para fazer o serviço a que se destina a Guarda Republicana. Havendo essa preocupação, e não se pode legitimamente contestar que ela deve dominar em absoluto todas as circunstancias, muito mal se evitará. O grande defeito vem-nos da facilidade extrema com que se lança mão do exercito a proposito da cousa mas insignificante, sem olhar ao sacrificio que assim se faz da instrução.
E por hoje fiquemos por aqui, que este artigo já vae longo.
Melo e Athayde
* Selecionado pelo coronel Nuno António Bravo Mira Vaz, Vogal Efetivo do Conselho Fiscal da Revista Militar.