Num quadro global em que o paradigma da segurança se tem alterado a velocidade vertiginosas, com a introdução de fatores perfeitamente imprevisíveis, cujos exemplos mais recentes são a incomensurável dimensão do fluxo de refugiados/migrantes que têm entrado no espaço Schengen (sem que sejam alvo de medidas de controlo minimamente eficazes) e o ressurgir dos atentados terroristas em território da União Europeia, hoje, mais do que nunca, importa repensar como fazer face a essas novas ameaças, cuja origem é cada vez mais difusa.
Nessa sequência, optámos por abordar uma temática cuja atualidade recrudesce exponencialmente e que se encontra em constante mutação (inclusive durante o período de elaboração do estudo): O emprego das Forças Armadas (FFAA) na Segurança Interna em Portugal. Procurámos efetuar a nossa análise à luz da realidade vigente no Reino de Espanha, através de um estudo comparativo, que pretendemos manter fundamentalmente no plano jurídico, embora fosse inevitável, por vezes, mencionar aspetos de cariz operacional, dada a sua interdependência. Por outro lado, por razões que se prendem com a dimensão que se pretendeu dar ao presente texto, optámos por não desenvolver as vertentes relacionadas com a proteção civil e com o regime do estado de sítio e do estado de emergência, até porque, no universo da Segurança Interna, esta tipologia de missões está relativamente bem clarificada.
A questão que considerámos central no presente estudo foi: Quais os obstáculos que se colocam ao emprego das FFAA portuguesas em atividades de Segurança Interna? Para obtermos esta resposta, elencámos algumas questões derivadas que entroncam necessariamente na temática e procurámos responder ao longo dos capítulos: Em que consiste a Segurança Interna? Existe um enquadramento legal permissivo em Portugal? Os documentos estratégicos existentes em Portugal estão operacionalizados?
Organizámos o estudo em três capítulos, precedidos da presente introdução e sucedidos de um capítulo conclusivo. No Capítulo 2 procuraremos, acima de tudo, delimitar os conceitos que depois fomos abordando ao longo do estudo. Tendo em conta que a temática se desenvolve na área do Direito e Segurança, entendemos como fundamental construir esta ancoragem concetual que, dentro das já referidas limitações, procurámos que fosse o mais sólida possível. Densificar-se-ão os conceitos de Segurança Humana, Segurança Nacional, Defesa Nacional e Segurança Interna, não por serem os únicos que iremos abordar, mas por considerarmos serem estruturantes no contexto.
No Capítulo 3 iniciaremos o estudo comparativo com uma análise puramente descritiva dos diversos diplomas legais e outros documentos que dão corpo ao quadro normativo que regula esta temática. Fá-lo-emos para Portugal e para Espanha, começando obviamente pelos textos constitucionais, descendo depois na hierarquia das leis, até chegar aos documentos estratégicos e aos meramente operacionais.
A referida análise descritiva permitir-nos-á, depois, estabelecer as interessantes e desejadas comparações entre os dois quadros normativos, o que faremos no Capítulo 4, que consideramos fundamental, já que será ali que, em sintonia com uma concetualização que julgamos ter sido suficientemente densificada no Capítulo 2, conseguiremos retirar ilações sobre semelhanças e distinções relativas aos modelos português e espanhol que, por sua vez, nos conduzirão às respostas que nos propusemos encontrar.
No Capítulo 6, iremos sumarizar as conclusões decorrentes dos relacionamentos concebidos, das extrapolações operadas e das deduções geradas, tentando solucionar a problemática levantada, o que nos permitirá responder à questão central que colocámos no início.
A abordagem que pretendemos conduzir no presente estudo passa fundamentalmente pelo conceito de Segurança Interna, pelo que achámos de capital importância densificá-lo, bem como outros com os quais está inexoravelmente conectado, como a Segurança Nacional e a Defesa Nacional. Todavia, a montante destas noções, surge a conceção de Segurança Humana, de onde decorrem todos os conceitos relacionados com segurança, pelo que, numa abordagem do tipo top-down, entendemos começar por aí.
a. Segurança Humana
Na senda daquilo que Boutros Boutros-Ghali[1] avançou na redação da Agenda para a Paz (1992)[2], em 1994, o Relatório do Desenvolvimento Humano elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), estabeleceu que o conceito de “segurança” de então deveria evoluir da conceção tradicional da defesa das fronteiras do Estado para outra mais centrada no indivíduo e na redução da insegurança da sua vivência diária. Foi assim introduzido o conceito de segurança humana, que o referido relatório considerou que poderia ser afetada por diversas ameaças, como a fome, a doença, a criminalidade, o desemprego, as violações de direitos humanos e os desafios ambientais (PNUD, 1994, pp. 2-10).
O PNUD (Idem, pp. 24-25) considerou que essas (e outras) ameaças se podiam agrupar em sete categorias principais: segurança económica; segurança alimentar; segurança sanitária; segurança ambiental; segurança pessoal; segurança comunitária; e segurança política. Identificou também os dois principais componentes da segurança humana (reconhecidos pelas Nações Unidas desde a sua génese): a libertação do medo; e a liberdade de escolha. Achamos particularmente ilustrativa da importância da sua coexistência a seguinte citação do Secretário de Estado da Defesa dos Estados Unidos, em 1945, por ocasião da comunicação dos resultados da Conferência de S. Francisco (que resultou na criação das Nações Unidas) ao seu governo: “The battle of peace has to be fought on two fronts. The first is the security front where victory spells freedom from fear. The second is the economic and social front where victory means freedom from want. Only victory on both fronts can assure the world of an enduring peace (...)” (Idem, ibidem).
Jorge Bacelar Gouveia classifica o conceito como omnicompreensivo, identificando depois algumas características fundamentais que, segundo o autor, devem ser inerentes à segurança humana: a universalidade – sendo alcançável por todos; a interdependência – as ações isoladas de um ator podem ter reflexos globais; a prevenção – em detrimento da repressão, menos eficaz e menos eficiente; e a humanidade – objetivo último a atingir devendo orientar todas as ações (Gouveia, 2015, p. 421).
Entendemos resumir o conceito recorrendo a Nelson Lourenço, que afirma que “(…) a construção da noção de segurança humana pretendeu associar, num mesmo conceito, as noções de segurança, direitos humanos e desenvolvimento. Abrange, assim, um vasto conjunto de dimensões que vão da segurança económica à sanitária e alimentar, da segurança do indivíduo à segurança ambiental e política, assumindo-se como um conceito global da segurança (2015b, p. 3)”. Para consolidar esta posição, que pretendemos adotar para o presente estudo, socorremo-nos da abordagem de Barry Buzan que, na sua obra “People, States and Fear” (redigida em plena Guerra Fria), já idealizava o conceito de Segurança Sistémica, com uma dimensão holística, sugerindo que se abandonasse o uso compartimentado dos conceitos de segurança internacional, nacional ou individual (1983, pp. 247-248).
b. Segurança Nacional e Defesa Nacional
Em 1978, o Almirante Leonel Cardoso[3], na Conferência dos Comandantes dos Colégios de Defesa das Nações da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em Roma, propôs um conceito alargado de defesa. Nessa sequência, o Instituto de Defesa Nacional (IDN) definiu finalmente os conceitos que, depois de sancionados pelo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), passaram a constituir doutrina do IDN e um ponto de partida para um alargado debate nacional (Vieira, 2007, p. 5).
Assim, foi definido o conceito de Segurança Nacional como “(…) a condição da Nação que se traduz pela permanente garantia da sua sobrevivência em Paz e Liberdade, assegurando a soberania, independência e unidade, a integridade do território, a salvaguarda coletiva de pessoas e bens e dos valores espirituais, o desenvolvimento normal das tarefas do Estado, a liberdade de ação política dos órgãos de soberania e o pleno funcionamento das instituições democráticas” (Cardoso, 1979, p. 9).
Por sua vez, o conceito de Defesa Nacional foi descrito como “(…) o conjunto de medidas, tanto de carácter militar como político, económico, social e cultural, que, adequadamente coordenadas e integradas, e desenvolvidas global e sectorialmente, permitem reforçar a potencialidade da Nação e minimizar as suas vulnerabilidades, com vista a torná-la apta a enfrentar todos os tipos de ameaça que, direta ou indiretamente, possam pôr em causa a Segurança Nacional” (Idem, ibidem).
Não obstante a miríade de versões sobre os referidos conceitos, entendemos adotar os supracitados, dada a recorrente referenciação que encontrámos dos mesmos, feita pelos mais diversos autores.
c. Segurança Interna
De acordo com Nelson Lourenço e outros autores (2015, pp. 25-26), o conceito de Segurança Interna é relativamente recente no plano político-administrativo e das ciências sociais, tal como o são os estudos sobre segurança que integram a referida dimensão.
Dada a profundidade que por si só esta problemática traria à colação, optámos por nos centrar na abordagem que Armando Marques Guedes adotou nos seus artigos constantes da Enciclopédia de Direito e Segurança. O autor recorre ao conceito de “interdependência complexa”, de Robert Keohane e Joseph Nye, que se baseia na evidência de que os estados e os seus destinos são cada vez mais interdependentes, o que aponta desde logo para o esbatimento do conceito exterior/interior e para a constatação de que a segurança externa, sendo apenas uma componente da Segurança Nacional, mantém uma forte ligação umbilical com a Segurança Interna. Segundo o mesmo autor, esta interdependência no domínio securitário atingiu tal intensidade que não é possível garantir a Segurança Interna de forma estanque, sem que exogenamente seja garantida a segurança externa, a qual classifica como “a grande segurança” (Guedes, 2015). No mesmo sentido vai Nelson Lourenço, ao afirmar que “(…) A desterritorialização das ameaças é talvez o facto político e social com maior impacte na transformação do quadro tradicional de referência da segurança” (2015a, p. 432), afirmando também que “a Segurança Interna é hoje assumida como um fator crucial para a credibilidade dos Estados na ordem externa (2013b, p. 25). Da concetualização operada pelos referidos autores, e que adotamos, conclui-se que no atual contexto internacional, não faz qualquer sentido isolar a dimensão interna da segurança, pela forte interdependência que mantém com a dimensão externa.
Para posteriormente podermos aquilatar da sustentação legal que possa ou não ter a utilização das FFAA no âmbito da Segurança Interna em Portugal, procederemos a uma descrição detalhada do quadro jurídico vigente em Portugal e, com o paralelismo possível, analisaremos também o enquadramento legal do tema em Espanha. Elencar-se-ão também os planos ou outros documentos que visem operacionalizar a coordenação entre FFAA e as Forças e Serviços de Segurança (FFSS) no âmbito da Segurança Interna, quer em Portugal quer em Espanha.
a. O quadro normativo português
No quadro de análise consideraremos obviamente a Constituição da República Portuguesa (CRP)[4], a Lei de Segurança Interna (LSI)[5], a Lei de Defesa Nacional (LDN)[6], a Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA)[7] e a Lei que aprovou o Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência (RESEE)[8]. A metodologia utilizada será a análise das referências feitas aos conceitos que considerámos fundamentais para a temática, em cada um dos referidos diplomas. Consideraremos ainda o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN)[9], que, não tendo força de lei, constitui sem dúvida um normativo estruturante e a ter em conta. Os conceitos selecionados, por considerarmos serem os relevantes neste particular, são: Defesa Nacional, Segurança Interna, Polícia/FFSS e FFAA. Na medida em que algumas referências se replicam em vários diplomas (e.g., LDN e LOBOFA), procurámos evitar essa repetição, recorrendo apenas ao diploma com hierarquia superior. Por fim, relacionaremos também os mecanismos de coordenação e planos operacionais existentes.
(1) Defesa Nacional
A CRP refere no seu art.º 273.º, n.º 2 que: “A Defesa Nacional tem por objetivos garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas”.
A LDN define o conceito, no seu art.º 1.º, da seguinte forma: “1 – A Defesa Nacional tem por objetivos garantir a soberania do Estado, a independência nacional e a integridade territorial de Portugal, bem como assegurar a liberdade e a segurança das populações e a proteção dos valores fundamentais da ordem constitucional contra qualquer agressão ou ameaça externas. 2 – A Defesa Nacional assegura ainda o cumprimento dos compromissos internacionais do Estado no domínio militar, de acordo com o interesse nacional”.
A LOBOFA faz a seguinte alusão no seu art.º 1.º: “1 – As FFAA Portuguesas são um pilar essencial da Defesa Nacional e constituem a estrutura do Estado que tem como missão fundamental garantir a defesa militar da República (…)”.
No que respeita ao CEDN é curioso constatar que desapareceu a referência feita do anterior CEDN (2003), onde constava: “6 – As ameaças relevantes: (…) Para proteger o Estado e a comunidade de qualquer agressão, a Defesa Nacional deverá: (…) Ter capacidade para participar na Segurança Interna, nos termos da lei;”.
(2) Segurança Interna
A CRP não define o conceito, referindo apenas quem a deve garantir, o que faz no seu art.º 272.º, n.º 1: “A polícia[10] tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a Segurança Interna e os direitos dos cidadãos”.
Por seu turno, a LSI define o conceito logo no seu art.º 1.º: “1 – (…) é a atividade desenvolvida pelo Estado para garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir e reprimir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o regular exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática. 2 – A atividade de Segurança Interna exerce-se nos termos da Constituição e da lei, designadamente da lei penal e processual penal, da lei-quadro da política criminal, das leis sobre política criminal e das leis orgânicas das forças e dos serviços de segurança. 3 – As medidas previstas na presente lei destinam-se, em especial, a proteger a vida e a integridade das pessoas, a paz pública e a ordem democrática, designadamente contra o terrorismo, a criminalidade violenta ou altamente organizada, a sabotagem e a espionagem, a prevenir e reagir a acidentes graves ou catástrofes, a defender o ambiente e a preservar a saúde pública”. O art.º 2.º diz ainda o seguinte: “A atividade de Segurança Interna pauta-se pela observância dos princípios do Estado de direito democrático, dos direitos, liberdades e garantias e das regras gerais de polícia”.
O atual CEDN refere: “1.4.7. (…) O sistema de Segurança Interna não deve ser considerado isoladamente, mas antes integrado no sistema mais amplo e abrangente da Segurança Nacional, que faz apelo aos princípios da complementaridade e da interdependência entre todas as suas componentes. (…) O sistema de Segurança Interna dispõe, para a prossecução da sua atividade, de um conjunto de forças e serviços que exercem funções nesse domínio, para além dos órgãos de polícia criminal. (…) 1.4.2. (…) o Estado deve: Promover uma abordagem integrada da Segurança Interna, contemplando uma dimensão horizontal, incluindo a necessidade de intervenção articulada e coordenada de FFSS, da proteção civil, da emergência médica e das autoridades judiciárias, bem como de entidades do sector privado, e uma dimensão vertical, incluindo os níveis internacional, nacional e local;”.
(3) Polícia/Forças e Serviços de Segurança
A referência da CRP à “polícia” consta do art.º n.º 272.º, n.º 1 e 2: “1 – A polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a Segurança Interna e os direitos dos cidadãos. 2 – As medidas de polícia[11] são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário”.
Por seu lado, a LSI estabelece no seu art.º 6.º, n.º 1 que: “As FFSS exercem a sua atividade de acordo com os princípios, objetivos, prioridades, orientações e medidas da política de Segurança Interna e no âmbito do respetivo enquadramento orgânico”.
A LDN contém as seguintes referências às FFSS no seu art.º 48.º: “1 – As FFSS colaboram em matéria de Defesa Nacional nos termos da Constituição e da lei. 2 – Compete ao CEMGFA e ao Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna (SGSSI) assegurar entre si a articulação operacional, para os efeitos previstos na alínea e) do n.º 1 do art.º 24.º.”; no art.º 24.º: “1 – Nos termos da Constituição e da lei, incumbe às FFAA: (…) e) Cooperar com as FFSS tendo em vista o cumprimento conjugado das respetivas missões no combate a agressões ou ameaças transnacionais;”.
A LOBOFA refere no art.º 11.º: “1 – Compete ao CEMGFA: (…) x) Exercer, em estado de guerra ou de exceção, o comando operacional das FFSS quando, nos termos da lei, aquelas sejam colocadas na sua dependência”.
O RESEE contém a seguinte referência no art.º 8.º, n.º 3: “As FFSS, durante o estado de sítio, ficarão colocadas, para efeitos operacionais, sob o comando do CEMGFA, por intermédio dos respetivos comandantes-gerais”.
No CEDN, para além do que já foi referido para a Segurança Interna, está vertida a seguinte referência: “1.4.2. (…) o Estado deve: Aprofundar a cooperação entre as FFAA e as FFSS em missões no combate a agressões e às ameaças transnacionais, através de um Plano de Articulação Operacional que contemple não só as medidas de coordenação, mas também a vertente de interoperabilidade dos sistemas e equipamentos”.
(4) Forças Armadas
Na CRP, o art.º 275.º dispõe o seguinte: “1 – Às FFAA incumbe a defesa militar da República. (…) 5 – Incumbe às FFAA, nos termos da lei, satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte. 6 – As FFAA podem ser incumbidas, nos termos da lei, de colaborar em missões de proteção civil, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, e em ações de cooperação técnico-militar no âmbito da política nacional de cooperação. 7 – As leis que regulam o estado de sítio e o estado de emergência fixam as condições do emprego das FFAA quando se verifiquem essas situações”.
A LSI contém a seguinte referência, no seu art.º 35.º: “As FFAA colaboram em matéria de Segurança Interna nos termos da Constituição e da lei, competindo ao SGSSI e ao CEMGFA assegurarem entre si a articulação operacional”.
A LDN contém, obviamente, significativas referências às FFAA. art.º 22.º: “1 – As FFAA são a instituição nacional incumbida de assegurar a defesa militar da República”. art.º 24.º: “1 – Nos termos da Constituição e da lei, incumbe às FFAA: a) Desempenhar todas as missões militares necessárias para garantir a soberania, a independência nacional e a integridade territorial do Estado; (…) f) Colaborar em missões de proteção civil e em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações. 2 – As FFAA podem ser empregues, nos termos da Constituição e da lei, quando se verifique o estado de sítio ou de emergência”.
A LOBOFA faz as seguintes referências no art.º 2.º: “1 – A defesa militar da República, garantida pelo Estado, é assegurada em exclusivo pelas FFAA. 2 – O funcionamento das FFAA é orientado para a sua permanente preparação, tendo em vista a sua atuação para fazer face a qualquer tipo de agressão ou ameaça externa. 3 – A atuação das FFAA desenvolve-se no respeito pela Constituição e pela lei, em execução da política de Defesa Nacional definida e do conceito estratégico de defesa nacional aprovado (…)”.
Relativamente ao RESEE, considera-se a mesma referência que já citámos para as FFSS.
No atual CEDN, para além das referências mencionadas nos pontos anteriores (que são comuns), consta o seguinte: “1.4.6. (…) As FFAA (…) devem estar preparadas para cumprir missões de: Defesa integrada do território nacional; Interesse público, associadas ao desenvolvimento sustentado, ao bem-estar da população, ao apoio à proteção civil (…); Cooperação com as FFSS no combate a ameaças transnacionais”.
(5) Mecanismos de Coordenação e Planos Operacionais
No nosso país, de acordo com a investigação que conduzimos, existe unicamente um mecanismo de coordenação no contexto em análise, cujo normativo foi recentemente “retocado”[12], mas que continua a consistir num único artigo da LSI (23.º), a Unidade de Coordenação Antiterrorismo. No n.º 3 do referido artigo é referido que “Compete à Unidade de Coordenação Antiterrorismo a coordenação dos planos de execução das ações previstas na Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo”.
O referido documento estratégico foi recentemente aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 7-A/2015, de 19 de fevereiro, e efetivamente faz menção a diversos planos, dos quais destacamos apenas os que consideramos mais abrangentes: Plano de Coordenação, Controlo e Comando Operacional das Forças e Serviços de Segurança (PCCCOFSS)[13]; Plano de Ação de Prevenção da Radicalização e do Recrutamento para o Terrorismo; Plano de Ação para a Proteção e Aumento da Resiliência das Infraestruturas Críticas[14] e Programa Nacional de Proteção de Infraestruturas Críticas; Plano de Articulação Operacional, que contempla medidas de coordenação e a interoperabilidade de sistemas e de equipamentos, serviços de proteção civil, emergência médica e FFAA.
De todos estes, salientamos que o único que efetivamente existe e que está de facto implementado com solidez é o PCCCOFSS que, saliente-se, tal como a sua designação indicia, na generalidade das situações não inclui as FFAA. Desta forma, para além dos planos existentes na área da Proteção Civil, que não se enquadram no presente objeto de estudo, não apurámos a existência de nenhum outro plano operacional específico para o combate ao terrorismo ou outras ameaças transnacionais que integre as FFAA e as FFSS, fator que de alguma forma esvazia a eficácia da Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo e que pode potencialmente criar nefastas indefinições com efeitos diretos na prossecução da segurança nacional.
b. O quadro normativo espanhol
Como referimos anteriormente, procuraremos agora efetuar uma abordagem ao quadro legal espanhol, tanto quanto possível em paralelo com o quadro normativo português, para que nos seja depois possível estabelecer termos de comparação. A sistematização dos diplomas não segue a mesma linha, pelo que a metodologia utilizada será também necessariamente distinta, principalmente pelo facto de a definição de conceitos não obedecer à rigidez que se verifica no plano normativo português. Desta forma, iremos referenciar apenas os diplomas legais que, de forma expressa, se referiram à colaboração das FFAA com as FFSS, no âmbito da Segurança Interna, para além dos mecanismos de coordenação e planos operacionais.
Todas as transcrições em português de diplomas espanhóis constituem tradução livre do autor.
(1) Forças Armadas
A primeira referência que encontrámos remonta a 1976 (ainda no período pré-constitucional), com o Real Decreto n.º 1125/1976, de 8 de abril, que rege a colaboração entre as autoridades civis e as militares em situações consideradas como extraordinárias. Segundo a pesquisa que efetuámos, este diploma define o ponto de partida para a colaboração das FFAA na Segurança Interna, ainda que numa situação muito particular.
A atual Constituição Espanhola data de 29 de dezembro de 1978[15] e no art.º 8., n.º 1, define a missão e constituição das FFAA: “As FFAA, constituídas pelo Exército, Marinha e a Força Aérea, têm como missão garantir a soberania e a independência de Espanha e de defender a sua integridade territorial e ordem constitucional”. O n.º 2 refere: “(...) Uma lei orgânica regulará as bases da organização militar em respeito pelos princípios da presente Constituição”. A referida lei foi inicialmente a Lei Orgânica n.º 6/80, de 1 de julho, revogada pelo Lei Orgânica n.º 5/2005 (Lei da Defesa Nacional), de 17 de novembro, que regulamenta a Defesa Nacional e estabelece as bases da organização militar.
A referida lei, no seu art.º 16.º, estatui que “(…) O cumprimento das missões das FFAA (…) requer a realização de diferentes tipos de operações, quer em território nacional, quer no estrangeiro, o que pode resultar em ações de prevenção de conflitos ou de dissuasão, de manutenção de paz, atuação em situações de crise e, eventualmente, de resposta a agressões. Em particular, essas operações podem consistir em: (…) c) O apoio às FFSS na luta contra o terrorismo e às instituições e organizações responsáveis pelos serviços de resgate em terra, no mar e no ar, em tarefas de busca e salvamento; d) A resposta militar contra os ataques efetuados com aeronaves com fins terroristas, que ameacem a vida das pessoas e bens (…); e) A colaboração com as diferentes autoridades públicas em situações de grave risco, catástrofe ou calamidade pública, em cumprimento do que está legalmente definido”.
A Lei Orgânica 4/1981, de 1 de junho, regulamenta os estados de alarme, de exceção e de sítio, mas faz sempre referência a uma “autoridade militar”, designada nos termos da Constituição, não detalhando como se operam as relações entre as FFAA e as FFSS. É novamente a Lei da Defesa Nacional que regulamenta a forma como se definirão as dependências hierárquicas das FFSS quando declarado o Estado de Sítio, ou, em tempo de guerra, estabelecendo distinções entre a Guardia Civil (passa a depender diretamente do Ministério da Defesa) e o Cuerpo Nacional de Polícia (mantém a dependência do Ministério do Interior)[16].
Em acréscimo, o Real Decreto n.º 96/2009, de 6 de fevereiro, através do qual foram aprovadas as novas Reales Ordenanzas para las Fuerzas Armadas, estatui no seu art.º 103.º (Apoio às FFSS) que, “quando forem atribuídas tarefas de colaboração e apoio às FFSS, deve verificar-se o máximo empenho e dedicação para proteger o livre exercício dos direitos e liberdades dos cidadãos e para garantir a segurança pública”.
(2) Forças de Segurança
Assim, como estabelece a Constituição Espanhola no seu art.º 104.º, n.º 1, as FFSS “(…) sob a dependência do governo, terão como missão proteger o livre exercício dos direitos e liberdades e garantir a segurança pública”. Tal como na norma referente às FFAA, o n.º 2 refere: “Uma lei orgânica determinará as funções, princípios básicos de atuação e estatutos da FFSS”.
Aquela referência reporta-se à Lei Orgânica nº 2/86[17] das FFSS, que define a competência funcional e territorial dos diferentes corpos de segurança do estado. O diploma estatui que, à exceção das competências territoriais das Polícias Autonómicas que exercem nas respetivas capitais provinciais, e das áreas correspondentes às cidades onde está presente o Cuerpo Nacional de Polícia, a Guardia Civil é responsável pelo restante território nacional e mar territorial. Relativamente a este último corpo policial, é feita uma referência expressa ao facto de o seu regime estatutário ser definido em conjunto com as FFAA, implicação que advém do seu estatuto militar. Essa remissão operou-se através do Real Decreto 1437/2010, de 5 de novembro, que alterou o Real Decreto n.º 96/2009, de 6 de fevereiro (Reales Ordenanzas para las FFAA).
A Lei Orgânica 2/86 define também, genericamente, as funções das FFSS, elencando-as no art.º 11.º: “1. As FFSS têm como missão proteger o livre exercício dos direitos e liberdades e garantir a segurança pública, mediante o desempenho das seguintes funções: a) garantir a conformidade com as leis e disposições gerais, executando as ordens recebidas das autoridades, no âmbito das respetivas competências. (b) Auxiliar e proteger as pessoas e assegurar a salvaguarda dos bens que, por qualquer motivo estejam em perigo. (c) Vigiar e proteger os edifícios públicos e instalações que exijam essas medidas. (d) Garantir a proteção e segurança de altas personalidades. (e) Manter e restaurar, a ordem e segurança públicas. (f) Prevenir os atos criminosos. (g) Investigar crimes para identificar e deter suspeitos, assegurar os instrumentos e provas do crime, colocando-os à disposição do juiz ou tribunal competentes. (h) Recolher, receber e analisar os dados com interesse para a ordem e segurança públicas e estudar, planear e executar os métodos e técnicas de prevenção da criminalidade. (i) Colaborar com os serviços de proteção civil em casos de grave risco, catástrofe ou calamidade pública, nos termos estabelecidos na legislação da proteção civil.”
O art.º 9.º, alínea b), reforça a referência já feita na Lei de Defesa Nacional, no sentido de que, em tempo de guerra ou estado de sítio, a Guardia Civil passa a depender exclusivamente do Ministério da Defesa, ao contrário do Cuerpo Nacional de Polícia.
(3) Mecanismos de Coordenação e Planos Operacionais
No país vizinho, ao invés do que ocorre em Portugal, todas as orientações vertidas na Estrategia de Seguridad Nacional (Departamento de Seguridad Nacional, 2013), tem vindo a ser operacionalizadas, conforme se elenca de seguida:
Plan de Prevención y Protección Antiterrorista, de maio de 2015, que revoga o anterior que datava de 9 de março de 2005, que já tinha sido alterado pela Instrucción 4/2009 e pela Instrucción 5/2012 (Gobierno de España – Ministerio del Interior, 2015);
Plan Nacional para la Protección de las Infraestructuras Criticas e Catálogo Nacional de Infraestructuras Estratégicas, elaborados pela Secretaría de Estado de Seguridad del Ministerio del Interior, que datam de Maio 2007 (Gobierno de España – Ministerio del Interior, 2015);
Acuerdo sobre Protección de Infraestructuras Críticas, aprovado pelo Consejo de Ministros, em novembro de 2007 (Gobierno de España – Ministerio del Interior, 2015);
Ley 8/2011, de 28 de abril – Medidas para la Protección de Infraestructuras Críticas (Cortes Generales, 2011);
Real Decreto 704/2011, de 20 de maio – Reglamento de protección de las infraestructuras críticas (Ministerio del Interior, 2011);
Criação do Centro Nacional de Protección de Infraestruturas Críticas – É o órgão responsável pela promoção, coordenação e supervisão de todas as atividades no âmbito das competências da Secretaría de Estado de Seguridad del Ministerio del Interior, em relação à proteção de infraestruturas críticas em Espanha (Centro Nacional para la Protección de las Infraestructuras Críticas, 2015).
Em acréscimo, importa salientar que a ativação desses planos já ocorreu efetivamente em diversas circunstâncias, como, por exemplo, durante Presidência Espanhola do Conselho da União Europeia, em 2010 (Secretaria de Estado de Seguridad, 2010).
Analisados que foram os quadros jurídicos português e espanhol, no sentido de encontrar referências alinhadas com a operacionalização do apoio das FFAA às FFSS no âmbito da Segurança Interna, conclui-se facilmente que os mesmos apresentam muitas semelhanças. Efetivamente, quer no que respeita à proteção civil quer nas situações de grave ameaça[18] ou crise (que em Portugal resultam na declaração de estado de sítio ou de emergência), encontramos alusões expressas a essa possibilidade. Contudo, é de salientar que, mesmo nestas situações, ambos os países colocam uma grande tónica no respeito pelos direitos liberdades e garantias dos cidadãos, restringindo muito a sua limitação.
a. Os textos constitucionais
A grande distinção que identificámos é que, enquanto na CRP existe uma acentuada compartimentação entre os conceitos de Segurança Interna e Defesa Nacional, em que no primeiro caso se atribui expressamente a responsabilidade da sua prossecução às polícias, a Constituição Espanhola não define os conceitos, distinguindo apenas as missões, embora não as particularize, deixando em aberto a possibilidade de as FFSS e as FFAA se organizarem sob os princípios constitucionais, através das respetivas Leis Orgânicas. Este aspeto faz toda a diferença, uma vez que a Lei Orgânica n.º 5/2005, de 17 de novembro, abre claramente a possibilidade de as FFAA espanholas apoiarem as FFSS na luta contra o terrorismo, entre outras situações.
b. Os distintos posicionamentos no plano normativo infraconstitucional
Poder-se-ia, à partida, afirmar que a diferenciação de posturas entre os dois países perante o assunto seria de índole cultural e teria como pano de fundo um fator deveras condicionante: o grau de intensidade da ameaça. Como se sabe, a ameaça terrorista em Espanha já era significativa e intensa muito antes de em Portugal se começar a falar nas “novas e assimétricas ameaças”. Todavia, esta distinta abordagem espanhola prende-se aparentemente com a ocorrência dos atentados em Madrid, em 11 de março de 2004, e não com os persistentes problemas relacionados com o chamado terrorismo doméstico. Tal como refere Miguel Ángel Ballesteros Martín, “La estrategia seguida contra ETA ha mantenido a las fuerzas armadas al margen, con acierto, dada la naturaleza de este terrorismo, excepto en casos puntuales como fue la Operación Alazán en 1981 para impermeabilizar la frontera con Francia en Navarra. A partir de los atentados del 11-M y tras el descubrimiento de una bomba en la línea del AVE, fueron desplegadas para colaborar en la protección de las infraestructuras críticas. Esta operación recibió el nombre de Romeo-Mike y tras un año ya habían intervenido más de 30.000 militares (2006, p. 7)”. O autor agrupa as possíveis missões das FFAA em três tipos: Missões de apoio às FFSS; Missões específicas em território nacional; Missões de apoio às autoridades civis na gestão de consequências de um atentado. Todavia, reforça que, não obstante a participação das FFAA no apoio as FFSS ser de facto necessária, deverá ser alvo de planeamento detalhado e integrar a formação dos elementos de ambas as instituições (Martín, 2006, p. 8).
Na mesma linha, na publicação La Seguridad Integral: España 2020, é referido que “– La redefinición del papel de las Fuerzas Armadas ya se inició con la caída del muro de Berlín, cuando las operaciones internacionales bajo mandato de Naciones Unidas dieron una nueva dimensión a su trabajo. Pero, esencialmente a partir de los atentados de 2001, este redimensionamiento hacia el exterior también se há producido hacia el interior, hasta entonces, campo exclusivo de las policías (Jiménez & Fernández, 2009, p. 75)”.
Resumindo, não obstante a ameaça terrorista internacional pender também sobre Portugal, ao contrário do que aconteceu em Espanha, a sua concretização ainda não se verificou (no contexto atual), o que ajudará a manter os níveis de alerta baixos, adiando a rotura com o atual paradigma nacional.
Salientamos ainda que, em Espanha, para além da abertura constitucional e da referência expressa às missões de Segurança Interna na lei que define a organização das FFAA espanholas, como verificámos, existe depois uma panóplia de normativos com força de lei, decorrente dos documentos estratégicos, que estabelecem todos os necessários mecanismos de coordenação para que, quando ocorram situações que o justifiquem, tudo esteja previsto, sendo por isso fácil de implementar.
A contrario sensu, Portugal padece dos constrangimentos descritos no capítulo anterior, em que, para além do PCCCOFSS, não existe nenhum outro plano operacional que defina e coordene procedimentos nesta matéria, com a agravante de aquele documento ser para aplicação unicamente nas FFSS.
c. A realidade portuguesa
Pese embora todos os muitos sinais legislativos e opinativos que apontam no sentido da mescla entre Segurança Interna e Defesa Nacional, paradoxalmente, o grande obstáculo continua a ser o “todo-poderoso” texto constitucional. A estanquicidade concetual imposta pela CRP relativamente à Segurança Interna e Defesa Nacional, anula toda e qualquer tentativa de legitimar uma colaboração entre FFAA e FFSS no que à Segurança Interna diz respeito. O texto é muito claro e objetivo, ao atribuir unicamente às FFSS a responsabilidade pela Segurança Interna, referindo-se exclusivamente à cooperação das FFAA no que respeita à proteção civil e situações que caiam na declaração de estado de sítio ou de emergência.
A este respeito, diversos autores vêm pugnando pelo alargamento do termo “Defesa Nacional” (atualmente entendido como “defesa militar”) para uma conceção muito mais ampla: “Segurança Nacional”, já que o conceito na sua génese se baseava apenas na origem da ameaça, análise que atualmente se considera desajustada.
Neste sentido, Loureiro dos Santos (2008, p. 77) preconiza mesmo que o termo “Defesa Nacional”, tal como vem definido na Lei, corresponde de facto ao termo “Segurança Nacional”, proveniente da terminologia anglo-saxónica, que se impôs nas organizações de segurança de todo o mundo, incluindo a própria OTAN. O mesmo autor alega que o texto legal simplesmente adotou aquele termo, por influência da terminologia francesa suscitada nos anos 50/60 do século passado.
Todavia, toda a argumentação no sentido de uma interpretação extensiva do texto constitucional, em particular do conceito de “Defesa Nacional”, perde o sentido se analisarmos a LSI e a LDN (como fizemos). Particularizando, não obstante se alegar que a base concetual da CRP data já de 1982, carecendo por isso de uma atualização (Prata, 2010), a LSI foi publicada em 2008 e a LDN em 2009[19] e nenhuma delas verte no seu corpo qualquer referência expressa à participação das FFAA na Segurança Interna. A LSI, no seu art.º 35.º, limita-se a remeter para a CRP (nada acrescentando) e a LDN (à semelhança da LOBOFA), faz apenas uma ténue referência à cooperação entre FFSS e FFAA, “tendo em vista o cumprimento conjugado das respetivas missões no combate a agressões ou ameaças transnacionais”[20]. Ainda a respeito da LDN, datada de 2009 e com uma recente alteração em 2014 (posterior à publicação do último CEDN), surge naturalmente a questão do porquê de não ter sido aproveitada a oportunidade para explicitar concretamente como empenhar as FFAA na Segurança Interna e densificar o conceito de “ameaça transnacional”, já que, no plano da hierarquia das leis, parece-nos ser esse o nível mais adequado.
Efetivamente, a nível legislativo, o CEDN parece ser a única lança em África, mas ainda assim indo pouco mais além: “Aprofundar a cooperação entre as FFAA e as FFSS em missões no combate a agressões e às ameaças transnacionais; As FFAA devem estar preparadas para cumprir missões de: Cooperação com as FFSS no combate a ameaças transnacionais (Conselho de Ministros, 2013, pp. 33, 37)”. Todavia, recorde-se, o CEDN resulta de uma Resolução do Conselho de Ministros e o modelo de análise introduzido não é depois secundarizado por qualquer outro diploma ou plano que conduza à sua operacionalização. Como refere Prata (2010), urge ultrapassar determinados complexos que hipoteticamente fariam sentido em 1982, mas que, no atual contexto das novas e difusas ameaças, constituem um fator gerador de incompreensíveis e perigosas ambiguidades.
Tendo em conta a temática do estudo, exigia-se que densificássemos o conceito de Segurança Interna. Contudo, como se confirmou, dada a estreita relação que o mesmo tem com os conceitos de Segurança Nacional e Defesa Nacional, a abordagem destes tornou-se inevitável e, principalmente, de grande utilidade para ajudar a compreender o primeiro. Dada a área do conhecimento em que se desenrolou o estudo, entendemos fazer todo o sentido começar pelo conceito que se encontra a montante de toda esta temática: A Segurança Humana. Para esse efeito, recorremos a Nelson Lourenço, que afirma que a conceção “pretendeu associar (…) as noções de segurança, direitos humanos e desenvolvimento” (Lourenço, 2015b). Desta forma, percebe-se que qualquer dos restantes conceitos decorre desta abrangente noção de segurança.
Sobre os conceitos de Segurança Nacional e Defesa Nacional, de uma forma sucinta, constatámos que o primeiro, mais amplo, consiste numa condição e que o segundo se traduz num conjunto de medidas multidimensionais, que visam anular todo o tipo de ameaças que coloquem em a causa o primeiro.
Para definir Segurança Interna adotámos uma concetualização recente, articulada por Armando Marques Guedes e Nelson Lourenço, que estabelecem uma ligação inexorável entre este e o conceito de segurança externa, descrevendo-os como interdependentes e concorrendo na ideia de que a fronteira entre ambos está cada vez mais esbatida. Esta abordagem interessou-nos bastante, na medida em que era precisamente esta imanente impossibilidade de compartimentar a Segurança Interna que nos interessava apurar.
No Capítulo 3 iniciou-se o estudo comparativo entre Portugal e Espanha, com uma análise puramente descritiva dos diversos diplomas legais e outros documentos que dão corpo ao quadro normativo vigente. Procurando seguir a hierarquia das leis, iniciámos o estudo com os respetivos textos constitucionais, descendo até chegar aos documentos estratégicos e operacionais que visam dar corpo ao bloco meramente jurídico.
Este labor permitiu que no capítulo seguinte se concretizasse a segunda parte do estudo comparativo, onde conseguimos retirar ilações sobre semelhanças e distinções relativas aos modelos português e espanhol e os seus reflexos.
A principal distinção que identificámos foi que, enquanto na CRP existe uma clara distinção entre Segurança Interna e Defesa Nacional, em que no primeiro caso se atribui expressamente a responsabilidade da sua prossecução às polícias, a Constituição Espanhola não concetualiza, distinguindo apenas as missões e deixando em aberto a possibilidade de as FFSS e as FFAA se organizarem através das respetivas Leis Orgânicas. Confirmámos essa constatação através da análise da Lei Orgânica n.º 5/2005, de 17 de novembro (Lei da Defesa Nacional Espanhola), que abre claramente a possibilidade de as FFAA apoiarem as FFSS na luta contra o terrorismo.
Todavia, verificámos que, mesmo em Espanha, o cenário de apoio das FFAA às FFSS nem sempre foi tão linear, já que só a partir da ocorrência dos atentados em Madrid, em 11 de março de 2004, se assumiu verdadeiramente essa necessidade. Até então, o chamado terrorismo doméstico era campo exclusivo das FFSS, pese embora o altíssimo grau de ameaça inerente. Pode assim especular-se se, ainda que a CRP fosse mais permissiva, seria ou não possível operacionalizar o apoio das FFAA às FFSS em missões de Segurança Interna, já que, pese embora a atual ameaça do terrorismo internacional esteja também presente no nosso país, a mesma ainda não se concretizou.
Por outro lado, em Espanha, para além da aparente abertura que existe no plano legal para a intervenção das FFAA na Segurança Interna, ressalta a efetiva elaboração dos normativos previstos nos documentos estratégicos, que estabelecem os mecanismos de coordenação, contrariamente ao que acontece em Portugal. No nosso país, o único plano operacional existente, que define e coordena procedimentos nesta matéria, é o PCCCOFSS, com a agravante de se destinar para aplicação unicamente nas FFSS, não prevendo qualquer mecanismo concreto de articulação com as FFAA.
Assim, a forma como a CRP compartimenta a Segurança Interna e a Defesa Nacional representa de facto um espartilho atualmente incontornável que, de uma forma consensual e desprovida de falsos pudores, deve ser eliminado, permitindo uma efetiva cooperação das FFAA com as FFSS, inexoravelmente alicerçada na lei. Por outro lado, a argumentação no sentido de se efetuar uma interpretação extensiva do texto constitucional, em particular do conceito de “Defesa Nacional”, perde algum sentido se analisarmos a LSI e a LDN, que mesmo sendo diplomas relativamente recentes não incluem qualquer referência concreta à participação das FFAA na Segurança Interna, remetendo sempre para a CRP.
Na tentativa de respondermos à questão central que definimos no início do estudo, concluímos que o texto constitucional é efetivamente um importante obstáculo ao emprego das FFAA em missões de Segurança Interna em Portugal. Todavia, a rotura com esse dogma não resolverá o problema na sua plenitude. A atual inexistência de mecanismos de coordenação exequíveis, claros e bem implementados (e que prevejam treinos e exercícios conjuntos), compromete todo o processo, pelo que consideramos que o trabalho nesse campo deveria ser iniciado o quanto antes, com envolvência de representantes de todas as instituições implicadas, devidamente mandatados, para que a documentação produzida seja, acima de tudo, consensual e inequívoca.
Contudo, fazendo uma perigosa analogia com a evolução da realidade espanhola, arriscamos avançar que, mesmo que a CRP seja revista, pela forte carga ideológica inerente à utilização das FFAA na Segurança Interna, poderá ser necessário um trigger event, que provoque o mesmo efeito dos atentados de 2004 em Madrid, e que permita finalmente perceber que, no caso da concretização de ameaças transnacionais que, pela sua dimensão, excedam as capacidades das FFSS, podem surgir situações de indefinição quanto ao emprego do instrumento militar, com consequências imprevisíveis, mas que indubitavelmente irão afetar a Segurança Nacional.
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[1] Secretário-geral da Organização das Nações Unidas, de janeiro de 1992 a dezembro de 1996.
[2] “Poverty, disease, famine, oppression and despair abound, joining to produce 17 million refugees, 20 million displaced persons and massive migrations of peoples within and beyond national borders. These are both sources and consequences of conflict that require the ceaseless attention and the highest priority in the efforts of the United Nations (…). So at this moment of renewed opportunity, the efforts of the Organization to build peace, stability and security must encompass matters beyond military threats in order to break the fetters of strife and warfare that have characterized the past” (Council on Foreign Relations, 2015).
[3] Diretor da Revista Nação e Defesa.
[4] VII Revisão Constitucional de 2005.
[5] Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto, alterada pela Rect. N.º 66-A/2008, de 28 de outubro, e pela Lei n.º 59/2015, de 24 de junho.
[6] Lei Orgânica n.º 1-B/2009, de 7 de julho, alterada pela Lei Orgânica n.º 5/2014, de 29 de agosto.
[7] Lei Orgânica n.º 1-A/2009, de 7 de julho, alterada pela Lei Orgânica n.º 6/2014, de 1 de setembro.
[8] Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, alterada pela Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro, e pela Lei Orgânica n.º 1/2012, de 11 de maio.
[9] Aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013, de 21 de março.
[10] Aqui claramente no sentido de se referir a Forças e Serviços de Segurança.
[11] Ver Capítulo V (art.ºs 28.º a 34.º) da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto (Lei de Segurança Interna), com as alterações introduzidas pela Rect. n.º 66-A/2008, de 28 de setembro, e pela Lei n.º 59/2015, de 24 de junho.
[12] Lei n.º 59/2015, de 24 de Junho – Primeira alteração à Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto (LSI), modificando a composição do Conselho Superior de Segurança Interna e a organização e o funcionamento da Unidade de Coordenação Antiterrorismo.
[13] O PCCCOFSS foi aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros n.º 140, de 25 de março de 2010, nos termos do art.º 8.º, n.º 2, alínea c) e art.º 9.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Rect. n.º 66-A/2008, de 28 de setembro, e pela Lei n.º 59/2015, de 24 de junho – LSI, sendo um documento classificado como Confidencial.
[14] Considera-se Infraestrutura Crítica, o elemento, sistema ou parte deste que é essencial para a manutenção de funções vitais para a sociedade, a saúde, a segurança e o bem-estar económico e social, e cuja perturbação, destruição total ou parcial, disfunção ou utilização indevida teria um impacto significativo no Estado, dada a impossibilidade de continuar a assegurar essas funções (Conselho de Ministros, 2010, p. 34).
[15] Revista em 28 de agosto de 1992 e em 27 de setembro de 2011, mas sem que as disposições analisadas tenham sofrido alterações.
[16] Ver artigos 25.º e 27.º.
[17] Revista em 20 de outubro de 1994, 12 de março de 2003, 15 de janeiro de 2004, 3 de janeiro de 2008, 23 de janeiro de 2008, 10 de junho de 2010, 13 de março de 2011, 22 de dezembro de 2013, 30 de julho de 2015 e 18 de agosto de 2015.
[18] Entende-se por ameaça qualquer acontecimento ou ação – em curso ou previsível – que contraria a consecução de um objetivo e que, normalmente, é causador de danos materiais ou morais (Couto, 1987, p. 329).
[19] Embora com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 5/2014, de 29 de agosto.
[20] V. art.º 24.º, n.º 1, e) da LDN e art.º 4.º, n.º 1, e) da LOBOFA.
Mestrado em Ciências Militares, especialidade de Segurança.