“Nesses anos, quando um soldado português desembarcava de um dos barcos da sua Nação para servir num forte em Moçambique, ou em Malaca, ou nos estreitos de Java, já previa, durante o seu tempo de serviço, três cercos, durante os quais comeria erva e beberia urina.
Estes defensores portugueses contribuíram para uma das mais corajosas resistências da história do mundo”
James Michener
(escritor norte-americano)
Em 1960, na primeira viagem que o navio Escola Sagres fez à volta do mundo, um grupo de cadetes foi a terra quando o navio aportou a Áden, na altura ainda sob soberania inglesa. A páginas tantas foram abordados por um vendedor ambulante que meteu conversa com eles, a fim de lhes tentar vender os produtos que comercializava. Perguntou naturalmente de onde eram:
– “São americanos?
– Não.
– São ingleses?
– Também não.
– Franceses?”
Os cadetes abanavam a cabeça e as perguntas sucederam-se até que veio o inevitável, “então de onde são?”. Somos portugueses, responderam. O homem estacou, arregalou os olhos e foi repetindo “portugueses, Portugal, Albuquerque”, fez um gesto de cortar o pescoço com a mão, fez meia volta, desatou a correr e nunca mais parou enquanto foi visto… 450 anos depois, a fama de Afonso de Albuquerque, também conhecido por “O Grande”, “O César do Oriente”, “O Leão dos Mares”, “O Marte português” e “O Tirríbel”, mantinha-se viva por aquelas paragens… E note-se que Áden foi o único objectivo que Afonso de Albuquerque (AA), se propôs conquistar e não conseguiu!...
AA é um personagem enorme e fascinante da História de Portugal e do mundo e só uma perturbação política e social muito grande pode justificar que a efeméride dos cinco séculos da sua morte tenha passado quase despercebida[1]. Mas em Goa e noutras partes do Oriente, onde a bandeira portuguesa infelizmente já não flutua, mesmo após 500 anos da sua morte, a sua memória continua viva e a ser lembrada e venerada. Para compreendermos a extraordinária personalidade de AA, as suas motivações e a sua obra, precisamos entender as razões porque fomos ao Oriente. Razões que as sucessivas “escolas” – se assim lhes podemos chamar – historiográficas portuguesas, nunca deram, até hoje, um enquadramento sistemático e equilibrado, devido às diferentes influências doutrinárias, ideológicas, da evolução da ciência e políticas, com que foram confrontadas.
“A fortuna do mundo é serem eles tão poucos, porque a Natureza, como aos leões, felizmente os fez raros”
Gaspar Correia, “Lendas da Índia”
(referindo palavras do inimigo, durante o cerco de Diu, em 1538)
As naus do Rei de Portugal chegaram à Península Indostânica oitenta e três anos depois da Conquista de Ceuta, em 1415, que marca o início da expansão ultramarina portuguesa. Foi uma empresa enorme, prosseguida com disciplina, método, titânica e cientificamente. E constituiu, também, um projecto nacional onde participaram todos os braços da Nação: Coroa, Nobreza, Clero, Burguesia e Povo. Não foi obra do acaso, um episódio de aventuras, um conluio de piratas ou um vão desejo de conquista; nasceu de objectivos nacionais, forjados no seio das Ordens Militares, sobretudo na Ordem de Cristo, apoiados pelas ordens religiosas, nomeadamente os Franciscanos e amalgamado no culto, especialíssimo português, do Espírito Santo e no espírito de cruzada que nos ficara desde Ourique.
O grande objectivo – estamos em crer – era o de unir os cristãos do ocidente com os cristãos do oriente (que se sabia existir no mítico Reino de Preste João e na Índia com os cristãos nestorianos do rito de S. Tomé). Tal visava a “globalização” do Império de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a Terra, ideia mais tarde mitificada no V Império, apregoado por António Vieira, Pessoa e Agostinho da Silva, entre tantos outros. Aliás, a resposta da Armada do Gama, quando interpelados sobre o que vinham fazer a Calecut, não deixa margem para dúvidas: “viemos em busca de cristãos e pimenta”. A pimenta e outras riquezas representam o comércio, que permitia os réditos à sustentação da empresa e nisso ninguém pode ver nada de errado.
Mas de um objectivo político, religioso e económico, a grande descoberta do caminho marítimo para a Índia – que segundo algumas estimativas, tinha custado a vida a metade da população masculina do reino! – ganhou uma dimensão política e estratégica enorme. Já que foi aproveitada para “atacar” o império Otomano – em perigosa expansão, após a queda de Constantinopla, em 1453 – pela rectaguarda, já que o privava dos ganhos que o comércio das especiarias e outras riquezas orientais lhes garantia. Tal facto veio, por arrastamento, prejudicar os proventos das Repúblicas Italianas, sobretudo Veneza, que se tornaram nossas inimigas.
Ora foi justamente Afonso de Albuquerque – essa figura maior da História de Portugal – que, já no culminar da sua vida, conseguiu estabelecer as bases geopolíticas e geoestratégicas que permitiram à Coroa Portuguesa poder jogar essa cartada política e estratégica. E de onde, pela acção degenerativa da natureza humana, haveria, também, de sobrevir os germens da decadência… Vejamos então, resumidamente, os principais passos desta epopeia, naquilo que toca a Afonso de Albuquerque.
“Aquele homem que na epopeia portuguesa se levanta como herói, cuja estatura sobrepuja a de todos, passando por cima do nível dos mais altos em todo o mundo – Afonso de Albuquerque – verdadeiro génio que, na sua crueldade quase assíria, manifestava um grau eminentíssimo a conjunção extraordinária da inteligência que lhe revelava os desígnios de um império, e do carácter, que tinha nele ímpetos de grandeza leonina”
Oliveira Martins
AA nasceu na vila de Alhandra, na Quinta do Paraíso, em 1453, segundo alguns autores, ou em 1460/2, segundo outros. Foi segundo filho de Gonçalo de Albuquerque, 3º Senhor de Vila Verde dos Francos e de D. Leonor de Meneses, filha de D. Álvaro Gonçalves de Ataíde, 1º Conde de Atouguia. Inicialmente, a linha varonil era Gomide, mas devido ao seu avô, João Gonçalves Gomide, Escrivão da Puridade, ter assassinado a mulher, D. Leonor de Albuquerque, que era descendente da família real portuguesa, e por ter sido justiçado, o seu nome ficou infamado. Por essa razão, os descendentes tomaram o apelido de sua mãe e assim ficaram Albuquerque.
O pequeno Afonso teve uma esmerada educação na corte de D. Afonso V, onde seu pai exercia um alto cargo e aí se tornou amigo do jovem príncipe, mais tarde cognominado de “Perfeito”. AA nunca casou, mas viveu com Joana Vicente – que se suspeita ter sido uma mulher do Norte de África, eventualmente escrava, que terá conhecido em Arzila – e de quem teve o único filho, Brás de Albuquerque, nascido em 1500, que foi educado por uma irmã do progenitor e nunca conheceu o pai, que o haveria de legitimar, em 1506.
A carreira de AA começou cedo, embora não se conheçam muitos pormenores da mesma. Serviu dez anos no Norte de África, onde começou por acompanhar o Rei na conquista de Arzila, Tanger e Anafé, em 1471, e onde permaneceu como oficial de guarnição. Em 1476, esteve em Castela e combateu na Batalha de Toro, ao lado do futuro D. João II. Em 1480, participou na esquadra enviada em socorro do Rei de Aragão, Sicília e Nápoles, da ameaça dos Turcos, que culminou, no ano seguinte, com a vitória dos Cristãos, em Otranto.
Não se sabe quando foi feito cavaleiro da Ordem de Santiago (santo de sua especial devoção) mas, em 1481, foi nomeado Estribeiro-Mor de D. João II, após a coroação deste. Regressou ao Norte de África, em 1489, onde comandou a defesa da fortaleza de Graciosa, junto a Larache e, logo no ano seguinte, já fazia parte da guarda pessoal do Rei. Quando D. João II faleceu, em Alvor, em 1495, AA fez parte do pequeno número de fiéis que assistiram à sua morte, donde se pode concluir que haveria grande proximidade entre os dois homens. Nesse ano ainda, regressou a Arzila onde seu irmão mais novo, Martim, morreu a combater a seu lado.
D. Manuel I quando subiu ao trono teve algumas reticências sobre AA. Este era bastante mais velho do que o Rei e tinha sido íntimo do todo-poderoso D. João II, que tudo fez para legitimar o seu filho natural, D. Jorge de Lencastre, e colocá-lo no trono. Sabe-se pouco sobre AA nestes primeiros anos de reinado do Venturoso, até que este escolhe Albuquerque para ir à Índia, em 6 de Abril de 1503, com o seu primo Francisco de Albuquerque, comandando cada um uma frota de três naus, onde também seguiam Duarte Pacheco Pereira e Nicolau Coelho. Ambos os primos cumpriram bem as suas missões, apesar de alguns desaguisados entre os dois, conseguiram fazer fortaleza em Cochim, garantindo a segurança do respectivo Rei; bateram as forças de Calecut e estabeleceram relações comerciais em Coulão. Regressou a Lisboa, em Julho de 1504. Os navios onde vinham os capitães Nicolau Coelho e Pêro Vaz da Veiga e o seu primo Francisco levantaram ferro de Cananor, a 5 de Fevereiro, e desapareceram no mar, até hoje. Esta primeira estadia na Índia serviu, sobretudo a AA, para conhecer a realidade do Oriente.
Figura 1 – Armada da Índia.
D. Manuel, que durante toda a sua vida revelou conhecer mal as pessoas e ser sensível à intriga, ficou agradado com a prestação de Albuquerque e, no início de 1506, após ter sido delineada a estratégia a desenvolver nas partes do Oriente, o Rei confiou ao futuro Leão dos Mares uma esquadra de cinco naus e 400 homens, incluída na Armada de 16 navios, que Tristão da Cunha comandava. AA levava a missão de conquistar Socotorá, com o objectivo de fechar o comércio com o Mar Vermelho, ficando debaixo das ordens do comandante da Armada até chegarem a Moçambique, após o que se separariam. Albuquerque assumiria então as funções de Capitão-Mor da Costa da Arábia.
Albuquerque levava ainda uma carta secreta com a indicação de suceder ao Vice-Rei Francisco de Almeida, no fim do seu mandato, em 1508. Tristão da Cunha seguiria para a Índia com as restantes forças. A 6 de Abril desse ano, zarpou a frota do Tejo, indo AA a pilotar a sua própria nau, dado que o piloto designado, João Dias de Solis, fugira para Espanha – país que passou a servir – após ter assassinado a mulher. AA escreveu a Tristão da Cunha: “trazia presunção de saber trazer minha nau a Índia, tam bem como o milhor piloto da nossa Armada (…)”
No canal de Moçambique encontraram a nau “Frol de la Mar” capitaneada por João da Nova que aí invernara e que se juntou à frota. Foi de Moçambique que AA escreveu a primeira carta a D. Manuel, datada de 6 de Dezembro de 1507. Explorou a Ilha de Madagáscar e seguiu para Melinde onde Tristão da Cunha enviou uma embaixada para o reino do Preste João e ajudou o governador a tomar a cidade de Bava, onde AA armou Tristão da Cunha cavaleiro; meteram três pilotos já com o fito de irem a Ormuz. A seguir, conquistaram Socotorá – em Agosto – onde os árabes se recusaram a render, sendo todos passados à espada à excepção de um piloto que passou a servir a esquadra. De Socotorá, Tristão da Cunha partiu para a Índia, a apoiar os portugueses de Cananor que se encontravam cercados.
AA decidiu ir a Ormuz, mas a Armada tinha falta de tudo, pelo que foram acometer todas as cidades árabes que encontraram pelo caminho, a fim de as submeterem, a bem ou a mal, e abastecerem-se. Deste modo, foram tomadas Curiate, Mascate e Orfação que resistiram, e Caliate e Soar, que se submeteram. Nalguns locais foram cortados narizes e orelhas, a fim de intimidar Ormuz. Em Orfação, ocorreu um episódio que vale a pena contar: AA conheceu um prisioneiro muito idoso, de porte majestoso e culto, que lhe contou a história de Ormuz e lhe ofereceu um livro sobre Alexandre – de quem AA era admirador – em persa, afirmando que os portugueses eram mais valentes do que aquele grande capitão.
Seguiu-se Ormuz, onde a Armada chegou a 25 de Setembro de 1507, precedida de uma terrível reputação. Os portugueses viram-se cercados por uma multidão de mouros, o combate durou seis horas, mas a vitória foi completa, graças, sobretudo, à superior artilharia portuguesa. O Rei de Ormuz fez-se tributário de Portugal e autorizou a construção de uma fortaleza e de uma feitoria. Pouco tempo depois, chegou um enviado do Xá da Pérsia, Ismail I, a recolher tributo. O enviado foi mandado de volta com a resposta de que o tributo seria apenas balas de canhão e armas… Foi assim que começou a ligação entre Portugal e a Pérsia!
Estava tudo a correr bem, quando parte dos capitães não quis continuar a construir a fortaleza e desertaram partindo para Cochim, abandonando AA com pouquíssimas forças. O que lhes faltava em disciplina sobrava em arrogância, apesar de algumas razões que lhes assistiam; ansiavam por comerciar e não gostavam que AA quase não os consultasse a fim de tomar decisões. Reduzido a duas naus, Albuquerque foi forçado a abandonar Ormuz, em Abril de 1508 – talvez a decisão mais penosa da sua existência –, e retornou a Socotorá, que estava à míngua de mantimentos. Aprisionou vários navios mouros e tornou a atacar Caliate. A outra nau foi ainda a Melinde buscar provisões, regressando com mais dois navios entretanto chegados do reino! AA decidiu então dirigir-se a Cananor, passando ainda por Ormuz, mas teve de levantar o cerco por falta de homens e os navios estarem em mau estado, e ter de chegar à Índia antes de Dezembro, devido à monção.
Chegado a Cananor, foi bem recebido pelo Vice-Rei, apesar de ter reparado que os capitães “desertores” estavam nas boas graças daquele. D. Francisco de Almeida (FA) recusou-se a entregar o comando, alegando que o seu mandato só terminava em Janeiro e pretendia ir atacar ainda o Mirocem, a fim de vingar a morte de seu filho, D. Lourenço de Almeida, que tinha morrido heroicamente no combate de Chaul. AA, após ver recusada a sua colaboração no desforço do Vice-Rei, não o quis afrontar e recolheu-se a Cochim a aguardar os acontecimentos e suportando pacientemente toda a sorte de intrigas que os seus inimigos lhe moviam.
Chegou entretanto a armada de Diogo Lopes de Sequeira com a missão de ir a Malaca, o qual também se recusou a ajudar AA. Este, por seu turno, recusou as propostas dos que o apoiavam a tomar o poder. A 3 de Fevereiro de 1509, FA, após ter posto toda a costa a ferro e fogo, feriu a memorável batalha de Diu e destroçou por completo a grande armada do Sultão do Egipto, garantindo a supremacia naval portuguesa no Índico, por cem anos.
No regresso, as relações entre AA e o Vice-Rei continuaram difíceis e aquele acabou confinado em casa. Posteriores intrigas levam FA a enviar o seu substituto, a 19 de Setembro, para Cananor, e, na prática, prendê-lo na fortaleza. Porém, os principais da cidade foram de opinião que FA procedia mal e libertaram AA, que passou a mandar na cidade.
Entretanto, em Setembro de 1509, Diogo Lopes de Sequeira avançou para Malaca, mas as coisas correram mal por influência dos ricos mercadores mouros da cidade e a esquadra acabou por retirar depois de ter perdido alguns homens em escaramuças e deixado dezanove prisioneiros, o principal dos quais era Rui Araújo.
Figura 2 – A Fortaleza de Malaca.
A situação na Índia era de impasse, até que, em Outubro, chegou a Cananor o Marechal do Reino D. Fernando Coutinho, parente de AA, com quinze naus e 3.000 homens, com a missão de tomar Calecut. O marechal que era a mais importante figura do reino que até então se tinha deslocado ao Oriente, obrigou FA a entregar o poder a AA, tendo este começado a governar, a 4 de Novembro. FA partiu para o reino cinco dias depois, vindo a morrer numa infeliz escaramuça com negros hotentotes, tendo sido enterrado no sertão, na Baía do Saldanha, perto do Cabo da Boa Esperança. Dos inimigos de AA alguns regressaram ao reino e outros acomodaram-se, dando o dito por não dito. AA ia poder, finalmente, revelar todos os seus dotes. Mas, antes de prosseguir, é mister fazer um ponto de situação sobre as paragens do Oriente e as duas grandes e diferentes concepções estratégicas que percorriam o centro do Poder Português.
“Estes assy como vedes, se os guardarem com verdade e sem tirania, são tão fortes que sobejam; mas se nestas terras se nom guardar verdade e humanidade, a soberba nos derrubará quantos muros tivernos, por mais forte que sejão. Portugal he muito pobre, e os pobres cobiçosos se converterão em tyranos. As coisas da India fazem grandes fumos; hey medo que polo tempo em diante o nome que agora temos de guerreiros se torne em tyranos cobiçosos”
Resposta de Afonso de Albuquerque, aos capitães que lhe lembraram
que os muros de Ormuz não tinham a espessura necessária.
Gaspar Correia, “Lendas da Índia, II, p. 439
À data da chegada de Vasco da Gama a Calecut, em 1498[2], existiam os reinos muçulmanos de Cambaia, Guzarate e Bijapur, que controlavam a costa Ocidental, e o reino hindu de Vijayanagar, que tinha, há poucos anos, o porto de Goa, que era o seu porto principal, conquistado por Yussuf Adil Khan, príncipe turco, ascendente de Idalcão, que mantinha os hindus sob pesada sujeição. Calecut era reino vassalo de Vijayanagar de que se pretendia libertar, tendo para isso o apoio dos estados muçulmanos a norte. Por seu lado, Cochim pretendia libertar-se de Calecut, facto que veio a aproveitar aos portugueses.
Os imperadores mongóis, com a sua entrada no Indostão, introduziram um estado de tensão muito forte entre os hindus, mais numerosos, e os muçulmanos, que eram militarmente dominantes. Os grandes centros comerciais dominantes em todo o Índico eram: Malaca, que fazia de porta de passagem e ferrolho no comércio com o Extremo Oriente; Ormuz, entreposto cuja posição dominava a entrada no Golfo Pérsico e ligava à antiga e poderosa Pérsia e à rica Mesopotâmia; e Áden, que era a chave de entrada no Mar Vermelho, por onde passava o rico tráfego de especiarias que, da Índia e Oriente, passavam através do território otomano para as costas do Mediterrâneo, onde os mercadores italianos com o Senhorio de Veneza à cabeça os revendiam pela Europa. Em portos na Costa Oriental de África havia cidades onde se comercializava ouro e outros produtos, e eram pontos de apoio das armadas.
“Algures” na Abissínia existia o mítico Reino de Preste João das Índias, que os portugueses buscavam desde os tempos do Infante D. Henrique. É tendo em conta esta realidade que a coroa portuguesa cedo se deu conta – D. Manuel tinha longas reuniões secretas com os capitães, no regresso das suas missões – e jogando com todas as rivalidades locais, que os portugueses vão delinear a sua estratégia, não só de ocupação territorial como de alianças, a qual se caracterizou, quase sempre, pelo apoio a elementos hindus contra os muçulmanos.
Para além disto, os portugueses tiveram que aprender a conhecer a meteorologia de todo o Índico, já que o sistema de monções, os ventos e as correntes dominantes nas diferentes épocas do ano eram absolutamente determinantes na estratégia e na táctica a seguir, fosse na guerra, no comércio, na diplomacia ou nos pontos de apoio a escolher. Ou seja, condicionava a organização e execução de tudo.
Figura 3 – As correntes marítimas e as condições meteorológicas condicionavam todo o planeamento.
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Deste modo, foi congeminado um plano inteligente de estabelecimento e domínio de todo o Índico – uma extensão enorme para os nossos diminutos meios – surgindo, porém, da confrontação da realidade dos factos e dos imponderáveis que foram surgindo (tudo agravado pelas enormes distâncias e morosidade das comunicações) duas maneiras diferentes de encarar o problema:
– Aquela consubstanciada em D. Francisco de Almeida, que procurava varrer do mar toda e qualquer embarcação inimiga e que todo o poder fosse no mar, apenas com os apoios em terra indispensáveis ao comércio e ao apoio dos navios;
– A defendida por AA, que privilegiou o domínio de pontos fortificados em terra que fossem fundamentais ao domínio da navegação e comércio.
A primeira concepção era sobretudo comercial, antevendo as dificuldades dada a exiguidade de homens e meios; a segunda pretendia implantar um império com bases sólidas, ao passo que tentou ultrapassar a falta de recursos com os tributos obtidos por sujeição ou aliança, aumentando a população pela promoção de casamentos mistos sem esquecer a evangelização dos povos, numa concepção avançada por três séculos! Foi esta concepção que veio a perseverar e que nos manteve no Oriente até à entrega, algo escusada, de Macau, em 1999. Tinham passado 501 anos desde que Vasco da Gama arribara a Calecut.
Concomitantemente com o atrás citado, havia ainda outro grande objectivo político/estratégico de que pouco se fala e é pouco estudado, que tem a ver com a destruição de Meca e a tomada da “Casa Santa”, isto é, Jerusalém, por forças cristãs. Tal representava a finalização das Cruzadas interrompidas no século XIII, com a queda de S. João de Acre, em 1297. Este objectivo não chegou a tentar realizar-se, por razões várias, mas sabe-se que foi ponderado pela coroa portuguesa e que AA partilhava desse desiderato. Bem como um outro personagem aparentemente desgarrado disto tudo, que dava pelo nome de Cristóvão Cólon…
“Eu sam pessoa pera que se me meterem doze reynos na mão para os saber governar com muita prudência, discriçam e saber… ainda que nenhua destas cousas nem aja em mim… tenho hidade para saber o bem e o mall”
Cartas de Afonso de Albuquerque
Vol. I, Carta XXXI
Voltando ao ponto em que AA assumiu o governo da Índia – numa modalidade que nunca mais se viria a repetir, e bem – estava ainda constrangido pela acção do Marechal Fernando Coutinho (FC), sobre quem AA não tinha jurisdição, o qual vinha incumbido de uma missão determinada pelo monarca, que era tomar Calecut e tinha feito ponto de honra em levar duas portas riquíssimas existentes num palácio que o Samorim possuía junto ao mar! AA discordou naturalmente do plano por perigoso e desnecessário, mas não teve outro remédio senão ajudar o irredutível marechal. Num golpe de audácia, AA que, ao contrário de FC, tinha experiência da Índia, tomou o palácio e apoderou-se das portas que o enfurecido marechal deitou fora quando lhas entregaram, pois queria, à viva força, que essa “honra” lhe tivesse pertencido.
Contra o aviso de Albuquerque, FC embrenhou-se no interior da cidade de uma forma pouco organizada e disciplinada, acabando morto. O Samorim perdeu 1000 homens, dois palácios e ficou com a cidade incendiada. Mas as baixas portuguesas foram severas: 300 mortos e 400 feridos e só não se assistiu a um desastre pela superior reacção de AA, que acabou ferido com gravidade na contenda. Tudo por causa da vaidade de um néscio a quem o Rei de Portugal tinha outorgado plenos poderes…
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“Quanto mais alto voamos mais pequeninos parecemos aos que não passam do chão”
Nietzsche
Sem embargo, era, finalmente, AA senhor da situação e logo começou a trabalhar – e a pôr os outros a trabalhar! – como sempre trabalhou: aplicadamente e sem descanso, nomeadamente:
– Pondo os navios em ordem;
– Reorganizando as tropas, criando companhias de ordenanças (à Suíça) o que, por ser novidade, levantou oposição.
Na altura, Portugal apenas dispunha de dois pontos de apoio: Cochim e Cananor. Em Cochim, embarcava-se a pimenta, existia fortaleza e o rei era o nosso principal aliado. Em Cananor, comerciava-se gengibre e havia um hospital onde as tropas se restabeleciam, mas o Rei era menos fiável como aliado. Havia ainda uma feitoria em Coulão e cobrava-se tributo em toda a Costa. Existiam duas armadas no mar: a armada da Índia, entre Ceilão e o Golfo de Cambaia e a armada da Costa d’Além, entre Guzerate e o Cabo Guardafui.
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Em menos de um mês, a esquadra estava pronta e AA saiu de Cochim com o intuito de ir ao Mar Vermelho, via Socotorá, até Suez e depois tratar de Ormuz, na volta. O Samorim de Calecut tinha, entretanto, pedido um acordo com AA, amedrontado que estava por ter morto o Marechal. AA deixou-o em suspenso da atitude de D. Manuel, mas não o hostilizou. A imponente armada de vinte navios, duas galés e um bergantim, e mais de 1000 homens, zarpou costa acima, em Fevereiro de 1510.
Pelo caminho encontrou Timoja, um pirata hindu, amigo do Rajá de Onor, que dispunha de meios sensíveis e sempre se mostrara amigo dos portugueses. Informou AA que uma importante esquadra mameluca se encontrava em Goa, onde se refugiara após a batalha de Diu, havendo ainda guerra entre os sultanatos do Decão. E Goa era uma boa cidade com bom porto e bom comércio. AA reuniu conselho e decidiu ir tomar Goa, cuja população hindu detestava os muçulmanos que os tinham submetido. A primeira investida deu-se a 4 de Março de 1510, sendo a cidade tomada com alguma facilidade. A entrada em Goa foi aparatosa e foram decretadas boas medidas de administração, incluindo a de cunhar moeda. Os indígenas não foram incomodados nas suas crenças e costumes. Apenas se proibiu o costume bárbaro da imolação da viúva na fogueira em que se cremava o cadáver do marido[3]!...
Figura 4 – Goa nos princípios do século XVI.
Nesse tempo, chegou uma embaixada da Pérsia que deparou com outros interlocutores… Volveu com novas amigáveis de AA e com uma sugestão de o Xá enviar uma embaixada a Lisboa. AA já estava a conceber um plano de aliança com o Xá Ismael, que era um fiel xiita, contra o turco, com quem aquele estava em guerra! A acompanhar o persa, enviou Rui Gomes a Tabriz. O reforço das muralhas de Goa caminhava devagar e, entretanto, chegou o Hidalcão com 50.000 homens. O cerco instalou-se. AA recusou retirar, mas as tropas eram poucas e os combates desesperados. Numa noite de tempestade os mouros forçaram a passagem dos vaus e instalaram-se na ilha. Os portugueses ficaram confinados à fortaleza. A situação era desesperada e, na noite de 23 de Março, as tropas retiraram-se para os navios, mas estes não podiam abandonar o porto antes de Agosto por causa da monção. AA recusou qualquer entendimento com Hidalcão, que sintomática e expressivamente lhes chamou “filhos do diabo”[4]. Havia falta de tudo e a vida tornou-se miserável. Comeram-se os couros das arcas.
Um dia, AA resolveu atacar o castelo e o acampamento mouro. O ataque foi feroz e os mouros postos em debandada, a artilharia recolhida. E mais importante que tudo, obtiveram mantimentos. Hidalcão enfureceu-se e tentou queimar as embarcações portuguesas. Porém o seu plano foi conhecido por Timoja e a sua flotilha destruída. Nesta operação faleceu o sobrinho amado de AA, D. António de Noronha. Hidalcão ainda fez propostas tentadoras, mas AA recusou-as.
Pelo meio houve um incidente lamentável. Lembraram a AA que havia muitas mouras cativas a bordo e este mandou-as recolher a todas. Algumas casou-as ele logo, mas outras que não renegaram a sua fé ficaram reclusas num compartimento da sua nau, com a proibição de alguém lhes falar. Um mancebo, Rui Dias, que se tinha enamorado de uma delas, não cumpriu a ordem e foi apanhado. AA teve um acesso de cólera e mandou-o enforcar, contra opinião dos capitães por o moço ser fidalgo, o que ainda provocou um motim dos amigos do justiçado. Este terá sido o único caso de arrependimento de AA, que no seu testamento mandou rezar por alma do rapaz, 60 missas.
“Certifico a vossa alteza que eles foram mais vezes repreendidos e castigados por mim por nam segurarem suas pessoas e vidas… e quererem andar per cima das guaritas das naos e lugares perygosos do que os nynguem podeya acusar de fracos… as vezes me pesava não trabalharem mais por segurarem suas vidas”
Afonso de Albuquerque (sobre o valor de muitos capitães)
Carta de 23 de Novembro de 1512, p. 104
AA apostou na desistência e cansaço de Hidalcão, que tinha vários dos seus domínios ameaçados. Havia porém muita fome e os doentes não paravam de aumentar. Todos estavam insatisfeitos. AA acabou por achar os sacrifícios incomportáveis e fez-se à vela, a 15 de Agosto. Timoja conferenciou com AA na ilha de Angediva e informou que a população hindú de Goa tinha morto os capitães que o Hidalcão tinha deixado ao partir. Chegaram a Angediva, entretanto, quatro naus do reino comandadas por Diogo Mendes de Vasconcelos, que D. Manuel tinha destinado a Malaca. AA aconselhou-o a não ir a Malaca apenas com quatro naus, apesar dos constantes pedidos dos prisioneiros portugueses para que os libertassem. E mais naus chegaram de Lisboa que se recusaram a ajudar na reconquista de Goa. Quando AA os convenceu a todos a colaborarem na reconquista da cidade, ainda teve que ir a Cochim auxiliar o rei numa contenda com um seu primo.
Finalmente, a armada com 1.600 homens pôs-se a caminho de Goa onde se estimava haver entre 6 a 10.000 defensores, bem providos de tudo. AA demorou-se a estudar as defesas de Goa e, a 25 de Novembro, mandou atacar. Era todo o prestígio de Portugal que estava em jogo! O ataque foi bem delineado e obraram-se prodígios. A cidade foi conquistada a 10 de Dezembro e AA caiu de joelhos e agradeceu. Os hindus foram bem tratados mas a nenhum mouro foi dada vida. Em quatro meses, AA fortificou Goa e tratou da sua administração. E fez mais, começou a torná-la numa cidade europeia, um pedaço de Portugal no Oriente! O prestígio português subiu em flecha e todos os potentados locais apressaram-se a enviar embaixador a protestar aliança.
Segura Goa, AA – que recebera notícias pormenorizadas de Malaca, por carta de Rui Araújo, que lá estava cativo – e sob os protestos de Diogo Mendes de Vasconcelos que requeria a missão para si, se insubordinara e estava a ferros, reuniu uma frota de dezoito navios, 800 portugueses e 200 malabares e foi-se a Malaca. Esta era a cidade mais longínqua que os portugueses tentavam conquistar, indo na armada Fernão de Magalhães, que lá tinha estado na primeira expedição. Malaca tinha 100.000 habitantes, e gente de todos os lados. As suas casas eram de madeira, mas estava defendida por 20.000 homens, 2.000 peças de artilharia e elefantes de combate. O sultão Mohamed não gozava, porém, da simpatia dos locais, por ter favorecido os mercadores mouros.
AA apresentou-se em frente da cidade com os navios embandeirados e salvou durante 30 minutos, proibiu que qualquer embarcação saísse do porto sem sua autorização e entabulou negociações. Os prisioneiros portugueses conseguiram entretanto, que mulheres malaias, que tinham conquistado, passassem informações à esquadra… O Sultão resistiu e o ataque começou e passou por várias fases e peripécias (que não vou esmiuçar). Pelo meio, os prisioneiros foram libertados. AA certificou-se, antes do assalto à cidade, de que os capitães assumiam o compromisso de construírem uma fortaleza na cidade sem o que, dizia, não valia o risco tomá-la. O que estes, contrariados, concordaram. A conquista foi feita por partes, tendo sido identificado o local mais estratégico da cidade: a ponte sobre o rio que dividia a cidade ao meio. O primeiro ataque deu-se a 25 de Julho e o último a 24 de Agosto. Nesta data, o Sultão e seus aliados abandonaram a cidade que foi posta a saque; desta feita, organizadamente, tendo aqueles que se deram como amigos dos portugueses sido poupados.
Albuquerque não perdeu tempo e começou logo a construir uma fortaleza que veio a ser conhecida pela “Famosa”. Mandou entretanto gravar uma grande pedra com os nomes dos principais participantes na conquista. Como tal, à boa maneira portuguesa, gerou uma grande discussão, AA tê-la-á mandado assentar voltada para a parede com uma inscrição em latim, na outra face que dizia “a pedra que os construtores rejeitaram”. Revelador! AA estabeleceu uma administração portuguesa, nomeando Rui de Araújo feitor e, mais uma vez, não se intrometeu nos costumes locais.
A partir de Malaca, e ainda em 1511, enviou missões diplomáticas ao reino de Pegu (Rui Nunes da Cunha), Samatra e Sião (Duarte Fernandes) e tratou bem os comerciantes chineses, com quem esperava manter boas relações comerciais. Obtidas informações sobre a localização, até então mantida em segredo, da ilha das especiarias, logo enviou António de Abreu e Francisco Serrão, guiados por pilotos malaios, às Molucas, onde foram os primeiros europeus a chegar, em 1512. No mesmo ano, ergueu-se uma feitoria/forte em Ternate, cujo sultão ajudou Serrão num naufrágio. Os portugueses estavam às portas do Pacífico! Ao mesmo tempo, eram recebidas embaixadas do rei de Java e outras.
Em 1513, Jorge Álvares navegou a partir de Pegu e foi ao Sul da China, logo seguido de Rafael Perestrelo, com a missão de estabelecer relações comerciais com a Dinastia Ming, em Cantão. Foram também as primeiras missões diplomáticas da Europa com o Império do Meio!
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“As vossas fortalezas nam tenhaes receio delas nestas partes”; “ainda que vos lá digam que estam cercados… hua e duas vezes; mas a portugueses co’os capacetes nas cabeças antre as ameyas nam lhe tomam assy a fortaleza”
Afonso de Albuquerque, a D. Manuel I
Cartas: I, p. 54, 1 de Abril de 1512
Albuquerque partiu de Malaca, em Janeiro de 1512; se não o fizesse teria que lá permanecer mais um ano. Deixou Malaca com sólida fortaleza capitaneada por Rui de Brito Patalim, com 300 homens e ainda três navios com 200 homens para patrulhar a costa. A Albuquerque restavam três navios para regressar a Cochim, nomeadamente o seu, a “Frol de la Mar”, muito debilitada por nove anos de navegações e combates. Segundo Castanheda, os habitantes de Malaca cobriram-se de panos pretos para se despedirem de AA. Ao largo de Sumatra um furacão afundou a “Frol de la Mar”, causando muitos mortos e a perda da maior parte das riquezas de Malaca.
Albuquerque salvou-se a custo, apenas com a roupa que vestia. Este naufrágio é ainda um dos troféus subaquáticos mais cobiçados pelos caçadores de tesouros e arqueólogos subaquáticos. A nau de Pêro de Alpoem recolheu os sobreviventes. Cabe aqui dizer que Pêro de Alpoem, de que pouco se sabe, foi o mais leal servidor de AA e homem de mão do governador para todo o serviço. Acompanhou-o até ao último suspiro e foi seu fiel testamentário. A seguir, desapareceu da História. Os dois navios chegaram a Cochim e AA desembarcou em ceroulas, mas com alguns documentos importantes e a espada e a coroa que o rei do Sião tinha oferecido a D. Manuel.
Figura 5 – Réplica da “Frol de la Mar”.
“Onde eu estou presente todalas cousas estam a direito, mas como volvo as costas, husa cada hum de sua condiçam…”
Afonso de Albuquerque
Cartas: I, p. 96, 30 de Outubro de 1512
Após a saída de AA de Goa, tudo tinha corrido mais ou menos mal. O capitão Rodrigo Rebelo desobedeceu às ordens e não ocupou e fortificou Benastarim, ponto estratégico que dominava o canal mais estreito entre a ilha e terra firme. Mas os turcos não perderam tempo a fazê-lo. Quando Hidalcão regressou, Rebelo saiu-lhe ao encalço e dispersou as suas forças, mas, levando longe demais a perseguição, acabou morto. Ao contrário do que AA tinha deixado escrito, nomeando Manuel de Lacerda – que se encontrava ausente –, os restantes fidalgos lembraram-se de fazer capitão a Diogo Mendes de Vasconcelos, que AA tinha enviado para a prisão. Este defendeu bem a cidade, mas não se preocupou com a administração.
Goa esteve cercada durante toda a estação das chuvas, tornando-se a vida penosa, por faltar de tudo, menos actos de bravura na sua defesa. Quando a situação estava mais crítica, um desertor, mas não renegado, português, João Machado, abandonou o Hidalcão e passou-se a Goa, e com ele vieram mais doze. Ainda hoje não se sabe porquê. Esta atitude levantou o moral dos sitiados e pô-los ao corrente do que se passava na hoste inimiga.
A chegada das naus que tinham ido a Calecut, de Manuel de Lacerda, e ainda a da costa da Arábia, de Diogo Fernandes de Beja, animaram os sitiados e aliviaram a pressão. E quando AA apareceu isolado na barra de Cochim foi como se um choque eléctrico varresse toda a costa da Índia. Há um ano que não sabiam dele nem da conquista de Malaca. AA limitou-se a dizer “os inimigos não folgaram com tal nova”. Em Goa repicaram os sinos.
AA deu ordem para que o comando de Goa passasse para Manuel de Lacerda e que Diogo Mendes voltasse à prisão, mas não foi logo para Goa, dado não ter forças suficientes e a cidade não estar em perigo iminente. Enquanto esperava forças do reino, AA ocupou-se na administração de Cochim, cujo capitão e feitor (António Real e Lourenço Moreno) tinham colocado no maior desgoverno e intriga. AA castigou os responsáveis. Chegaram finalmente, em Agosto de 1512, os reforços capitaneados pelo seu sobrinho Garcia de Noronha, com 1500 homens do melhor que havia em Portugal. Este sobrinho era mancebo inexperiente, arrogante e de mau génio, mas capaz e enérgico.
A 10 de Setembro, partiu AA com 16 velas para Cananor e Goa. AA começou por cercar a fortaleza de Benastarim que o Hidalcão guarnecera com 6.000 homens de armas comandados por um dos seus melhores generais, Roçalcão, e muita artilharia. Roçalcão acabou por se render após ter sido batido em campo aberto e a fortaleza derrubada pela artilharia. AA ditou as condições e os turcos saíram apenas com o vestuário que envergavam, entregando todos os renegados. A fortaleza foi reconstruída e os traidores tiveram o tratamento que mereciam. Goa estava salva. Apareceu, entretanto, um enviado de Meliaquez, governador de Diu, e tudo se fez para o impressionar e intimidar seu amo.
AA também queria ter fortaleza em Diu, no reino de Cambaia. Enquanto se entregava à administração de Goa chegaram várias embaixadas, a mais importante das quais chegou da Abissínia, em Dezembro de 1512, o Reino do Preste João. O homem chamava-se Mateus e era um mercador arménio que se fixara na Etiópia e fora enviado pela rainha Eleni, na sequência dos enviados de Tristão da Cunha, idos de Socotorá, em 1507. Trazia um presente para D. Manuel, nada mais, nada menos do que um pedaço da “Vera Cruz”. Pedia aliança e que Mateus fosse enviado à Corte de Lisboa e depois ao Papa. AA ficou encantado, tratou o embaixador o melhor que poude e embarcou-o para Portugal. Chegara aos ouvidos de AA que o Sultão do Egipto se queria instalar em Áden. Estava na altura de ir, finalmente, ao Mar Roxo.
“Na Índia nem dentro de mim nom fica nehua cousa por vos escrever, se nam meus pecados, e estes se nam ouvesse vergonhas, escrever vol-os-hia, porque crêo que vos alteza me teria bom segredo neles”
Afonso de Albuquerque
Cartas: I, p. 302
AA zarpou para Áden, em Fevereiro de 1513, com cerca de 1000 portugueses e 400 malabares transportados em vinte naus.
Figura 6 – O Golfo de Áden.
Esta cidade controlava o acesso ao Mar Vermelho – ao contrário de Socotorá que fora abandonada no ano anterior –, o qual conduzia ao coração do Islão, o inimigo ancestral e irredutível da Cristandade. A guerra seria a única realidade a esperar. O governador da cidade, intimado a render-se, recusou e Áden foi atacada, a 25 de Março. O ataque falhou por indisciplina dos capitães, cada um a ver quem chegava primeiro ao combate em vez de comandarem as suas tropas e por as escadas serem curtas e terem-se partido. AA embarcou as suas tropas por não haver condições tácticas para novo ataque, haver falta de água e ser difícil manobrar no porto. Dirigiu-se ao Mar Roxo e, à entrada do Babelmândebe, fundeou a esquadra no estreito. Foi um momento solene: hastearam-se bandeiras, deram-se salvas, ouviram-se os apitos dos contramestres e AA ordenou que todos rezassem o credo e dessem graças a Deus por o Estandarte Real Português se desfraldar neste mar fechado onde nunca antes alguma esquadra cristã navegara!
Não se conseguiu ir a Jeddah nem ao Suez, devido a ventos contrários. Abasteceu-se na ilha de Camarão, entre 1 a 15 de Julho, tendo AA estudado em pormenor toda a região e feito um relatório circunstanciado para D. Manuel. Reflectiu que um canal no Suez só iria beneficiar turcos e venezianos, mas teve a ideia de desviar o curso do Nilo o que destruiria o Egipto em dois anos! E concebeu um plano de ataque a Meca e a Jerusalém, aliado aos etíopes cristãos. Pretendia ainda construir uma fortaleza em Maçuá, território do “Preste João”.
Enquanto esperava em Camarão a passagem da monção, um homem de armas, Fernão Dias, que conhecia a língua árabe, pediu autorização para desembarcar em terra e ir a pé para Portugal, a fim de dar as últimas novas. Autorizado, foi lançado em terra com ferros nos pés a fingir ser prisioneiro. E não é que chegou a Portugal?! Só para se ter uma ideia do terror que o nome de AA inspirava, quinze dias depois de ter entrado no Mar Roxo, a notícia chegou a Jeddah e ao Cairo. Nesta cidade reinou o pânico e naquela a população abandonou-a. AA escreveu a D. Manuel “Vossa Alteza, tem dado ho maior açoute na Costa de Mafamede do que ouve de cent’anos aquá, porque lhe chegastes ao vivo e lugar de toda sua confiança”[5].
No regresso do Mar Vermelho, AA ainda passa por Áden, a 26 de Julho, mas não a atacou e passou a Diu, onde foi bem recebido por Meliqueaz, tendo deixado, a pedido deste, um feitor para tratar do comércio. Chegado a Cananor, AA tem conhecimento de uma conspiração contra si, tendo os seus responsáveis sido enviados para Portugal.
Recebe ainda um representante do Xá da Pérsia que lhe pede o envio de um embaixador. A escolha recaiu em Miguel Ferreira a quem AA entrega um extenso e minucioso regimento, sobre tudo o que devia ter em conta. Aparentemente, AA não confiava muito no senso das pessoas… Foi ainda assinado, em Outubro, um tratado muito favorável com o novo Samorim de Calecut, tendo este enviado, inclusive, uma embaixada a Lisboa! Pôs ainda o Rei de Cochim na ordem, que se tinha incomodado com o tratado efectuado com a rival Calecut.
“Bem sabem os da Índia, que nunca fiz rebelldaria nem vileza, nem quebrey minha palavra, nem meu seguro; cofiam tanto nossos inimigos de mim que sem seguro sabem que se vem direitos onde eu estou que assy lhe guardo o seguro como se o tevessem assinado por mim; he muito estimada minha palavra na Índia”
Afonso de Albuquerque
Cartas: I, p. 172, 1º Dezembro de 1513
AA passou todo o ano de 1514 na Índia. A sua intenção de voltar a Áden já bem aparelhado e com tropas treinadas gorou-se por várias razões, sobretudo pelo estado dos navios que AA não conseguia consertar em tempo.
Decidiu-se por isso a instruir os seus homens e a receber embaixadas, das quais se destacam as de Pegu e Sião e a enviar outras, como a que se dirigiu a Cambaia. Esta última, que correu amistosamente, revelou que Diu “só se ganharia com alguma pressão mais musculada”. Manobrou ainda para colocar os reinos de Bisnaga e do Decão, um contra o outro. Umas das chaves do sucesso da guerra entre os reinos desavindos eram os cavalos. Os cavalos eram quase todos importados da Arábia e da Pérsia, já que quase não se reproduziam na Índia. AA percebeu isto e concentrou todo o comércio de cavalos em Goa! Pelo meio sobreviveu a uma tentativa de envenenamento, em Cochim.
Dedicou-se também à administração, morigerou os costumes, tendo, por exemplo, proibido todos os jogos, à excepção das damas e do xadrez, e impôs uma justiça rigorosa. No ano seguinte, fundou a Santa Casa da Misericórdia de Goa. Procurou, pela educação, evangelização e integração a existência de uma sociedade e cultura luso-indiana que preservasse a permanência portuguesa por aquelas paragens e que ainda pode hoje ser observada. Propôs, inclusive, ao Rei que os governadores, capitães e altos funcionários pudessem levar para a Índia as suas mulheres e filhos.
E o sucesso da faustosa e imponente embaixada que D. Manuel enviou ao Papa Leão X, liderada por Tristão da Cunha, no início desse ano, e que percorreu as ruas de Roma, muito se deve a AA! E só foi pena que o rinoceronte enviado por este como prenda a D. Manuel e por este reenviado ao Sumo Pontífice, tenha morrido num naufrágio já na costa italiana.
Figura 7 – O Rinoceronte de Durer.
“O governador se alevantava ante manhã e com sua guarda a pé hia ouvir missa, e cavalgava só, com huma cana na mão e hum sombreiro palhete na cabeça, e com os seus alabardeiros hia correr a ribeira e os muros, ver as obras que se faziam, que tudo via por seu olho e mandava fazer. Trazia após y quatro escrivais, criados d’el Rey, com tinta e papel, fasendo mandados e despachos, que assinava assy a cavalo como andava”
Gaspar Correia, Lendas da Índia II, pp 364 e 365
AA tinha grandes projectos para 1515. Logo que possível, sairia à conquista de Áden e dali iria ao Suez, com o fito de destruir os navios do Soldão; a seguir, iria apoderar-se da ilha de Dalaque e construir fortaleza em Maçuá. Passaria ainda por Jeddah a ajuizar a sua situação e o que fazer. Na altura azada iria a Ormuz, antes de regressar à Índia. Mas a situação nesta cidade alterou-se havendo agora o perigo do Xá da Pérsia se apoderar dela. Além disso, havia falta de dinheiro para pagar às tropas, pois não chegava dinheiro do reino e Ormuz estava cheia de riquezas.
A armada de vinte e sete velas fez-se ao mar, a 21 de Fevereiro. A disputa pelo poder em Ormuz levara a que um tal Mexamed mandasse no Rei e se quisesse apoderar do trono.
AA fundeou em frente à ilha de Ormuz, como fizera oito anos antes. Aproximou-se um batel e saíu um personagem que a todos saudou em português! Era o embaixador Miguel Ferreira, que estivera dois anos na corte persa! Obtida a informação necessária, AA resolveu agir; resumidamente, porque a tomada de Ormuz dava outra conferência. AA manobrou discretamente explorando os desaguisados e tensões entre os protagonistas de Ormuz, e acabou por atrair o principal inimigo dos portugueses, o citado Mexamed a uma cilada e matou-o. Depois, claro está, de já ter começado a fazer uma fortaleza e já a ter protegida com homens e artilharia.
O jovem soberano, Turuxá, ficou muito agradecido a AA que acabou por ter apoio, também, de Rasnoradim, principal figura e seu conhecido da primeira vez que esteve em Ormuz. A população aceitou tudo e o jovem rei mantinha a autoridade nominal, mas, obviamente, quem mandava era AA.
Em resumo, AA conquistou para a Coroa Portuguesa um dos principais entrepostos comerciais de todo o Oriente, sem disparar um tiro! O seu prestígio espalhou-se à velocidade da luz e a fama dos seus feitos entraram no campo da lenda! Albuquerque tinha atingido o cume da sua glória. Logo de seguida, AA recebeu embaixadas de todo o lado a protestarem amizade e aliança; os príncipes enviavam pintores a fazer-lhe o retrato e de toda a parte vinha gente a Ormuz, de propósito para o conhecer, ao passo que multidões de admiradores apinhavam-se para o ver à porta da fortaleza ou quando se deslocava a cavalo.
“Os homens da Índia, teem hum poucochynho a consciência grosseta e parece lhe que vam em romaria a Jerusalém quando furtam!”
Afonso de Albuquerque
Cartas: I, p. 143, 30 de Nov. de 1513
AA adoeceu. Os sintomas vinham já de fins de 1514. Ao fim de tantos anos de trabalhos, perigos, ferimentos, privações e mau clima, a sua robusta constituição e forte ânimo vacilaram. AA trabalhara dia e noite, tendo metido ombros a uma tarefa gigante, vivendo sempre a aflição de ter quase sempre falta de recursos. E faltava ainda conquistar Áden, para firmar sobre bases sólidas o império português no Oriente!... Por isso se trabalhava afanosamente na fortaleza, mas muitos morriam de febres e disenteria.
Avisado de que os físicos que acompanhavam a Armada não se incumbiam como devia ser da sua função e cobravam dinheiro quando visitavam os doentes, AA reuniu-os e deu-lhe uma lição. Pô-los a trabalhar na fortaleza, após o que os proibiu de cobrar pelos tratamentos pois já eram pagos para o seu exercício. E ameaçou-os com as galés! Era assim AA!
Chegaram, entretanto, rumores que D. Manuel queria substituir AA e fazê-lo regressar para ser seu conselheiro, o que indispôs ainda mais o governador. De facto, a facção contrária a AA na Corte ganhara – mesmo contra o parecer da Rainha – e Lopo Soares de Albergaria, seu inimigo figadal, fora despachado para a Índia, para substituir AA, tendo chegado em Setembro. A recepção foi fria e todo o mundo ficou estupefacto. Lopo Soares indignou-se e o seu ódio a AA transbordou. AA continuava doente e chegou a receber os últimos sacramentos. Reuniu os capitães e fê-los jurar que obedeceriam a quem ele designasse para o substituir, o que estes acataram de boa mente.
Mas AA não morreu e continuou a trabalhar, só deixando Ormuz em 8 de Novembro, deixando tudo tratado ao pormenor (e sem se despedir de ninguém). Ficaram 400 homens e três naus, com Pêro de Albuquerque no comando. No caminho cruzou-se com um bergantim onde colheu a informação de que chegara novo governador, com muitos navios e capitães e que se dirigia a Cochim. A partir desse momento AA desistiu de lutar contra a doença e logo decaiu. Pretendia, sem embargo, chegar a Goa. Mandou arriar o estandarte real – visto já não ser governador – e enviou a sua última carta para D. Manuel, a 6 de Dezembro. Ditou testamento e referiu querer ficar enterrado na Igreja de Nossa Senhora de Sena, em Goa.
Por fim, desenganado, disse a sua última frase célebre: “Certamente que grandes são meus pecados ante el Rey. Pois estou mal ante elle por amor-dos-homens, e mal com os homens por amor d’Elle, cumpreme acolher à Igreja”. E voltou o rosto para o outro lado. Morreu na madrugada do dia seguinte, 16 de Dezembro, à entrada do Rio Mandovi, à vista de Goa. Vestiram-lhe o hábito de Cavaleiro de São Tiago e desembarcaram-no em Goa, onde toda a população, incrédula, veio para a rua chorar a sua morte. Diziam que devia haver guerra no Céu, para Deus o ter mandado chamar!
“Nom há honra em Portugal que seja igual à da governança da Índia. Pôde em Portugal haver descanso do trabalho do corpo; mas o meu corpo que dias pode viver para gostar de descanso? E que mór póde aver pêra mym, que acabar meus dias, que já serão muy poucos, nestes trabalhos, que são os que me avivão os espíritos?”
Afonso de Albuquerque
(Gaspar Correia, II, p. 452)
O Rei D. Manuel enviara Lopo Soares para o Oriente, em Março de 1515. Porém, soube em Agosto, através de contactos com Veneza, que o Sultão do Cairo preparava no Suez uma grande frota para actuar contra os portugueses no Índico, nomeadamente Ormuz. Temendo as consequências e arrependido de ter substituído AA, D. Manuel escreveu a Lopo Soares, que devolvesse a AA o comando das operações e que o ajudasse a combater as forças inimigas. Quando a carta chegou já AA tinha falecido, não chegando também a ler a que lhe fora dirigida, a solicitar ajuda no que se previa ser uma grave ameaça. Vale a pena ler as duas cartas. Mas já era tarde para reparar o mal feito, àquele que tão bem servira o seu Rei e que este tão mal avaliara e tratara.
AA era uma força da natureza, trabalhador incansável e muito exigente. Era autocrata mas não autoritário e dava sempre o exemplo. AA era estoico, frugal desprendido dos bens terrenos. Esteve sempre “ao serviço” e nunca se serviu. Homem de uma só cara, forte personalidade e guerreiro indómito, AA era um génio da acção. AA escrevia e falava bem, único na sua linguagem e no estilo. Era bom conversador e divertido.
Por vezes violento, mas não vingativo, nunca deixava de reconhecer as virtudes dos seus inimigos. Os seus acessos de cólera passavam tão depressa como vinham. De uma determinação e vontade inabaláveis, era dotado de um sentido de justiça apurado, servido por uma inteligência e cultura invulgares. AA punha no cumprimento do Dever e da Missão todo o seu esforço e alma.
AA a ninguém deixava indiferente, despertava ódios e amizades profundas. Os indígenas adoravam-no e tinha uma especial predilecção pelas crianças. Em Goa, mandou instituir um fundo par sustentar os órfãos e enjeitados, que depois enviava à escola e à catequese. Quando a “Frol de la Mar” naufragou à saída de Malaca, a única coisa que AA trouxe nos braços foi uma criança, filha de uma nativa. AA distinguiu-se em todas as áreas e âmbito em que actuou, mas permito-me realçar as seguintes:
– Como comandante e líder militar era extraordinário, tendo conhecimento de todos os “princípios” da guerra; era ponderado e calculava o risco, audacioso e intrépido. É seguramente o chefe militar mais completo de toda a História de Portugal, já que era mestre da guerra no mar, em terra, anfíbia, e em cercos, dominando a táctica, a logística, o armamento, enfim, todas as áreas da “arte da guerra”;
– Como marinheiro, dominava todo o conhecimento náutico, ao ponto de ser também piloto do seu próprio navio;
– A estratégia é, certamente, o pico do pensamento e acção de AA. É absolutamente extraordinária a visão que ele tinha da História, da Geografia, da Política, da Economia, etc., de tão vasta área – isto há 500 anos note-se – que lhe permitiu conceber um plano estratégico, que se pode considerar perfeito e que todos os outros poderes europeus que vieram a seguir copiaram, e que ainda hoje é perfeitamente válido;
– As características de AA como Administrador não são demais de louvar. O homem era uma máquina de competência ao serviço do Bem Comum. Incorruptível e castigador de corruptos, tinha ideias avançadas para a sua época. E de tudo dava conta;
– As capacidades de diplomata de AA são também impressionantes. Antecipava as jogadas e era de uma argúcia e objectividade fora do vulgar;
– AA era ainda um escritor prolixo e de mérito. A sua correspondência com D. Manuel devia ser estudada na política, na diplomacia, nas escolas militares e nas universidades. Deviam constituir esteio do pensamento nacional.
E não escrevia só ao Rei, mas aos Duques, Condes, Secretários de Estado, Vedores da Fazenda. Todos eram informados do que se passava no Oriente! AA chegou a ter cinco secretários, que andavam constantemente num virote. De cada carta, mandava fazer quatro cópias e guardar as minutas… Mas, sobretudo, AA era um visionário, pensava em grande, era um lutador de causas, tinha o sentido espiritual das coisas e do transcendente, caminhava à frente do tempo e nenhuma missão julgava impossível. Ele foi o maior obreiro do enunciado em Ourique que os portugueses tiveram, até hoje. O valor e acção de AA não estavam à medida dos homens. Dito de outro modo: o comum dos homens não estava à altura de Albuquerque.
Em síntese, todas estas características fazem de AA um estadista invulgarmente dotado e justificam plenamente ter sido “chamado o Grande pelas heróicas façanhas com que encheu de admiração a Europa e de pasmo e terror a Ásia”[6]. Talvez por isso, o que recebeu do Reino foi uma caterva de queixas, desconsiderações, lamento pelas despesas, acusações, invejas e intrigas, sugestões de ignorantes e ordens contraditórias. O costume, aliás, em quase todos os tempos.
Como é costume também, o reconhecimento veio tarde – e hoje está esquecido. Para reparar o mal feito, D. Manuel I nomeou-o, finalmente, Vice-Rei da Índia e concedeu-lhe o título de Duque de Goa e Senhor do Mar Vermelho e o tratamento de Dom. Note-se que o título de Duque foi o primeiro a ser concedido fora da Família Real e o primeiro referente a um local fora do Reino. O seu filho, Brás de Albuquerque, que viveria até 1580, foi cumulado de honras e até se lhe acrescentou o nome de Afonso, a fim de eternizar a memória do seu progenitor! E Afonso tem origem germânica e quer dizer “Nobre Pronto”!
“Se Vossa Alteza agora, ou em qualquer tempo que for,
deixar Goa aos turcos, (digo que) Nosso Senhor quer que as cousas da Índia se acabem…”
Afonso de Albuquerque
Comentários: parte III, cap. LVI
AA acabou por ser trasladado para Lisboa, em 1566, e foi sepultado com pompa, no Convento de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa. Nele se pode ver ainda hoje o seu túmulo que, incrivelmente, não ostenta qualquer identificação! Por ironias do destino, a seu lado encontra-se o túmulo de Lopo Soares de Albergaria… Em 1902, foi erigida uma estátua monumental na praça em seu nome, em Belém. Lugares que deviam ser local de peregrinação…
O seu retrato existente no Palácio dos governadores, em Goa, foi recuperado e está em Lisboa. A história desta recuperação merece ser contada, e é isso que vou fazer para terminar. Na sequência do miserável ataque e ocupação militar do Estado da Índia, em 18 de Dezembro de 1961, cerca de 3.500 militares portugueses ficaram prisioneiros. A sua repatriação, por razões que não vou explicar, tornou-se um impasse. Foi o Engenheiro Jorge Jardim que, com um audacioso plano, aprovado pelo governo, conseguiu resolver a questão a contento.
Deste plano digno dos melhores filmes de James Bond, fazia parte uma ida a Goa por parte do Engenheiro. Este, ao despedir-se do então Ministro do Ultramar, Professor Adriano Moreira, perguntou-lhe se não queria mais nada. Para amenizar, o ministro, pediu-lhe que trouxesse o retrato de AA… Jorge Jardim enganou-se e trouxe o de Francisco de Almeida e foi este que o surpreso ministro recebeu. Com o agradecimento foi feito o reparo.
Figura 8 – Monumento a Afonso de Albuquerque, na Praça do Império, em Lisboa.
Numa segunda ida a Goa, Jardim pediu o retrato certo e despachou-o para Lisboa! É por isso que o podemos admirar, hoje em dia, no Museu de Arte Antiga. Foi mais uma justiça feita a AA, já que ele não merecia ficar cativo na Índia, por semelhante acto de ignomínia da União Indiana[7].
Falta ainda, pensarão alguns, transladar AA para o Panteão Nacional. Mas tal não me atrevo a recomendar, creio que ele não iria gostar nada da ideia.
Figura 9 – Retrato existente na galeria dos Vice-Reis, em Goa, até agora tido como sendo de Afonso de Albuquerque.
Publicações
Bouchon, Geneviève, “Afonso de Albuquerque, o Leão dos Mares da Ásia”, Quetzal Editores, 2ª Edição, Lisboa, 2000.
Costa, João Paulo Oliveira e Rodrigues, Vítor Luís Gaspar, “Conquista de Goa, 1510-1512”, Vol. I, Tribuna da História, Lisboa, 2008.
Costa, Marechal Gomes da, “Descobrimentos e Conquistas I”, Serviços Gráficos do Exército, Lisboa, 1927.
Ferreira, João J. Brandão, “A Evolução do Conceito Estratégico Ultramarino Português, da Conquista de Ceuta à Conferência de Berlim”, Atena, Lisboa, 2000.
Macedo, Jorge Borges de, “História Diplomática Portuguesa, Constantes e Linhas de Força”, Instituto de Defesa Nacional, Lisboa, 1987.
Morais, Carlos Alexandre de, “Cronologia Geral da Índia Portuguesa, 1498-1962”, Referência/Editorial Estampa, Lisboa, 1997.
Nacional, Imprensa, Casa da Moeda, “Comentários de Afonso de Albuquerque”, 5ª Edição, Tomo I e II, Lisboa, 1973.
Rodrigues, Vítor Luís Gaspar Costa, João Paulo Oliveira, “Conquista de Malaca II”, Tribuna da História, Lisboa, 2012.
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Artigos
Ferreira, João José Brandão, “O Fim da Presença Portuguesa na Índia”, Mais Alto, nº 276, Mai./Abr. 1992.
Gonçalves, Flávio, “Afonso de Albuquerque, 500 anos depois: Memória e Materialidade”, Jornal “O Diabo”, 8/12/2015.
Conferências
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Martins, Luiz Augusto Roque, “A Viagem de Circum-Navegação do Curso D. Lourenço de Almeida”, Academia da Marinha, Lisboa, 2010.
Internet
http://pt.wikipedia.org/wiki/Br%C3%A1s_de_Albuquerque, “Brás de Albuquerque”, 19/1/2016.
* Conferência promovida pela Sociedade de Geografia de Lisboa, em 25 de janeiro de 2016.
[1] Devem ser enaltecidas as excepções a este silêncio fúnebre da nacionalidade, as iniciativas levadas a cabo pelo Movimento Internacional Lusófono a que se associaram a Sociedade Histórica para a Independência de Portugal, a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Pequenas comemorações ocorreram também na sua freguesia natal, Alhandra. A Academia de Marinha dedicou-lhe uma palestra e pouco mais.
[2] O Islão foi-se expandindo por todo o Oriente no século VIII, a partir da Península Arábica. Após o ano de 712, esta expansão chegou ao Norte e Centro do Indostão. Em 1192, Mohammad de Ghor tomou Deli e, em 1200, caiu a Dinastia Sena, em Bengala.
[3] O sacrifício do Sati. Uma reforma que os ingleses só se atreveram a fazer 300 anos mais tarde…
[4] Gaspar Correia, “Lendas da Índia”, tomo II, parte I, p. 98.
[5] Cartas: I, de 4 de Dez de 1513, p. 237.
[6] “Biblioteca Lusitana”, de Diogo Barbosa Machado.
[7] Investigações posteriores puseram em evidência a possibilidade deste retrato não ser de AA, mas de Lopo Soares de Albergaria…